Tendo
em consideração que aquela era a última noite do ano, não se podia dizer que
não estivesse agradável. Desde o céu límpido à ausência de aragem gélida tão
característica daquela altura, o ambiente convidava a uma noite passada fora de
casa. Enquanto contemplava, através do vidro da sua janela, o céu nocturno,
Leonor, debruçando-se sobre o parapeito, disse, absorta, sem encarar a sua
interlocutora, “Sabes quando tens aquela sensação que algo vai acontecer em breve,
só não sabes o quê?”
“É
essa a sensação que tens agora?”, questionou Adriana, tomando a liberdade de se
sentar na cama de Leonor. Se iria ter de esperar durante um período de tempo
indefinido, ao menos que o fizesse confortável. Quando a amiga lhe confirmou
que, de facto, achava que alguma coisa importante iria acontecer, respondeu, encolhendo
os ombros, “Aceitam-se apostas, o que é que achas que pode ser?”
“Não
sei”, disse Leonor, passando a mão pelos cabelos que teimavam em cair-lhe para
a cara. Implorava a todos os santinhos, no entanto, que não tivesse nada que
ver com Tomás. Se havia coisa que não queria era ver que o seu irmão não
soubera estar à altura das expectativas, o que, para desagrado seu, iria cair
muito bem a Guida que, desde que dera permissão a Tomás para ir, o vinha a
aborrecer diariamente, insinuando que ele iria fazer alguma coisa. Se o seu
irmão se portasse bem, o que mais poderia acontecer de tanta importância que a
inquietasse daquela forma?
Provando
uma vez mais que ler mentes era mais uma das suas habilidades, Adriana disse,
como se estivesse apenas a constatar um facto e não precisasse de uma resposta,
“O que quer que se passe entre ti e o Afonso, não achas que, mais cedo ou mais
tarde, vão ter, inevitavelmente, que falar sobre isso?”
“Já
me ocorreu mas, enquanto poder adiar, prefiro fazê-lo”, respondeu Leonor,
encostando-se ao parapeito, de modo a encarar finalmente a amiga. Suspirando,
como se, de repente, estivesse esgotada, continuou, “Já pensei em não lhe dizer
nada sobre aquilo, o que nos facilitaria muito a vida, eu podia até começar do
zero e o passado ficaria enterrado, ele não tem obrigatoriamente que saber”
“Sabes
o que é que eu acho dessa ideia, nada fica eternamente em segredo e, se ele
vier a saber por alguém que não tu, vai ser pior”, contrariou Adriana, abanando
a cabeça em sinal de reprovação, “E ele é tão boa pessoa, ele merecia que
fosses completamente honesta com ele, não te parece? Se ele iria ficar abalado
ou não com o que lhe contares e como procederia daí, isso não te posso dar
certezas, mas que ele deveria estar a par de tudo, isso acho que sim”
“Talvez
tenhas razão, obrigada pelo teu input na situação”, agradeceu Leonor,
honestamente. O que gostava em Adriana, sobretudo, era o facto de ela não lhe
dizer apenas o que queria ouvir, mas sim, ter em consideração os seus melhores
interesses, o que era algo louvável, fazia-a sentir que alguém que não a sua
família queria o seu bem e não estava a planear apunhalá-la pelas costas.
Preferindo mudar de assunto, ou não fosse não desejar ocupar os seus
pensamentos com preocupações, comentou, num tom bem-disposto, “Então e o André?
Não estás ansiosa?”
“Sabes,
até não estou nervosa nem apreensiva”, confessou Adriana, embora tivesse voltado
a cara para que a amiga não se apercebesse de que tinha corado um pouco, afinal
era bastante inexperiente no campo amoroso, ou as suas experiências não se
resumissem a Rúben a gozar consigo a torto e a direito, o que lhe diminuiu e
muito a auto-estima, ainda que isso lhe custasse a admitir, pois gostava de dar
a entender que não se deixava afectar com pormenores desses, “Ele deixa-me
mesmo muito à vontade”
“Oh
querida”, disse Leonor, feliz por ver a amiga tão contente. Só lhe desejava
tudo de bom e mais sorte do que aquela que ela própria tivera, mas confiava em
Adriana para fazer melhores escolhas do que aquelas que ela fizera. André
parecera-lhe, inclusive, simpático, apesar de não ser o tipo de pessoa com quem
se visse a tornar amiga íntima, pois o humor sarcástico do rapaz deixava-a um
tanto desconfortável, mas se Adriana achava hilariante, tanto melhor. Quanto a
si, só lhe restava estar lá para o que for necessário, seja qual for a
eventualidade.
Pouco
depois, Afonso ligou a Leonor, avisando-o de que ele e André já estavam à
espera. Não querendo fazer nenhum esperar, até porque a boleia foi gentilmente
cedida por André e Adriana teria, também, todo o interesse em vê-lo o mais
depressa possível, Leonor chamou Tomás, a quem dariam boleia para casa da tal
rapariga. Quando Tomás apareceu, Leonor, vendo que o irmão substituiu as
camisolas com capuz que usava habitualmente por uma camisa, não se conteve,
“Wow, you’re really looking amazing, aren’t you, little bro?”
Como
aquela não era a sua indumentária normal, Tomás sentia-se pouco à vontade.
Vendo o seu reflexo no espelho de corpo inteiro que estava no quarto da irmã,
perguntou, “You really think so?”
Agarrando
o irmão pelos ombros, Leonor empurrou-o até à porta, assegurando-o pelo caminho
de que estava óptimo e que Sara não pararia de suspirar por ele a noite toda, o
que fez com que ele ficasse incomodado, embora se sentisse mais confiante na
sua aparência. Antes que pudessem colocar um pé fora da porta, Guida avisou,
“Vá portem-se bem e se tu, Tomás, fizeres o mais pequeno disparate que seja,
vais lamentá-lo durante muito tempo”
Marta,
que entretanto apareceu em boa hora para deitar água na fervura antes que os
ânimos se exaltassem, como acontecia mais vezes do que aquelas que ela gostaria,
revirou os olhos, fazendo-lhes sinal para que não ligassem a Guida e disse,
“Divirtam-se e não liguem, ela está só chateada porque os sapatos não dão com o
casaco”
Despedindo-se,
Leonor prometeu que iria correr tudo às mil maravilhas, antes de puxar o irmão
pela mão. Parado junto ao passeio estava o carro de André, algo que Tomás
descreveu como um “chaço bem podre” até que a irmã lhe deu uma cotovelada.
Leonor, entristecida, pensou que se ainda estivesse nos Estados Unidos, também
já poderia guiar, mas como estava em Portugal teria de esperar até fazer
dezoito anos. Olhando de novo para o carro de André, cuja tinta começava a
descascar, teve de dar razão ao irmão, mesmo que não o fizesse em voz alta,
seria de admirar se aquele carro os conseguisse fazer a todos chegar ao seu
destino sem empanar a meio do percurso. Além disso, parecia-lhe que eram
demasiados para caber no carro mas decerto que haveria solução.
André,
pondo a sua afro fora da janela, disse, “O carro só tem cinco lugares, por isso
não sei como é que as madames se vão acomodar, mas também não é problema meu,
Adriana, se eu não estivesse a guiar podias abancar no meu colo, é pena”
“É
na boa, mas como eu não quero levar a gorda da Leonor ao colo, acho que a
menina podia ir no colo do Tomás”, sugeriu Adriana, muito para indignação da
amiga e para constrangimento tanto de Tomás como de Sara. No entanto, ninguém
se opôs, a não ser que o resmungar de Afonso, que não gostava que se
proporcionassem oportunidades de proximidade física entre a irmã e Tomás, contasse.
E quem diz física, diz de outra forma qualquer, aliás.
Sara,
hesitante, olhou para Tomás até que ele lhe garantiu que não se importava e, um
tanto a medo, sentou-se no colo dele, com a cara em brasa. Devido ao facto de o
caminho ser acidentado e de o carro, fosse por falha mecânica, fosse pela
aparente falta de jeito de André, dar solavancos, o rapaz teve de pôr os braços
em redor da cintura de Sara, para lhe tornar a viagem mais confortável. Leonor,
ao ver o sorriso discreto tanto patente na cara de um, como de outro, incapaz
de guardar para si os comentários, disse a Tomás, “Aposto que estás a adorar”
“Não
muito, ela é pesada”, brincou o rapaz, tentando contornar as tiradas pouco
oportunas da irmã. Felizmente para ele que Adriana correu em seu auxílio,
pedindo a Leonor que não fosse chata. Assim que reparou no gancho em forma de
borboleta que segurava o cabelo da rapariga atrás, disse, na língua em que se
sentia mais à vontade, em voz baixa para que só ela ouvisse, feliz por ver que
ela estava a usar a sua prenda, “You look very pretty today”
“Thank
you”, respondeu Sara no seu inglês farrusco. Resolvendo provar a Tomás que as
suas lições haviam sido úteis, continuou, sendo o esforço que estava a fazer
para não enrolar a língua, bastante visível, “You look good, too”
Para
constrangimento de ambos, Leonor não resistiu a bisbilhotar a conversa, acabando
por guinchar de tão enternecida que ficou, o que chamou à atenção de todos,
“Oh, que coisa mais adorável!”
“Eh
puto! Já te estás a fazer ao bife!”, troçou André, batendo com a mão no
tablier. O facto de Tomás estar tão corado que lhe admirava como é que ainda
não tinha rebentado uma veia era como atirar fósforos à gasolina para gozar com
ele. Pelo canto do olho, viu Afonso, de braços cruzados e uma expressão de
miúdo a quem tinham tirado os berlindes, a olhar com tanta intensidade para o
tablier que por pouco não o queimou, e não resistiu, “Não tenhas cuidado que
não é preciso, o Afonso não está a curtir mesmo nada que te faças à irmãzinha
dele”
Foi
a risada geral, com excepção de Afonso que, através do retrovisor, dirigiu a
Tomás um olhar mortífero, personificando a expressão “se o olhar matasse”.
