quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Capítulo 7


Aquela manhã poderia ser o início de uma segunda-feira trivial, rotineira e enfadonha como qualquer outra, afinal é unanimemente o dia da semana mais detestável, mas Afonso tinha um novo alento para ir para as aulas. Em bom rigor, tinha um incentivo de peso para sair da cama que era, nada mais, nada menos do que o aniversário de Daniela. Na véspera tinha ido com Sara ao shopping em busca de uma prenda, enquanto Susana ficara em casa a distraí-la, entendesse-se isso como se quisesse. Logicamente que, ao passar por um certo beco, não resistira a apontar à irmã o que quase acontecera ali, ainda que ela apenas lhe dissesse para parar de sonhar e deixar de ser nojento. Depois de muito esforço, lá acabou por convencer a irmã de que os eventos daquele dia tinham, de facto, acontecido e que não haviam sido produto da sua imaginação. Quanto a Rúben, mais depressa acreditaria que beijara a Dona Adelaide. Porém, pouco ou nada lhe interessava que acreditasse, o certo era que acontecera e isso bastava-lhe.

Ainda esperou que Leonor lhe dissesse qualquer coisa mas, durante o fim-de-semana não tivera essa sorte e, como não tinha coragem para ser ele a falar, parecia que a única alternativa seria encontrá-la na escola. Sentir-se-ia na mais completa euforia, caso não temesse ter feito algo que a pudesse afastar. Naquela noite tudo correra nos conformes e parecia bem encaminhado, ela até correspondera e tudo, mas o seu silêncio era algo que o preocupava. E se ela tivesse matutado o assunto e estivesse completamente arrependida? Já estava acostumado, para seu horror, a que ela se afastasse cada vez que dessem um passo significativo para se aproximarem. Ele não estava certo de conseguir transpor todas e quaisquer barreiras que ela levantasse, ainda para mais uma que pudesse ser colocada após algo desta dimensão.

Como nada podia fazer de momento a não ser enviar-lhe uma mensagem a dar os bons dias, fez isso mesmo antes de decidiu dar início ao seu dia. Levantou-se e, pé ante pé, dirigiu-se ao quarto de Sara. O mundo podia ruir que a irmã não se levantaria voluntariamente e ainda tinham a prenda para dar à mãe, portanto ele tinha que a acordar. Felizmente para si que, ao longo dos anos, os seus métodos haviam ficado cada vez mais eficazes. Pegando na ponta dos lençóis, tirou-lhos abruptamente de cima, mas não obteve resposta que não um grunhido. Resolvendo tomar medidas mais drásticas, puxou Sara pelo tornozelo. Uma coisa era ignorar que lhe tinham tirado os lençóis, outra era ignorar que fora parar ao chão. Esquivando-se por pouco de um pontapé da irmã, Afonso não se escapou de levar com a almofada repetidas vezes e uma série de insultos, “És mesmo otário!”

“Calma, maninha linda”, ironizou o rapaz, ajudando-a a pôr-se de pé, antes de empurrar o saco com a prenda na direcção de Sara, “Não te esqueceste de que a mãe faz anos hoje, pois não?”

“Pois, tens razão, desculpa”, disse a irmã, voltando a colocar a almofada sobre a cama. Admitia que tinha exagerado, mas ficara tão chateada com o irmão porque era a segunda noite consecutiva em que mal dormia. A cena que testemunhara entre Tomás e a mãe em casa perturbara-a, tanto que passara os dois últimos dias a pensar se aquele episódio não seria a norma. Se fosse, não podia censurar Tomás por ser como era. Ela estivera lá e Guida parecera-lhe péssima, tanto que se ela estivesse na situação do rapaz, provavelmente seria ainda pior que ele. Por outro lado, quando se lembrava daquele momento partilhado devido ao jogo de vídeo, não conseguia evitar sorrir. Mas era algo que não podia partilhar com o irmão, sob pena de este ir atrás de Tomás. Com um suspiro mais melancólico do que gostaria de deixar transparecer, disse, “Bem, vamos lá então”

“Então?”, inquiriu Afonso, franzindo o sobrolho. Detectara uma certa tristeza no tom de voz de Sara e isso era algo que ele jamais em tempo algum deixaria passar e, se a causa de algum tipo de inquietação para a sua irmã tivesse nome, como João Esteves, por exemplo, ele, Afonso, acabaria por ganhar um saco de boxe novo. Quando Sara se limitou a encolher os ombros, pressionou, “Há alguma coisa que te incomode e que eu deva saber?”

“Não, só estou com sono”, desculpou-se a irmã, consciente de que aquilo não era, decididamente, algo que pudesse partilhar com o rapaz e essa certeza apenas se solidificou quando ele começou a enumerar uma lista de possíveis pessoas, desde o seu professor de educação física que os obrigava a correr mesmo chovendo torrencialmente, ao cão da vizinha que já tentara morder Mocas. Quando chegou a um certo Tomás Vieira, Sara foi, novamente, traída pela sua expressão facial, “A sério Afonso, não me chateies”

“Tem alguma coisa a ver com esse cabrão, não tem?”, questionou Afonso, passando revista mental a todos os cenários possíveis que poderiam ter corrido mal na noite em que a irmã ficara em casa de Tomás. Vendo bem, ela andava mais calada do que o habitual desde essa noite. Por muito que gostasse de Leonor e, por muito que ir atrás do irmão dela estragasse as suas hipóteses com ela, não queria saber, a sua irmã era a sua irmã e ela estava em primeiro lugar nas suas prioridades. Sentindo uma raiva enorme, ameaçou, “Se ele fez das dele, eu parto-lhe a cara!”

