Aquela manhã
poderia ser o início de uma segunda-feira trivial, rotineira e enfadonha como
qualquer outra, afinal é unanimemente o dia da semana mais detestável, mas
Afonso tinha um novo alento para ir para as aulas. Em bom rigor, tinha um
incentivo de peso para sair da cama que era, nada mais, nada menos do que o
aniversário de Daniela. Na véspera tinha ido com Sara ao shopping em busca de
uma prenda, enquanto Susana ficara em casa a distraí-la, entendesse-se isso
como se quisesse. Logicamente que, ao passar por um certo beco, não resistira a
apontar à irmã o que quase acontecera ali, ainda que ela apenas lhe dissesse
para parar de sonhar e deixar de ser nojento. Depois de muito esforço, lá
acabou por convencer a irmã de que os eventos daquele dia tinham, de facto,
acontecido e que não haviam sido produto da sua imaginação. Quanto a Rúben,
mais depressa acreditaria que beijara a Dona Adelaide. Porém, pouco ou nada lhe
interessava que acreditasse, o certo era que acontecera e isso bastava-lhe.
Ainda esperou
que Leonor lhe dissesse qualquer coisa mas, durante o fim-de-semana não tivera
essa sorte e, como não tinha coragem para ser ele a falar, parecia que a única
alternativa seria encontrá-la na escola. Sentir-se-ia na mais completa euforia,
caso não temesse ter feito algo que a pudesse afastar. Naquela noite tudo
correra nos conformes e parecia bem encaminhado, ela até correspondera e tudo,
mas o seu silêncio era algo que o preocupava. E se ela tivesse matutado o
assunto e estivesse completamente arrependida? Já estava acostumado, para seu
horror, a que ela se afastasse cada vez que dessem um passo significativo para
se aproximarem. Ele não estava certo de conseguir transpor todas e quaisquer
barreiras que ela levantasse, ainda para mais uma que pudesse ser colocada após
algo desta dimensão.
Como nada podia
fazer de momento a não ser enviar-lhe uma mensagem a dar os bons dias, fez isso
mesmo antes de decidiu dar início ao seu dia. Levantou-se e, pé ante pé,
dirigiu-se ao quarto de Sara. O mundo podia ruir que a irmã não se levantaria
voluntariamente e ainda tinham a prenda para dar à mãe, portanto ele tinha que
a acordar. Felizmente para si que, ao longo dos anos, os seus métodos haviam
ficado cada vez mais eficazes. Pegando na ponta dos lençóis, tirou-lhos
abruptamente de cima, mas não obteve resposta que não um grunhido. Resolvendo
tomar medidas mais drásticas, puxou Sara pelo tornozelo. Uma coisa era ignorar
que lhe tinham tirado os lençóis, outra era ignorar que fora parar ao chão.
Esquivando-se por pouco de um pontapé da irmã, Afonso não se escapou de levar
com a almofada repetidas vezes e uma série de insultos, “És mesmo otário!”
“Calma, maninha
linda”, ironizou o rapaz, ajudando-a a pôr-se de pé, antes de empurrar o saco
com a prenda na direcção de Sara, “Não te esqueceste de que a mãe faz anos
hoje, pois não?”
“Pois, tens
razão, desculpa”, disse a irmã, voltando a colocar a almofada sobre a cama. Admitia
que tinha exagerado, mas ficara tão chateada com o irmão porque era a segunda
noite consecutiva em que mal dormia. A cena que testemunhara entre Tomás e a
mãe em casa perturbara-a, tanto que passara os dois últimos dias a pensar se
aquele episódio não seria a norma. Se fosse, não podia censurar Tomás por ser
como era. Ela estivera lá e Guida parecera-lhe péssima, tanto que se ela
estivesse na situação do rapaz, provavelmente seria ainda pior que ele. Por
outro lado, quando se lembrava daquele momento partilhado devido ao jogo de
vídeo, não conseguia evitar sorrir. Mas era algo que não podia partilhar com o
irmão, sob pena de este ir atrás de Tomás. Com um suspiro mais melancólico do
que gostaria de deixar transparecer, disse, “Bem, vamos lá então”
“Então?”,
inquiriu Afonso, franzindo o sobrolho. Detectara uma certa tristeza no tom de
voz de Sara e isso era algo que ele jamais em tempo algum deixaria passar e, se
a causa de algum tipo de inquietação para a sua irmã tivesse nome, como João
Esteves, por exemplo, ele, Afonso, acabaria por ganhar um saco de boxe novo.
Quando Sara se limitou a encolher os ombros, pressionou, “Há alguma coisa que
te incomode e que eu deva saber?”
“Não, só estou
com sono”, desculpou-se a irmã, consciente de que aquilo não era,
decididamente, algo que pudesse partilhar com o rapaz e essa certeza apenas se
solidificou quando ele começou a enumerar uma lista de possíveis pessoas, desde
o seu professor de educação física que os obrigava a correr mesmo chovendo
torrencialmente, ao cão da vizinha que já tentara morder Mocas. Quando chegou a
um certo Tomás Vieira, Sara foi, novamente, traída pela sua expressão facial,
“A sério Afonso, não me chateies”
“Tem alguma
coisa a ver com esse cabrão, não tem?”, questionou Afonso, passando revista
mental a todos os cenários possíveis que poderiam ter corrido mal na noite em
que a irmã ficara em casa de Tomás. Vendo bem, ela andava mais calada do que o
habitual desde essa noite. Por muito que gostasse de Leonor e, por muito que ir
atrás do irmão dela estragasse as suas hipóteses com ela, não queria saber, a
sua irmã era a sua irmã e ela estava em primeiro lugar nas suas prioridades. Sentindo
uma raiva enorme, ameaçou, “Se ele fez das dele, eu parto-lhe a cara!”
