quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Capítulo 42

Viajante: A Susana estava pedrada e apática naquele momento, lutar pelo emprego era a menor das suas preocupações. Isso e é orgulhosa. Ainda bem que continuas a gostar :)

Susana voltou a abrir os olhos, acordando-a do torpor em que se encontrava, quando ouviu o ruído do carro da rapariga. “Obrigada…”, pensou, sem se levantar do sofá. Sabia que a morena tinha a chave, daí não ter que se levantar. Não mexeu nem um dedo, limitando-se a escutar os passos no jardim e o barulho de um molho de chaves a ser agitado, até que a namorada finalmente chegou.
Daniela, por sua vez, fizera o percurso até casa da namorada o mais depressa que o trânsito lhe permitira. Porém, sentia-se aliviada por a loura ter dado sinal de vida. Estava ao corrente da situação, mas não iria interferir a não ser que a outra quisesse. No entanto, a última coisa que esperava, ou queria esperar, era sentir um cheiro intenso a erva mal entrou na habitação. Suspirando, entrou na sala, apenas para se deparar com Susana estendida no sofá com o aspecto mais miserável que alguma vez imaginara.
Susana parecia não tomar banho nem trocar de roupa há alguns dias, possivelmente desde o dia em que a avó falecera. Era quase impossível distinguir a cor da t-shirt, de tantas nódoas que tinha e o cabelo podia ser espremido e o que se obteria daria para fritar batatas. Ainda assim, o que assustava era a expressão arrasada na face desta, que apenas pareceu mais feliz por ver a rapariga. Parecia suada, pelo menos tinha a pele brilhante e os olhos estavam injectados de sangue. Mesmo com os lábios secos e estalados, conseguiu chamar pela namorada, num tom frágil.
Daniela acedeu ao pedido, mas com dificuldade. O caminho desde a entrada da divisão até ao local onde se encontrava a outra estava repleto da maior bagunça possível. Diante do sofá, na pequena mesa de madeira lascada, havia restos de mortalhas amachucadas e pontas de cigarros. Cinza espalhada pelo chão, pelo sofá, pela mesa e por cima da loura. Havia também restos de comida enlatada, já estragada na periferia de Susana. Mas o que realmente se destacava era o cheiro, para uma pessoa de olfacto apurado como a rapariga.
Sobretudo por ter acabado de sair da praia, de onde vinha com cheiro a maresia e protector solar, o odor que se fazia sentir era ainda mais intensificado. Insuportável ao ponto de ter sentido bílis e subir-lhe à garganta, quando tentou respirar. O cheiro intenso a erva e tabaco não era tão mau, pelo menos até ser juntado ao odor a suor de há já algum tempo e a comida em decomposição, provavelmente ainda podia acrescentar o cheiro a atum misturado com alargador não limpo. Considerando o quão sensível a morena era a cheiros, sentiu-se nauseada ao ponto de fazer os possíveis por só respirar pela boca.
Susana, mesmo sentindo o corpo todo dormente, levantou o braço para afagar a mão da namorada, que entretanto já se sentara na borda do sofá ao seu lado. O torcer do nariz da morena não lhe passou despercebido, o que a fez sentir-se desconfortável Observou a morena esboçar uma expressão tortuosa, ao observar o sofá, tão manchado quanto a t-shirt da loura. Num acesso de coragem, Daniela sorriu, antes de se curvar para beijar a bochecha alagada em suor da loura, sentindo os lábios ficarem salgados.
“Suse…”, sussurrou a rapariga, afagando-lhe a mão, também peganhenta, “Como estás?”
“Como vês…”, respondeu Susana, gemendo um pouco, só a falar custava-lhe. Se não sentisse o corpo tão dormente, decerto que não ia puder com dores. Não gostava muito que a morena a visse naqueles preparos, mas naquele momento não se importava com algo tão mesquinho quanto isso. Porém, cada vez que aparecia uma expressão nauseada no rosto preocupado de Daniela, a outra encolhia-se de embaraço.