“Cala-te e não lhe chames isso e não, ele não me fez nada”, contrapôs Sara, desejando nada mais do que colocar um ponto final naquela conversa, enquanto pegava na prenda e caminhava para o quarto de Daniela e de Susana, deixando para trás o irmão a praguejar. E com isto, distraiu-se e abriu a porta do quarto, esquecendo-se de anunciar a sua chegada primeiro, “Parabéns mãe…Ai!”

Afonso não soube ao certo o que fora que a irmã testemunhara e, honestamente, também não queria saber. A imagem de Sara a murmurar várias vezes “eu não vi isto”, seguida da de Susana, que apareceu com o cabelo mais desgrenhado do que uma noite de sono lhe poderia provocar, e de Daniela, mais sorridente do que o habitual dadas as horas que eram, proporcionava-lhe mais do que elementos suficientes sobre o que seria que a irmã tinha visto. Pegando no saco que Sara abandonara, ofereceu, “Parabéns, mãe!”

“Obrigada”, respondeu Daniela, puxando-os aos dois para um abraço. Ao abrir a prenda, foi com surpreendida com uma mala nova, algo que até lhe vinha a calhar. Sendo que acertaram em cheio na cor e formato, e não tivera que fingir que a prenda lhe agradara, como quando lhe ofereceram um boneco de acção, voltou a abraçá-los, “Era mesmo isto, obrigada”

“Agora vê o meu, agora vê o meu!”, disse Susana, com o entusiasmo redobrado, correndo ao quarto, para voltar com uma caixa de pequenas dimensões. Saltitando enquanto Daniela desfazia o papel que embrulhava o presente, disse, “Estavas mesmo a precisar de substituir o velho e achei que esse era mesmo giro”

Observando a caixa cujo exterior era de cetim, Daniela, de expressão apreensiva, previa, a priori, uma prenda demasiado cara para a sua zona de conforto. Implorando para que fosse apenas um presente simbólico com um aspecto requintado, lançou um olhar fulminante à mulher. Ao abrir a caixa, deparando-se com um relógio que, por certo, custaria mais do que um ano de rendimento seu, gritou, “Isto é exorbitante! Não acredito que me foste comprar isto”

Decidindo levar a sua avante daquela vez, Susana, que gostava de mimar, tanto Daniela como os filhos, sem restrições orçamentais, disse, “E então? O dinheiro não é meu?”

“É! Mas isto é desnecessário, eu só precisava de um relógio que me desse as horas certas”, insistiu Daniela, embora acabasse por acalmar quando Susana a puxou para um abraço. Era em momentos assim que Afonso se sentia muito grato para com o destino pela família que tinha, dissesse Rúben o que quisesse, criticasse o que criticasse. Pelo menos não tinha que ver o pai chegar a casa, embriagado, para depois agredir a mãe. Observando mais uma vez a sua família, pensou no quanto momentos assim significavam.

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Ver Leonor mais reservada e cabisbaixa do que o habitual era algo que incomodava Tomás, chegando mesmo a partilhar da indisposição da irmã. Ainda para mais quando aquele estado de espírito perdurara durante todo o fim-de-semana e não aparentava ter melhorado naquela manhã, pelo contrário. Como Guida partira cedo para uma reunião, Tomás pôde gozar de uma margem de liberdade mais ampla, tanto que, depois do pequeno-almoço, em vez de correr para as aulas mais depressa do que as suas pernas o podiam transportar, fora até ao quarto de Leonor, onde a encontrou a organizar os livros que necessitaria para aquele dia. Sentando-se na cama, tentou, “Hm…Leonor?”

Pousando os livros em cima da escrivaninha, Leonor encarou finalmente o irmão, apanhada de surpresa pela sua presença, até que reparou na sua expressão cabisbaixa, “Ah desculpa não reparei que estavas aqui…o que se passa?”

“É só que reparei que não tens andado muito bem…”, esclareceu Tomás, incerto de como a abordar, tanto que olhava ora para as mãos no colo, ora para a irmã, “Passa-se alguma coisa, talvez possa ajudar?”

“Oh…não se passa nada”, assegurou Leonor, embora a preocupação do irmão a tivesse sensibilizado. Mas aquele era um assunto que ele ainda não conseguia compreender, por isso, por muito boa vontade que tivesse, não era pessoa com quem ela pudesse sequer desabafar, quanto mais pedir um conselho. Vendo-o muito pouco convencido, a rapariga, voltou a garantir-lhe que andava apenas cansada e que não havia motivos para ele se preocupar. Como não o sossegava, mudou de assunto, “E tu, que tal te deste com a Sara cá em casa no sábado?”