“Cala-te e não
lhe chames isso e não, ele não me fez nada”, contrapôs Sara, desejando nada
mais do que colocar um ponto final naquela conversa, enquanto pegava na prenda
e caminhava para o quarto de Daniela e de Susana, deixando para trás o irmão a
praguejar. E com isto, distraiu-se e abriu a porta do quarto, esquecendo-se de
anunciar a sua chegada primeiro, “Parabéns mãe…Ai!”
Afonso não soube
ao certo o que fora que a irmã testemunhara e, honestamente, também não queria
saber. A imagem de Sara a murmurar várias vezes “eu não vi isto”, seguida da de
Susana, que apareceu com o cabelo mais desgrenhado do que uma noite de sono lhe
poderia provocar, e de Daniela, mais sorridente do que o habitual dadas as
horas que eram, proporcionava-lhe mais do que elementos suficientes sobre o que
seria que a irmã tinha visto. Pegando no saco que Sara abandonara, ofereceu,
“Parabéns, mãe!”
“Obrigada”,
respondeu Daniela, puxando-os aos dois para um abraço. Ao abrir a prenda, foi
com surpreendida com uma mala nova, algo que até lhe vinha a calhar. Sendo que
acertaram em cheio na cor e formato, e não tivera que fingir que a prenda lhe
agradara, como quando lhe ofereceram um boneco de acção, voltou a abraçá-los,
“Era mesmo isto, obrigada”
“Agora vê o meu,
agora vê o meu!”, disse Susana, com o entusiasmo redobrado, correndo ao quarto,
para voltar com uma caixa de pequenas dimensões. Saltitando enquanto Daniela
desfazia o papel que embrulhava o presente, disse, “Estavas mesmo a precisar de
substituir o velho e achei que esse era mesmo giro”
Observando a
caixa cujo exterior era de cetim, Daniela, de expressão apreensiva, previa, a priori, uma prenda demasiado cara para
a sua zona de conforto. Implorando para que fosse apenas um presente simbólico
com um aspecto requintado, lançou um olhar fulminante à mulher. Ao abrir a
caixa, deparando-se com um relógio que, por certo, custaria mais do que um ano
de rendimento seu, gritou, “Isto é exorbitante! Não acredito que me foste
comprar isto”
Decidindo levar
a sua avante daquela vez, Susana, que gostava de mimar, tanto Daniela como os
filhos, sem restrições orçamentais, disse, “E então? O dinheiro não é meu?”
“É! Mas isto é
desnecessário, eu só precisava de um relógio que me desse as horas certas”,
insistiu Daniela, embora acabasse por acalmar quando Susana a puxou para um
abraço. Era em momentos assim que Afonso se sentia muito grato para com o
destino pela família que tinha, dissesse Rúben o que quisesse, criticasse o que
criticasse. Pelo menos não tinha que ver o pai chegar a casa, embriagado, para
depois agredir a mãe. Observando mais uma vez a sua família, pensou no quanto
momentos assim significavam.
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Ver Leonor mais
reservada e cabisbaixa do que o habitual era algo que incomodava Tomás,
chegando mesmo a partilhar da indisposição da irmã. Ainda para mais quando
aquele estado de espírito perdurara durante todo o fim-de-semana e não
aparentava ter melhorado naquela manhã, pelo contrário. Como Guida partira cedo
para uma reunião, Tomás pôde gozar de uma margem de liberdade mais ampla, tanto
que, depois do pequeno-almoço, em vez de correr para as aulas mais depressa do
que as suas pernas o podiam transportar, fora até ao quarto de Leonor, onde a
encontrou a organizar os livros que necessitaria para aquele dia. Sentando-se
na cama, tentou, “Hm…Leonor?”
Pousando os
livros em cima da escrivaninha, Leonor encarou finalmente o irmão, apanhada de
surpresa pela sua presença, até que reparou na sua expressão cabisbaixa, “Ah
desculpa não reparei que estavas aqui…o que se passa?”
“É só que
reparei que não tens andado muito bem…”, esclareceu Tomás, incerto de como a
abordar, tanto que olhava ora para as mãos no colo, ora para a irmã, “Passa-se
alguma coisa, talvez possa ajudar?”
“Oh…não se passa
nada”, assegurou Leonor, embora a preocupação do irmão a tivesse sensibilizado.
Mas aquele era um assunto que ele ainda não conseguia compreender, por isso,
por muito boa vontade que tivesse, não era pessoa com quem ela pudesse sequer
desabafar, quanto mais pedir um conselho. Vendo-o muito pouco convencido, a
rapariga, voltou a garantir-lhe que andava apenas cansada e que não havia
motivos para ele se preocupar. Como não o sossegava, mudou de assunto, “E tu,
que tal te deste com a Sara cá em casa no sábado?”
