quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Capítulo 12

Tendo em consideração que aquela era a última noite do ano, não se podia dizer que não estivesse agradável. Desde o céu límpido à ausência de aragem gélida tão característica daquela altura, o ambiente convidava a uma noite passada fora de casa. Enquanto contemplava, através do vidro da sua janela, o céu nocturno, Leonor, debruçando-se sobre o parapeito, disse, absorta, sem encarar a sua interlocutora, “Sabes quando tens aquela sensação que algo vai acontecer em breve, só não sabes o quê?”

“É essa a sensação que tens agora?”, questionou Adriana, tomando a liberdade de se sentar na cama de Leonor. Se iria ter de esperar durante um período de tempo indefinido, ao menos que o fizesse confortável. Quando a amiga lhe confirmou que, de facto, achava que alguma coisa importante iria acontecer, respondeu, encolhendo os ombros, “Aceitam-se apostas, o que é que achas que pode ser?”

“Não sei”, disse Leonor, passando a mão pelos cabelos que teimavam em cair-lhe para a cara. Implorava a todos os santinhos, no entanto, que não tivesse nada que ver com Tomás. Se havia coisa que não queria era ver que o seu irmão não soubera estar à altura das expectativas, o que, para desagrado seu, iria cair muito bem a Guida que, desde que dera permissão a Tomás para ir, o vinha a aborrecer diariamente, insinuando que ele iria fazer alguma coisa. Se o seu irmão se portasse bem, o que mais poderia acontecer de tanta importância que a inquietasse daquela forma?

Provando uma vez mais que ler mentes era mais uma das suas habilidades, Adriana disse, como se estivesse apenas a constatar um facto e não precisasse de uma resposta, “O que quer que se passe entre ti e o Afonso, não achas que, mais cedo ou mais tarde, vão ter, inevitavelmente, que falar sobre isso?”

“Já me ocorreu mas, enquanto poder adiar, prefiro fazê-lo”, respondeu Leonor, encostando-se ao parapeito, de modo a encarar finalmente a amiga. Suspirando, como se, de repente, estivesse esgotada, continuou, “Já pensei em não lhe dizer nada sobre aquilo, o que nos facilitaria muito a vida, eu podia até começar do zero e o passado ficaria enterrado, ele não tem obrigatoriamente que saber”

“Sabes o que é que eu acho dessa ideia, nada fica eternamente em segredo e, se ele vier a saber por alguém que não tu, vai ser pior”, contrariou Adriana, abanando a cabeça em sinal de reprovação, “E ele é tão boa pessoa, ele merecia que fosses completamente honesta com ele, não te parece? Se ele iria ficar abalado ou não com o que lhe contares e como procederia daí, isso não te posso dar certezas, mas que ele deveria estar a par de tudo, isso acho que sim”

“Talvez tenhas razão, obrigada pelo teu input na situação”, agradeceu Leonor, honestamente. O que gostava em Adriana, sobretudo, era o facto de ela não lhe dizer apenas o que queria ouvir, mas sim, ter em consideração os seus melhores interesses, o que era algo louvável, fazia-a sentir que alguém que não a sua família queria o seu bem e não estava a planear apunhalá-la pelas costas. Preferindo mudar de assunto, ou não fosse não desejar ocupar os seus pensamentos com preocupações, comentou, num tom bem-disposto, “Então e o André? Não estás ansiosa?”

“Sabes, até não estou nervosa nem apreensiva”, confessou Adriana, embora tivesse voltado a cara para que a amiga não se apercebesse de que tinha corado um pouco, afinal era bastante inexperiente no campo amoroso, ou as suas experiências não se resumissem a Rúben a gozar consigo a torto e a direito, o que lhe diminuiu e muito a auto-estima, ainda que isso lhe custasse a admitir, pois gostava de dar a entender que não se deixava afectar com pormenores desses, “Ele deixa-me mesmo muito à vontade”

“Oh querida”, disse Leonor, feliz por ver a amiga tão contente. Só lhe desejava tudo de bom e mais sorte do que aquela que ela própria tivera, mas confiava em Adriana para fazer melhores escolhas do que aquelas que ela fizera. André parecera-lhe, inclusive, simpático, apesar de não ser o tipo de pessoa com quem se visse a tornar amiga íntima, pois o humor sarcástico do rapaz deixava-a um tanto desconfortável, mas se Adriana achava hilariante, tanto melhor. Quanto a si, só lhe restava estar lá para o que for necessário, seja qual for a eventualidade.

Pouco depois, Afonso ligou a Leonor, avisando-o de que ele e André já estavam à espera. Não querendo fazer nenhum esperar, até porque a boleia foi gentilmente cedida por André e Adriana teria, também, todo o interesse em vê-lo o mais depressa possível, Leonor chamou Tomás, a quem dariam boleia para casa da tal rapariga. Quando Tomás apareceu, Leonor, vendo que o irmão substituiu as camisolas com capuz que usava habitualmente por uma camisa, não se conteve, “Wow, you’re really looking amazing, aren’t you, little bro?”

Como aquela não era a sua indumentária normal, Tomás sentia-se pouco à vontade. Vendo o seu reflexo no espelho de corpo inteiro que estava no quarto da irmã, perguntou, “You really think so?”

Agarrando o irmão pelos ombros, Leonor empurrou-o até à porta, assegurando-o pelo caminho de que estava óptimo e que Sara não pararia de suspirar por ele a noite toda, o que fez com que ele ficasse incomodado, embora se sentisse mais confiante na sua aparência. Antes que pudessem colocar um pé fora da porta, Guida avisou, “Vá portem-se bem e se tu, Tomás, fizeres o mais pequeno disparate que seja, vais lamentá-lo durante muito tempo”

Marta, que entretanto apareceu em boa hora para deitar água na fervura antes que os ânimos se exaltassem, como acontecia mais vezes do que aquelas que ela gostaria, revirou os olhos, fazendo-lhes sinal para que não ligassem a Guida e disse, “Divirtam-se e não liguem, ela está só chateada porque os sapatos não dão com o casaco”

Despedindo-se, Leonor prometeu que iria correr tudo às mil maravilhas, antes de puxar o irmão pela mão. Parado junto ao passeio estava o carro de André, algo que Tomás descreveu como um “chaço bem podre” até que a irmã lhe deu uma cotovelada. Leonor, entristecida, pensou que se ainda estivesse nos Estados Unidos, também já poderia guiar, mas como estava em Portugal teria de esperar até fazer dezoito anos. Olhando de novo para o carro de André, cuja tinta começava a descascar, teve de dar razão ao irmão, mesmo que não o fizesse em voz alta, seria de admirar se aquele carro os conseguisse fazer a todos chegar ao seu destino sem empanar a meio do percurso. Além disso, parecia-lhe que eram demasiados para caber no carro mas decerto que haveria solução.

André, pondo a sua afro fora da janela, disse, “O carro só tem cinco lugares, por isso não sei como é que as madames se vão acomodar, mas também não é problema meu, Adriana, se eu não estivesse a guiar podias abancar no meu colo, é pena”

“É na boa, mas como eu não quero levar a gorda da Leonor ao colo, acho que a menina podia ir no colo do Tomás”, sugeriu Adriana, muito para indignação da amiga e para constrangimento tanto de Tomás como de Sara. No entanto, ninguém se opôs, a não ser que o resmungar de Afonso, que não gostava que se proporcionassem oportunidades de proximidade física entre a irmã e Tomás, contasse. E quem diz física, diz de outra forma qualquer, aliás.

Sara, hesitante, olhou para Tomás até que ele lhe garantiu que não se importava e, um tanto a medo, sentou-se no colo dele, com a cara em brasa. Devido ao facto de o caminho ser acidentado e de o carro, fosse por falha mecânica, fosse pela aparente falta de jeito de André, dar solavancos, o rapaz teve de pôr os braços em redor da cintura de Sara, para lhe tornar a viagem mais confortável. Leonor, ao ver o sorriso discreto tanto patente na cara de um, como de outro, incapaz de guardar para si os comentários, disse a Tomás, “Aposto que estás a adorar”

“Não muito, ela é pesada”, brincou o rapaz, tentando contornar as tiradas pouco oportunas da irmã. Felizmente para ele que Adriana correu em seu auxílio, pedindo a Leonor que não fosse chata. Assim que reparou no gancho em forma de borboleta que segurava o cabelo da rapariga atrás, disse, na língua em que se sentia mais à vontade, em voz baixa para que só ela ouvisse, feliz por ver que ela estava a usar a sua prenda, “You look very pretty today”

“Thank you”, respondeu Sara no seu inglês farrusco. Resolvendo provar a Tomás que as suas lições haviam sido úteis, continuou, sendo o esforço que estava a fazer para não enrolar a língua, bastante visível, “You look good, too”

Para constrangimento de ambos, Leonor não resistiu a bisbilhotar a conversa, acabando por guinchar de tão enternecida que ficou, o que chamou à atenção de todos, “Oh, que coisa mais adorável!”