Para seu grande espanto, viu uma reacção que nunca antes tivera oportunidade de testemunhar em Tomás, que corou até à raiz dos cabelos, antes de replicar em voz baixa, “…It was good”

“O que é isso?”, brincou Leonor, dando uma cotovelada ao de leve no ombro do irmão, procurando fazer com que ele lhe desse mais pormenores, ou não fosse aquele um acontecimento inédito. Tomás, o seu irmão mais novo, socialmente desadequado, com uma paixoneta? De facto já estava na idade, portanto ela, Leonor, tinha que começar a pensar em arranjar uma caçadeira para abater as potenciais meninas de reputação suspeita que se fossem alapar a ele. Impaciente por mais pormenores, ordenou, “Conta-me tudo”

“Estivemos a jogar um bocadinho, fomos jantar e depois estivemos a ver televisão”, contou o irmão, pouco confortável com o tom de voz brincalhão de Leonor. Parecia que estava a insinuar qualquer coisa e isso era inteiramente novo para ele. Está bem que o avô dele, o típico macho português, já lhe dissera, para horror de Marta, que ai dele que fosse “paneleiro” e que qualquer dia também ia andar a “pitar gajas”, e Tomás já lhe dissera que não havia nada a temer, mas o certo era que nunca antes havia tido interesse por nenhuma, que fosse mais do que uma atracção, pelo menos. O que acontecera com Sara naquela noite era algo que ele ainda não compreendera, mas havia de chagar lá e quando tal sucedesse, então poria a irmã a par de tudo. O que não lhe agradava de forma alguma era que Sara tivesse assistido a uma interacção típica entre ele e Guida, tanto que tencionava falar-lhe sobre isso.

Salvando o rapaz de ser sujeito a um interrogatório, o telemóvel de Leonor tocou, avisando-a de que recebera uma mensagem nova. Quando viu o remetente e a mensagem, voltou a colocar o aparelho no tampo da mesa, pesarosamente, optando por não responder. Aquilo não seria, de todo, algo que quisesse fazer mas seria, porém, a melhor alternativa, afinal acima de tudo estava o seu bem-estar e competia-lhe zelar por ele. Não dando oportunidade a Tomás, a quem o suspiro entristecido da irmã não escapara, de lhe perguntar o que se passava, pegou nos livros e disse, “Vamos andando que está quase na hora”

Abanando a cabeça em tom de reprovação, o irmão seguiu-a. Por muito próximo que fosse da irmã estava ciente de que era apenas o irmão mais novo e que a diferença de idades era demasiado grande para que ele a pudesse ajudar, mas isso nada fazia para o consolar, já que Leonor continuaria mal e ele nada podia fazer. Assim, achou preferível não voltar a tocar no assunto, passando a viagem de casa à escola, no banco de trás do carro de Marta, em silêncio. Ao menos aquele carro não era nem de longe tão exuberante como o de Guida, podia ser que não tivesse espectadores quando saísse do veículo, sobretudo João, que não suportava. Despedindo-se da mãe e da irmã, mais amistosamente do que se tratasse de Guida, foi andando para as aulas.

Ao observar o pátio, deparou-se com Sara, que conversava com um grupo de raparigas que ele nunca vira. Quando o avistou, Sara despediu-se do grupo e dirigiu-se a ele. Uma oportunidade para estar a sós com a rapariga sem que João o interrompesse e canalizasse a atenção dela para ele, ou sem Cláudia em cima de si, parecia boa demais. Assim que a cumprimentou, decidiu abordar um assunto que o constrangia da pior maneira desde a noite de sábado, “Não te queres sentar? Precisava de falar contigo”

“Pode ser, mas está tudo bem?”, perguntou Sara, apontando para um banco que ficava perto dali. Quando se sentaram, ao reparar na postura tensa do rapaz, que parecia olhar para todo o lado menos para ela, insistiu, “O que é que se passa?”

“I’m sorry that you had to see that”, explicou Tomás, expirando, antes de se lembrar de que Sara, muito provavelmente, pouco ou nada conseguira perceber. E a expressão arregalada dela confirmou-lhe isso mesmo. Abanando a cabeça em jeito de desculpa, repetiu, “Desculpa…não era suposto teres assistido àquilo no outro dia”

Erguendo o sobrolho quando percebeu o que o rapaz queria dizer com aquilo, disse, “Deixa lá, há quem se chateie com mais facilidade que outros…e grite mais alto que os outros”

“É o normal lá em casa”, respondeu o rapaz, encolhendo os ombros. Não estava à espera de piedade, nem queria que a rapariga sentisse que ele fosse um caso de solidariedade, mas queria diminuir o choque que fora para ela ter visto a ira de Guida. Assim talvez Sara esquecesse o dia em que tivera que testemunhar a sua humilhação e ele ainda fosse a tempo de lhe proporcionar uma imagem que não fosse a de um coitadinho. Conseguiu, dessa forma, confirmar o que a rapariga temia.

Foi nesse momento que Sara sentiu uma onda de compaixão por Tomás. Se agisse de acordo com o seu instinto, tê-lo-ia abraçado e dito que estava tudo bem, mas o pouco dele que ele lhe dera a conhecer mostrava alguém muito orgulhoso com uma forte tendência para ser agressivo, algo que ela não censurava. Pensando melhor, nada disse, passando-lhe a mão pelo braço, afectuosamente. O toque apanhou o rapaz desprevenido, embora não se tivesse encolhido nem tirado o braço. Sabia-lhe bem ser acarinhado sem ser pela irmã, tanto que o rubor voltou. Afagando-lhe o braço mais uma vez, Sara sorriu-lhe. Com pena de ambos, não deu para que pudessem falar muito mais, uma vez que entretanto Cláudia e João chegaram.