Para seu grande
espanto, viu uma reacção que nunca antes tivera oportunidade de testemunhar em
Tomás, que corou até à raiz dos cabelos, antes de replicar em voz baixa, “…It
was good”
“O que é isso?”,
brincou Leonor, dando uma cotovelada ao de leve no ombro do irmão, procurando
fazer com que ele lhe desse mais pormenores, ou não fosse aquele um
acontecimento inédito. Tomás, o seu irmão mais novo, socialmente desadequado,
com uma paixoneta? De facto já estava na idade, portanto ela, Leonor, tinha que
começar a pensar em arranjar uma caçadeira para abater as potenciais meninas de
reputação suspeita que se fossem alapar a ele. Impaciente por mais pormenores,
ordenou, “Conta-me tudo”
“Estivemos a
jogar um bocadinho, fomos jantar e depois estivemos a ver televisão”, contou o
irmão, pouco confortável com o tom de voz brincalhão de Leonor. Parecia que estava
a insinuar qualquer coisa e isso era inteiramente novo para ele. Está bem que o
avô dele, o típico macho português, já lhe dissera, para horror de Marta, que
ai dele que fosse “paneleiro” e que qualquer dia também ia andar a “pitar
gajas”, e Tomás já lhe dissera que não havia nada a temer, mas o certo era que
nunca antes havia tido interesse por nenhuma, que fosse mais do que uma
atracção, pelo menos. O que acontecera com Sara naquela noite era algo que ele
ainda não compreendera, mas havia de chagar lá e quando tal sucedesse, então
poria a irmã a par de tudo. O que não lhe agradava de forma alguma era que Sara
tivesse assistido a uma interacção típica entre ele e Guida, tanto que
tencionava falar-lhe sobre isso.
Salvando o rapaz
de ser sujeito a um interrogatório, o telemóvel de Leonor tocou, avisando-a de
que recebera uma mensagem nova. Quando viu o remetente e a mensagem, voltou a
colocar o aparelho no tampo da mesa, pesarosamente, optando por não responder.
Aquilo não seria, de todo, algo que quisesse fazer mas seria, porém, a melhor
alternativa, afinal acima de tudo estava o seu bem-estar e competia-lhe zelar
por ele. Não dando oportunidade a Tomás, a quem o suspiro entristecido da irmã
não escapara, de lhe perguntar o que se passava, pegou nos livros e disse,
“Vamos andando que está quase na hora”
Abanando a
cabeça em tom de reprovação, o irmão seguiu-a. Por muito próximo que fosse da
irmã estava ciente de que era apenas o irmão mais novo e que a diferença de
idades era demasiado grande para que ele a pudesse ajudar, mas isso nada fazia
para o consolar, já que Leonor continuaria mal e ele nada podia fazer. Assim,
achou preferível não voltar a tocar no assunto, passando a viagem de casa à
escola, no banco de trás do carro de Marta, em silêncio. Ao menos aquele carro
não era nem de longe tão exuberante como o de Guida, podia ser que não tivesse
espectadores quando saísse do veículo, sobretudo João, que não suportava.
Despedindo-se da mãe e da irmã, mais amistosamente do que se tratasse de Guida,
foi andando para as aulas.
Ao observar o
pátio, deparou-se com Sara, que conversava com um grupo de raparigas que ele
nunca vira. Quando o avistou, Sara despediu-se do grupo e dirigiu-se a ele. Uma
oportunidade para estar a sós com a rapariga sem que João o interrompesse e
canalizasse a atenção dela para ele, ou sem Cláudia em cima de si, parecia boa
demais. Assim que a cumprimentou, decidiu abordar um assunto que o constrangia
da pior maneira desde a noite de sábado, “Não te queres sentar? Precisava de
falar contigo”
“Pode ser, mas
está tudo bem?”, perguntou Sara, apontando para um banco que ficava perto dali.
Quando se sentaram, ao reparar na postura tensa do rapaz, que parecia olhar
para todo o lado menos para ela, insistiu, “O que é que se passa?”
“I’m sorry that
you had to see that”, explicou Tomás, expirando, antes de se lembrar de que
Sara, muito provavelmente, pouco ou nada conseguira perceber. E a expressão
arregalada dela confirmou-lhe isso mesmo. Abanando a cabeça em jeito de
desculpa, repetiu, “Desculpa…não era suposto teres assistido àquilo no outro
dia”
Erguendo o
sobrolho quando percebeu o que o rapaz queria dizer com aquilo, disse, “Deixa
lá, há quem se chateie com mais facilidade que outros…e grite mais alto que os
outros”
“É o normal lá
em casa”, respondeu o rapaz, encolhendo os ombros. Não estava à espera de
piedade, nem queria que a rapariga sentisse que ele fosse um caso de
solidariedade, mas queria diminuir o choque que fora para ela ter visto a ira
de Guida. Assim talvez Sara esquecesse o dia em que tivera que testemunhar a
sua humilhação e ele ainda fosse a tempo de lhe proporcionar uma imagem que não
fosse a de um coitadinho. Conseguiu, dessa forma, confirmar o que a rapariga
temia.
Foi nesse
momento que Sara sentiu uma onda de compaixão por Tomás. Se agisse de acordo
com o seu instinto, tê-lo-ia abraçado e dito que estava tudo bem, mas o pouco
dele que ele lhe dera a conhecer mostrava alguém muito orgulhoso com uma forte
tendência para ser agressivo, algo que ela não censurava. Pensando melhor, nada
disse, passando-lhe a mão pelo braço, afectuosamente. O toque apanhou o rapaz
desprevenido, embora não se tivesse encolhido nem tirado o braço. Sabia-lhe bem
ser acarinhado sem ser pela irmã, tanto que o rubor voltou. Afagando-lhe o
braço mais uma vez, Sara sorriu-lhe. Com pena de ambos, não deu para que
pudessem falar muito mais, uma vez que entretanto Cláudia e João chegaram.