Sentindo uma súbita e avassaladora satisfação ao ver o quanto a ideia
incomodava o rapaz, ocorreu algo a Tomás. Por muito louvável que fosse o seu
esforço para melhorar enquanto pessoa, havia certos impulsos que não conseguia
controlar e atormentar alguém para que, ele próprio, não se sentisse um incapaz
vulnerável, era o maior deles. João que o dissesse, afinal recebia um soco ou
dois sempre que lhe dava o menor dos motivos para isso e, agora que aprendera a
não se meter com ele, continuava, com a particularidade de não necessitar de
motivos. E pensar que Sara acreditava mesmo que o novo tratamento de João para
com ele se devia ao facto de se estarem a tornar amigos, que ideia mais
caricata.
Mas
João não dava grande luta e o olho negro dera muito nas vistas, por isso parecia
que Tomás tinha encontrado uma nova vítima, embora não pudesse recorrer a
violência física contra esta. Tinha, também, a vantagem de não lhe arranjar
problemas, afinal não estava a fazer nada de errado e Afonso não iria querer
desagradar a Leonor. Satisfeito com a sua epifania, Tomás, ao ver que estavam a
chegar a casa de Rafaela, decidiu que daquela noite não passava, mas, para
isso, teria de começar a preparar o terreno enquanto antes. E mais que isso,
João iria lá estar, assim conseguiria fulminá-lo de vez, como se ainda sobrasse
muito, matando dois coelhos de uma só cajadada.
“Divirtam-se”,
disse Leonor, quando iam a sair do carro. Pondo um pedaço de papel no bolso do
casaco de Sara, sussurrou-lhe, rapidamente, ao ouvido, para que Tomás não a
ouvisse, pois não queria que ele pensasse que até ela duvidava dele, o que não
era o caso, só achava que não custava nada ter cuidado, tudo pelo bem-estar do
irmão, “Tens aí o meu número, se acontecer alguma coisa liga-me”
“Claro
que nos vamos divertir”, garantiu Tomás, certificando-se que enfatizava bem a
frase, nunca deixando de manter contacto visual com Afonso, que rangeu os
dentes, um dos seus vários tiques nervosos. Decidindo que ainda não tinha
enfurecido o rapaz que chegasse, colocou um braço à volta da cintura de Sara,
que não o afastou nem pareceu incomodada, e acenou em sinal de adeus, até que
André arrancou, sempre sem tirar os olhos de Afonso, que começava a parecer uma
estátua de cera de tão pálido que ficou.
Durante
o resto da viagem até à marina, Afonso não se pronunciou. Como é que era
possível que um miúdo que ainda nem voz de gente tinha ousasse ter a ousadia de
o provocar daquela maneira? Na parte que lhe dizia respeito, Tomás podia
chateá-lo como se não houvesse amanhã, desde que não metesse Sara ao barulho.
Ele até podia andar a portar-se bem, mas Afonso não conseguia afastar a sensação
de que ele não era flor que se cheirasse e vê-lo tão próximo da sua irmã não o
deixava descansado. Ele próprio admitia que não tinha a melhor atitude para com
Tomás, mas só não queria ver Sara magoada. Só quando Leonor lhe fez uma
festinha na nuca, é que ele levantou a cabeça, “Então Afonso? Estás bem?”
“Estava
só distraído”, desculpou-se Afonso, fazendo por afastar os seus pensamentos
mais negativos em prol do que esperava que fosse uma noite agradável. Ao sair do
carro, cumprimentou finalmente Adriana, que parecia estar mais interessada nos
beijinhos de André do que nos seus, e Leonor, constatando que ela ficava mais
alta do que ele quando usava saltos, o que assassinou um pouco a sua virilidade,
tanto que disse, num tom tristonho, “Estou a ver que hoje estás de saltos”
“Dizes
isso como se fosse mau, é por estar mais alta que tu?”, picou a rapariga,
pondo-se junto a ele, para salientar ainda mais a diferença. Como provocar as
pessoas era a sua religião, André foi para junto do outro lado do rapaz,
inclinando-se sobre ele, para o fazer sentir-se ainda mais baixo.
“Ela
já é boa, com saltos fica ainda mais boa”, comentou Adriana, decidindo poupar o
rapaz a mais embaraços, uma vez que já reparara que a estatura dele era uma
insegurança e, portanto, um alvo demasiado fácil para ela gozar. Encolhendo os
ombros, perguntou, retoricamente, “Estás-te a queixar?”
“Eu
acho que lhe fica bem”, admitiu Afonso, ruborizando um pouco ao passar os olhos
pelas pernas esguias de Leonor até se deter nos glúteos desta. Para bem da sua
sanidade, afinal iriam gozar com ele até mais não se o apanhassem, estavam numa
zona pouco iluminada, o que fez com que o seu olhar indiscreto não fosse
detectado. A rapariga acabou por agradecer o elogio, entre uma risadinha e
outra provocada pelos modos do rapaz.
“Bem,
vamos andando ou não?”, interrompeu André, já saturado de estar no parque de
estacionamento à espera de começar a criar raízes. Não era que estivesse
particularmente entusiasmado por rever os miúdos que andavam no seu secundário
quando ele estava já, para seu alívio, para sair. Não, aquela gente atadinha e
aborrecida não lhe deixava quaisquer saudades. Revirando os olhos só de os
imaginar, preferiu dirigir a sua atenção para Adriana, que se arrepiou com a
brisa mais fresca que se fazia sentir. Passando-lhe um braço pelos ombros para
a aquecer, respondeu, antes que Afonso pudesse sequer abrir a boca, “O que quer
que vás dizer, cala-te, pussy”
Erguendo
ambos os braços em sinal de derrota, Afonso decidiu ir dar uma vista de olhos
pelo bar, sempre ao lado de Leonor. Encontrando uma mesa vazia a um canto,
propôs à rapariga que se sentassem, tomando a liberdade de lhe puxar a cadeira
para que se sentasse, gentilmente. Fosse porque estava demasiado distraído com
Adriana, fosse porque o conceito de misericórdia não lhe era completamente
estranho, André guardou para si os comentários, algo por que Afonso se sentiu
grato, pois não queria que ele lhe estragasse aquele momento com Leonor. Vendo
que ela parecia bem-disposta e André e Adriana continuavam distraídos com uma
conversa acerca de um desenho animado japonês, não lhe pareceu indiscreto
colocar um braço nas costas da cadeira da rapariga e inclinar-se ligeiramente
sobre ela, com a desculpa de a ouvir melhor devido ao barulho do bar.
Enquanto
o bar se ia lotando com a multidão que entretanto aparecera, André achou por
bem, encorajado por Leonor, com um entusiasmo que Afonso não esperou vindo
dela, pedir as bebidas. Se Adriana não era uma grande apreciadora de álcool,
embora tivesse feito um esforço por acabar a sua vodka sem esboçar um trejeito
semelhante ao de alguém que estava em vias de dar à luz, e Afonso, por causa da
sua doença, não tivesse ido além da primeira bebida, André foi até acumular
meia dúzia de copos à sua frente, afinal a sua mesada não deu para mais, e
Leonor teve de colocar um travão pois não queria virar esponja e beber mais do
que todos os presentes, embora tivesse emborcado umas quantas bebidas como se
fossem água. No entanto, a rapariga bebeu o suficiente para não se inibir de
pedir um cigarro a alguém, hábito esse que já tinha deixado, praticamente.
Afonso,
ao testemunhar a cena, não pôde deixar de ficar surpreendido, pois, ao que
parecia, ainda havia muito sobre Leonor que ele desconhecia. Ainda assim, não
podia dizer que o efeito do álcool na rapariga não lhe estava a ser
extremamente vantajoso, dado que ela, mais desinibida, se permitia a, não só
permitir, como a tomar a iniciativa de manter mais contacto físico do que
aquele a que habituara o rapaz, que não cabia em si de contente. Estava nas
nuvens por a mão de Leonor estar a deambular pela sua perna, quando Rúben,
acompanhado por uma loura de aspecto pouco tímido, se destacou da multidão e o
fez acordar, “Então puto!”
“Olá”,
murmurou o rapaz, retraindo-se devido aos modos espalhafatosos do amigo e,
também, por estar na presença de alguém desconhecido. O amigo não lhe deu muita
conversa, de qualquer forma, porque entretanto resolveu trocar saliva com a sua
companhia. Rúben parecia-lhe bêbado, algo que não o admirava porque sabia como
o amigo era quando estava na periferia de qualquer bebida, e o espectáculo que
ele e a sua companhia, vestida de modo escandaloso, faziam, algo que estava
quase a merecer bolinha vermelha no canto do ecrã, muito contribuíam para o
deixar incomodado. Quando as mãos do amigo desapareceram dentro da saia, que
mais passaria por um cinto, da loura, Afonso achou melhor divergir a sua atenção.