Se, de um lado, Cláudia se sentou tão próxima de Tomás que quase estava no colo dele, do outro lado, João, abordou Sara de tal forma, que esta largou o braço do rapaz, para frustração deste que lançou um olhar tão intimidante a João que apenas não fugiu porque isso implicaria deixar Tomás ganhar. Sem tomar conta da troca do olhares hostis entre João e Tomás, Cláudia cumprimentou, “Olá Tomás, como é que foi o fim-de-semana? Oh olá Sara”

“Olá, foi bom obrigado”, retribuiu o rapaz, lembrando-se do esforço que prometera fazer a Leonor, por ser mais sociável. Parecia que Cláudia substituíra Sara agarrada ao seu braço, mas se esta se limitara a fazer umas festinhas, a outra agarrara-se com tanta força que já estaria a deixar marca. João, não deixando de fazer troça do sotaque de Tomás, ironizou, “Oubrigádou”

As reacções foram variadas, se Tomás encolheu os ombros para não o sovar, Cláudia suspirou e confirmou que o sotaque era encantador, e Sara, farta de que o amigo estivesse sempre a gozar, repreendeu-o, “Epa João, pára com isso”

Se fosse outra pessoa, noutra altura, Tomás ter-se-ia sentido vexado por o estarem a defender, pois não gostava de dar parte fraca, mas sentia alguma felicidade por ver que a rapariga se importava com ele. João, contudo, sentiu-se humilhado. Se tivesse sido na semana passada, Sara teria rido, mas por algum motivo passara a defendê-lo. Quase que podia jurar que antes a vira a fazer festinhas a Tomás! Interacções assim serviam para que João, cuja paixoneta pela rapariga era algo antiga, perdurando desde os tempos da primária, com a diferença de que percebera, desde há pouco tempo para cá, que ser simpático jogava mais a seu favor, em vez de lhe pôr lesmas no cabelo como antes, se apercebesse que devia fazer alguma coisa, ou iria perder terreno. Viu Tomás a ignorar Cláudia, para dedicar a sua atenção a Sara, contente, o que o deixou pior que estragado.

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Em vez de ir directo para a aula que, ainda por cima, era a da Dona Adelaide, Afonso decidiu dar uma volta pela escola, de modo a encontrar Leonor. Mais valia esclarecer as suas dúvidas o quanto antes em vez de arrastar a incerteza, que já o consumia. Para mal dos seus pecados, a rapariga não lhe respondera à mensagem, claro que se podia dar o caso de não ter saldo no telemóvel ou uma manhã ocupada, mas quando juntava isso ao seu silêncio durante todo o fim-de-semana, não se lhe afigurava um cenário muito agradável. Depois de contornar o campo de jogos, de percorrer o pátio todo e de passar pelo bar, sempre com o nó na garganta a aumentar, bem como a ansiedade, desistiu, desanimado.

Quando para a sua sala, ao virar uma esquina, avistou Leonor junto à porta da sala. Sentindo uma mistura de nervosismo com satisfação por a ver, ainda fez tenções de a abordar, mas ela, que não reparou nele, ou pelo menos, não pareceu reparar, entrou dentro da sala com os restantes colegas. Amaldiçoando a sua sorte, o rapaz não teve outro remédio que não voltar para a sua sala que, por certo, a Dona Adelaide não lhe perdoaria os cinco minutos de atraso. Uma vez na aula, depois de ouvir a professora gritar o quão irresponsável ele era, bem como todos os seus colegas de espécie inferior que não fossem Rúben, resignou-se a tentar prestar tanta atenção quanto podia, o que não era lá muita. Estava a ouvir a exposição nada interessante de Dona Adelaide sobre a Primeira Guerra Mundial, quando Rúben gozou, “Para quem supostamente comeu a Leonor estás cá com uma cara…”

“Não me chateies”, pediu Afonso, enquanto copiava os apontamentos do quadro, com o ânimo de um cadáver. Não sabia porque é que se preocupava com algo tão mesquinho como isso, mas adoraria poder provar ao amigo que também ele conseguia que uma rapariga se interessasse por ele e, dessa forma, conseguir a aprovação de Rúben. Certo que já tinha estado com uma ou outra além de Beatriz, mas isso havia sido quando fora sair, uma situação ou duas muito esporádicas.

“Acordaste e viste que foi um sonho?”, troçou Rúben, fazendo-lhe uma festinha no cabelo, como se faz às crianças pequenas. Sabia que Afonso não era pessoa para inventar o que quer que fosse, independentemente da imagem que acabasse por transmitir, mas a ideia de o ver com Leonor parecia-lhe algo abstracta. Conseguia distinguir aquele tipo de rapariga à distância e, por muito atraente que ela lhe parecesse, havia ali qualquer coisa que não batia certo e finalmente percebera o quê. Era, afinal, o tipo de rapariga que ele melhor conhecia: promíscua, conflituosa, sobretudo para as outras raparigas e, no geral, a típica aventura de uma noite da qual era melhor manter distância no dia seguinte. A diferença entre Leonor e esse tipo de rapariga era que Leonor, apesar de não o enganar, parecia estar a fazer um esforço enorme para transparecer algo diferente. E, sendo Afonso como era, a última coisa que Rúben queria era vê-lo envolvido com alguém assim.

Limitando-se a abanar a cabeça, irritado, o rapaz voltou a focar a sua atenção nos seus apontamentos. Rúben estava decidido a ser insuportável naquele dia, portanto ele não queria ter que ouvir as bocas dele. O amigo, reconhecendo que havia procedido mal, embora nunca o fosse exteriorizar, reflectiu acerca do quanto seria melhor se pusesse Afonso a par das suas preocupações. Ao vê-lo consultar as horas, mais irrequieto e nervoso que o normal, presumivelmente, a contar os minutos para ir ter com a rapariga, Rúben sabia que ele nunca o ouviria, mas era o seu melhor amigo e, por isso, teria mesmo que ter uma conversa com ele, sujeitando-se a todas as consequências. Afonso já fizera o mesmo por ele e as circunstâncias tinham sido bem piores.