Se, de um lado,
Cláudia se sentou tão próxima de Tomás que quase estava no colo dele, do outro
lado, João, abordou Sara de tal forma, que esta largou o braço do rapaz, para
frustração deste que lançou um olhar tão intimidante a João que apenas não
fugiu porque isso implicaria deixar Tomás ganhar. Sem tomar conta da troca do
olhares hostis entre João e Tomás, Cláudia cumprimentou, “Olá Tomás, como é que
foi o fim-de-semana? Oh olá Sara”
“Olá, foi bom
obrigado”, retribuiu o rapaz, lembrando-se do esforço que prometera fazer a
Leonor, por ser mais sociável. Parecia que Cláudia substituíra Sara agarrada ao
seu braço, mas se esta se limitara a fazer umas festinhas, a outra agarrara-se
com tanta força que já estaria a deixar marca. João, não deixando de fazer
troça do sotaque de Tomás, ironizou, “Oubrigádou”
As reacções
foram variadas, se Tomás encolheu os ombros para não o sovar, Cláudia suspirou
e confirmou que o sotaque era encantador, e Sara, farta de que o amigo
estivesse sempre a gozar, repreendeu-o, “Epa João, pára com isso”
Se fosse outra
pessoa, noutra altura, Tomás ter-se-ia sentido vexado por o estarem a defender,
pois não gostava de dar parte fraca, mas sentia alguma felicidade por ver que a
rapariga se importava com ele. João, contudo, sentiu-se humilhado. Se tivesse
sido na semana passada, Sara teria rido, mas por algum motivo passara a
defendê-lo. Quase que podia jurar que antes a vira a fazer festinhas a Tomás!
Interacções assim serviam para que João, cuja paixoneta pela rapariga era algo
antiga, perdurando desde os tempos da primária, com a diferença de que
percebera, desde há pouco tempo para cá, que ser simpático jogava mais a seu
favor, em vez de lhe pôr lesmas no cabelo como antes, se apercebesse que devia
fazer alguma coisa, ou iria perder terreno. Viu Tomás a ignorar Cláudia, para
dedicar a sua atenção a Sara, contente, o que o deixou pior que estragado.
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Em vez de ir
directo para a aula que, ainda por cima, era a da Dona Adelaide, Afonso decidiu
dar uma volta pela escola, de modo a encontrar Leonor. Mais valia esclarecer as
suas dúvidas o quanto antes em vez de arrastar a incerteza, que já o consumia.
Para mal dos seus pecados, a rapariga não lhe respondera à mensagem, claro que
se podia dar o caso de não ter saldo no telemóvel ou uma manhã ocupada, mas
quando juntava isso ao seu silêncio durante todo o fim-de-semana, não se lhe
afigurava um cenário muito agradável. Depois de contornar o campo de jogos, de
percorrer o pátio todo e de passar pelo bar, sempre com o nó na garganta a
aumentar, bem como a ansiedade, desistiu, desanimado.
Quando para a
sua sala, ao virar uma esquina, avistou Leonor junto à porta da sala. Sentindo
uma mistura de nervosismo com satisfação por a ver, ainda fez tenções de a
abordar, mas ela, que não reparou nele, ou pelo menos, não pareceu reparar,
entrou dentro da sala com os restantes colegas. Amaldiçoando a sua sorte, o
rapaz não teve outro remédio que não voltar para a sua sala que, por certo, a
Dona Adelaide não lhe perdoaria os cinco minutos de atraso. Uma vez na aula,
depois de ouvir a professora gritar o quão irresponsável ele era, bem como
todos os seus colegas de espécie inferior que não fossem Rúben, resignou-se a
tentar prestar tanta atenção quanto podia, o que não era lá muita. Estava a
ouvir a exposição nada interessante de Dona Adelaide sobre a Primeira Guerra
Mundial, quando Rúben gozou, “Para quem supostamente comeu a Leonor estás cá
com uma cara…”
“Não me
chateies”, pediu Afonso, enquanto copiava os apontamentos do quadro, com o
ânimo de um cadáver. Não sabia porque é que se preocupava com algo tão
mesquinho como isso, mas adoraria poder provar ao amigo que também ele
conseguia que uma rapariga se interessasse por ele e, dessa forma, conseguir a
aprovação de Rúben. Certo que já tinha estado com uma ou outra além de Beatriz,
mas isso havia sido quando fora sair, uma situação ou duas muito esporádicas.
“Acordaste e
viste que foi um sonho?”, troçou Rúben, fazendo-lhe uma festinha no cabelo,
como se faz às crianças pequenas. Sabia que Afonso não era pessoa para inventar
o que quer que fosse, independentemente da imagem que acabasse por transmitir,
mas a ideia de o ver com Leonor parecia-lhe algo abstracta. Conseguia
distinguir aquele tipo de rapariga à distância e, por muito atraente que ela
lhe parecesse, havia ali qualquer coisa que não batia certo e finalmente
percebera o quê. Era, afinal, o tipo de rapariga que ele melhor conhecia:
promíscua, conflituosa, sobretudo para as outras raparigas e, no geral, a
típica aventura de uma noite da qual era melhor manter distância no dia seguinte.
A diferença entre Leonor e esse tipo de rapariga era que Leonor, apesar de não
o enganar, parecia estar a fazer um esforço enorme para transparecer algo
diferente. E, sendo Afonso como era, a última coisa que Rúben queria era vê-lo
envolvido com alguém assim.
Limitando-se a
abanar a cabeça, irritado, o rapaz voltou a focar a sua atenção nos seus
apontamentos. Rúben estava decidido a ser insuportável naquele dia, portanto
ele não queria ter que ouvir as bocas dele. O amigo, reconhecendo que havia procedido
mal, embora nunca o fosse exteriorizar, reflectiu acerca do quanto seria melhor
se pusesse Afonso a par das suas preocupações. Ao vê-lo consultar as horas,
mais irrequieto e nervoso que o normal, presumivelmente, a contar os minutos
para ir ter com a rapariga, Rúben sabia que ele nunca o ouviria, mas era o seu
melhor amigo e, por isso, teria mesmo que ter uma conversa com ele,
sujeitando-se a todas as consequências. Afonso já fizera o mesmo por ele e as
circunstâncias tinham sido bem piores.