Adriana
que assistia à demonstração de Rúben da sua técnica de sexo oral, que consistia
num gesto obsceno com a língua, algo que a sua companhia aparentemente iria ter
a oportunidade de ver por si mesma dali a umas horas, julgou nunca antes ter
visto algo tão repugnante, o que englobava aquela ocasião em que porno de
palhaços tinha aparecido no seu motor de busca. André, partilhando a sua
opinião, disse-lhe, revirando os olhos, “Este palhaço é nojento”
“O
que foi?”, instigou Rúben, demonstrando que, não só ficava particularmente
promíscuo quando bebia, como ficava violento. Soltando a loura por um instante,
disse, com um ar presunçoso, “Estás é fodido porque querias uma gaja destas em
vez dessa”
André,
primeiro, ergueu o sobrolho, depois franziu-o, até que se começou a rir a
bandeiras despregadas, muito para espanto das pessoas à mesa. Aquela criatura
não podia estar mesmo a falar a sério, mas não o podia deixar sem resposta. E
pensar que tivera esperanças que os miúdos do secundário tivessem evoluído
desde o seu tempo. Quando se acalmou, disse, completamente sério, como Afonso
nunca antes o ouviu, “Tipo…se tu tens problemas com a mamã, eu não quero saber,
mas faltares ao respeito aos outros é que não, está bem? Tira lá o vibrador do
cu e deixa a Adriana em paz”
Rúben
já ia partir para a linguagem na qual se fazia entender melhor, também
conhecida por violência, quando Afonso, resolvendo interceder, se colocou entre
ele e André, que começou a fazer caretas como se estivesse a interagir com um
bebé. Quando Rúben, incapaz de passar por Afonso, ia a abrir a boca, André
disse, torcendo o nariz, “E podes parar com isso, sabes que a tua pila continua
pequena”
As
pessoas que estavam por perto a assistir à troca de mimos entre ambos desataram
a rir, o que envergonhou Rúben, tanto que se decidiu a bater em retirada
estratégica. Ao que parecia, a sua companhia não estava nada impressionada o
que, para ele, implicaria que aquela seria uma noite de celibato. Voltando a
sentar-se, Afonso, teve que reconhecer a André, por muito que não gostasse de
dar espectáculo para uma imensidão de desconhecidos, “Estiveste bem”
Ignorando-o,
André dirigiu-se a Adriana, pondo-lhe uma mão sobre o ombro, “Não ligues ao que
aquele paneleiro disse, enquanto estás aqui e estás bem, ele vai apanhar no cu”
“Obrigada
pelo que fizeste por mim agora”, disse Adriana, com um nó na garganta. A troca
de olhares que se seguiu, sem que nenhum tivesse que verbalizar fosse o que
fosse, fez com que tanto Afonso como Leonor se sentissem um tanto a mais ali.
Foi
nesse momento que o rapaz, pressentindo que André não o perdoaria se
continuasse emplastrado ali, achou por bem deixá-los a sós. Acenando à rapariga,
convidou-a para que fossem lá para fora um pouco, convite esse que foi aceite,
pois ela estava com vontade de apanhar algum ar, depois de o bar se encher de
pessoas e se tornar, francamente, sufocante. Infelizmente para o rapaz, Tomás a
esticar-se com Sara e a quase briga que se formou entre Rúben e André não
seriam os únicos contratempos que lhe iriam tornar aquela noite menos
aprazível. E, ao que tudo levava a crer, o destino decidira ser cruel e
presenteá-lo com a visão de duas pessoas que ele passaria bem sem ter de ver.
A
alguma distância, Beatriz, de braço dado com o namorado, estava na iminência de
se dar de caras com eles. Afonso ainda teve esperança que ela não o visse,
talvez a fraca luminosidade do local resultasse a seu favor, mas não. Ao vê-lo
com companhia, Beatriz ergueu o sobrolho, de tão surpreendida que ficou, mas
não deixou que isso a incomodasse. Acenando-lhe, não se fez rogada em caminhar
na sua direcção, com um sorriso cínico. O rapaz olhou para a sua direita,
depois para a sua esquerda e não viu como escapar e, quanto mais Beatriz se aproximava,
mais as suas palmas suavam. Não devia ter nada a temer, o passado estava mais
do que distante, mas mesmo assim só desejava um canto obscuro onde se esconder.
Não lhe parecia que o namorado fosse começar uma briga do nada, por isso o que
é que podia dar para o torto? Leonor, no entanto, parecia nem ter reparado nas
duas pessoas que se aproximavam deles.
Beatriz,
ao ver o quão nervoso Afonso estava, sorriu ainda mais. Ele não tinha mudado
nada e ela estava certa de que, se assim o desejasse, podia voltar a passar-lhe
por cima que ele seria incapaz de resistir. Tinha que admitir que estava
bastante curiosa acerca da identidade da rapariga que estava com ele e que tipo
de relação eles teriam, mas duvidava que fosse mais do que amizade platónica,
afinal ela parecia demasiada areia para o camião dele. Apoiando o peso sobre
uma perna e colocando uma mão sobre a anca, cumprimentou, “Olá Afonso”
“Olá”,
respondeu o rapaz, num tom tão baixo que Beatriz teve dificuldade em ouvir.
Vê-lo com os olhos postos no chão e tão nervoso deu-lhe uma enorme satisfação.
Mas Beatriz não tinha vindo para pôr a conversa em dia com Afonso e, se a sua
auto-estima saiu levantada, tanto melhor, significava que o rapaz continuava a
desempenhar bem a sua tarefa. Voltando a dar o braço ao namorado, virou costas
e entrou num dos bares, mas não sem piscar o olho a Afonso, que baixou ainda
mais a cabeça.
Leonor,
ao assistir à inesperada e repentina mudança de comportamento de Afonso junto
daquela rapariga, perguntou-se o que se estaria a passar. Se aquelas duas
personagens desconhecidas apareceram num ápice, desapareceram à mesma
velocidade e o rapaz ainda estava abalado. Afagando-lhe o braço, perguntou,
“Estás bem?”
“Sim,
sim”, murmurou Afonso. Sentia-se desiludido consigo mesmo, sobretudo. Sabia que
a sua confiança era algo que ainda necessitava de ser melhorado, com excepção
de quando tinha um jogo de rugby, aí sentia-se capaz de tudo, mas ver que
bastava Beatriz aparecer para ele ser novamente o seu eu de quinze anos
inseguro.
“Queres
ir dar uma volta? Para desanuviares”, propôs a rapariga, vendo que a resposta
que ele lhe tinha dado não correspondia à verdade e que ele ainda estava
aborrecido.
Ao
notar que o seu comportamento não estava a tornar a sua companhia mais
agradável, o rapaz aceitou, fazendo questão de colocar o sucedido por detrás
das costas. Caminhando ao lado de Leonor, foi observando os barcos atracados na
marina, numa tentativa desesperada de se lembrar de qualquer coisa engraçada
para dizer e, consequentemente, capaz de o fazer redimir-se. No entanto, como a
inspiração resolveu fazer greve, tudo o que conseguiu dizer foi, “Olha aquele
barco tem um casco tão giro”
Apanhada
de surpresa com o que o rapaz disse, a rapariga não conseguiu conter o riso.
Ainda com a mão em frente da boca, disse, curvada sobre si mesma de tanto rir,
“What the fuck?”
“Não
tem? É azul e diz Estrela-do-mar”, perguntou Afonso, passando a mão pela nuca.
Se ia dizer qualquer coisa de aleatória, ao menos que se aguentasse à bronca.
Se não tivesse medo de água e fosse dono de um barco iria querer que o seu
barco fosse tão esteticamente apelativo como aquele.
Dando-lhe
um toque com a anca na brincadeira que por pouco não o fez cair do cais,
Leonor, riu-se ainda mais. O rapaz, que esteve prestes a ver que ia fazer
companhia às algas, não pôde deixar passar a provocação sem retaliar. Agarrando
a rapariga pela cintura, ameaçou, em tom de gozo e sempre por entre risos, que
a atirava à água, “E agora? Não te estavas a queixar com calor?”
“Pronto,
pronto, faço o que quiseres mas pára”, implorou Leonor, já sem o suporte do
cais debaixo dos pés que ficaram no ar. Quando Afonso finalmente a pôs em solo
seguro, sentiu-se aliviada pois, com o jeitinho que conhecia do rapaz, a
hipótese de ele a deixar cair na água não era assim tão improvável.
“Tudo
o que eu quiser?”, perguntou ele, como uma criança que tinha ouvido a sirene da
carrinha dos gelados. Assim que ela lhe confirmou, pensou por um momento no que
é que queria realmente. Não era necessário dar demasiado trabalho ao cérebro,
porque a resposta era óbvia e, se ela não estivesse a brincar, ele estaria no
paraíso. Não era como se fosse a primeira vez, mas parecia-lhe cada vez melhor.
Fazendo uso da oportunidade que se apresentava, pediu, com ar de cachorrinho,
“Dás-me um beijinho?”
“Está
bem, pronto”, acedeu a rapariga, fingindo fazer um sacrifício, quando a
realidade era que não se importava minimamente de conceder o desejo a Afonso.
Pondo-lhe os braços em torno do pescoço, ainda pensou em ser mais recatada, mas
não resistiu.
O
rapaz, naquele momento, perguntou-se porque é que tinha estado tão chateado com
a presença de Beatriz. Ela parecia-lhe tão insignificante agora que qualquer
irritação que sentisse anteriormente desapareceu, Leonor em geral surtia nele
esse efeito. Suspirando, passou as mãos pelas costas da rapariga, mantendo o
queixo apoiado no ombro dela, já que, se havia algo de bom em ela estar a usar
saltos, era, sem dúvida, o facto de aquela posição o deixar confortável.
Leonor, incapaz de conter a sua curiosidade, visto aquele comportamento não ser
nada normal vindo de Afonso, não resistiu a perguntar, “Quem era aquela
rapariga?”
“É
uma longa história”, respondeu o rapaz, sem encontrar uma parte de si que
estivesse disposta a gastar um pouco que fosse do seu bem-estar para se
preocupar com Beatriz. Se ela preferira David a ele, o que é que ele podia
fazer? Na altura custara-lhe, mas estava fora do seu controlo e sentia-se tão
bem a partilhar momentos daqueles com Leonor que as suas peripécias com Beatriz
ficavam enterradas e esquecidas.
“Tenho
tempo”, insistiu a rapariga, ainda mais curiosa. Sabia que Afonso era tímido e
que, por vezes, tendia a ficar ansioso na presença de certas pessoas, afinal,
no início, ele mal a conseguia olhar nos olhos, mas nunca daquela maneira e
isso intrigava-a muito. Quando se apercebeu de que, talvez, ele não quisesse
falar sobre isso, acrescentou, “Não tens que me contar nada, se não quiseres”
“Pode
ser…”, concordou o rapaz, apontando para um banco ali perto, para que se
sentassem. Nem sabia ao certo porque é que, tendo a hipótese de guardar aquela
história para si, se decidiu a partilhá-la com Leonor. Não queria que ela
pensasse nele como um coitadinho, não queria, igualmente, compaixão, mas sim
compreensão e, como gostava de falar com a rapariga, parecia-lhe apropriado
falar sobre o que se tinha passado. Sabia, inclusive, que lhe era impossível
relatar a história sem deixar que o seu rancor viesse à superfície, mas estava
disposto a correr o risco de pintar, aos olhos de Leonor, uma imagem menos
favorecedora de si.