Assim que ouviu a campainha, o rapaz levantou-se imediatamente e teria saído, caso o amigo não o tivesse segurado por um braço. Não dando qualquer oportunidade a Rúben de se pronunciar, Afonso sacudiu-o, exasperado, “Estou com pressa, larga-me lá”

“Tenho uma coisa séria para te dizer, espera um minuto, porque vais ouvir quer queiras, quer não”, ripostou o amigo, não lhe permitindo dizer mais nada, enquanto o arrastava para um local mais privado. Quando viu que tinha a atenção do rapaz, que respirava fundo, impaciente, disse, “Não é que não acredite em ti, porque sei que tu nunca mentes, mas…e não me dês cabo da cabeça por te dizer isto, não achas que há algo de errado na Leonor?”

Afonso, que via o seu tempo precioso de intervalo a ser consumido, não podia acreditar que Rúben o estava a empatar com uma coisa dessas. Chamando a si toda a calma que tinha, o que, por aquela altura, não era muita, respondeu, “Não, não acho, agora posso ir?”

Bloqueando a passagem do rapaz, o amigo, continuou, mesmo que tivesse a certeza que Afonso não lhe ia ligar nenhuma, “Olha bem para ela e tenta convencer-me que não é o mesmo tipo de gaja fácil e porca com que eu me costumo meter! Aquela conversa já eu conheço, está a disfarçar porque ninguém gosta de ter reputação de puta, mas que aquilo não é a maneira de ser dela, isso garanto-te”

Aquela conversa parecia, ao rapaz, algo irreal. Caso fosse considerar aquela ideia absurda, depressa a colocaria de parte, porque Leonor não lhe dera razões para pensar que fosse assim, tanto que apenas com muita esforço da parte dele é que ela o deixara aproximar-se. Ele, por muito que gostasse dela, não estava cego ao ponto de a pôr num pedestal como se fosse um paradigma de pessoa, mas ela nunca se comportara como uma das típicas raparigas de Rúben. Mais calmo, respondeu, “Obrigado por me estares a avisar, mas arrisco na mesma, e agora, se me dás licença, vou ver se a vejo”

O amigo, sentindo que, pelo menos, a sua parte tinha feito, deixou-o ir. Restava-lhe esperar para ver, mas se antes estivera certo em relação a Beatriz, o seu instinto não o deixaria mal daquela vez. O rapaz, ainda que tivesse contrariado Rúben, deixou que a incerteza tomasse conta de si. Boa pessoa, decente, linda, inteligente e interessada nele parecia-lhe um quadro bom demais para ser verdade, mas até ao momento não tinha razões para duvidar. E daí pensara o mesmo de Beatriz e enganara-se, mas optou por não pensar nisso, pelo menos, naquele momento. Passando pelo bar, ao procurar por entre uma imensidão de pessoas, encontrou Leonor, sentada numa mesa com Adriana. Decidido a abordá-la, dirigiu-se à mesa e, pondo a mão no ombro dela, saudou,”Bom dia Adriana, Leonor…Leonor, posso falar contigo?”

Adriana, que não reparara em Afonso, levantou os olhos do seu café e cumprimentou-o. Só que, ao olhar para Leonor, viu-a, normalmente bem bronzeada, perder a cor até ganhar um tom pálido como cera. Naquela manhã notara que ela parecia nervosa, mas atribuiu isso a uma noite mal dormida, ou a ser apenas impressão sua, uma vez que ela não dissera nada. Claro que, aquela reacção, bem como o pontapé que lhe dera por baixo da mesa, indicava que se passava algo e que seria preferível para ela, ajudá-la. Reclinando-se na cadeira, observou enquanto Leonor respondia, “Estava a tomar o pequeno-almoço, não pode ser mais tarde?”

Aquela seria a deixa para Adriana inventar uma desculpa para os deixar a sós, mas como já entendera, era melhor ficar. Ainda assim, a expressão e frustração de Afonso era algo que a enchia de pena, mas como aquele assunto não lhe dizia respeito, nada disse nem tencionava dizer para o descansar. O rapaz insistiu, “Não demora muito, pode ser?”

Ao ser pontapeada pela segunda vez, Adriana, com uma nova nódoa negra, captando a mensagem de auxílio mental da amiga, disse, “Já está quase a tocar e temos ficha a seguir, Afonso”

Empatá-las não seria bom para o lado do rapaz, tanto que as teve que deixar ir, mas não sem garantir a si mesmo que aquela conversa era algo que iria acontecer nem que ele tivesse que lhe trepar pela janela à noite. Quando já estavam longe do campo de visão de Afonso, Adriana, curiosa, perguntou, “O que é que aconteceu ali?”

“Nada, só não quero lidar com ele agora”, contrapôs Leonor, fazendo o melhor que conseguia por aparentar uma calma que não estava a sentir. Estava consciente de que a maneira como abordara a situação magoara Afonso e ele não tinha nada a ver com os seus problemas, essa parte cabia-lhe a ela resolver. Mesmo que se tivessem passado alguns anos, ainda que as repercussões se tivessem arrastado durante muito tempo, sempre fora algo com que lidara sozinha. Apenas lamentava que o tivesse magoado, mas não queria arriscar-se a ter que passar por tudo outra vez e preferia prevenir em vez de remediar.