Assim que ouviu
a campainha, o rapaz levantou-se imediatamente e teria saído, caso o amigo não
o tivesse segurado por um braço. Não dando qualquer oportunidade a Rúben de se
pronunciar, Afonso sacudiu-o, exasperado, “Estou com pressa, larga-me lá”
“Tenho uma coisa
séria para te dizer, espera um minuto, porque vais ouvir quer queiras, quer
não”, ripostou o amigo, não lhe permitindo dizer mais nada, enquanto o
arrastava para um local mais privado. Quando viu que tinha a atenção do rapaz,
que respirava fundo, impaciente, disse, “Não é que não acredite em ti, porque
sei que tu nunca mentes, mas…e não me dês cabo da cabeça por te dizer isto, não
achas que há algo de errado na Leonor?”
Afonso, que via
o seu tempo precioso de intervalo a ser consumido, não podia acreditar que
Rúben o estava a empatar com uma coisa dessas. Chamando a si toda a calma que
tinha, o que, por aquela altura, não era muita, respondeu, “Não, não acho,
agora posso ir?”
Bloqueando a
passagem do rapaz, o amigo, continuou, mesmo que tivesse a certeza que Afonso
não lhe ia ligar nenhuma, “Olha bem para ela e tenta convencer-me que não é o
mesmo tipo de gaja fácil e porca com que eu me costumo meter! Aquela conversa
já eu conheço, está a disfarçar porque ninguém gosta de ter reputação de puta,
mas que aquilo não é a maneira de ser dela, isso garanto-te”
Aquela conversa
parecia, ao rapaz, algo irreal. Caso fosse considerar aquela ideia absurda,
depressa a colocaria de parte, porque Leonor não lhe dera razões para pensar
que fosse assim, tanto que apenas com muita esforço da parte dele é que ela o
deixara aproximar-se. Ele, por muito que gostasse dela, não estava cego ao
ponto de a pôr num pedestal como se fosse um paradigma de pessoa, mas ela nunca
se comportara como uma das típicas raparigas de Rúben. Mais calmo, respondeu,
“Obrigado por me estares a avisar, mas arrisco na mesma, e agora, se me dás
licença, vou ver se a vejo”
O amigo,
sentindo que, pelo menos, a sua parte tinha feito, deixou-o ir. Restava-lhe
esperar para ver, mas se antes estivera certo em relação a Beatriz, o seu
instinto não o deixaria mal daquela vez. O rapaz, ainda que tivesse contrariado
Rúben, deixou que a incerteza tomasse conta de si. Boa pessoa, decente, linda,
inteligente e interessada nele parecia-lhe um quadro bom demais para ser verdade,
mas até ao momento não tinha razões para duvidar. E daí pensara o mesmo de
Beatriz e enganara-se, mas optou por não pensar nisso, pelo menos, naquele
momento. Passando pelo bar, ao procurar por entre uma imensidão de pessoas,
encontrou Leonor, sentada numa mesa com Adriana. Decidido a abordá-la,
dirigiu-se à mesa e, pondo a mão no ombro dela, saudou,”Bom dia Adriana,
Leonor…Leonor, posso falar contigo?”
Adriana, que não
reparara em Afonso, levantou os olhos do seu café e cumprimentou-o. Só que, ao olhar
para Leonor, viu-a, normalmente bem bronzeada, perder a cor até ganhar um tom
pálido como cera. Naquela manhã notara que ela parecia nervosa, mas atribuiu
isso a uma noite mal dormida, ou a ser apenas impressão sua, uma vez que ela
não dissera nada. Claro que, aquela reacção, bem como o pontapé que lhe dera
por baixo da mesa, indicava que se passava algo e que seria preferível para
ela, ajudá-la. Reclinando-se na cadeira, observou enquanto Leonor respondia, “Estava
a tomar o pequeno-almoço, não pode ser mais tarde?”
Aquela seria a
deixa para Adriana inventar uma desculpa para os deixar a sós, mas como já
entendera, era melhor ficar. Ainda assim, a expressão e frustração de Afonso
era algo que a enchia de pena, mas como aquele assunto não lhe dizia respeito,
nada disse nem tencionava dizer para o descansar. O rapaz insistiu, “Não demora
muito, pode ser?”
Ao ser
pontapeada pela segunda vez, Adriana, com uma nova nódoa negra, captando a
mensagem de auxílio mental da amiga, disse, “Já está quase a tocar e temos
ficha a seguir, Afonso”
Empatá-las não
seria bom para o lado do rapaz, tanto que as teve que deixar ir, mas não sem
garantir a si mesmo que aquela conversa era algo que iria acontecer nem que ele
tivesse que lhe trepar pela janela à noite. Quando já estavam longe do campo de
visão de Afonso, Adriana, curiosa, perguntou, “O que é que aconteceu ali?”
“Nada, só não
quero lidar com ele agora”, contrapôs Leonor, fazendo o melhor que conseguia
por aparentar uma calma que não estava a sentir. Estava consciente de que a
maneira como abordara a situação magoara Afonso e ele não tinha nada a ver com
os seus problemas, essa parte cabia-lhe a ela resolver. Mesmo que se tivessem
passado alguns anos, ainda que as repercussões se tivessem arrastado durante
muito tempo, sempre fora algo com que lidara sozinha. Apenas lamentava que o
tivesse magoado, mas não queria arriscar-se a ter que passar por tudo outra vez
e preferia prevenir em vez de remediar.