“Eh puto! Já te estás a fazer ao bife!”, troçou André, batendo com a mão no tablier. O facto de Tomás estar tão corado que lhe admirava como é que ainda não tinha rebentado uma veia era como atirar fósforos à gasolina para gozar com ele. Pelo canto do olho, viu Afonso, de braços cruzados e uma expressão de miúdo a quem tinham tirado os berlindes, a olhar com tanta intensidade para o tablier que por pouco não o queimou, e não resistiu, “Não tenhas cuidado que não é preciso, o Afonso não está a curtir mesmo nada que te faças à irmãzinha dele”

Foi a risada geral, com excepção de Afonso que, através do retrovisor, dirigiu a Tomás um olhar mortífero, personificando a expressão “se o olhar matasse”. Sentindo uma súbita e avassaladora satisfação ao ver o quanto a ideia incomodava o rapaz, ocorreu algo a Tomás. Por muito louvável que fosse o seu esforço para melhorar enquanto pessoa, havia certos impulsos que não conseguia controlar e atormentar alguém para que, ele próprio, não se sentisse um incapaz vulnerável, era o maior deles. João que o dissesse, afinal recebia um soco ou dois sempre que lhe dava o menor dos motivos para isso e, agora que aprendera a não se meter com ele, continuava, com a particularidade de não necessitar de motivos. E pensar que Sara acreditava mesmo que o novo tratamento de João para com ele se devia ao facto de se estarem a tornar amigos, que ideia mais caricata.

Mas João não dava grande luta e o olho negro dera muito nas vistas, por isso parecia que Tomás tinha encontrado uma nova vítima, embora não pudesse recorrer a violência física contra esta. Tinha, também, a vantagem de não lhe arranjar problemas, afinal não estava a fazer nada de errado e Afonso não iria querer desagradar a Leonor. Satisfeito com a sua epifania, Tomás, ao ver que estavam a chegar a casa de Rafaela, decidiu que daquela noite não passava, mas, para isso, teria de começar a preparar o terreno enquanto antes. E mais que isso, João iria lá estar, assim conseguiria fulminá-lo de vez, como se ainda sobrasse muito, matando dois coelhos de uma só cajadada.

“Divirtam-se”, disse Leonor, quando iam a sair do carro. Pondo um pedaço de papel no bolso do casaco de Sara, sussurrou-lhe, rapidamente, ao ouvido, para que Tomás não a ouvisse, pois não queria que ele pensasse que até ela duvidava dele, o que não era o caso, só achava que não custava nada ter cuidado, tudo pelo bem-estar do irmão, “Tens aí o meu número, se acontecer alguma coisa liga-me”

“Claro que nos vamos divertir”, garantiu Tomás, certificando-se que enfatizava bem a frase, nunca deixando de manter contacto visual com Afonso, que rangeu os dentes, um dos seus vários tiques nervosos. Decidindo que ainda não tinha enfurecido o rapaz que chegasse, colocou um braço à volta da cintura de Sara, que não o afastou nem pareceu incomodada, e acenou em sinal de adeus, até que André arrancou, sempre sem tirar os olhos de Afonso, que começava a parecer uma estátua de cera de tão pálido que ficou.

Durante o resto da viagem até à marina, Afonso não se pronunciou. Como é que era possível que um miúdo que ainda nem voz de gente tinha ousasse ter a ousadia de o provocar daquela maneira? Na parte que lhe dizia respeito, Tomás podia chateá-lo como se não houvesse amanhã, desde que não metesse Sara ao barulho. Ele até podia andar a portar-se bem, mas Afonso não conseguia afastar a sensação de que ele não era flor que se cheirasse e vê-lo tão próximo da sua irmã não o deixava descansado. Ele próprio admitia que não tinha a melhor atitude para com Tomás, mas só não queria ver Sara magoada. Só quando Leonor lhe fez uma festinha na nuca, é que ele levantou a cabeça, “Então Afonso? Estás bem?”

“Estava só distraído”, desculpou-se Afonso, fazendo por afastar os seus pensamentos mais negativos em prol do que esperava que fosse uma noite agradável. Ao sair do carro, cumprimentou finalmente Adriana, que parecia estar mais interessada nos beijinhos de André do que nos seus, e Leonor, constatando que ela ficava mais alta do que ele quando usava saltos, o que assassinou um pouco a sua virilidade, tanto que disse, num tom tristonho, “Estou a ver que hoje estás de saltos”

“Dizes isso como se fosse mau, é por estar mais alta que tu?”, picou a rapariga, pondo-se junto a ele, para salientar ainda mais a diferença. Como provocar as pessoas era a sua religião, André foi para junto do outro lado do rapaz, inclinando-se sobre ele, para o fazer sentir-se ainda mais baixo.

“Ela já é boa, com saltos fica ainda mais boa”, comentou Adriana, decidindo poupar o rapaz a mais embaraços, uma vez que já reparara que a estatura dele era uma insegurança e, portanto, um alvo demasiado fácil para ela gozar. Encolhendo os ombros, perguntou, retoricamente, “Estás-te a queixar?”

“Eu acho que lhe fica bem”, admitiu Afonso, ruborizando um pouco ao passar os olhos pelas pernas esguias de Leonor até se deter nos glúteos desta. Para bem da sua sanidade, afinal iriam gozar com ele até mais não se o apanhassem, estavam numa zona pouco iluminada, o que fez com que o seu olhar indiscreto não fosse detectado. A rapariga acabou por agradecer o elogio, entre uma risadinha e outra provocada pelos modos do rapaz.

“Bem, vamos andando ou não?”, interrompeu André, já saturado de estar no parque de estacionamento à espera de começar a criar raízes. Não era que estivesse particularmente entusiasmado por rever os miúdos que andavam no seu secundário quando ele estava já, para seu alívio, para sair. Não, aquela gente atadinha e aborrecida não lhe deixava quaisquer saudades. Revirando os olhos só de os imaginar, preferiu dirigir a sua atenção para Adriana, que se arrepiou com a brisa mais fresca que se fazia sentir. Passando-lhe um braço pelos ombros para a aquecer, respondeu, antes que Afonso pudesse sequer abrir a boca, “O que quer que vás dizer, cala-te, pussy”

Erguendo ambos os braços em sinal de derrota, Afonso decidiu ir dar uma vista de olhos pelo bar, sempre ao lado de Leonor. Encontrando uma mesa vazia a um canto, propôs à rapariga que se sentassem, tomando a liberdade de lhe puxar a cadeira para que se sentasse, gentilmente. Fosse porque estava demasiado distraído com Adriana, fosse porque o conceito de misericórdia não lhe era completamente estranho, André guardou para si os comentários, algo por que Afonso se sentiu grato, pois não queria que ele lhe estragasse aquele momento com Leonor. Vendo que ela parecia bem-disposta e André e Adriana continuavam distraídos com uma conversa acerca de um desenho animado japonês, não lhe pareceu indiscreto colocar um braço nas costas da cadeira da rapariga e inclinar-se ligeiramente sobre ela, com a desculpa de a ouvir melhor devido ao barulho do bar.

Enquanto o bar se ia lotando com a multidão que entretanto aparecera, André achou por bem, encorajado por Leonor, com um entusiasmo que Afonso não esperou vindo dela, pedir as bebidas. Se Adriana não era uma grande apreciadora de álcool, embora tivesse feito um esforço por acabar a sua vodka sem esboçar um trejeito semelhante ao de alguém que estava em vias de dar à luz, e Afonso, por causa da sua doença, não tivesse ido além da primeira bebida, André foi até acumular meia dúzia de copos à sua frente, afinal a sua mesada não deu para mais, e Leonor teve de colocar um travão pois não queria virar esponja e beber mais do que todos os presentes, embora tivesse emborcado umas quantas bebidas como se fossem água. No entanto, a rapariga bebeu o suficiente para não se inibir de pedir um cigarro a alguém, hábito esse que já tinha deixado, praticamente.

Afonso, ao testemunhar a cena, não pôde deixar de ficar surpreendido, pois, ao que parecia, ainda havia muito sobre Leonor que ele desconhecia. Ainda assim, não podia dizer que o efeito do álcool na rapariga não lhe estava a ser extremamente vantajoso, dado que ela, mais desinibida, se permitia a, não só permitir, como a tomar a iniciativa de manter mais contacto físico do que aquele a que habituara o rapaz, que não cabia em si de contente. Estava nas nuvens por a mão de Leonor estar a deambular pela sua perna, quando Rúben, acompanhado por uma loura de aspecto pouco tímido, se destacou da multidão e o fez acordar, “Então puto!”

“Olá”, murmurou o rapaz, retraindo-se devido aos modos espalhafatosos do amigo e, também, por estar na presença de alguém desconhecido. O amigo não lhe deu muita conversa, de qualquer forma, porque entretanto resolveu trocar saliva com a sua companhia. Rúben parecia-lhe bêbado, algo que não o admirava porque sabia como o amigo era quando estava na periferia de qualquer bebida, e o espectáculo que ele e a sua companhia, vestida de modo escandaloso, faziam, algo que estava quase a merecer bolinha vermelha no canto do ecrã, muito contribuíam para o deixar incomodado. Quando as mãos do amigo desapareceram dentro da saia, que mais passaria por um cinto, da loura, Afonso achou melhor divergir a sua atenção.