Quando
se sentaram, respirou fundo e, quase sem ter que pensar muito, relatou toda a
história. Ele e Beatriz conheceram-se ainda no básico quando andaram na mesma
turma e, depois de as suas obrigações escolares terem servido de pretexto para
se aproximarem, tornaram-se amigos. Se, para Beatriz, Afonso era um ombro
amigo, alguém que ouvia os seus desabafos e a ajudava, para o rapaz, ela era
uma amiga de quem começou a gostar mais e mais. No princípio, resolveu não
dizer nada, não fosse correr o risco de estragar o que tinham. Entretanto,
algures pelo décimo ano de ambos, Beatriz conheceu David, o rapaz com quem
estava naquela noite, e começaram a namorar, embora ele não a tratasse como Afonso
achava que ela devia ser tratada e as discussões entre ele e Beatriz eram
constantes.
Um
dia, quando achou que já chegava de ouvir em silêncio os problemas que Beatriz
e o namorado tinham, aproveitou o facto de estarem numa das suas muitas fases
em que estavam chateados, e disse a Beatriz como é que se sentia, o que exigiu
um acesso de coragem sua, pois temia a rejeição e o que ela traria. Para sua
surpresa, ela confessou-lhe que o sentimento era recíproco. Foi um dia paradigmático
para ele. No entanto, nunca assumiram nenhuma relação, mas Afonso tratou o que
tinham como tal. Enquanto durou, o rapaz fez tudo para lhe mostrar o quanto
gostava dela, tratava-a o melhor que conseguia, arranjava sempre tempo para ela
e para a ouvir e, ao que lhe pareceu, foi óptimo e ele não fez nada de errado e
ela parecia corresponder, embora tivesse momentos em que era mais fria.
Estava
tudo a correr bem até que Rúben, que soube por estar no lugar errado à hora
errada, ou certa, pois foi da maneira que ficou a saber, lhe disse que as
coisas entre David e Beatriz ainda não tinham acabado. Depois de ter passado
pela fase da dúvida e da negação, decidiu-se a tirar as dúvidas, de forma de
que não se orgulhava mas que foi necessária e, após uma discussão feia, ficou a
tomar conhecimento do facto de que eles já andavam naquilo havia algum tempo e
que ele serviu para lhe subir o ego e para fazer ciúmes a David, que percebeu
que a queria mesmo. Ao menos, da luta que se seguiu entre ele e David, luta essa
em que ele o conseguiu deixar com o maxilar partido, sempre tirou uma certa
satisfação.
Leonor,
que o escutou sem o interromper por um momento que fosse, necessitou de um
pouco para digerir toda aquela informação. Desde que se conheceram que tinha a
impressão que o rapaz gostava dela e ele confirmara-lhe, mas agora que estava a
par da história com Beatriz não sabia até que ponto é que ela estava esquecida.
Quando o silêncio se tornou incómodo, afagou a mão a Afonso, dizendo, num tom
meigo, “Lamento imenso, não merecias o que ela te fez”
“Já
foi há algum tempo”, disse o rapaz, observando a mão de Leonor entrelaçada na
sua, “Não penso muito nela, só fiquei chateado porque ela continua a ser a
mesma pessoa menos boa que acabou por revelar que era na altura e comigo mesmo
porque me deixei afectar por isso”
“Posso
perguntar-te uma coisa?”, questionou a rapariga, franzindo o sobrolho em sinal
de apreensão. Assim que Afonso lhe acenou afirmativamente com a cabeça,
prosseguiu, “Ainda sentes alguma coisa por ela?”
O
rapaz esperava qualquer coisa, fosse se tinha alguma fixação por cascos de
barco, fosse se algum dia iria considerar livrar-se dos seus caracóis, mas não
aquela pergunta. Pestanejando, já que a sua filosofia naquele momento era ser
tão sincero quanto conseguiu, respondeu, “É um tanto difícil gostar de alguém
que te usou para fazer ciúmes ao namorado, não achas? E…”
“E?”,
perguntou Leonor, surpreendida por estar a conhecer uma faceta mais rancorosa
de Afonso, sempre afável e sem um pingo de maldade no corpo, embora não o
censurasse, pois Beatriz não tinha sido minimamente correcta. Sabia-lhe bem,
por outro lado, saber que, para o rapaz, ela não era recordada com saudade ou
nostalgia. Não seria racional da sua parte sentir ciúmes quando fora ela,
Leonor, a desperdiçar a sua oportunidade com ele.
“E…bem…sabes,
o que te disse há uns tempos mantém-se”, confessou Afonso, baixando a cabeça.
Não sabia o que esperar com aquilo, se tivesse sorte a rapariga não se acabaria
por retrair como costumava fazer, afinal a proximidade entre ambos servia como
alicerce à sua esperança, mas não queria acabar desiludido. Podia ter sido mais
explícito e dizer com todas as letras que gostava dela, para que não houvesse
dúvidas, mas naquele momento não encontrou coragem para isso.
“Afonso…”,
disse Leonor, sentindo a voz a deixá-la ficar mal. Não podia dizer que se
sentisse muito arrependida por ter dado para trás ao rapaz, pois assim
conseguira adiar a conversa que teriam de ter, conversa essa que, talvez nunca
viesse tão a propósito como agora. Ao ver que Afonso parecia desolado, algo por
que ela não queria ser responsável pela segunda vez, tentou, “Eu não posso
dizer que me sejas indiferente”
Por
aquilo sim, o rapaz não estava à espera. Parecia-lhe intangível que a rapariga
que um dia vira a andar a cavalo e que lhe pareceu o ser mais perfeito que
conseguia imaginar, por muito cliché que tal coisa lhe parecesse, alguma vez se
interessasse por ele da mesma forma. Com um sorriso gigante, tão grande que lhe
fez doer os cantos da boca, abraçou Leonor, que acabou por lhe passar as mãos
pelas costas, ao de leve. Sem largar a rapariga, sussurrou-lhe ao ouvido,
“Então o que é que nos impede de…? Isto se quiseres, claro”
“Não
é isso…”, disse Leonor. Não tinha nenhuma objecção a levantar, mas antes de
começarem o que quer que fosse, teria, tal como Adriana lhe aconselhou, que
colocar todas as cartas na mesa. Só esperava que agora não fosse Afonso a
desertar. Pretendendo não adiar mais, começou, “Há uma coisa, ou duas, que te
devia dizer, depois, se ainda quiseres, podemos pensar no assunto”
O
rapaz não fazia a menor ideia do que seria, mas que havia algo que a rapariga
não lhe estava a contar, isso já tinha tido a sensação. Leonor, antes de
continuar, pediu-lhe que não a interrompesse e, sobretudo, que prometesse que
não contava a ninguém uma palavra do que ela lhe estava para dizer, algo com
que ele concordou. Fechando os olhos por um momento, a rapariga, como se
estivesse a ganhar balanço, confessou que, quando era mais nova e mais
impressionável, não fazia as melhores escolhas e, algumas delas, tiveram
consequências das quais não se orgulhava. Agir de forma impulsiva também era
algo de que padecia e, essas duas características quando adicionadas, levavam a
que coisas verdadeiramente más acontecessem.
Quando
tinha cerca de doze anos, uma das suas manias era pretender ser mais crescida
do que realmente era, talvez por estar farta de ser demasiado protegida em
casa, mas não queria responsabilizar ninguém por algo que fora culpa sua, o que
levou a alguns comportamentos precoces, também ajudados por aparentar ser mais
velha do que era. Mais do que começar a fumar com essa idade, uma vez conheceu
um rapaz mais velho e uma coisa levou a outra, num espaço de tempo mais curto
do que gostaria de admitir, e por volta dessa altura já nem virgem era. Mas o
erro não ficou por aí, as suas companhias não eram as ideais e não demorou
muito até que a história se espalhasse e começasse a ganhar uma reputação pouco
desejável e ela, fosse porque gostava da atenção, fosse porque dali sempre
obtinha alguma forma de validação.
O
ciclo continuou até que, quando tinha catorze anos, conheceu Ryan. Mais velho,
capitão de equipa de futebol e popular. Quando ele mostrou interesse nela,
parecia-lhe um sonho. Embora nunca tivessem assumido nada oficial, ele ia-lhe
assegurando que gostava dela e fazia tudo para lhe manter a esperança de que um
dia poderiam vir a ter alguma coisa a sério. No entanto, o interesse dele nela
não ia além do sexo e, quando se descuidaram, ela engravidou e, quando isso
sucedeu, Ryan deixou-a entregue à sua sorte. Sem apoio, depois de todas as
amigas, se é que lhes podia colocar esse título, lhe terem voltado as costas, e
com demasiada vergonha para pedir ajuda à família, teve de fazer um aborto
sozinha.
Como
nem tudo foi uma tragédia, pelo menos sempre aprendeu a lição e, desde então,
que tem feito tudo para limpar a sua imagem. Nunca mais se envolveu com
minguem, passou a escolher melhor as suas amizades e a vinda para Portugal não
podia ter vindo mais a calhar, porque permitiu-lhe começar de raiz, algo por
que estava muito feliz. Quando acabou, olhou para o rapaz, pela primeira vez
desde que começara, que parecia visivelmente abalado. Sentindo o coração nas
mãos, murmurou, “Afonso…”
“Wow…”,
respondeu ele. E pensar que as suas peripécias com Beatriz lhe tinham parecido
fortes, quando na verdade eram insignificantes ao pé de algo como aquilo. Não
podia dizer que era algo que pudesse pôr simplesmente por detrás das costas,
mas estava no passado. Também não podia dizer que a imagem da rapariga aos seus
olhos fosse exactamente a mesma, porque costumava colocá-la num pedestal e,
agora que ela lhe contou aquilo, via-a, não como o paradigma da perfeição, mas
como alguém que, tal como todos, tinha falhas, ainda que fossem mais insólitas
do que as de muita gente. Ainda assim, não podia julgá-la por algo que já lá
ia, sobretudo quando ela própria admitia que tinha errado e que estava a fazer
por se redimir, algo que, na sua opinião, era muito louvável.