“Leonor”,
começou Adriana, a quem o peso da culpa por ter deixado o rapaz ali especado,
tanto que aqueles olhinhos de cachorro abandonado ainda a perseguiam, começava
a incomodar, “Não achas que assim vais magoar aquela alminha?”
“Não me quero é
magoar eu, mas deixa estar que ele esquece daqui a nada”, replicou a rapariga,
encolhendo os ombros, antes de cruzar os braços e olhar para fora da janela,
como se assim pudesse afastar todas as perguntas constrangedoras e, pior ainda,
ter que lidar mesmo com o problema que tinha em mãos.
“Não sei o que
se passou quando foram sair porque não estive lá camuflada para ver”, continuou
a amiga, revirando os olhos por cima das suas lentes enormes, “Mas se estás a
pensar que ele é como o amigo dele, estás enganada”
Também se podia
dar o caso de tudo acabar por correr bem, o passado ficar no passado, morto e
enterrado, e de aquela ser a melhor coisa que podia fazer. Mas Leonor estava
consciente de que, se a fatalidade do destino nunca fora sua amiga, não o seria
agora, e para Adriana, era fácil falar, porque não sabia nada do que lhe acontecera.
E contar-lhe, se bem que era uma opção que não descartava, era algo que a fazia
sentir-se vulnerável, mesmo que Adriana não fosse minimamente intriguista e o
total oposto das suas antigas ditas amizades. A última coisa que queria era que
a informação se espalhasse, afinal estava ali para começar do zero, portanto,
teve tudo isso em conta quando tomou a decisão de falar, “Depois falamos, mas
não aqui”
A sua resposta
parecera deixar Adriana intrigada, mas não voltou a insistir no assunto.
Durante a aula aparentou estar a prestar atenção, mas estava tão nervosa com a
ideia de revelar algo tão pessoal a alguém, ainda por cima alguém que conhecia
havia pouco tempo, que sentia as palmas das mãos suadas. Questionava-se se
estaria a fazer a escolha certa, afinal, agora que pensava nisso, parecia-lhe
impulsivo e pouco característico, mas, os acontecimentos de sábado também o
foram, já nem se estava a reconhecer. Podia dar-se o caso de Adriana a julgar
pelo seu passado e de se recusar a dar com alguém assim ou contar a alguém e
isso espalhar-se. Não era algo que a maioria da população fosse ouvir sem
emitir um juízo de valor, mas a amiga parecia-lhe genuína e, honestamente, a
perspectiva de ter alguém que a ouvisse parecia-lhe um alívio.
Por muito que
ensaiasse mentalmente como contar aquilo, de maneira nenhuma lhe pareceu que
fosse possível fazê-lo sem que soasse tão mau como realmente fora. Não queria,
além disso, perder uma amiga. Foi com um certo pesar que escutou a campainha a
anunciar o fim da aula, avisando-a de que estaria, pela primeira vez, a revelar
um período negro da sua vida que esperava que nunca mais viesse à tona.
Chamando Adriana para um local mais privado, começou, “Consegues manter uma
mente aberta, não me julgar e acreditar que tenho feito tudo para mudar?”
“Não posso
prometer nada…”, respondeu Adriana, honestamente. Não sabendo o que tinha
acontecido na vida de Leonor para ela lhe perguntar algo do género, não
conseguiu dar certezas que não viesse a pensar menos da amiga caso esta lhe revelasse
algo chocante.
“É justo…”,
limitou-se Leonor a constatar, antes de lhe pedir, quase a suplicar, “Mas por
favor não contes nada disto a ninguém”
“Isso já posso
garantir”, assegurou a amiga. Virar túmulo era algo que estava ao seu alcance,
ouvir uma confissão horrível e não emitir juízos de valor era algo que não
estava certa de conseguir fazer. Nem lhe passava pela cabeça o que poderia ser
e já lhe ocorreram as mais diversas ideias, como a possibilidade de Leonor ter
morto alguém de uma maneira deveras sádica ou a existência de um terceiro
mamilo falante.
Detendo-se mais
do que uma vez antes de dizer fosse o que fosse, pois ainda não conseguia
acreditar que estava a falar aquilo, ganhou coragem e acabou por contar, não
deixando para trás um único pormenor, não censurou nada nem tentou eufemizar o
que quer que fosse, também. Não deixou de relatar os acontecimentos de sábado e
as implicações de, possivelmente, Afonso se envolver nos seus problemas, ou,
pior ainda, de ele se tornar um problema. Não se atreveu a olhar directamente
para a amiga, sob pena de se arriscar a ver um esgar de reprovação, esgar esse
que estava certa de estar presente, embora Adriana nunca a tivesse
interrompido. No final, depois do que lhe pareceu uma eternidade, olhou, com
alguma hesitação, para a amiga.
“Wow…”, foi tudo
o que Adriana, que seguira o relato com um esgar da maior estupefacção,
conseguia dizer. Não esperava algo daquela magnitude e, agora que o ouvira, não
sabia o que dizer. Não podia dizer que não estivesse um tanto constrangida com
a imagem que Leonor lhe dera, mas, não sendo ela própria perfeita, ainda que
sempre tivesse tido uma existência pacífica, não lhe cabia julgar. Quando se
recompôs minimamente, encarou a amiga, que perdera toda a cor e parecia
apavorada, e disse, “Não te vou dizer que não me fez impressão…porque fez”
Ouvindo Adriana,
Leonor sentiu o mundo cair-lhe aos pés. Não podia acreditar que confiara na
amiga, para que agora ela, horrorizada com o que ouvira, lhe virar as costas.