“O teu estado…”, desabafou Daniela, acariciando a face da namorada. Não conseguiu estar ali muito tempo e daria um dedo por uma lufada de ar fresco. “Não podes estar assim…e se fosses tomar banho enquanto eu arrumo isto por aqui?”
“Hm…hm”, conformou-se Susana, tentando levantar-se, mas sem sucesso. Voltou a cair no sofá, deixando cair um fio de saliva pelo canto da boca, que a rapariga limpou com a palma da mão. Disfarçando a sua vontade de limpar a mão a qualquer coisa, a morena ajudou, a algum custo, a loura a levantar-se, o que até não foi muito complicado, pelo menos até ter que a fazer manter-se em pé. Quando a outra passou o braço por cima dos ombros da rapariga, esta observou, com a sensação de ter levado um estalo, diversas marcas de picadas no braço da loura. Daniela quase despejou o conteúdo do estômago ali mesmo. Tanto pela sensação de horror que sentiu como pelo odor. Era pior que um operário de construção civil num dia quente.
Apelando a toda a sua presença de espírito, Daniela conseguiu, não só manter a comida no interior, como transportar Susana até à casa de banho. Sentou-a na sanita, amparando-a para que não caísse e abrir a torneira. Enquanto enchia, tentou tirar a camisola imunda à loura, mas esta não parecia ajudar, mexia-se como uma boneca de trapo. Assim que conseguiu despi-la, atirou com as roupas para o canto e ajudou a outra a entrar na banheira.
Prosseguiu, depois de e certificar que Susana iria ficar bem, a abrir as janelas para deixar a casa arejar e, para ela própria, puder respirar normalmente. Pegou num saco e retirou os restos de comida espalhados pela casa e limpou as cinzas e vestígios do que a loura andara a fazer. Para seu horror, no meio de cinzas encontrou uma seringa e uma colher, o que confirmou as suas suspeitas. Aplicou tira-nódoas no sofá e esperou que aquilo tivesse cura. Só restava o quarto da outra, mas a julgar pela sala, este também não teria a melhor das apresentações. Entrou, a medo, mas que reparasse, era só alguma cinza no chão e a cama por fazer. Susana não era uma pessoa arrumada, portanto o quarto estava como habitualmente.
Houve uma pequena caixa de madeira a chamar-lhe à atenção, em cima da secretária. Sabia que devia respeitar a privacidade da outra, mas a caixa já se encontrava previamente aberta. Espreitou. Manteve o olhar fixo no interior, sem reacção. Não fazia ideia que a loura estava familiarizada com um leque tão vasto de drogas, tanto quanto sabia era só erva e, aquela vez sem exemplo da heroína. Mas a julgar pelo saquinho com um resto de pó branco, obteve a confirmação, aquela não tinha sido a única vez. Suspirando, voltou as costas à caixa, procedendo a procurar roupa limpa para a outra.
Com umas calças de pano e uma t-shirt na mão, entrou na casa de banho, a tempo de ver Susana enrolar-se numa toalha, um pouco mais desperta do que quando a vira naquele dia. Um olhadela rápida à água do banho e notou que esta estava com uma tonalidade cinzenta. Desviando logo a cara, ajudou a loura a vestir-se, uma vez que esta ainda não parecia aguentar-se completamente de pé.
Antes de puderem dar lugar à tão necessária conversa, a rapariga pediu à outra que lavasse os dentes. Não sabia descrever aquele hálito, se bem que era algo que a fazia semicerrar os olhos e suster a respiração, a bem do seu almoço. Assim que Susana se encontrava de novo apresentável, encaminhou-a para a cozinha, uma das divisões mais limpas. Mal a loura se instalou numa das cadeiras, Daniela aproximou-se desta, encostando-a a si. Por sua vez, a outra nada fez senão roçar a face no corpo da morena. A rapariga acariciou-lhe os cabelos, ainda molhados e fê-la olhá-la nos olhos, agora vidrados.
“Quando cheguei ainda a vi…”, deambulou Susana, antes de ser interrompida por um soluço, que foi prontamente reconfortado pela rapariga, “Nem consigo dormir…sem que essa imagem me apareça na cabeça…”