Olhando
para Leonor, viu-a com os olhos marejados de lágrimas e, numa tentativa de a
tranquilizar, segurando-lhe as mãos, continuou, “Por essa eu não estava à
espera, mas já foi há algum tempo e, desde que te conheço que tens sido
impecável, de que serve agarrar-me a essa ideia? O que lá vai, lá vai”
Juntando
o gesto à palavra, Afonso, sorrindo, passou o dedo por uma lágrima que estava
prestes a descer por uma bochecha da rapariga que, engolindo um soluço,
retribuiu o sorriso. Leonor podia ter respondido, mas, naquele momento,
sentia-se como se tivesse acabado de sair de uma montanha russa, tal era o
alívio que sentia, tanto que abraçou o rapaz, que a abraçou de volta. Ainda
estava a digerir o facto de ele ter sido tão compreensivo, mesmo quando o teor
da informação era tudo menos fácil de entender. De Adriana esperava, ainda que
com algumas reservas, que não a julgasse, mas de Afonso, alguém que, tanto
quanto ela conseguia ver, estava interessado nela e considerava-a a melhor
coisa a passar pela Terra desde a Pizza Hut, não se admiraria que tivesse uma
mudança de opinião de 180 graus em relação a ela. Não podia, assim, estar mais
grata pelo facto de tudo ter corrido pelo melhor.
Afonso
não soube quanto tempo passou, mas desejou que aquele momento se prolongasse
infinitamente, estava tão, mas tão feliz. Ainda assim, como gato escaldado de
água fria tem medo, preferiu esclarecer tudo à partida, embora não conseguisse
encontrar as palavras certas e tivesse acabado por as balbuciar, “Então…nós…?”
“Sim”,
disse Leonor, sorrindo, antes de o puxar para um beijo, a que ele correspondeu,
com tanto entusiasmo que por pouco não lhe deu uma cabeçada. Não fazia mal, a
rapariga gostava dele mesmo com os seus modos desajeitados, que, enquanto não a
mandassem para o hospital, eram adoráveis. Deitando a cabeça sobre o ombro do
rapaz, que passou um braço à sua volta, aproximando-a de si, agradeceu a uma
qualquer entidade supra natural a sorte que tinha tido. Quando se lembrava do
dia em que rejeitara Afonso só tinha vontade de gritar consigo mesmo pelo erro
que tinha acabado de cometer. Parecia-lhe tão bom que duvidava ser verdade,
tanto que apertou a mão ao rapaz, como se isso lhe fosse assegurar que não
estava a sonhar.
Afonso
não soube quanto tempo os dois estiveram ali, mas, se havia algo de que estava
absolutamente convicto, era que se dependesse de si congelaria o tempo naquele
momento para que não acabasse, mas, como era apenas humano, tinha de acudir às
suas obrigações. Com visível pena, retirou o braço dos ombros da rapariga e, consultando
o relógio, disse, “Falta pouco para a meia-noite, se calhar devíamos ir ter com
o André e com a Adriana”
“Tens
razão”, concordou Leonor, ostentando um ar de desconsolo em todo idêntico ao do
rapaz. Levantando-se, surpreendeu-se quando ele lhe deu a mão, algo a que não
estava muito habituada tendo em conta o seu historial. Era uma mudança
bem-vinda, fazia-a sentir-se querida por algo que não sexo, o que, depois de
todo aquele tempo, lhe provocou um violento ataque de borboletas no estômago.
Só esperava que o destino lhe pregasse uma partida e Afonso afinal fosse mais
um como os que havia conhecido no passado, mas não queria estragar o momento a
pensar em tal hipótese.
Voltando
ao bar, em busca de André e de Adriana, afinal, quão difícil seria encontrar
uma afro em cima da cabeça de alguém alto como um poste no meio da multidão,
esbarraram, ironicamente, com Beatriz. Tudo levava a crer que não se iriam
livrar dela com tanta facilidade. Ela parecia decidida a provocar o rapaz,
tanto que o sorriso cínico nunca lhe abandonou o rosto, nem mesmo quando viu
Leonor ao seu lado. A rapariga, farta de ver Beatriz a enervar propositadamente
o seu namorado, resolveu intervir. Calma, o seu namorado? A palavra parecia-lhe
estranha, visto ser a primeira vez que a podia utilizar. Mais tarde teria tempo
para se acostumar. Sussurrou ao ouvido de Afonso, “Queres chateá-la?”
Assim
que o rapaz, hesitante, respondeu afirmativamente, Leonor, ganhando balanço,
saltou-lhe para cima, pondo as pernas à volta da cintura dele que, com o susto,
quase a deixou cair, mas apanhou a tempo, segurando-a. Deitando um olhar à
expressão incrédula de Beatriz, a quem, por pouco, não caiu o queixo, beijou
Afonso, entreabrindo ligeiramente um olho, de propósito para ver a outra
empalidecer. O rapaz, na parte que lhe dizia respeito, apenas se perguntava o
que é que teria feito de tão bom na outra vida para merecer, não só a rapariga,
como uma oportunidade para retaliar a Beatriz. E daí não se importava assim
tanto com Beatriz, ia desfrutar e bem por si e por Leonor.
Deixando
para trás tanto Beatriz como o namorado, horrorizados, Afonso, pousando a
rapariga no chão, ainda afogueado e corado, lembrou-a de que estavam ali para
encontrar Adriana e André, sendo que este último não se dignara a responder-lhe
à mensagem quando perguntou onde é que ele estava. Para bem da paciência de
ambos, tanto André como Adriana apareceram, ele com o colarinho da camisola
fora do sítio e ela com uma marca duvidosa no pescoço. Não deixando que
pormenores como aqueles o afectassem, André inquiriu, “Onde é que andaram,
porcalhões?”
“Onde
é que tu andaste?”, perguntou Leonor, sem conseguir desviar o olhar do chupão
no pescoço de Adriana. Não devia estar surpreendida, era apenas uma questão de
tempo até que alguma coisa acontecesse entre André e ela, mas ainda assim
sentia-se incrédula. A amiga, por seu turno, limitou-se, com um sorriso, a
dizer-lhe que mais tarde relatava tudo o que se tinha passado e também ouviria
o que ela, Leonor, tinha para dizer, porque estava certa de que ela teria muito
para dizer.
A
conversa teve de ficar por ali, visto que era quase meia-noite. Pegando num
copo com champanhe, não se coibiu de colocar o braço livre em torno da cintura
da rapariga, puxando-a para si, enquanto ouviam a contagem decrescente. Depois
de anunciarem o novo ano e de terem terminado os brindes, Afonso beijou Leonor,
encostando a testa à dela, antes de lhe desejar, sorrindo, “Feliz Ano Novo”
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Assim
que o carro arrancou, Sara, que não sabia o que pensar do súbito contacto
inesperado, pestanejou, não conseguindo nenhuma reacção mais drástica. Tomás
nunca fora, pelo que conhecia dele, o que, vistas bem as coisas, não era assim
tanto, de demonstrações afectivas e, de todas as outras vezes, tinha sido ela a
ter a iniciativa, por isso estava a estranhar aquela mão no fundo das suas
costas. Era um contacto íntimo, mas não ao ponto de a fazer pensar mais no
assunto. Quando Rafaela os veio receber à porta, Sara teve, no entanto, que
admitir que sentiu uma certa vaidade por estar acompanhada por alguém que fazia
sucesso junto das raparigas da sua turma, ainda que nenhuma se atrevesse a
abordá-lo, pois ele ainda as intimidava, mas decidiu colocar esse pensamento
longe da sua mente, pois considerava-o mais próprio de Cláudia.
“Olá
Sara”, recebeu-os Rafaela, sempre com a boa disposição a que ela sempre
habituara Sara, desde os tempos em que se tinham conhecido no jardim-de-infância
e partilhavam bolachas. Admirada por o rapaz, ao contrário do que ela esperara,
ter resolvido vir, abordou-o, “Olá Tomás, sempre vieste”
“Parece
que sim”, disse o rapaz, fazendo todos os esforços que conseguia por mostrar
toda a sua simpatia. Já tinha tido uma conversa preparatória consigo mesmo
antes de vir, na qual se comprometeu a comportar-se de maneira impecável e
tencionava fazer isso mesmo. Se tudo corresse nos conformes, Guida não lhe
diria nada mas iria remoer o facto de se ter enganado redondamente e Afonso
entraria em combustão espontânea de tanto que se iria irritar. Imaginando o
cenário mais uma vez, sentiu-se tão confiante e motivado que mal podia esperar
por passar o plano à prática.
Durante
o caminho que separava a porta da frente da casa de Rafaela até à porta da sala
onde estavam cerca de uma dúzia de pessoas, Tomás não retirou o braço da
cintura de Sara. E continuaria sem o fazer, caso a rapariga, ao avistar
Cláudia, não lhe tivesse tirado a mão. A rapariga, cujo um dos últimos desejos
era ser apanhada no caminho da ira da amiga, apenas pretendia evitar conflitos
para o seu lado, pois queria continuar a levar uma existência pacífica, algo
que seria seriamente complicado se, por acaso, o rapaz fizesse alguma coisa
para que Cláudia fosse ter ciúmes dela. Esperava, contudo, que ele não tivesse
encarado o facto de ela lhe ter tirado a mão das suas costas como frieza e
tê-lo-ia esclarecido, mas sentia-se tola ao fazê-lo. Decidindo confiar na
sorte, pensou que seria uma probabilidade Tomás nem ter pensado duas vezes no
assunto.