Não lhe parecia justo que o desenrolar dos acontecimentos pudesse ser tão
maldoso para ela quando ela admitira o seu erro, aprendera com ele e prometera
não o voltar a fazer. À beira de rebentar em lágrimas, apenas se deteve, porque
Adriana continuou, “Mas ninguém é perfeito, por muito cliché que seja, e
acredito que todos merecem uma segunda oportunidade”
Sentindo-se tão
aliviada que se permitiu a recostar no banco, Leonor, que já não sentia o peso
do mundo em cima de si, abraçou a amiga, que, apanhada de surpresa, não soube o
que mais fazer, além de lhe passar as mãos pelas costas, reconfortando-a e
dizer, “Pronto, já passou, o importante o que fizeres daqui em diante”
“Tenho feito por
não cometer os mesmos erros”, disse a rapariga. Se alguém conseguia colocar de
parte o seu passado menos agradável, então havia motivos para renovar a
esperança de que talvez pudesse criar um futuro novo, de raiz, sem ter
permanentemente o fantasma dos acontecimentos passados a pairar sobre ele.
Lembrando-se do motivo que a fizera contar a sua história, disse, “Agora estás
a ver porque é que não me quero envolver com ninguém? Pelo menos por agora e
não é justo que ele fique à espera que eu me resolva”
“Ele nunca te
poria numa situação dessas, pelo que conheço dele”, respondeu Adriana,
conseguindo empatizar com ambas as partes, “Mas compreendo que estejas
hesitante, eu também estaria, mas pensa nele, não achas que pelo menos lhe
deves uma explicação em vez de o deixares pendurado?”
“Tens razão, mas
não lhe quero dizer o que te acabei de dizer”, replicou Leonor, emocionalmente
esgotada, “Mesmo que dissesse, era provável que ele não me quisesse voltar a
ver, mas…”
A amiga, que não
tencionada puxar mais pela rapariga, esperou que ela continuasse, coisa que
fez, após uma pausa para organizar os pensamentos, “Mas tenho pena que as
coisas tenham que ser assim, até o acho um querido e noutras condições até
podia ser tudo mais simples”
“Vamos lá ver,
não tem que ser assim”, replicou Adriana, embora não lhe pudesse dar uma
previsão totalmente animadora, “É normal que tenhas dificuldade em confiar
completamente nele, mas ele preferiria cortar um braço com uma serra ferrugenta
a fazer-te mal, agora não sei é como ficaria se tu lhe contasses”
“Vamos ver como
corre”, disse Leonor, desanimada. Pelo menos a amiga não a censurava nem
discriminava, já se podia dar por muito feliz. Além de que não lhe alimentara
quaisquer falsas esperanças, fazendo-a ver que a situação não era mesmo a ideal
nem se afigurava pêra doce. Sim, tomara a decisão acertada quando lhe contara,
o que, só por si, já a consolava.
Rindo, do nada, Adriana
exteriorizou algo que ficara a remoer desde que a rapariga lhe relatara o que
acontecera naquela noite, “A sério, ainda não sei como é que ele com os nervos
não acabou a curtir com o teu nariz!”
A tirada fora
tão repentina que apanhou Leonor desprevenida, tanto que corou, antes de grasnar,
num tom agudo, “QUÊ?!”
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Afonso, depois
de muito se queixar da sua sorte, mentalmente, porque detestaria dar o braço a
torcer e admitir a Rúben que as coisas não haviam corrido bem para o seu lado,
resignou-se, mas não definitivamente. No fim das aulas iria falar com Leonor,
era ponto assente. Quando sentiu o telemóvel dar sinal de vida dentro do bolso,
desviou a sua atenção de Fernando Pessoa, para verificar, que o remetente era a
rapariga. Sentindo o estômago às voltas, viu o que dizia:
Podemos falar depois das aulas?
Por muito
decidido que estivesse, a verdade era que sentiu a coragem desvanecer quando
viu que a conversa poderia estar bem mais próxima do que inicialmente pensara.
Respondeu e voltou a colocar o aparelho no bolso, tentando distrair-se com a
aula, antes de decidir que não estava em condições de tentar interpretar
poemas. Ainda para mais, a aula estava perto de chegar ao fim, mas aqueles
minutos, para ele, foram horas. Quando a aula acabou, ligou o piloto automático
e só voltou a tomar consciência de si quando viu Leonor junto à portaria,
séria. Engoliu em seco e dirigiu-se a ela, “Então…vamos andando e falando pelo
caminho? Como ainda tenho que ir buscar a Sara à escola e o Tomás também já
deve estar à espera…”
“Está bem”,
concordou a rapariga, que agradeceu a oportunidade que a proposta lhe dava para
se escapulir com Tomás algures caso a situação se tornasse demasiado
constrangedora para si. Abanando a cabeça, enterrou o pensamento egoísta e
lembrou-se que o plano era fazer o rapaz ver que ficavam melhor como amigos, de
maneira a não o magoar, afinal gostava dele e não o queria ver senão bem.
A uns metros,
Rúben, que assistira à cena, abanou a cabeça em sinal de reprovação e
disse,”Eish, quem me dera ser uma mosca e assistir a isto”
“Já somos dois,
oh bimbo”, retorquiu Adriana, que entretanto surgira ao seu lado, “Já somos
dois”
Ao lado da
rapariga, Afonso não sabia se a deveria deixar começar ou falar primeiro ele.