Adriana que assistia à demonstração de Rúben da sua técnica de sexo oral, que consistia num gesto obsceno com a língua, algo que a sua companhia aparentemente iria ter a oportunidade de ver por si mesma dali a umas horas, julgou nunca antes ter visto algo tão repugnante, o que englobava aquela ocasião em que porno de palhaços tinha aparecido no seu motor de busca. André, partilhando a sua opinião, disse-lhe, revirando os olhos, “Este palhaço é nojento”

“O que foi?”, instigou Rúben, demonstrando que, não só ficava particularmente promíscuo quando bebia, como ficava violento. Soltando a loura por um instante, disse, com um ar presunçoso, “Estás é fodido porque querias uma gaja destas em vez dessa”

André, primeiro, ergueu o sobrolho, depois franziu-o, até que se começou a rir a bandeiras despregadas, muito para espanto das pessoas à mesa. Aquela criatura não podia estar mesmo a falar a sério, mas não o podia deixar sem resposta. E pensar que tivera esperanças que os miúdos do secundário tivessem evoluído desde o seu tempo. Quando se acalmou, disse, completamente sério, como Afonso nunca antes o ouviu, “Tipo…se tu tens problemas com a mamã, eu não quero saber, mas faltares ao respeito aos outros é que não, está bem? Tira lá o vibrador do cu e deixa a Adriana em paz”

Rúben já ia partir para a linguagem na qual se fazia entender melhor, também conhecida por violência, quando Afonso, resolvendo interceder, se colocou entre ele e André, que começou a fazer caretas como se estivesse a interagir com um bebé. Quando Rúben, incapaz de passar por Afonso, ia a abrir a boca, André disse, torcendo o nariz, “E podes parar com isso, sabes que a tua pila continua pequena”

As pessoas que estavam por perto a assistir à troca de mimos entre ambos desataram a rir, o que envergonhou Rúben, tanto que se decidiu a bater em retirada estratégica. Ao que parecia, a sua companhia não estava nada impressionada o que, para ele, implicaria que aquela seria uma noite de celibato. Voltando a sentar-se, Afonso, teve que reconhecer a André, por muito que não gostasse de dar espectáculo para uma imensidão de desconhecidos, “Estiveste bem”

Ignorando-o, André dirigiu-se a Adriana, pondo-lhe uma mão sobre o ombro, “Não ligues ao que aquele paneleiro disse, enquanto estás aqui e estás bem, ele vai apanhar no cu”

“Obrigada pelo que fizeste por mim agora”, disse Adriana, com um nó na garganta. A troca de olhares que se seguiu, sem que nenhum tivesse que verbalizar fosse o que fosse, fez com que tanto Afonso como Leonor se sentissem um tanto a mais ali.

Foi nesse momento que o rapaz, pressentindo que André não o perdoaria se continuasse emplastrado ali, achou por bem deixá-los a sós. Acenando à rapariga, convidou-a para que fossem lá para fora um pouco, convite esse que foi aceite, pois ela estava com vontade de apanhar algum ar, depois de o bar se encher de pessoas e se tornar, francamente, sufocante. Infelizmente para o rapaz, Tomás a esticar-se com Sara e a quase briga que se formou entre Rúben e André não seriam os únicos contratempos que lhe iriam tornar aquela noite menos aprazível. E, ao que tudo levava a crer, o destino decidira ser cruel e presenteá-lo com a visão de duas pessoas que ele passaria bem sem ter de ver.

A alguma distância, Beatriz, de braço dado com o namorado, estava na iminência de se dar de caras com eles. Afonso ainda teve esperança que ela não o visse, talvez a fraca luminosidade do local resultasse a seu favor, mas não. Ao vê-lo com companhia, Beatriz ergueu o sobrolho, de tão surpreendida que ficou, mas não deixou que isso a incomodasse. Acenando-lhe, não se fez rogada em caminhar na sua direcção, com um sorriso cínico. O rapaz olhou para a sua direita, depois para a sua esquerda e não viu como escapar e, quanto mais Beatriz se aproximava, mais as suas palmas suavam. Não devia ter nada a temer, o passado estava mais do que distante, mas mesmo assim só desejava um canto obscuro onde se esconder. Não lhe parecia que o namorado fosse começar uma briga do nada, por isso o que é que podia dar para o torto? Leonor, no entanto, parecia nem ter reparado nas duas pessoas que se aproximavam deles.

Beatriz, ao ver o quão nervoso Afonso estava, sorriu ainda mais. Ele não tinha mudado nada e ela estava certa de que, se assim o desejasse, podia voltar a passar-lhe por cima que ele seria incapaz de resistir. Tinha que admitir que estava bastante curiosa acerca da identidade da rapariga que estava com ele e que tipo de relação eles teriam, mas duvidava que fosse mais do que amizade platónica, afinal ela parecia demasiada areia para o camião dele. Apoiando o peso sobre uma perna e colocando uma mão sobre a anca, cumprimentou, “Olá Afonso”

“Olá”, respondeu o rapaz, num tom tão baixo que Beatriz teve dificuldade em ouvir. Vê-lo com os olhos postos no chão e tão nervoso deu-lhe uma enorme satisfação. Mas Beatriz não tinha vindo para pôr a conversa em dia com Afonso e, se a sua auto-estima saiu levantada, tanto melhor, significava que o rapaz continuava a desempenhar bem a sua tarefa. Voltando a dar o braço ao namorado, virou costas e entrou num dos bares, mas não sem piscar o olho a Afonso, que baixou ainda mais a cabeça.

Leonor, ao assistir à inesperada e repentina mudança de comportamento de Afonso junto daquela rapariga, perguntou-se o que se estaria a passar. Se aquelas duas personagens desconhecidas apareceram num ápice, desapareceram à mesma velocidade e o rapaz ainda estava abalado. Afagando-lhe o braço, perguntou, “Estás bem?”

“Sim, sim”, murmurou Afonso. Sentia-se desiludido consigo mesmo, sobretudo. Sabia que a sua confiança era algo que ainda necessitava de ser melhorado, com excepção de quando tinha um jogo de rugby, aí sentia-se capaz de tudo, mas ver que bastava Beatriz aparecer para ele ser novamente o seu eu de quinze anos inseguro.

“Queres ir dar uma volta? Para desanuviares”, propôs a rapariga, vendo que a resposta que ele lhe tinha dado não correspondia à verdade e que ele ainda estava aborrecido.

Ao notar que o seu comportamento não estava a tornar a sua companhia mais agradável, o rapaz aceitou, fazendo questão de colocar o sucedido por detrás das costas. Caminhando ao lado de Leonor, foi observando os barcos atracados na marina, numa tentativa desesperada de se lembrar de qualquer coisa engraçada para dizer e, consequentemente, capaz de o fazer redimir-se. No entanto, como a inspiração resolveu fazer greve, tudo o que conseguiu dizer foi, “Olha aquele barco tem um casco tão giro”

Apanhada de surpresa com o que o rapaz disse, a rapariga não conseguiu conter o riso. Ainda com a mão em frente da boca, disse, curvada sobre si mesma de tanto rir, “What the fuck?”

“Não tem? É azul e diz Estrela-do-mar”, perguntou Afonso, passando a mão pela nuca. Se ia dizer qualquer coisa de aleatória, ao menos que se aguentasse à bronca. Se não tivesse medo de água e fosse dono de um barco iria querer que o seu barco fosse tão esteticamente apelativo como aquele.

Dando-lhe um toque com a anca na brincadeira que por pouco não o fez cair do cais, Leonor, riu-se ainda mais. O rapaz, que esteve prestes a ver que ia fazer companhia às algas, não pôde deixar passar a provocação sem retaliar. Agarrando a rapariga pela cintura, ameaçou, em tom de gozo e sempre por entre risos, que a atirava à água, “E agora? Não te estavas a queixar com calor?”

“Pronto, pronto, faço o que quiseres mas pára”, implorou Leonor, já sem o suporte do cais debaixo dos pés que ficaram no ar. Quando Afonso finalmente a pôs em solo seguro, sentiu-se aliviada pois, com o jeitinho que conhecia do rapaz, a hipótese de ele a deixar cair na água não era assim tão improvável.

“Tudo o que eu quiser?”, perguntou ele, como uma criança que tinha ouvido a sirene da carrinha dos gelados. Assim que ela lhe confirmou, pensou por um momento no que é que queria realmente. Não era necessário dar demasiado trabalho ao cérebro, porque a resposta era óbvia e, se ela não estivesse a brincar, ele estaria no paraíso. Não era como se fosse a primeira vez, mas parecia-lhe cada vez melhor. Fazendo uso da oportunidade que se apresentava, pediu, com ar de cachorrinho, “Dás-me um beijinho?”

“Está bem, pronto”, acedeu a rapariga, fingindo fazer um sacrifício, quando a realidade era que não se importava minimamente de conceder o desejo a Afonso. Pondo-lhe os braços em torno do pescoço, ainda pensou em ser mais recatada, mas não resistiu.

O rapaz, naquele momento, perguntou-se porque é que tinha estado tão chateado com a presença de Beatriz. Ela parecia-lhe tão insignificante agora que qualquer irritação que sentisse anteriormente desapareceu, Leonor em geral surtia nele esse efeito. Suspirando, passou as mãos pelas costas da rapariga, mantendo o queixo apoiado no ombro dela, já que, se havia algo de bom em ela estar a usar saltos, era, sem dúvida, o facto de aquela posição o deixar confortável. Leonor, incapaz de conter a sua curiosidade, visto aquele comportamento não ser nada normal vindo de Afonso, não resistiu a perguntar, “Quem era aquela rapariga?”

“É uma longa história”, respondeu o rapaz, sem encontrar uma parte de si que estivesse disposta a gastar um pouco que fosse do seu bem-estar para se preocupar com Beatriz. Se ela preferira David a ele, o que é que ele podia fazer? Na altura custara-lhe, mas estava fora do seu controlo e sentia-se tão bem a partilhar momentos daqueles com Leonor que as suas peripécias com Beatriz ficavam enterradas e esquecidas.