“Leonor”, começou Adriana, a quem o peso da culpa por ter deixado o rapaz ali especado, tanto que aqueles olhinhos de cachorro abandonado ainda a perseguiam, começava a incomodar, “Não achas que assim vais magoar aquela alminha?”

“Não me quero é magoar eu, mas deixa estar que ele esquece daqui a nada”, replicou a rapariga, encolhendo os ombros, antes de cruzar os braços e olhar para fora da janela, como se assim pudesse afastar todas as perguntas constrangedoras e, pior ainda, ter que lidar mesmo com o problema que tinha em mãos.

“Não sei o que se passou quando foram sair porque não estive lá camuflada para ver”, continuou a amiga, revirando os olhos por cima das suas lentes enormes, “Mas se estás a pensar que ele é como o amigo dele, estás enganada”

Também se podia dar o caso de tudo acabar por correr bem, o passado ficar no passado, morto e enterrado, e de aquela ser a melhor coisa que podia fazer. Mas Leonor estava consciente de que, se a fatalidade do destino nunca fora sua amiga, não o seria agora, e para Adriana, era fácil falar, porque não sabia nada do que lhe acontecera. E contar-lhe, se bem que era uma opção que não descartava, era algo que a fazia sentir-se vulnerável, mesmo que Adriana não fosse minimamente intriguista e o total oposto das suas antigas ditas amizades. A última coisa que queria era que a informação se espalhasse, afinal estava ali para começar do zero, portanto, teve tudo isso em conta quando tomou a decisão de falar, “Depois falamos, mas não aqui”

A sua resposta parecera deixar Adriana intrigada, mas não voltou a insistir no assunto. Durante a aula aparentou estar a prestar atenção, mas estava tão nervosa com a ideia de revelar algo tão pessoal a alguém, ainda por cima alguém que conhecia havia pouco tempo, que sentia as palmas das mãos suadas. Questionava-se se estaria a fazer a escolha certa, afinal, agora que pensava nisso, parecia-lhe impulsivo e pouco característico, mas, os acontecimentos de sábado também o foram, já nem se estava a reconhecer. Podia dar-se o caso de Adriana a julgar pelo seu passado e de se recusar a dar com alguém assim ou contar a alguém e isso espalhar-se. Não era algo que a maioria da população fosse ouvir sem emitir um juízo de valor, mas a amiga parecia-lhe genuína e, honestamente, a perspectiva de ter alguém que a ouvisse parecia-lhe um alívio.

Por muito que ensaiasse mentalmente como contar aquilo, de maneira nenhuma lhe pareceu que fosse possível fazê-lo sem que soasse tão mau como realmente fora. Não queria, além disso, perder uma amiga. Foi com um certo pesar que escutou a campainha a anunciar o fim da aula, avisando-a de que estaria, pela primeira vez, a revelar um período negro da sua vida que esperava que nunca mais viesse à tona. Chamando Adriana para um local mais privado, começou, “Consegues manter uma mente aberta, não me julgar e acreditar que tenho feito tudo para mudar?”

“Não posso prometer nada…”, respondeu Adriana, honestamente. Não sabendo o que tinha acontecido na vida de Leonor para ela lhe perguntar algo do género, não conseguiu dar certezas que não viesse a pensar menos da amiga caso esta lhe revelasse algo chocante.

“É justo…”, limitou-se Leonor a constatar, antes de lhe pedir, quase a suplicar, “Mas por favor não contes nada disto a ninguém”

“Isso já posso garantir”, assegurou a amiga. Virar túmulo era algo que estava ao seu alcance, ouvir uma confissão horrível e não emitir juízos de valor era algo que não estava certa de conseguir fazer. Nem lhe passava pela cabeça o que poderia ser e já lhe ocorreram as mais diversas ideias, como a possibilidade de Leonor ter morto alguém de uma maneira deveras sádica ou a existência de um terceiro mamilo falante.

Detendo-se mais do que uma vez antes de dizer fosse o que fosse, pois ainda não conseguia acreditar que estava a falar aquilo, ganhou coragem e acabou por contar, não deixando para trás um único pormenor, não censurou nada nem tentou eufemizar o que quer que fosse, também. Não deixou de relatar os acontecimentos de sábado e as implicações de, possivelmente, Afonso se envolver nos seus problemas, ou, pior ainda, de ele se tornar um problema. Não se atreveu a olhar directamente para a amiga, sob pena de se arriscar a ver um esgar de reprovação, esgar esse que estava certa de estar presente, embora Adriana nunca a tivesse interrompido. No final, depois do que lhe pareceu uma eternidade, olhou, com alguma hesitação, para a amiga.

“Wow…”, foi tudo o que Adriana, que seguira o relato com um esgar da maior estupefacção, conseguia dizer. Não esperava algo daquela magnitude e, agora que o ouvira, não sabia o que dizer. Não podia dizer que não estivesse um tanto constrangida com a imagem que Leonor lhe dera, mas, não sendo ela própria perfeita, ainda que sempre tivesse tido uma existência pacífica, não lhe cabia julgar. Quando se recompôs minimamente, encarou a amiga, que perdera toda a cor e parecia apavorada, e disse, “Não te vou dizer que não me fez impressão…porque fez”