Quanto
a ele, que considerou que o gesto se devera a apreensão por parte de Sara, perguntou-se
se afinal não seria mais difícil do que tinha previsto, mas não ia
desmoralizar. Ela já estaria habituada a ele e saberia, do mesmo modo, que ele
não estava a planear matá-la para vestir a sua pele. Era em momentos como
aquele que ele se arrependia de não ter visto mais filmes românticos e piegas
como aqueles que Leonor gostava de ver, podia ser que lhe tivessem ensinado uns
truques. Não teve tempo para definir um plano, pois, um gritinho agudo ecoou no
hall da casa, interrompendo a sua linha de raciocínio.
“Tomás!”,
chamou Cláudia, correndo na direcção dele. Ela podia ser estridente, ela podia
ser difícil de descolar, mas quando se agarrava a ele e usava decotes demasiado
reveladores para o que seria apropriado dado a sua idade, como ela estava a
fazer naquele momento, Tomás perdoava aqueles defeitos. Aqueles cumprimentos em
que ela se inclinava sobre ele, o que lhe dava um plano bom par apreciar os
seus atributos, também eram muito do seu agrado. Brincando-lhe com o colarinho
da camisa, Cláudia, ignorando Sara, disse, “Estás tão giro de camisa”
Felizmente
para a paciência infindável de Sara, que se estava a sentir a mais ali, convidaram-na
para participar num jogo, o que lhe deu a desculpa ideal para deixar Tomás
entregue a Cláudia. Não o conseguia explicar, mas sentia sempre uma certa
náusea quando a amiga se alapava ao rapaz e ele parecia gostar da atenção.
Considerava que Cláudia podia ser um tanto chata, por muito que gostasse dela,
mas não censurava Tomás por apreciar tê-la por perto, afinal o peito dela era o
fascínio da população masculina da turma. Decidindo não pensar muito no
assunto, juntou-se a João, que sempre a recebia bem, o que era irónico quando
se lembrava dos tempos em que ele lhe atirava pastilha elástica, mas ela perdoara
e agora davam-se nos conformes.
“Oi
Sara”, cumprimentou João, sorrindo. Ao ver que Tomás estava entretido com
Cláudia no outro lado da sala, suspirou de alívio. Admitia que não tinha sido
particularmente amistoso para com o americano, mas ele também nada fez para que
se dessem bem e, enquanto ele, João, tinha apenas uma personalidade brincalhona
que por vezes ia longe demais, Tomás parecia-lhe psicótico e bastante bom a
manipular pessoas. Arrepiando-se, preferiu distrair-se. Parecia-lhe justo que
se pudesse dar ao luxo de ter um serão tranquilo com uns amigos sem ter que se
preocupar se iria ser espancado. Afastando-se para arranjar espaço para Sara,
aceitou que ela ficasse na sua equipa e, depois de lhe explicar as regras do
jogo, ajudou-a a atirar os dados pela primeira vez.
Ao
ver que os dados lhe tinham dado um contributo favorável e significativo para
avançar no jogo, Sara, regozijando-se com a sua sorte de principiante, como
João, afectuosamente, lhe disse, permitiu-se a relaxar e a observar, por cima
do ombro de um amigo, Cláudia, que se decidira, como sua missão para aquela
noite, a não deixar por tocar um milímetro que fosse da camisa de Tomás. Já ele
nunca deixara de sorrir de modo presunçoso, enquanto, de vez em quando, passava
a mão pela cintura de Cláudia. E Sara sentia-se cada vez mais enjoada, sem que,
daquela vez, tivesse forma de justificar o porquê de se sentir assim. Parecia-lhe
semelhante às ocasiões em que encontrava a sua paixoneta dos tempos da primária
a falar com outras raparigas, algo que a fazia rir agora quando se lembrava de
como o costumava perseguir pelo recreio.
Calma!
Porquê aquela comparação? Poderia dar-se o caso de ela estar a desenvolver uma paixoneta
por Tomás? Atirando os dados com mais força do que aquela que seria necessária,
o que resultou em que eles fossem acertar na cabeça de uma amiga, pensou nessa
possibilidade. Decerto que explicaria o “nervoso miudinho” que sentia quando
estava a sós com o rapaz e a bílis que lhe subia à garganta quando o via com
Cláudia, mas, de todas as pessoas, Tomás?! O rapaz estranho que um dia lhe
apontara uma faca?! Faria mais sentido João ou outro amigo, por muito que
achasse que os momentos em que o rapaz mostrava um lado mas carinhoso fossem
adoráveis, como quando lhe deu o gancho de cabelo que estava a usar naquele
momento.
Pedindo
para descansar um bocadinho do jogo, com a desculpa de que a sua sorte de principiante
já estava a dar as últimas, encontrou um canto sossegado no sofá. Costumava
dirigir-se a Afonso sempre que algo a incomodava, pois ele conseguia sempre
dar-lhe conselhos que, até ao momento, nunca a induziram em problemas e, em
condições normais, não pensaria duas vezes em falar com o irmão. Só não o fazia
porque sabia que Afonso nutria um ódio visceral por Tomás e ela não queria
desencadear a ira do irmão. Mas não estava preocupada, aquela paixoneta
acabaria por passar, tal como a da escola primária acabara por passar e, se
fossem idênticas, seria mais cedo do que tarde. Sorrindo de alívio, convicta de
que tudo iria correr de forma calma e indolor, quedou-se a observar o jogo, que
continuava interessante.
Parecia,
no entanto, que o seu sossego encontrado no entendimento de que seria uma
situação breve estava prestes a ser abalado. Quando convidaram Cláudia, sem lhe
dar margem para escolher, para a substituir no jogo, Tomás materializou-se ao
seu lado no sofá, ostentando um sorriso travesso, em nada parecido com o
arrepiante que ela lhe conhecera. Um tanto constrangida, dado a conclusão a que
tinha chegado, Sara, dirigiu a sua atenção para o jogo, depois de cumprimentar
o rapaz com um “bem-vindo de volta” de percepção melindrosa. O rapaz, com a
confiança bem elevada devido à interacção com Cláudia, ainda estava decidido a
pôr o seu plano em prática. Só não o queria fazer ali, porque não queria
deteriorar a situação com Cláudia, afinal gostava da atenção e podia querer
aproveitar isso mais tarde, por muito que lhe apetecesse provocar João.
Aproximando-se da rapariga, disse-lhe, “Não queres ir ali fora à varanda um
bocadinho?”
Sara,
que tinha todas as intenções de recusar o convite, afinal já era demasiada
emoção em tão pouco tempo para si, por muito pouca importância que quisesse dar
ao assunto, acabou por aceitar, nem ela própria soube como, parecia que a
própria língua a tinha traído, “Sim…”
Com
o ritmo cardíaco excessivamente acelerado para o seu gosto, acompanhou Tomás
até à varanda. Só iam falar acerca de trivialidades, não havia motivo para se
sentir tão ansiosa, não sabia porque é que o coração resolvera disparar. O que
é que podia correr mal? O rapaz, ao ver João com um ar intrigado, colocou a mão
na cintura da rapariga, dirigindo-lhe a ele um olhar sugestivo. A expressão de
choque patente na cara de João era merecedora de ser fotografada, emoldurada e
colocada na parede. Assim era tão fácil que quase não tinha mérito, mas Tomás
não se importava. Sara, inconsciente da troca de interacções que estava a haver
à sua custa, não soube o que achar da mão na sua cintura. Devia tirá-la e pedir
ao rapaz para parar com aquilo, mas sabia-lhe bem e, quando, em momentos como
aquele em ele lhe abriu a porta para ela, Tomás conseguia ser tão cavalheiro
que ela se derretia.
Encostada
ao parapeito da varanda com o rapaz ao seu lado, Sara permitiu-se a olhar para
ele. Estava habituada a ouvir Cláudia enumerar todos os atributos de Tomás, com
tanto entusiasmo que parecia estar a descrever um actor famoso, mas nunca
ligara muito. Naquele momento, parecia que o estava a ver pela primeira vez e
tinha que admitir que ele era, realmente, muito bem-parecido. A começar nos
seus olhos verdes límpidos, a terminar na sua estatura alta, sem esquecer as
feições simétricas. Cláudia achava que o facto de ele ser um tanto cheio era o
único defeito, mas a rapariga até achava piada, tornava a sua figura menos
intimidante. Em que estava ela a pensar? Assim é que ele não lhe ia passar de
certeza. Abanando a cabeça como se isso fosse afastar os seus pensamentos,
decidiu contar as estrelas.
Apoiando
a cabeça sobre as mãos, debruçado sobre o parapeito, o rapaz, ao vê-la
distraída, perguntou, curioso, “Penny for your thoughts?”
“Estás-me
a perguntar em que é que estou a pensar, não é?”, perguntou Sara, não fosse o
seu domínio de inglês pregar-lhe uma partida. Quando Tomás lhe confirmou,
respondeu, tentando parecer desinteressada, “Em nada”
“Hm…Acho
que estás a pensar em como estou mesmo giro esta noite”, brincou o rapaz,
deitando-lhe a língua de fora, sem sonhar que, a meter-se com a rapariga,
acertou em cheio. Estava a adorar picá-la e, por muito ligeira que fosse a
brincadeira, ainda que nunca antes tivesse enveredado por aquele caminho, vê-la
agitada sabia-lhe bem, mas de maneira diferente daquela que seria se estivesse
a provocar João ou Afonso. Tinha prazer em saber que, mais do que
desconcertá-los, os magoava, mas, tratando-se de Sara, apenas adorava saber que
conseguia dela uma reacção.
“A
Cláudia acha que estás lindo, isso tenho eu a certeza”, respondeu Sara,
preferindo não alimentar mais brincadeiras, até porque iria levar o segredo
para a cova e ser desmascarada ali mesmo era coisa que ela não queria. Desviando
o olhar da cara do rapaz, decidiu que Cláudia tinha razão quando dizia que a
camisa lhe assentava bem. Sentindo um rasgo de inveja, reparou que o gloss da
amiga tinha deixado marca de território no colarinho da camisa de Tomás, o que
lhe serviu para salientar de que o melhor era mesmo esquecê-lo e parar de
salientar as suas virtudes.