“Tenho tempo”, insistiu a rapariga, ainda mais curiosa. Sabia que Afonso era tímido e que, por vezes, tendia a ficar ansioso na presença de certas pessoas, afinal, no início, ele mal a conseguia olhar nos olhos, mas nunca daquela maneira e isso intrigava-a muito. Quando se apercebeu de que, talvez, ele não quisesse falar sobre isso, acrescentou, “Não tens que me contar nada, se não quiseres”

“Pode ser…”, concordou o rapaz, apontando para um banco ali perto, para que se sentassem. Nem sabia ao certo porque é que, tendo a hipótese de guardar aquela história para si, se decidiu a partilhá-la com Leonor. Não queria que ela pensasse nele como um coitadinho, não queria, igualmente, compaixão, mas sim compreensão e, como gostava de falar com a rapariga, parecia-lhe apropriado falar sobre o que se tinha passado. Sabia, inclusive, que lhe era impossível relatar a história sem deixar que o seu rancor viesse à superfície, mas estava disposto a correr o risco de pintar, aos olhos de Leonor, uma imagem menos favorecedora de si.

Quando se sentaram, respirou fundo e, quase sem ter que pensar muito, relatou toda a história. Ele e Beatriz conheceram-se ainda no básico quando andaram na mesma turma e, depois de as suas obrigações escolares terem servido de pretexto para se aproximarem, tornaram-se amigos. Se, para Beatriz, Afonso era um ombro amigo, alguém que ouvia os seus desabafos e a ajudava, para o rapaz, ela era uma amiga de quem começou a gostar mais e mais. No princípio, resolveu não dizer nada, não fosse correr o risco de estragar o que tinham. Entretanto, algures pelo décimo ano de ambos, Beatriz conheceu David, o rapaz com quem estava naquela noite, e começaram a namorar, embora ele não a tratasse como Afonso achava que ela devia ser tratada e as discussões entre ele e Beatriz eram constantes.

Um dia, quando achou que já chegava de ouvir em silêncio os problemas que Beatriz e o namorado tinham, aproveitou o facto de estarem numa das suas muitas fases em que estavam chateados, e disse a Beatriz como é que se sentia, o que exigiu um acesso de coragem sua, pois temia a rejeição e o que ela traria. Para sua surpresa, ela confessou-lhe que o sentimento era recíproco. Foi um dia paradigmático para ele. No entanto, nunca assumiram nenhuma relação, mas Afonso tratou o que tinham como tal. Enquanto durou, o rapaz fez tudo para lhe mostrar o quanto gostava dela, tratava-a o melhor que conseguia, arranjava sempre tempo para ela e para a ouvir e, ao que lhe pareceu, foi óptimo e ele não fez nada de errado e ela parecia corresponder, embora tivesse momentos em que era mais fria.

Estava tudo a correr bem até que Rúben, que soube por estar no lugar errado à hora errada, ou certa, pois foi da maneira que ficou a saber, lhe disse que as coisas entre David e Beatriz ainda não tinham acabado. Depois de ter passado pela fase da dúvida e da negação, decidiu-se a tirar as dúvidas, de forma de que não se orgulhava mas que foi necessária e, após uma discussão feia, ficou a tomar conhecimento do facto de que eles já andavam naquilo havia algum tempo e que ele serviu para lhe subir o ego e para fazer ciúmes a David, que percebeu que a queria mesmo. Ao menos, da luta que se seguiu entre ele e David, luta essa em que ele o conseguiu deixar com o maxilar partido, sempre tirou uma certa satisfação.

Leonor, que o escutou sem o interromper por um momento que fosse, necessitou de um pouco para digerir toda aquela informação. Desde que se conheceram que tinha a impressão que o rapaz gostava dela e ele confirmara-lhe, mas agora que estava a par da história com Beatriz não sabia até que ponto é que ela estava esquecida. Quando o silêncio se tornou incómodo, afagou a mão a Afonso, dizendo, num tom meigo, “Lamento imenso, não merecias o que ela te fez”

“Já foi há algum tempo”, disse o rapaz, observando a mão de Leonor entrelaçada na sua, “Não penso muito nela, só fiquei chateado porque ela continua a ser a mesma pessoa menos boa que acabou por revelar que era na altura e comigo mesmo porque me deixei afectar por isso”

“Posso perguntar-te uma coisa?”, questionou a rapariga, franzindo o sobrolho em sinal de apreensão. Assim que Afonso lhe acenou afirmativamente com a cabeça, prosseguiu, “Ainda sentes alguma coisa por ela?”

O rapaz esperava qualquer coisa, fosse se tinha alguma fixação por cascos de barco, fosse se algum dia iria considerar livrar-se dos seus caracóis, mas não aquela pergunta. Pestanejando, já que a sua filosofia naquele momento era ser tão sincero quanto conseguiu, respondeu, “É um tanto difícil gostar de alguém que te usou para fazer ciúmes ao namorado, não achas? E…”

“E?”, perguntou Leonor, surpreendida por estar a conhecer uma faceta mais rancorosa de Afonso, sempre afável e sem um pingo de maldade no corpo, embora não o censurasse, pois Beatriz não tinha sido minimamente correcta. Sabia-lhe bem, por outro lado, saber que, para o rapaz, ela não era recordada com saudade ou nostalgia. Não seria racional da sua parte sentir ciúmes quando fora ela, Leonor, a desperdiçar a sua oportunidade com ele.

“E…bem…sabes, o que te disse há uns tempos mantém-se”, confessou Afonso, baixando a cabeça. Não sabia o que esperar com aquilo, se tivesse sorte a rapariga não se acabaria por retrair como costumava fazer, afinal a proximidade entre ambos servia como alicerce à sua esperança, mas não queria acabar desiludido. Podia ter sido mais explícito e dizer com todas as letras que gostava dela, para que não houvesse dúvidas, mas naquele momento não encontrou coragem para isso.

“Afonso…”, disse Leonor, sentindo a voz a deixá-la ficar mal. Não podia dizer que se sentisse muito arrependida por ter dado para trás ao rapaz, pois assim conseguira adiar a conversa que teriam de ter, conversa essa que, talvez nunca viesse tão a propósito como agora. Ao ver que Afonso parecia desolado, algo por que ela não queria ser responsável pela segunda vez, tentou, “Eu não posso dizer que me sejas indiferente”

Por aquilo sim, o rapaz não estava à espera. Parecia-lhe intangível que a rapariga que um dia vira a andar a cavalo e que lhe pareceu o ser mais perfeito que conseguia imaginar, por muito cliché que tal coisa lhe parecesse, alguma vez se interessasse por ele da mesma forma. Com um sorriso gigante, tão grande que lhe fez doer os cantos da boca, abraçou Leonor, que acabou por lhe passar as mãos pelas costas, ao de leve. Sem largar a rapariga, sussurrou-lhe ao ouvido, “Então o que é que nos impede de…? Isto se quiseres, claro”

“Não é isso…”, disse Leonor. Não tinha nenhuma objecção a levantar, mas antes de começarem o que quer que fosse, teria, tal como Adriana lhe aconselhou, que colocar todas as cartas na mesa. Só esperava que agora não fosse Afonso a desertar. Pretendendo não adiar mais, começou, “Há uma coisa, ou duas, que te devia dizer, depois, se ainda quiseres, podemos pensar no assunto”

O rapaz não fazia a menor ideia do que seria, mas que havia algo que a rapariga não lhe estava a contar, isso já tinha tido a sensação. Leonor, antes de continuar, pediu-lhe que não a interrompesse e, sobretudo, que prometesse que não contava a ninguém uma palavra do que ela lhe estava para dizer, algo com que ele concordou. Fechando os olhos por um momento, a rapariga, como se estivesse a ganhar balanço, confessou que, quando era mais nova e mais impressionável, não fazia as melhores escolhas e, algumas delas, tiveram consequências das quais não se orgulhava. Agir de forma impulsiva também era algo de que padecia e, essas duas características quando adicionadas, levavam a que coisas verdadeiramente más acontecessem.

Quando tinha cerca de doze anos, uma das suas manias era pretender ser mais crescida do que realmente era, talvez por estar farta de ser demasiado protegida em casa, mas não queria responsabilizar ninguém por algo que fora culpa sua, o que levou a alguns comportamentos precoces, também ajudados por aparentar ser mais velha do que era. Mais do que começar a fumar com essa idade, uma vez conheceu um rapaz mais velho e uma coisa levou a outra, num espaço de tempo mais curto do que gostaria de admitir, e por volta dessa altura já nem virgem era. Mas o erro não ficou por aí, as suas companhias não eram as ideais e não demorou muito até que a história se espalhasse e começasse a ganhar uma reputação pouco desejável e ela, fosse porque gostava da atenção, fosse porque dali sempre obtinha alguma forma de validação.

O ciclo continuou até que, quando tinha catorze anos, conheceu Ryan. Mais velho, capitão de equipa de futebol e popular. Quando ele mostrou interesse nela, parecia-lhe um sonho. Embora nunca tivessem assumido nada oficial, ele ia-lhe assegurando que gostava dela e fazia tudo para lhe manter a esperança de que um dia poderiam vir a ter alguma coisa a sério. No entanto, o interesse dele nela não ia além do sexo e, quando se descuidaram, ela engravidou e, quando isso sucedeu, Ryan deixou-a entregue à sua sorte. Sem apoio, depois de todas as amigas, se é que lhes podia colocar esse título, lhe terem voltado as costas, e com demasiada vergonha para pedir ajuda à família, teve de fazer um aborto sozinha.