Ouvindo Adriana, Leonor sentiu o mundo cair-lhe aos pés. Não podia acreditar que confiara na amiga, para que agora ela, horrorizada com o que ouvira, lhe virar as costas. Não lhe parecia justo que o desenrolar dos acontecimentos pudesse ser tão maldoso para ela quando ela admitira o seu erro, aprendera com ele e prometera não o voltar a fazer. À beira de rebentar em lágrimas, apenas se deteve, porque Adriana continuou, “Mas ninguém é perfeito, por muito cliché que seja, e acredito que todos merecem uma segunda oportunidade”

Sentindo-se tão aliviada que se permitiu a recostar no banco, Leonor, que já não sentia o peso do mundo em cima de si, abraçou a amiga, que, apanhada de surpresa, não soube o que mais fazer, além de lhe passar as mãos pelas costas, reconfortando-a e dizer, “Pronto, já passou, o importante o que fizeres daqui em diante”

“Tenho feito por não cometer os mesmos erros”, disse a rapariga. Se alguém conseguia colocar de parte o seu passado menos agradável, então havia motivos para renovar a esperança de que talvez pudesse criar um futuro novo, de raiz, sem ter permanentemente o fantasma dos acontecimentos passados a pairar sobre ele. Lembrando-se do motivo que a fizera contar a sua história, disse, “Agora estás a ver porque é que não me quero envolver com ninguém? Pelo menos por agora e não é justo que ele fique à espera que eu me resolva”
“Ele nunca te poria numa situação dessas, pelo que conheço dele”, respondeu Adriana, conseguindo empatizar com ambas as partes, “Mas compreendo que estejas hesitante, eu também estaria, mas pensa nele, não achas que pelo menos lhe deves uma explicação em vez de o deixares pendurado?”

“Tens razão, mas não lhe quero dizer o que te acabei de dizer”, replicou Leonor, emocionalmente esgotada, “Mesmo que dissesse, era provável que ele não me quisesse voltar a ver, mas…”

A amiga, que não tencionada puxar mais pela rapariga, esperou que ela continuasse, coisa que fez, após uma pausa para organizar os pensamentos, “Mas tenho pena que as coisas tenham que ser assim, até o acho um querido e noutras condições até podia ser tudo mais simples”

“Vamos lá ver, não tem que ser assim”, replicou Adriana, embora não lhe pudesse dar uma previsão totalmente animadora, “É normal que tenhas dificuldade em confiar completamente nele, mas ele preferiria cortar um braço com uma serra ferrugenta a fazer-te mal, agora não sei é como ficaria se tu lhe contasses”

“Vamos ver como corre”, disse Leonor, desanimada. Pelo menos a amiga não a censurava nem discriminava, já se podia dar por muito feliz. Além de que não lhe alimentara quaisquer falsas esperanças, fazendo-a ver que a situação não era mesmo a ideal nem se afigurava pêra doce. Sim, tomara a decisão acertada quando lhe contara, o que, só por si, já a consolava.

Rindo, do nada, Adriana exteriorizou algo que ficara a remoer desde que a rapariga lhe relatara o que acontecera naquela noite, “A sério, ainda não sei como é que ele com os nervos não acabou a curtir com o teu nariz!”

A tirada fora tão repentina que apanhou Leonor desprevenida, tanto que corou, antes de grasnar, num tom agudo, “QUÊ?!”

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Afonso, depois de muito se queixar da sua sorte, mentalmente, porque detestaria dar o braço a torcer e admitir a Rúben que as coisas não haviam corrido bem para o seu lado, resignou-se, mas não definitivamente. No fim das aulas iria falar com Leonor, era ponto assente. Quando sentiu o telemóvel dar sinal de vida dentro do bolso, desviou a sua atenção de Fernando Pessoa, para verificar, que o remetente era a rapariga. Sentindo o estômago às voltas, viu o que dizia:

Podemos falar depois das aulas?

Por muito decidido que estivesse, a verdade era que sentiu a coragem desvanecer quando viu que a conversa poderia estar bem mais próxima do que inicialmente pensara. Respondeu e voltou a colocar o aparelho no bolso, tentando distrair-se com a aula, antes de decidir que não estava em condições de tentar interpretar poemas. Ainda para mais, a aula estava perto de chegar ao fim, mas aqueles minutos, para ele, foram horas. Quando a aula acabou, ligou o piloto automático e só voltou a tomar consciência de si quando viu Leonor junto à portaria, séria. Engoliu em seco e dirigiu-se a ela, “Então…vamos andando e falando pelo caminho? Como ainda tenho que ir buscar a Sara à escola e o Tomás também já deve estar à espera…”

“Está bem”, concordou a rapariga, que agradeceu a oportunidade que a proposta lhe dava para se escapulir com Tomás algures caso a situação se tornasse demasiado constrangedora para si. Abanando a cabeça, enterrou o pensamento egoísta e lembrou-se que o plano era fazer o rapaz ver que ficavam melhor como amigos, de maneira a não o magoar, afinal gostava dele e não o queria ver senão bem.