“Tranquei o quarto…nunca mais lá volto”, continuou, constantemente interrompida por um choro que lhe provocava espasmos, apesar do abraço apertado em que a namorada a envolvia e dos seus melhores esforços por a consolar sem nada dizer, “Já não consigo fazer nada, nunca mais apareci no trabalho, não saí de casa nem tratei do funeral…ainda não consigo acreditar que aconteceu mesmo”
“Sinto-me tão sozinha…quase não tenho amigos, não tenho família…”, foi então que Susana foi abaixo, chorando convulsivamente com a cara ainda enterrada no peito de Daniela, “A minha vida fugiu-me ao controlo e agora és a única coisa que me resta”
“Já nem o meu emprego tenho…não sei como é que vou fazer”, disse a outra, já a sentir que as forças a abandonavam, “Acabei com o que tinha na minha caixinha da festa que era a única coisa que me impedia de dar em doida”
“Suse…a última coisa que ela ia querer era que estragasses a tua vida por causa do que aconteceu”, sussurrou Daniela, que nunca tivera muito tacto para situações do género, limitou-se a ser o menos acusadora possível, mas considerava a situação de Susana como estar no fundo do poço e, em vez de pedir uma corda, ainda pedia uma pá para escavar mais fundo, “E enterrares-te em erva não te vai trazer nada se não mais problemas”
“Não sirvo para mais nada”, lastimou-se a loura, embora já nem aguentasse soluçar mais, doía-lhe o peito e as costas, além da cabeça.
“Não digas isso, tens imenso valor, és das melhores pessoas que conheço e nunca desistes…e és a minha menina”, confortou a morena, à medida que ia secando as lágrimas na face da outra, “Por favor não desistas desta vez, estou a teu lado aconteça o que acontecer”
“Podias ficar…esta noite, por favor?”, pediu Susana, num tom frágil, enquanto abraçava a cintura da rapariga, buscando conforto.
“Claro”, assegurou Daniela, antes de ser beijada pela loura, embora sem a intensidade fogosa do costume, apenas um encostar de lábios. Mesmo assim, a morena estava grata por a outra ter lavado os dentes. Parou o beijo para a abraçar, puxando-a para si o mais possível, “Tenho é que tomar banho, não me quero deitar com sal”
“Tudo o que quiseres”, respondeu Susana, sorrindo, pela primeira vez naquele dia, “Vou tratando do jantar”
A rapariga voltou a beijar a loura, antes de ir para a casa de banho, onde tomou um duche em tempo recorde. Sorriu ao notar que a outra lhe havia deixado uma das suas t-shirts largas para que pudesse vestir outra coisa que não o que tinha usado o dia todo. Ao passar a camisola pela cabeça, sentiu o cheiro que esta tinha a Susana, o que a fez sorrir novamente. Abandonou a divisão, logo após se aprontar. Porém, ainda teve que esperar um pouco pelo jantar, se bem que a espera compensou, pois este estava, apesar da disposição da outra, muito bom.
Desfrutaram da refeição, sem pressas e fazendo conversa de circunstância. Ambas se certificaram que assuntos como o desemprego da loura ou as drogas não iam à baila, até porque Susana já havia prometido que iria fazer os seus melhores esforços para mudar o rumo que a sua vida estava a tomar. Assim que terminaram o jantar, a morena ajudou a outra a arrumar a cozinha, antes de lhe dar a mão e de a encaminhar para o quarto. A loura, por seu lado, sentia-se mais amparada do que quando o dia começara, sabia que podia contar com Daniela para tudo. Foi com este pensamento em mente que adormeceu, mas não antes de colocar o braço em torno da cintura da namorada, aconchegando-se nesta.

1 comentário:

  1. Pois, tal como tinha dito, entendo que ela não estivesse lúcida. É o tal "dilema" em que deixas as minhas ideias relativamente às situações da história.
    Quanto à vinda de Daniela, espero que isso venha ajudar (e muito) para a "recuperação" de Susana.
    Aguardo para ver.
    Uma viajante dos blogues :) *

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