Como nem tudo foi uma tragédia, pelo menos sempre aprendeu a lição e, desde então, que tem feito tudo para limpar a sua imagem. Nunca mais se envolveu com minguem, passou a escolher melhor as suas amizades e a vinda para Portugal não podia ter vindo mais a calhar, porque permitiu-lhe começar de raiz, algo por que estava muito feliz. Quando acabou, olhou para o rapaz, pela primeira vez desde que começara, que parecia visivelmente abalado. Sentindo o coração nas mãos, murmurou, “Afonso…”

“Wow…”, respondeu ele. E pensar que as suas peripécias com Beatriz lhe tinham parecido fortes, quando na verdade eram insignificantes ao pé de algo como aquilo. Não podia dizer que era algo que pudesse pôr simplesmente por detrás das costas, mas estava no passado. Também não podia dizer que a imagem da rapariga aos seus olhos fosse exactamente a mesma, porque costumava colocá-la num pedestal e, agora que ela lhe contou aquilo, via-a, não como o paradigma da perfeição, mas como alguém que, tal como todos, tinha falhas, ainda que fossem mais insólitas do que as de muita gente. Ainda assim, não podia julgá-la por algo que já lá ia, sobretudo quando ela própria admitia que tinha errado e que estava a fazer por se redimir, algo que, na sua opinião, era muito louvável.

Olhando para Leonor, viu-a com os olhos marejados de lágrimas e, numa tentativa de a tranquilizar, segurando-lhe as mãos, continuou, “Por essa eu não estava à espera, mas já foi há algum tempo e, desde que te conheço que tens sido impecável, de que serve agarrar-me a essa ideia? O que lá vai, lá vai”

Juntando o gesto à palavra, Afonso, sorrindo, passou o dedo por uma lágrima que estava prestes a descer por uma bochecha da rapariga que, engolindo um soluço, retribuiu o sorriso. Leonor podia ter respondido, mas, naquele momento, sentia-se como se tivesse acabado de sair de uma montanha russa, tal era o alívio que sentia, tanto que abraçou o rapaz, que a abraçou de volta. Ainda estava a digerir o facto de ele ter sido tão compreensivo, mesmo quando o teor da informação era tudo menos fácil de entender. De Adriana esperava, ainda que com algumas reservas, que não a julgasse, mas de Afonso, alguém que, tanto quanto ela conseguia ver, estava interessado nela e considerava-a a melhor coisa a passar pela Terra desde a Pizza Hut, não se admiraria que tivesse uma mudança de opinião de 180 graus em relação a ela. Não podia, assim, estar mais grata pelo facto de tudo ter corrido pelo melhor.

Afonso não soube quanto tempo passou, mas desejou que aquele momento se prolongasse infinitamente, estava tão, mas tão feliz. Ainda assim, como gato escaldado de água fria tem medo, preferiu esclarecer tudo à partida, embora não conseguisse encontrar as palavras certas e tivesse acabado por as balbuciar, “Então…nós…?”

“Sim”, disse Leonor, sorrindo, antes de o puxar para um beijo, a que ele correspondeu, com tanto entusiasmo que por pouco não lhe deu uma cabeçada. Não fazia mal, a rapariga gostava dele mesmo com os seus modos desajeitados, que, enquanto não a mandassem para o hospital, eram adoráveis. Deitando a cabeça sobre o ombro do rapaz, que passou um braço à sua volta, aproximando-a de si, agradeceu a uma qualquer entidade supra natural a sorte que tinha tido. Quando se lembrava do dia em que rejeitara Afonso só tinha vontade de gritar consigo mesmo pelo erro que tinha acabado de cometer. Parecia-lhe tão bom que duvidava ser verdade, tanto que apertou a mão ao rapaz, como se isso lhe fosse assegurar que não estava a sonhar.

Afonso não soube quanto tempo os dois estiveram ali, mas, se havia algo de que estava absolutamente convicto, era que se dependesse de si congelaria o tempo naquele momento para que não acabasse, mas, como era apenas humano, tinha de acudir às suas obrigações. Com visível pena, retirou o braço dos ombros da rapariga e, consultando o relógio, disse, “Falta pouco para a meia-noite, se calhar devíamos ir ter com o André e com a Adriana”

“Tens razão”, concordou Leonor, ostentando um ar de desconsolo em todo idêntico ao do rapaz. Levantando-se, surpreendeu-se quando ele lhe deu a mão, algo a que não estava muito habituada tendo em conta o seu historial. Era uma mudança bem-vinda, fazia-a sentir-se querida por algo que não sexo, o que, depois de todo aquele tempo, lhe provocou um violento ataque de borboletas no estômago. Só esperava que o destino lhe pregasse uma partida e Afonso afinal fosse mais um como os que havia conhecido no passado, mas não queria estragar o momento a pensar em tal hipótese.

Voltando ao bar, em busca de André e de Adriana, afinal, quão difícil seria encontrar uma afro em cima da cabeça de alguém alto como um poste no meio da multidão, esbarraram, ironicamente, com Beatriz. Tudo levava a crer que não se iriam livrar dela com tanta facilidade. Ela parecia decidida a provocar o rapaz, tanto que o sorriso cínico nunca lhe abandonou o rosto, nem mesmo quando viu Leonor ao seu lado. A rapariga, farta de ver Beatriz a enervar propositadamente o seu namorado, resolveu intervir. Calma, o seu namorado? A palavra parecia-lhe estranha, visto ser a primeira vez que a podia utilizar. Mais tarde teria tempo para se acostumar. Sussurrou ao ouvido de Afonso, “Queres chateá-la?”

Assim que o rapaz, hesitante, respondeu afirmativamente, Leonor, ganhando balanço, saltou-lhe para cima, pondo as pernas à volta da cintura dele que, com o susto, quase a deixou cair, mas apanhou a tempo, segurando-a. Deitando um olhar à expressão incrédula de Beatriz, a quem, por pouco, não caiu o queixo, beijou Afonso, entreabrindo ligeiramente um olho, de propósito para ver a outra empalidecer. O rapaz, na parte que lhe dizia respeito, apenas se perguntava o que é que teria feito de tão bom na outra vida para merecer, não só a rapariga, como uma oportunidade para retaliar a Beatriz. E daí não se importava assim tanto com Beatriz, ia desfrutar e bem por si e por Leonor.

Deixando para trás tanto Beatriz como o namorado, horrorizados, Afonso, pousando a rapariga no chão, ainda afogueado e corado, lembrou-a de que estavam ali para encontrar Adriana e André, sendo que este último não se dignara a responder-lhe à mensagem quando perguntou onde é que ele estava. Para bem da paciência de ambos, tanto André como Adriana apareceram, ele com o colarinho da camisola fora do sítio e ela com uma marca duvidosa no pescoço. Não deixando que pormenores como aqueles o afectassem, André inquiriu, “Onde é que andaram, porcalhões?”

“Onde é que tu andaste?”, perguntou Leonor, sem conseguir desviar o olhar do chupão no pescoço de Adriana. Não devia estar surpreendida, era apenas uma questão de tempo até que alguma coisa acontecesse entre André e ela, mas ainda assim sentia-se incrédula. A amiga, por seu turno, limitou-se, com um sorriso, a dizer-lhe que mais tarde relatava tudo o que se tinha passado e também ouviria o que ela, Leonor, tinha para dizer, porque estava certa de que ela teria muito para dizer.

A conversa teve de ficar por ali, visto que era quase meia-noite. Pegando num copo com champanhe, não se coibiu de colocar o braço livre em torno da cintura da rapariga, puxando-a para si, enquanto ouviam a contagem decrescente. Depois de anunciarem o novo ano e de terem terminado os brindes, Afonso beijou Leonor, encostando a testa à dela, antes de lhe desejar, sorrindo, “Feliz Ano Novo”

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Assim que o carro arrancou, Sara, que não sabia o que pensar do súbito contacto inesperado, pestanejou, não conseguindo nenhuma reacção mais drástica. Tomás nunca fora, pelo que conhecia dele, o que, vistas bem as coisas, não era assim tanto, de demonstrações afectivas e, de todas as outras vezes, tinha sido ela a ter a iniciativa, por isso estava a estranhar aquela mão no fundo das suas costas. Era um contacto íntimo, mas não ao ponto de a fazer pensar mais no assunto. Quando Rafaela os veio receber à porta, Sara teve, no entanto, que admitir que sentiu uma certa vaidade por estar acompanhada por alguém que fazia sucesso junto das raparigas da sua turma, ainda que nenhuma se atrevesse a abordá-lo, pois ele ainda as intimidava, mas decidiu colocar esse pensamento longe da sua mente, pois considerava-o mais próprio de Cláudia.

“Olá Sara”, recebeu-os Rafaela, sempre com a boa disposição a que ela sempre habituara Sara, desde os tempos em que se tinham conhecido no jardim-de-infância e partilhavam bolachas. Admirada por o rapaz, ao contrário do que ela esperara, ter resolvido vir, abordou-o, “Olá Tomás, sempre vieste”

“Parece que sim”, disse o rapaz, fazendo todos os esforços que conseguia por mostrar toda a sua simpatia. Já tinha tido uma conversa preparatória consigo mesmo antes de vir, na qual se comprometeu a comportar-se de maneira impecável e tencionava fazer isso mesmo. Se tudo corresse nos conformes, Guida não lhe diria nada mas iria remoer o facto de se ter enganado redondamente e Afonso entraria em combustão espontânea de tanto que se iria irritar. Imaginando o cenário mais uma vez, sentiu-se tão confiante e motivado que mal podia esperar por passar o plano à prática.