A uns metros, Rúben, que assistira à cena, abanou a cabeça em sinal de reprovação e disse,”Eish, quem me dera ser uma mosca e assistir a isto”

“Já somos dois, oh bimbo”, retorquiu Adriana, que entretanto surgira ao seu lado, “Já somos dois”

Ao lado da rapariga, Afonso não sabia se a deveria deixar começar ou falar primeiro ele. Tinha tanto para dizer mas não sabia como o fazer. Acima de tudo, tinha medo de ter procedido mal e que as coisas fossem mudar dali por diante. Como o silêncio dela não o sossegava, tentou iniciar ele a conversa, “Leonor…quanto ao outro dia…”

“Foi uma noite muito agradável, foste muito querido, um cavalheiro e não fizeste nada de mal”, disse Leonor, interrompendo-o antes que pudesse dizer qualquer coisa. Preferia ser ela a conduzir a conversa, para que, assim, não houvesse margem para não dizer tudo o que gostaria, ou para que algo ficasse mal entendido. Não queria feri-lo nem abater a sua auto-estima, porque realmente adorara a noite, mas tinha que deixar muito claro que não se iria passar mais nada entre eles que não amizade. Essa ideia, só por si, custava-lhe mais do que previra. Não se detendo com o olhar esperançoso dele, disse, “Mas preferia que ficássemos só amigos”

“É que…”, murmurou o rapaz, cuja confiança, se antes era equiparável a um carro que se deslocava a pouca velocidade, passara para um parado e estava, de momento, a deslocar-se em marcha atrás. A expressão séria da rapariga deveria ter sido suficiente para que percebesse que o panorama não se afigurava tão ideal como pensara, mas quando o elogiara quando começara a falar, dera-lhe uma certa esperança, esperança essa que se dissipara. Não entendia era o porquê de ela ser assim, ela correspondera e tudo, o que é que poderia ter corrido mal? Não lhe dando a ela oportunidade para o interromper, decidiu dizer o que tinha a dizer, pelo menos assim tinha feito tudo o que podia, “Isto vai parecer muito lamechas e possivelmente ridículo porque não tenho por hábito dizer estas coisas…”

A rapariga, pronta para o interpelar, foi interrompida quando ele, não lhe dando oportunidade de falar, continuou, “...mas achei-te interessante desde a primeira vez que te vi, tenho a certeza que no fundo és muito querida, mesmo quando tentas criar distância e…pronto, isto tudo para dizer que…gosto de ti”

Respirando fundo, Leonor, a quem a informação não era nada que já não soubesse, mas que ainda assim a fizera sentir-se bem, a ponto de sentir as típicas “borboletas no estômago”, algo que não lhe acontecia havia muito tempo, conteve o sorriso que teimava a contradizê-la e respondeu, “Fico muito lisonjeada a sério, mas, como já disse, ficamos melhor como amigos”

Afonso, por muito que desejasse dizer mais qualquer coisa, o único som que conseguiu proferir foi um gemido abafado. Não compreendia o porquê de a rapariga, tendo em conta o que acontecera entre ambos, não querer nada de mais com ele. Tudo parecera tão bem encaminhado e ele estava certo de que o sentimento era recíproco, mesmo que mais forte da parte dele. E se ela estivesse arrependida? Essa hipótese era agonizante para ele. Vendo o quão o rapaz ficou magoado, Leonor, passando-lhe a mão pelo braço, tentou consolá-lo, ainda que sentisse que também ela precisava de consolo, “É que és das poucas pessoas com quem me dou aqui e não queria estragar isso caso alguma coisa corresse mal”

O contacto surpreendeu-o, já que não se atreveu a tomar a iniciativa de o estabelecer, com receio de que ela fosse levar a mal. Pelo menos sempre tinha um motivo que ele conseguisse compreender, ainda que Afonso o considerasse um tanto absurdo. No entanto, se fosse a verdade e não uma desculpa, ainda podia manter acesa uma réstia de esperança que no futuro as coisas corressem melhor, mas seria preferível não acreditar demasiado nisso, afinal a sorte já o atraiçoara antes. Depois de um pouco, controlou a vontade de perguntar se ela estava arrependida, pois não queria ouvir algo de que não gostasse, acabou por dizer, “Pronto…eu compreendo”

A rapariga sentia-se consolada pelo facto de a conversa ter ficado por ali, preferindo mesmo o silêncio desconfortável que se instalou. Para alívio de ambos, avistava-se a escola dos irmãos. Afonso, ao ver o pátio, lembrou-se dos tempos que passara ali, tempos esses em que não lidava com inconvenientes como o que acabara de tomar lugar. Leonor, ao ver Tomás acompanhado por um grupo no qual estava Sara, pôde esquecer as suas preocupações por um instante e regozijar-se por o irmão estar a ser bem sucedido no seu esforço por se integrar. Vendo-o despedir-se, pôde ver que não se dava bem com o rapaz esquelético, cuja cara parecia a superfície lunar. Quanto a uma rapariga de cabelo claro que se despedira dele com os olhos brilhantes, fizera-a sentir-se arrepiada. Tinha mesmo que investir na tal caçadeira…

“A tua irmã é tão boa”, suspirou João, conseguindo irritar Tomás pela milésima vez naquele dia. Como se não bastasse ter passado o tempo todo a orbitar em torno de Sara, ainda tinha a ousadia de fazer comentários daqueles em voz alta. Se não fosse a sua vontade de se comportar bem diante de Sara e de Leonor, teria enfiado João de cara na parede. Preferindo ir embora antes que o seu auto-controlo não fosse suficiente, foi ter com a irmã, acompanhado por Sara, que queria lavar da mente Cláudia a comentar os braços de Afonso. Já não chegava ficar maravilhada com os olhos de Tomás…

Sara reparou de imediato no ar de tristeza do irmão. Sempre percebera facilmente como é que ele se sentia, mas conseguia visualizar uma nuvem negra e chuvosa por cima dele naquele momento. Vendo que a disposição de Leonor parecera piorar desde aquela manhã, Tomás esmoreceu. Mais do que ver a irmã triste, custava-lhe saber que não a podia ajudar, embora isso não o fosse impedir de a tentar animar.