Tinha tanto para dizer mas não sabia como o fazer. Acima de tudo, tinha medo de
ter procedido mal e que as coisas fossem mudar dali por diante. Como o silêncio
dela não o sossegava, tentou iniciar ele a conversa, “Leonor…quanto ao outro
dia…”
“Foi uma noite
muito agradável, foste muito querido, um cavalheiro e não fizeste nada de mal”,
disse Leonor, interrompendo-o antes que pudesse dizer qualquer coisa. Preferia
ser ela a conduzir a conversa, para que, assim, não houvesse margem para não
dizer tudo o que gostaria, ou para que algo ficasse mal entendido. Não queria
feri-lo nem abater a sua auto-estima, porque realmente adorara a noite, mas
tinha que deixar muito claro que não se iria passar mais nada entre eles que
não amizade. Essa ideia, só por si, custava-lhe mais do que previra. Não se
detendo com o olhar esperançoso dele, disse, “Mas preferia que ficássemos só
amigos”
“É que…”,
murmurou o rapaz, cuja confiança, se antes era equiparável a um carro que se
deslocava a pouca velocidade, passara para um parado e estava, de momento, a
deslocar-se em marcha atrás. A expressão séria da rapariga deveria ter sido
suficiente para que percebesse que o panorama não se afigurava tão ideal como
pensara, mas quando o elogiara quando começara a falar, dera-lhe uma certa
esperança, esperança essa que se dissipara. Não entendia era o porquê de ela
ser assim, ela correspondera e tudo, o que é que poderia ter corrido mal? Não
lhe dando a ela oportunidade para o interromper, decidiu dizer o que tinha a
dizer, pelo menos assim tinha feito tudo o que podia, “Isto vai parecer muito
lamechas e possivelmente ridículo porque não tenho por hábito dizer estas
coisas…”
A rapariga,
pronta para o interpelar, foi interrompida quando ele, não lhe dando
oportunidade de falar, continuou, “...mas achei-te interessante desde a
primeira vez que te vi, tenho a certeza que no fundo és muito querida, mesmo
quando tentas criar distância e…pronto, isto tudo para dizer que…gosto de ti”
Respirando
fundo, Leonor, a quem a informação não era nada que já não soubesse, mas que
ainda assim a fizera sentir-se bem, a ponto de sentir as típicas “borboletas no
estômago”, algo que não lhe acontecia havia muito tempo, conteve o sorriso que
teimava a contradizê-la e respondeu, “Fico muito lisonjeada a sério, mas, como
já disse, ficamos melhor como amigos”
Afonso, por
muito que desejasse dizer mais qualquer coisa, o único som que conseguiu
proferir foi um gemido abafado. Não compreendia o porquê de a rapariga, tendo
em conta o que acontecera entre ambos, não querer nada de mais com ele. Tudo
parecera tão bem encaminhado e ele estava certo de que o sentimento era
recíproco, mesmo que mais forte da parte dele. E se ela estivesse arrependida?
Essa hipótese era agonizante para ele. Vendo o quão o rapaz ficou magoado,
Leonor, passando-lhe a mão pelo braço, tentou consolá-lo, ainda que sentisse
que também ela precisava de consolo, “É que és das poucas pessoas com quem me
dou aqui e não queria estragar isso caso alguma coisa corresse mal”
O contacto
surpreendeu-o, já que não se atreveu a tomar a iniciativa de o estabelecer, com
receio de que ela fosse levar a mal. Pelo menos sempre tinha um motivo que ele
conseguisse compreender, ainda que Afonso o considerasse um tanto absurdo. No
entanto, se fosse a verdade e não uma desculpa, ainda podia manter acesa uma
réstia de esperança que no futuro as coisas corressem melhor, mas seria
preferível não acreditar demasiado nisso, afinal a sorte já o atraiçoara antes.
Depois de um pouco, controlou a vontade de perguntar se ela estava arrependida,
pois não queria ouvir algo de que não gostasse, acabou por dizer, “Pronto…eu
compreendo”
A rapariga
sentia-se consolada pelo facto de a conversa ter ficado por ali, preferindo
mesmo o silêncio desconfortável que se instalou. Para alívio de ambos,
avistava-se a escola dos irmãos. Afonso, ao ver o pátio, lembrou-se dos tempos
que passara ali, tempos esses em que não lidava com inconvenientes como o que
acabara de tomar lugar. Leonor, ao ver Tomás acompanhado por um grupo no qual
estava Sara, pôde esquecer as suas preocupações por um instante e regozijar-se
por o irmão estar a ser bem sucedido no seu esforço por se integrar. Vendo-o
despedir-se, pôde ver que não se dava bem com o rapaz esquelético, cuja cara
parecia a superfície lunar. Quanto a uma rapariga de cabelo claro que se
despedira dele com os olhos brilhantes, fizera-a sentir-se arrepiada. Tinha
mesmo que investir na tal caçadeira…
“A tua irmã é tão
boa”, suspirou João, conseguindo irritar Tomás pela milésima vez naquele dia.
Como se não bastasse ter passado o tempo todo a orbitar em torno de Sara, ainda
tinha a ousadia de fazer comentários daqueles em voz alta. Se não fosse a sua
vontade de se comportar bem diante de Sara e de Leonor, teria enfiado João de
cara na parede. Preferindo ir embora antes que o seu auto-controlo não fosse
suficiente, foi ter com a irmã, acompanhado por Sara, que queria lavar da mente
Cláudia a comentar os braços de Afonso. Já não chegava ficar maravilhada com os
olhos de Tomás…
Sara reparou de
imediato no ar de tristeza do irmão. Sempre percebera facilmente como é que ele
se sentia, mas conseguia visualizar uma nuvem negra e chuvosa por cima dele
naquele momento. Vendo que a disposição de Leonor parecera piorar desde aquela
manhã, Tomás esmoreceu. Mais do que ver a irmã triste, custava-lhe saber que não
a podia ajudar, embora isso não o fosse impedir de a tentar animar.