Durante o caminho que separava a porta da frente da casa de Rafaela até à porta da sala onde estavam cerca de uma dúzia de pessoas, Tomás não retirou o braço da cintura de Sara. E continuaria sem o fazer, caso a rapariga, ao avistar Cláudia, não lhe tivesse tirado a mão. A rapariga, cujo um dos últimos desejos era ser apanhada no caminho da ira da amiga, apenas pretendia evitar conflitos para o seu lado, pois queria continuar a levar uma existência pacífica, algo que seria seriamente complicado se, por acaso, o rapaz fizesse alguma coisa para que Cláudia fosse ter ciúmes dela. Esperava, contudo, que ele não tivesse encarado o facto de ela lhe ter tirado a mão das suas costas como frieza e tê-lo-ia esclarecido, mas sentia-se tola ao fazê-lo. Decidindo confiar na sorte, pensou que seria uma probabilidade Tomás nem ter pensado duas vezes no assunto.

Quanto a ele, que considerou que o gesto se devera a apreensão por parte de Sara, perguntou-se se afinal não seria mais difícil do que tinha previsto, mas não ia desmoralizar. Ela já estaria habituada a ele e saberia, do mesmo modo, que ele não estava a planear matá-la para vestir a sua pele. Era em momentos como aquele que ele se arrependia de não ter visto mais filmes românticos e piegas como aqueles que Leonor gostava de ver, podia ser que lhe tivessem ensinado uns truques. Não teve tempo para definir um plano, pois, um gritinho agudo ecoou no hall da casa, interrompendo a sua linha de raciocínio.

“Tomás!”, chamou Cláudia, correndo na direcção dele. Ela podia ser estridente, ela podia ser difícil de descolar, mas quando se agarrava a ele e usava decotes demasiado reveladores para o que seria apropriado dado a sua idade, como ela estava a fazer naquele momento, Tomás perdoava aqueles defeitos. Aqueles cumprimentos em que ela se inclinava sobre ele, o que lhe dava um plano bom par apreciar os seus atributos, também eram muito do seu agrado. Brincando-lhe com o colarinho da camisa, Cláudia, ignorando Sara, disse, “Estás tão giro de camisa”

Felizmente para a paciência infindável de Sara, que se estava a sentir a mais ali, convidaram-na para participar num jogo, o que lhe deu a desculpa ideal para deixar Tomás entregue a Cláudia. Não o conseguia explicar, mas sentia sempre uma certa náusea quando a amiga se alapava ao rapaz e ele parecia gostar da atenção. Considerava que Cláudia podia ser um tanto chata, por muito que gostasse dela, mas não censurava Tomás por apreciar tê-la por perto, afinal o peito dela era o fascínio da população masculina da turma. Decidindo não pensar muito no assunto, juntou-se a João, que sempre a recebia bem, o que era irónico quando se lembrava dos tempos em que ele lhe atirava pastilha elástica, mas ela perdoara e agora davam-se nos conformes.

“Oi Sara”, cumprimentou João, sorrindo. Ao ver que Tomás estava entretido com Cláudia no outro lado da sala, suspirou de alívio. Admitia que não tinha sido particularmente amistoso para com o americano, mas ele também nada fez para que se dessem bem e, enquanto ele, João, tinha apenas uma personalidade brincalhona que por vezes ia longe demais, Tomás parecia-lhe psicótico e bastante bom a manipular pessoas. Arrepiando-se, preferiu distrair-se. Parecia-lhe justo que se pudesse dar ao luxo de ter um serão tranquilo com uns amigos sem ter que se preocupar se iria ser espancado. Afastando-se para arranjar espaço para Sara, aceitou que ela ficasse na sua equipa e, depois de lhe explicar as regras do jogo, ajudou-a a atirar os dados pela primeira vez.

Ao ver que os dados lhe tinham dado um contributo favorável e significativo para avançar no jogo, Sara, regozijando-se com a sua sorte de principiante, como João, afectuosamente, lhe disse, permitiu-se a relaxar e a observar, por cima do ombro de um amigo, Cláudia, que se decidira, como sua missão para aquela noite, a não deixar por tocar um milímetro que fosse da camisa de Tomás. Já ele nunca deixara de sorrir de modo presunçoso, enquanto, de vez em quando, passava a mão pela cintura de Cláudia. E Sara sentia-se cada vez mais enjoada, sem que, daquela vez, tivesse forma de justificar o porquê de se sentir assim. Parecia-lhe semelhante às ocasiões em que encontrava a sua paixoneta dos tempos da primária a falar com outras raparigas, algo que a fazia rir agora quando se lembrava de como o costumava perseguir pelo recreio.

Calma! Porquê aquela comparação? Poderia dar-se o caso de ela estar a desenvolver uma paixoneta por Tomás? Atirando os dados com mais força do que aquela que seria necessária, o que resultou em que eles fossem acertar na cabeça de uma amiga, pensou nessa possibilidade. Decerto que explicaria o “nervoso miudinho” que sentia quando estava a sós com o rapaz e a bílis que lhe subia à garganta quando o via com Cláudia, mas, de todas as pessoas, Tomás?! O rapaz estranho que um dia lhe apontara uma faca?! Faria mais sentido João ou outro amigo, por muito que achasse que os momentos em que o rapaz mostrava um lado mas carinhoso fossem adoráveis, como quando lhe deu o gancho de cabelo que estava a usar naquele momento.

Pedindo para descansar um bocadinho do jogo, com a desculpa de que a sua sorte de principiante já estava a dar as últimas, encontrou um canto sossegado no sofá. Costumava dirigir-se a Afonso sempre que algo a incomodava, pois ele conseguia sempre dar-lhe conselhos que, até ao momento, nunca a induziram em problemas e, em condições normais, não pensaria duas vezes em falar com o irmão. Só não o fazia porque sabia que Afonso nutria um ódio visceral por Tomás e ela não queria desencadear a ira do irmão. Mas não estava preocupada, aquela paixoneta acabaria por passar, tal como a da escola primária acabara por passar e, se fossem idênticas, seria mais cedo do que tarde. Sorrindo de alívio, convicta de que tudo iria correr de forma calma e indolor, quedou-se a observar o jogo, que continuava interessante.

Parecia, no entanto, que o seu sossego encontrado no entendimento de que seria uma situação breve estava prestes a ser abalado. Quando convidaram Cláudia, sem lhe dar margem para escolher, para a substituir no jogo, Tomás materializou-se ao seu lado no sofá, ostentando um sorriso travesso, em nada parecido com o arrepiante que ela lhe conhecera. Um tanto constrangida, dado a conclusão a que tinha chegado, Sara, dirigiu a sua atenção para o jogo, depois de cumprimentar o rapaz com um “bem-vindo de volta” de percepção melindrosa. O rapaz, com a confiança bem elevada devido à interacção com Cláudia, ainda estava decidido a pôr o seu plano em prática. Só não o queria fazer ali, porque não queria deteriorar a situação com Cláudia, afinal gostava da atenção e podia querer aproveitar isso mais tarde, por muito que lhe apetecesse provocar João. Aproximando-se da rapariga, disse-lhe, “Não queres ir ali fora à varanda um bocadinho?”

Sara, que tinha todas as intenções de recusar o convite, afinal já era demasiada emoção em tão pouco tempo para si, por muito pouca importância que quisesse dar ao assunto, acabou por aceitar, nem ela própria soube como, parecia que a própria língua a tinha traído, “Sim…”

Com o ritmo cardíaco excessivamente acelerado para o seu gosto, acompanhou Tomás até à varanda. Só iam falar acerca de trivialidades, não havia motivo para se sentir tão ansiosa, não sabia porque é que o coração resolvera disparar. O que é que podia correr mal? O rapaz, ao ver João com um ar intrigado, colocou a mão na cintura da rapariga, dirigindo-lhe a ele um olhar sugestivo. A expressão de choque patente na cara de João era merecedora de ser fotografada, emoldurada e colocada na parede. Assim era tão fácil que quase não tinha mérito, mas Tomás não se importava. Sara, inconsciente da troca de interacções que estava a haver à sua custa, não soube o que achar da mão na sua cintura. Devia tirá-la e pedir ao rapaz para parar com aquilo, mas sabia-lhe bem e, quando, em momentos como aquele em ele lhe abriu a porta para ela, Tomás conseguia ser tão cavalheiro que ela se derretia.

Encostada ao parapeito da varanda com o rapaz ao seu lado, Sara permitiu-se a olhar para ele. Estava habituada a ouvir Cláudia enumerar todos os atributos de Tomás, com tanto entusiasmo que parecia estar a descrever um actor famoso, mas nunca ligara muito. Naquele momento, parecia que o estava a ver pela primeira vez e tinha que admitir que ele era, realmente, muito bem-parecido. A começar nos seus olhos verdes límpidos, a terminar na sua estatura alta, sem esquecer as feições simétricas. Cláudia achava que o facto de ele ser um tanto cheio era o único defeito, mas a rapariga até achava piada, tornava a sua figura menos intimidante. Em que estava ela a pensar? Assim é que ele não lhe ia passar de certeza. Abanando a cabeça como se isso fosse afastar os seus pensamentos, decidiu contar as estrelas.