“E
tu não?”, insistiu o rapaz, convicto de que tinha encontrado um vislumbre de
rubor na face da rapariga. Por muito que adorasse meter-se com ela estava
disposto a recuar caso a estivesse a deixar desconfortável, visto que não
suportava a ideia de fazer algo para a afastar. Parecia que aquela era a
segunda epifania da noite. Abalado com um laivo de culpa, ocorreu-lhe de que
estava para usar Sara para provocar João e Afonso sem parar para pensar nela no
meio disso tudo. Se, de alguma forma, a magoasse, depois de ela ter feito tanto
para o ajudar, não se perdoaria a si próprio. Uma brincadeira ligeira não fazia
mal, gostava de a agitar um pouco, mas dentro de estreitos limites. Ainda não
pusera por detrás das costas o episódio da faca e, sempre que se lembrava do
quão idiota fora, sentia uma vergonha indescritível, mas não podia apagar o
passado.
“Ahm,
sim, acho que ficas bem de camisa”, respondeu a rapariga, alheada do facto de o
rapaz estar a passar por um tumulto interior, tentando parecer tão indiferente
quanto conseguia. Seria bom viver num universo paralelo em que Afonso se desse
bem com Tomás e em que Cláudia tivesse desenvolvido uma tara por outra pessoa.
E já que estava a sonhar, quem sabe, que os sentimentos fossem recíprocos, mas
não saberia como proceder se tal coisa acontecesse, era algo tão alienígena que
nem punha a hipótese.
Foi
um bom esforço, mas o tom inseguro que empregara acabou por a denunciar e o
rapaz achou melhor ficar por ali, uma vez que agora que pensava a sério no
assunto, enervar Afonso e João não compensava arriscar a repelir Sara. A mera
ideia de tal coisa poder acontecer era suficiente para lhe dar náuseas, a ponto
de, naquele momento, apenas não a abraçar, como se temesse que ela fosse desaparecer
naquele momento diante de si, porque a vira retrair-se há pouco. Contendo os
seus desejos, encarou a rapariga, sorrindo-lhe, satisfeito por ver que ela
retribuiu, embora ambos se tivessem mantido em silêncio, silêncio esse que era,
para sua surpresa, confortável, como se não fosse necessário dizer nada.
Enquanto
nenhum falou, o rapaz, que ainda não tinha acabado de se repreender a si
próprio pela ideia estúpida que tivera, ideia essa que já descartara tão
depressa como a tivera, permitiu-se a apreciar a paz que sentia naquele
momento. Fora realmente convidado para sair, a noite estava a correr às mil
maravilhas, tinha uma rapariga bem desenvolvida a deixar um rasto de baba por
ele e, melhor que tudo, estava acompanhado por alguém que lhe dera uma
oportunidade e fez com que tudo aquilo fosse possível. E pensar que considerou,
por muito pouco tempo que tivesse sido, fazer algo que pudesse magoar esse
alguém. Observando Sara, afectuosamente, reparou que ela estremeceu, o que o
levou a perguntar, “Are you cold?”
“Um
bocadinho”, confessou a rapariga, passando uma mão pelo braço, numa tentativa
pouco eficaz de se aquecer. O frio é psicológico, era o ditame que o seu irmão
lhe costumava dizer, o que não deixava de parecer pouco credível quando via o
nariz dele em modo fonte. Com jeitinho, se ela se constipasse podia ser que
pudesse faltar às aulas durante uns dias, afinal aquela época do ano convidava
a ficar nos lençóis com uma chávena de chá, mas estava só a fazer brainstorming
e o mais provável era que não avançasse com o plano, por muito que não lhe
apetecesse ir às aulas.
“Come
here”, chamou Tomás, envolvendo-a num abraço. Sara, com a cara enterrada no
pescoço dele e os seus braços à sua volta, estava disposta a jurar a pés juntos
que a temperatura tinha subido pelo menos vinte graus. A tarefa de esquecer aquela
paixoneta assim era muito dificultada, mas, se a rapariga se permitisse a si
mesma um momento em que, para variar, só pensasse em si, poderia desfrutar
aquele momento. Era só por um bocadinho, não havia de fazer mal e Cláudia nunca
iria saber. Engolindo em seco, tentou controlar-se para não ter um ataque cardíaco
e acomodou-se. Pouco tardou até que Cláudia ou qualquer outra fonte de
preocupação estivessem longe dos seus pensamentos.
Agora
que tinha a oportunidade de ver o que se arriscara a perder com aquela ideia,
Tomás, mais do que nunca, teve vontade de dar com a cabeça numa mesa. Como se
Afonso e João valessem uma décima daquilo. Apoiando o queixo sobre o cabelo de
Sara, o rapaz respirou fundo, apertando a rapariga ainda mais contra si. Mesmo
Cláudia, com os seus modos exuberantes e atributos generosos, não lhe parecia
uma troca justa se o preço a pagar fosse abdicar de Sara. Outra pessoa que não
suportaria perder era Leonor, a sua irmã, mas com a rapariga era uma sensação
diferente, uma outra forma de afecto. And what does that mean?
Olhando
para Sara, aninhada contra o seu peito, sentiu uma onda de carinho. A rapariga,
mesmo que não fosse tão desenvolvida quanto Cláudia, encaixava no tipo que
sempre cativara a atenção dele, mesmo quando ainda estava nos Estados Unidos, com
o seu ar tipicamente latino. Não era que nunca tivesse reparado no aspecto
dela, até porque se lembrava de a ter achado bem-parecida quando a conhecera,
mas parecia, naquele momento, que a estava a ver realmente e gostava do que via.
Does that mean I have a crush
on her? De
todas as pessoas por quem poderia desenvolver uma paixoneta, Sara parecia-lhe a
hipótese mais satisfatória, por isso sentia-se em paz com esse facto. Agora
restava-lhe saber como proceder a partir dali. Só lamentava não ter ali Leonor
para o aconselhar. Quando a rapariga levantou a cabeça e o encarou, ele deu-lhe
um beijo na testa, perguntando, “Better now?”
“Sim
mas não te vás já embora”, respondeu Sara, antes de voltar a encostar a cara ao
peito dele. Conseguia sentir os batimentos cardíacos dele mais elevados do que
seria normal. Estaria nervoso? Esperava que ele não estivesse a ficar
embaraçado, mas ele era confortável e uma boa fonte de calor, além de que
Cláudia não estava ali e ela, Sara, era apenas humana e, como tal, também podia
sucumbir aos seus desejos mais egoístas, pelo menos de vez em quando.
“I’m
not going anywhere”, disse Tomás, voltando a deitar a cabeça sobre a da
rapariga. Talvez lhe devesse oferecer flores, afinal era o que faziam nos
filmes e resultava, mas não sabia quais as preferidas de Sara. Ou chocolates e
peluches? Ou então podia dar-lhe um daqueles beijos como nos filmes melosos,
mas, agora que pensava bem, nem sabia se seria isso o que a rapariga queria,
nem ele sabia a técnica. Mas nesses filmes é sempre o homem que toma a
iniciativa, por isso ele devia fazer qualquer coisa, em vez de estar naquele
impasse. Já estava a divagar, o melhor era esperar para ver e não colocar a
carroça à frente dos bois. Só mesmo a rapariga para o baralhar daquela forma. Precisava
mesmo de falar com Leonor, ele não fazia a mínima ideia acerca do que fazer.
“Como
é que disseste…pen for your thoughts?”, perguntou Sara, do nada, erguendo a
cabeça de novo. Quando o rapaz a corrigiu, perdido de riso, afinal a pronúncia
e os erros dela eram hilariantes a seu ver, ela, retirando a mão que tinha
pousado no peito dele, deu-lhe um caldo, o que fez com que ele se risse ainda
mais, “Opa! Stop it!”
Prendendo-lhe
as mãos atrás das costas antes que a rapariga tivesse tempo de lhe dar outro
caldo, Tomás, sentindo um deja vu de uma ocasião em que haviam estado numa
situação semelhante, manteve Sara bem presa, apesar dos louváveis esforços que
ela fez para se soltar. Devido às tentativas que a rapariga empregou para se
debater, acabou comprimida entre o parapeito da varanda e o rapaz, o que não a
teria deixado completamente pouco à vontade se não fosse pelo facto de, desta
vez, não ter como evitar encará-lo. Se o sorriso dele não a fizesse perder a
força nos joelhos e, consequentemente, a concentração, ela teria conseguido
retaliar. Temendo o pior, repetiu várias vezes, “O Tomás é da Cláudia, o Tomás
é da Cláudia”
Sentindo
o coração prestes a saltar-lhe do peito, Tomás não conseguiu evitar reparar no
quão bonita Sara lhe parecia naquele momento. Gostava mesmo de lhe conseguir
mostrar exactamente o quanto ela era importante para si e o quanto ele gostava
dela. Quase sem pensar, foi-se aproximando. Quando estava a meros centímetros
da cara da rapariga, deteve-se e trocou um olhar com ela, como se lhe pedisse
permissão. Mais do que não lhe ter dado um estalo, havia um laivo de desejo no
olhar que ela lhe devolveu, o que lhe garantiu que estava tudo bem. Encurtando
a distância entre ambos, o rapaz encostou os lábios aos de Sara.
Foi
naquele momento que o que restava das preocupações altruístas da rapariga se
dissipou de vez. Correspondeu, ainda que um tanto acanhada a início, tendo
perdido a inibição rapidamente, como se nem nunca lá tivesse estado. Afogueada,
quando a necessidade de respirar era impossível de ignorar e tiveram que se
separar, suspirou, “Tomás…”
“Was
it alright?”, perguntou ele, sem fôlego suficiente para que tivesse sido mais
do que um murmúrio. E parece que, afinal, sempre fora para a frente com o plano
inicial, ainda que com motivações diferentes. Passou-lhe tanta coisa pela
cabeça naquele momento que, mesmo quando recuperou o fôlego, não se conseguiu
expressar. Ter-se-ia saído bem? Teria interpretado bem a situação? A prática
leva à perfeição, por isso podiam repetir, caso Sara não tivesse gostado!