Apoiando a cabeça sobre as mãos, debruçado sobre o parapeito, o rapaz, ao vê-la distraída, perguntou, curioso, “Penny for your thoughts?”

“Estás-me a perguntar em que é que estou a pensar, não é?”, perguntou Sara, não fosse o seu domínio de inglês pregar-lhe uma partida. Quando Tomás lhe confirmou, respondeu, tentando parecer desinteressada, “Em nada”

“Hm…Acho que estás a pensar em como estou mesmo giro esta noite”, brincou o rapaz, deitando-lhe a língua de fora, sem sonhar que, a meter-se com a rapariga, acertou em cheio. Estava a adorar picá-la e, por muito ligeira que fosse a brincadeira, ainda que nunca antes tivesse enveredado por aquele caminho, vê-la agitada sabia-lhe bem, mas de maneira diferente daquela que seria se estivesse a provocar João ou Afonso. Tinha prazer em saber que, mais do que desconcertá-los, os magoava, mas, tratando-se de Sara, apenas adorava saber que conseguia dela uma reacção.

“A Cláudia acha que estás lindo, isso tenho eu a certeza”, respondeu Sara, preferindo não alimentar mais brincadeiras, até porque iria levar o segredo para a cova e ser desmascarada ali mesmo era coisa que ela não queria. Desviando o olhar da cara do rapaz, decidiu que Cláudia tinha razão quando dizia que a camisa lhe assentava bem. Sentindo um rasgo de inveja, reparou que o gloss da amiga tinha deixado marca de território no colarinho da camisa de Tomás, o que lhe serviu para salientar de que o melhor era mesmo esquecê-lo e parar de salientar as suas virtudes.

“E tu não?”, insistiu o rapaz, convicto de que tinha encontrado um vislumbre de rubor na face da rapariga. Por muito que adorasse meter-se com ela estava disposto a recuar caso a estivesse a deixar desconfortável, visto que não suportava a ideia de fazer algo para a afastar. Parecia que aquela era a segunda epifania da noite. Abalado com um laivo de culpa, ocorreu-lhe de que estava para usar Sara para provocar João e Afonso sem parar para pensar nela no meio disso tudo. Se, de alguma forma, a magoasse, depois de ela ter feito tanto para o ajudar, não se perdoaria a si próprio. Uma brincadeira ligeira não fazia mal, gostava de a agitar um pouco, mas dentro de estreitos limites. Ainda não pusera por detrás das costas o episódio da faca e, sempre que se lembrava do quão idiota fora, sentia uma vergonha indescritível, mas não podia apagar o passado.

“Ahm, sim, acho que ficas bem de camisa”, respondeu a rapariga, alheada do facto de o rapaz estar a passar por um tumulto interior, tentando parecer tão indiferente quanto conseguia. Seria bom viver num universo paralelo em que Afonso se desse bem com Tomás e em que Cláudia tivesse desenvolvido uma tara por outra pessoa. E já que estava a sonhar, quem sabe, que os sentimentos fossem recíprocos, mas não saberia como proceder se tal coisa acontecesse, era algo tão alienígena que nem punha a hipótese.

Foi um bom esforço, mas o tom inseguro que empregara acabou por a denunciar e o rapaz achou melhor ficar por ali, uma vez que agora que pensava a sério no assunto, enervar Afonso e João não compensava arriscar a repelir Sara. A mera ideia de tal coisa poder acontecer era suficiente para lhe dar náuseas, a ponto de, naquele momento, apenas não a abraçar, como se temesse que ela fosse desaparecer naquele momento diante de si, porque a vira retrair-se há pouco. Contendo os seus desejos, encarou a rapariga, sorrindo-lhe, satisfeito por ver que ela retribuiu, embora ambos se tivessem mantido em silêncio, silêncio esse que era, para sua surpresa, confortável, como se não fosse necessário dizer nada.

Enquanto nenhum falou, o rapaz, que ainda não tinha acabado de se repreender a si próprio pela ideia estúpida que tivera, ideia essa que já descartara tão depressa como a tivera, permitiu-se a apreciar a paz que sentia naquele momento. Fora realmente convidado para sair, a noite estava a correr às mil maravilhas, tinha uma rapariga bem desenvolvida a deixar um rasto de baba por ele e, melhor que tudo, estava acompanhado por alguém que lhe dera uma oportunidade e fez com que tudo aquilo fosse possível. E pensar que considerou, por muito pouco tempo que tivesse sido, fazer algo que pudesse magoar esse alguém. Observando Sara, afectuosamente, reparou que ela estremeceu, o que o levou a perguntar, “Are you cold?”

“Um bocadinho”, confessou a rapariga, passando uma mão pelo braço, numa tentativa pouco eficaz de se aquecer. O frio é psicológico, era o ditame que o seu irmão lhe costumava dizer, o que não deixava de parecer pouco credível quando via o nariz dele em modo fonte. Com jeitinho, se ela se constipasse podia ser que pudesse faltar às aulas durante uns dias, afinal aquela época do ano convidava a ficar nos lençóis com uma chávena de chá, mas estava só a fazer brainstorming e o mais provável era que não avançasse com o plano, por muito que não lhe apetecesse ir às aulas.

“Come here”, chamou Tomás, envolvendo-a num abraço. Sara, com a cara enterrada no pescoço dele e os seus braços à sua volta, estava disposta a jurar a pés juntos que a temperatura tinha subido pelo menos vinte graus. A tarefa de esquecer aquela paixoneta assim era muito dificultada, mas, se a rapariga se permitisse a si mesma um momento em que, para variar, só pensasse em si, poderia desfrutar aquele momento. Era só por um bocadinho, não havia de fazer mal e Cláudia nunca iria saber. Engolindo em seco, tentou controlar-se para não ter um ataque cardíaco e acomodou-se. Pouco tardou até que Cláudia ou qualquer outra fonte de preocupação estivessem longe dos seus pensamentos.

Agora que tinha a oportunidade de ver o que se arriscara a perder com aquela ideia, Tomás, mais do que nunca, teve vontade de dar com a cabeça numa mesa. Como se Afonso e João valessem uma décima daquilo. Apoiando o queixo sobre o cabelo de Sara, o rapaz respirou fundo, apertando a rapariga ainda mais contra si. Mesmo Cláudia, com os seus modos exuberantes e atributos generosos, não lhe parecia uma troca justa se o preço a pagar fosse abdicar de Sara. Outra pessoa que não suportaria perder era Leonor, a sua irmã, mas com a rapariga era uma sensação diferente, uma outra forma de afecto. And what does that mean?

Olhando para Sara, aninhada contra o seu peito, sentiu uma onda de carinho. A rapariga, mesmo que não fosse tão desenvolvida quanto Cláudia, encaixava no tipo que sempre cativara a atenção dele, mesmo quando ainda estava nos Estados Unidos, com o seu ar tipicamente latino. Não era que nunca tivesse reparado no aspecto dela, até porque se lembrava de a ter achado bem-parecida quando a conhecera, mas parecia, naquele momento, que a estava a ver realmente e gostava do que via. Does that mean I have a crush on her? De todas as pessoas por quem poderia desenvolver uma paixoneta, Sara parecia-lhe a hipótese mais satisfatória, por isso sentia-se em paz com esse facto. Agora restava-lhe saber como proceder a partir dali. Só lamentava não ter ali Leonor para o aconselhar. Quando a rapariga levantou a cabeça e o encarou, ele deu-lhe um beijo na testa, perguntando, “Better now?”

“Sim mas não te vás já embora”, respondeu Sara, antes de voltar a encostar a cara ao peito dele. Conseguia sentir os batimentos cardíacos dele mais elevados do que seria normal. Estaria nervoso? Esperava que ele não estivesse a ficar embaraçado, mas ele era confortável e uma boa fonte de calor, além de que Cláudia não estava ali e ela, Sara, era apenas humana e, como tal, também podia sucumbir aos seus desejos mais egoístas, pelo menos de vez em quando.

“I’m not going anywhere”, disse Tomás, voltando a deitar a cabeça sobre a da rapariga. Talvez lhe devesse oferecer flores, afinal era o que faziam nos filmes e resultava, mas não sabia quais as preferidas de Sara. Ou chocolates e peluches? Ou então podia dar-lhe um daqueles beijos como nos filmes melosos, mas, agora que pensava bem, nem sabia se seria isso o que a rapariga queria, nem ele sabia a técnica. Mas nesses filmes é sempre o homem que toma a iniciativa, por isso ele devia fazer qualquer coisa, em vez de estar naquele impasse. Já estava a divagar, o melhor era esperar para ver e não colocar a carroça à frente dos bois. Só mesmo a rapariga para o baralhar daquela forma. Precisava mesmo de falar com Leonor, ele não fazia a mínima ideia acerca do que fazer.

“Como é que disseste…pen for your thoughts?”, perguntou Sara, do nada, erguendo a cabeça de novo. Quando o rapaz a corrigiu, perdido de riso, afinal a pronúncia e os erros dela eram hilariantes a seu ver, ela, retirando a mão que tinha pousado no peito dele, deu-lhe um caldo, o que fez com que ele se risse ainda mais, “Opa! Stop it!”