“Foi…”,
respondeu a rapariga, passando-lhe a mão, que entretanto ele soltara sem que
ela desse por isso até agora, pela face. Quando a euforia lhe passou, voltou a
cair em si. Tinha mesmo acabado de beijar Tomás. Também tinha que pensar em si,
mas isso parecia-lhe mesquinho quando pensava no quanto Cláudia gostava do
rapaz. E não só, Afonso sempre fora o melhor irmão que ela poderia ter e
desapontá-lo daquela forma partia-lhe o coração, ainda que mantivesse acesa a
esperança de que um dia Tomás lhe caísse nas boas graças. Olhando para o
relógio, viu que faltava pouco para a meia-noite, o que lhe dava uma desculpa
para adiar qualquer conversa que fosse necessária ter com o rapaz acerca do que
se tinha passado. Retirando a mão que entretanto passeava pelo maxilar de
Tomás, disse, “É quase meia-noite, é melhor irmos”
Sem
esperar pela resposta do rapaz, voltou para a sala, onde já estavam todos de
volta de uma garrafa de champanhe que tinham contrabandeado às escondidas.
Tomás entretanto apareceu por detrás dela, ainda a questionar-se se aquela fuga
abrupta da rapariga tinha sido por ele beijar mal, o que ele atribuía ao facto
de ele nunca ter feito aquilo antes. Os gritos vitoriosos dos que tinham
conseguido abrir a garrafa acabaram por interromper os seus pensamentos, a
tempo de iniciarem a contagem decrescente. Pegando num copo, assim que
anunciaram o novo ano, o rapaz, sentindo-se mais integrado do que nunca, brindou
juntamente com os presentes, entre eles Sara, que lhe sorriu, antes de corar.
Ia encarar aquilo como indicativo de que estavam bem.
Voltando
para junto dele, a rapariga, que entretanto tinha recebido uma mensagem de
Afonso a dizer que dali por um bocado estariam de volta para os irem buscar,
transmitiu-lhe a mensagem. Mas, para Tomás, isso pouco importava. Ainda a
matutar no facto de Sara ter ido embora tão de repente, perguntou, a medo, “Fiz
alguma coisa que não tivesses gostado? Sabes, para teres ido embora daquela
maneira…se fiz, desculpa”
“Oh
não, Tomás, tínhamos que vir ter com eles de qualquer maneira”, respondeu a
rapariga, afagando-lhe a mão por instinto, sem parar para se certificar se
alguém poderia reparar no gesto. Tinha tido má etiquete, isso era certo, mas a
situação já se estava a tornar demasiado para ela, tanto que resolveu ser sincera,
ainda que evasiva, “Não tens culpa de nada”
Cláudia,
que tinha estado a assistir à conversa, receou o pior. A que é que o rapaz se
estaria a referir e o que eram aquelas mãos dadas? Que Tomás não era indiferente
a Sara, isso já tinha suspeitado mas não lhe atribuíra muita importância, agora
testemunhar uma interacção mais íntima, isso ela não consentia. Resolvendo
tomar medidas, aproximou-se dos dois e colocando uma mão na nuca do rapaz,
puxou-o para si, beijando-o. Não só estava certa de que Tomás estava no papo,
como sabia que a rapariga iria perceber a ideia e não tardaria a que
respeitasse certos limites.
Como
é que fora parar àquela situação, era a pergunta que atormentava o rapaz. Ainda
há coisa de uma hora, se Cláudia tivesse feito o que estava a fazer naquele
momento, ele sabia que a teria deixado e de bom grado, até porque ela o atraía
e muito. E Sara?! Na teoria não lhe era concebível abdicar dela em prol de
Cláudia e, agora que a situação hipotética passara para a realidade, continuava
a preferir a rapariga. Vendo-a a afastar-se com uma expressão magoada,
apercebeu-se que tinha que fazer alguma coisa. Afastando Cláudia, que já quase
lhe tinha comido a cara, disse, com mais brusquidão do que aquela que
pretendera inicialmente, “Pára com isso, a sério”
O
ambiente ficou de cortar à faca. Cláudia, incrédula, nada disse. Estava tão
certa que Tomás, a quem ainda há pouco estivera a dar beijinhos no pescoço,
estava garantido e agora ele rejeitava-a daquela maneira. Engolindo um soluço,
de tão magoada que se sentia, resolveu recuar, mas, como era persistente, prometeu
a si mesma não desistir. Sara, que nem podia acreditar quando Cláudia beijara o
rapaz, sentiu uma súbita felicidade que ainda tentou conter mas sem sucesso, ao
ver que ele a afastara. João, por sua vez, ainda acreditara, quando vira
Cláudia com Tomás, que ela se encarregaria de lhe eliminar a concorrência, mas
agora voltou a sentir o peso da preocupação.
“Oh
my God, I’m so sorry”, pediu o rapaz, correndo para a rapariga. Devia lidar com
a situação com mais eloquência e pedir primeiro desculpa a Cláudia pela
brusquidão com que a tinha tratado, mas não queria saber, só não queria que
Sara ficasse chateada. Devia, de igual modo, aguardar que os ânimos esfriassem
para colocar tudo em pratos limpos com a rapariga, mas a ideia de a ver magoada
era demais.
“Podemos
falar mais tarde, noutro sítio?”, propôs Sara, que não considerava que fosse o
local apropriado, sobretudo tendo em conta que, o grupo que não tinha ido
acudir a Cláudia, ainda os estava a observar e ela, se tivessem que ter mesmo
aquela conversa, queria esperar até que tivessem privacidade. Mas tampouco era
sua intenção torturar o rapaz, por isso garantiu-lhe que ele não tinha culpa de
nada.
Para
sossego de ambos, se todo aquele aparato começou repentinamente, também
terminou com idêntica rapidez e, dali a pouco, já o resto das pessoas se tinha
distraído de novo, embora Sara apenas se tivesse permitido a respirar fundo
quando Afonso lhe ligou a dizer que já estavam à porta. O tom que o irmão
empregara deixava transparecer uma enorme felicidade e ela tinha uma ideia do
que poderia ser. Se as suas suspeitas estivessem correctas, então ficava muito
contente por ele, pois sabia o quanto Leonor faria o seu irmão feliz. Tomás,
antes de se ir embora, ainda pensou em procurar Cláudia, mas, ao pensar duas
vezes, achou que ela é que lhe devia pedir desculpas.
Durante
o caminho que separava a porta de casa de Rafaela até ao carro de André, nenhum
disse nada, limitando-se a caminhar com a cabeça baixa. Lembrando-se de como
tinha sido a viagem para lá, Tomás perguntou-se se Sara teria de ir para o seu
colo de novo. Por muito que os ânimos de ambos tivessem esmorecido, a
proximidade sabia-lhe bem, mas parecia que não ia ter sorte, pois Leonor
ofereceu-se, com um olhar sugestivo que o enjoou, para ir ao colo de Afonso.
Pelo menos André parecia demasiado distraído com a mão de Adriana que
entretanto aparecera na sua perna para fazer comentários. Assim, Tomás podia
passar a viagem a perguntar em paz se como é que a sua vida imitava tão bem uma
novela mexicana de segunda qualidade.
Parecia
que o tiro lhe saíra pela culatra. Nem Leonor, nem Afonso conseguiram aguentar
até que estivessem a sós e Tomás teve que passar o resto da viagem a
testemunhar as demonstrações afectivas entre os dois, sendo que Afonso, de vez
em quando, passava uma mão por detrás das costas de Leonor para dirigir ao
rapaz um gesto obsceno com o dedo. Sara, partilhando a opinião de Tomás quanto
às figuras dos irmãos, mais que não fosse porque se tratava de Afonso e, por
isso, era para ela extremamente constrangedor vê-lo nesses preparos, “Que
desagradável”
Foi
com grande pena que Afonso viu que tinham acabado de chegar a casa de Leonor. A
noite tinha passado depressa demais para o seu gosto e, mesmo sabendo que não iam
faltar oportunidades para passar tempo com a rapariga, não a queria deixar ir,
tanto que, quando ela tentou sair, ele, agarrando-lhe a cintura, disse, num tom
de criança teimosa, “Não! Não vás”
Era
em momentos como aquele que Leonor se lembrava, como se alguma vez esquecesse,
porque é que o achava o ser mais querido. Beijando-o, disse, a sentir o olhar
amuado de Tomás que estava fora do carro à sua espera, “Tenho mesmo que ir que
o meu irmãozinho está a fazer birra, mas adorei a noite, obrigada por tudo”
Não
a deixando ir sem um último beijo, Afonso, com pena, acabou por a largar.
Quanto a Sara, esta não pôde despedir-se de Tomás sem que este se desfizesse em
desculpas e a fizesse prometer que depois teriam uma conversa. Assim que o
carro arrancou, Leonor agarrou-se ao pescoço do irmão, que se limitou a deixar
ser agitado, enquanto guinchava qualquer coisa incompreensível. De vez em
quando também ela merecia um momento mais “girly” e os acontecimentos
justificavam-no. Quando soltou o pescoço de Tomás, questionou, ao ver uma marca
estranha no colarinho deste, “What’s this?! I think you have a lot of explaining to do, little
brother”
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Logo
que se viu em casa, Afonso, atirando Sara por cima do ombro como se ela fosse
um saco da batatas, foi-lhe relatando os momentos altos da sua noite, sempre
num tom mais agudo do que o que empregaria normalmente. Se não estivesse
eufórico teria reparado na melancolia da irmã, mas ela perdoou-lhe, até porque
sabia que aquele era fardo que teria de carregar sozinha. Foi um longo percurso
até chegar onde estava com Leonor, agora só tinha os olhos postos no futuro,
que decerto lhe reservaria coisas maravilhosas.