Prendendo-lhe as mãos atrás das costas antes que a rapariga tivesse tempo de lhe dar outro caldo, Tomás, sentindo um deja vu de uma ocasião em que haviam estado numa situação semelhante, manteve Sara bem presa, apesar dos louváveis esforços que ela fez para se soltar. Devido às tentativas que a rapariga empregou para se debater, acabou comprimida entre o parapeito da varanda e o rapaz, o que não a teria deixado completamente pouco à vontade se não fosse pelo facto de, desta vez, não ter como evitar encará-lo. Se o sorriso dele não a fizesse perder a força nos joelhos e, consequentemente, a concentração, ela teria conseguido retaliar. Temendo o pior, repetiu várias vezes, “O Tomás é da Cláudia, o Tomás é da Cláudia”

Sentindo o coração prestes a saltar-lhe do peito, Tomás não conseguiu evitar reparar no quão bonita Sara lhe parecia naquele momento. Gostava mesmo de lhe conseguir mostrar exactamente o quanto ela era importante para si e o quanto ele gostava dela. Quase sem pensar, foi-se aproximando. Quando estava a meros centímetros da cara da rapariga, deteve-se e trocou um olhar com ela, como se lhe pedisse permissão. Mais do que não lhe ter dado um estalo, havia um laivo de desejo no olhar que ela lhe devolveu, o que lhe garantiu que estava tudo bem. Encurtando a distância entre ambos, o rapaz encostou os lábios aos de Sara.

Foi naquele momento que o que restava das preocupações altruístas da rapariga se dissipou de vez. Correspondeu, ainda que um tanto acanhada a início, tendo perdido a inibição rapidamente, como se nem nunca lá tivesse estado. Afogueada, quando a necessidade de respirar era impossível de ignorar e tiveram que se separar, suspirou, “Tomás…”

“Was it alright?”, perguntou ele, sem fôlego suficiente para que tivesse sido mais do que um murmúrio. E parece que, afinal, sempre fora para a frente com o plano inicial, ainda que com motivações diferentes. Passou-lhe tanta coisa pela cabeça naquele momento que, mesmo quando recuperou o fôlego, não se conseguiu expressar. Ter-se-ia saído bem? Teria interpretado bem a situação? A prática leva à perfeição, por isso podiam repetir, caso Sara não tivesse gostado!

“Foi…”, respondeu a rapariga, passando-lhe a mão, que entretanto ele soltara sem que ela desse por isso até agora, pela face. Quando a euforia lhe passou, voltou a cair em si. Tinha mesmo acabado de beijar Tomás. Também tinha que pensar em si, mas isso parecia-lhe mesquinho quando pensava no quanto Cláudia gostava do rapaz. E não só, Afonso sempre fora o melhor irmão que ela poderia ter e desapontá-lo daquela forma partia-lhe o coração, ainda que mantivesse acesa a esperança de que um dia Tomás lhe caísse nas boas graças. Olhando para o relógio, viu que faltava pouco para a meia-noite, o que lhe dava uma desculpa para adiar qualquer conversa que fosse necessária ter com o rapaz acerca do que se tinha passado. Retirando a mão que entretanto passeava pelo maxilar de Tomás, disse, “É quase meia-noite, é melhor irmos”

Sem esperar pela resposta do rapaz, voltou para a sala, onde já estavam todos de volta de uma garrafa de champanhe que tinham contrabandeado às escondidas. Tomás entretanto apareceu por detrás dela, ainda a questionar-se se aquela fuga abrupta da rapariga tinha sido por ele beijar mal, o que ele atribuía ao facto de ele nunca ter feito aquilo antes. Os gritos vitoriosos dos que tinham conseguido abrir a garrafa acabaram por interromper os seus pensamentos, a tempo de iniciarem a contagem decrescente. Pegando num copo, assim que anunciaram o novo ano, o rapaz, sentindo-se mais integrado do que nunca, brindou juntamente com os presentes, entre eles Sara, que lhe sorriu, antes de corar. Ia encarar aquilo como indicativo de que estavam bem.

Voltando para junto dele, a rapariga, que entretanto tinha recebido uma mensagem de Afonso a dizer que dali por um bocado estariam de volta para os irem buscar, transmitiu-lhe a mensagem. Mas, para Tomás, isso pouco importava. Ainda a matutar no facto de Sara ter ido embora tão de repente, perguntou, a medo, “Fiz alguma coisa que não tivesses gostado? Sabes, para teres ido embora daquela maneira…se fiz, desculpa”

“Oh não, Tomás, tínhamos que vir ter com eles de qualquer maneira”, respondeu a rapariga, afagando-lhe a mão por instinto, sem parar para se certificar se alguém poderia reparar no gesto. Tinha tido má etiquete, isso era certo, mas a situação já se estava a tornar demasiado para ela, tanto que resolveu ser sincera, ainda que evasiva, “Não tens culpa de nada”

Cláudia, que tinha estado a assistir à conversa, receou o pior. A que é que o rapaz se estaria a referir e o que eram aquelas mãos dadas? Que Tomás não era indiferente a Sara, isso já tinha suspeitado mas não lhe atribuíra muita importância, agora testemunhar uma interacção mais íntima, isso ela não consentia. Resolvendo tomar medidas, aproximou-se dos dois e colocando uma mão na nuca do rapaz, puxou-o para si, beijando-o. Não só estava certa de que Tomás estava no papo, como sabia que a rapariga iria perceber a ideia e não tardaria a que respeitasse certos limites.

Como é que fora parar àquela situação, era a pergunta que atormentava o rapaz. Ainda há coisa de uma hora, se Cláudia tivesse feito o que estava a fazer naquele momento, ele sabia que a teria deixado e de bom grado, até porque ela o atraía e muito. E Sara?! Na teoria não lhe era concebível abdicar dela em prol de Cláudia e, agora que a situação hipotética passara para a realidade, continuava a preferir a rapariga. Vendo-a a afastar-se com uma expressão magoada, apercebeu-se que tinha que fazer alguma coisa. Afastando Cláudia, que já quase lhe tinha comido a cara, disse, com mais brusquidão do que aquela que pretendera inicialmente, “Pára com isso, a sério”

O ambiente ficou de cortar à faca. Cláudia, incrédula, nada disse. Estava tão certa que Tomás, a quem ainda há pouco estivera a dar beijinhos no pescoço, estava garantido e agora ele rejeitava-a daquela maneira. Engolindo um soluço, de tão magoada que se sentia, resolveu recuar, mas, como era persistente, prometeu a si mesma não desistir. Sara, que nem podia acreditar quando Cláudia beijara o rapaz, sentiu uma súbita felicidade que ainda tentou conter mas sem sucesso, ao ver que ele a afastara. João, por sua vez, ainda acreditara, quando vira Cláudia com Tomás, que ela se encarregaria de lhe eliminar a concorrência, mas agora voltou a sentir o peso da preocupação.

“Oh my God, I’m so sorry”, pediu o rapaz, correndo para a rapariga. Devia lidar com a situação com mais eloquência e pedir primeiro desculpa a Cláudia pela brusquidão com que a tinha tratado, mas não queria saber, só não queria que Sara ficasse chateada. Devia, de igual modo, aguardar que os ânimos esfriassem para colocar tudo em pratos limpos com a rapariga, mas a ideia de a ver magoada era demais.

“Podemos falar mais tarde, noutro sítio?”, propôs Sara, que não considerava que fosse o local apropriado, sobretudo tendo em conta que, o grupo que não tinha ido acudir a Cláudia, ainda os estava a observar e ela, se tivessem que ter mesmo aquela conversa, queria esperar até que tivessem privacidade. Mas tampouco era sua intenção torturar o rapaz, por isso garantiu-lhe que ele não tinha culpa de nada.

Para sossego de ambos, se todo aquele aparato começou repentinamente, também terminou com idêntica rapidez e, dali a pouco, já o resto das pessoas se tinha distraído de novo, embora Sara apenas se tivesse permitido a respirar fundo quando Afonso lhe ligou a dizer que já estavam à porta. O tom que o irmão empregara deixava transparecer uma enorme felicidade e ela tinha uma ideia do que poderia ser. Se as suas suspeitas estivessem correctas, então ficava muito contente por ele, pois sabia o quanto Leonor faria o seu irmão feliz. Tomás, antes de se ir embora, ainda pensou em procurar Cláudia, mas, ao pensar duas vezes, achou que ela é que lhe devia pedir desculpas.

Durante o caminho que separava a porta de casa de Rafaela até ao carro de André, nenhum disse nada, limitando-se a caminhar com a cabeça baixa. Lembrando-se de como tinha sido a viagem para lá, Tomás perguntou-se se Sara teria de ir para o seu colo de novo. Por muito que os ânimos de ambos tivessem esmorecido, a proximidade sabia-lhe bem, mas parecia que não ia ter sorte, pois Leonor ofereceu-se, com um olhar sugestivo que o enjoou, para ir ao colo de Afonso. Pelo menos André parecia demasiado distraído com a mão de Adriana que entretanto aparecera na sua perna para fazer comentários. Assim, Tomás podia passar a viagem a perguntar em paz se como é que a sua vida imitava tão bem uma novela mexicana de segunda qualidade.

Parecia que o tiro lhe saíra pela culatra. Nem Leonor, nem Afonso conseguiram aguentar até que estivessem a sós e Tomás teve que passar o resto da viagem a testemunhar as demonstrações afectivas entre os dois, sendo que Afonso, de vez em quando, passava uma mão por detrás das costas de Leonor para dirigir ao rapaz um gesto obsceno com o dedo. Sara, partilhando a opinião de Tomás quanto às figuras dos irmãos, mais que não fosse porque se tratava de Afonso e, por isso, era para ela extremamente constrangedor vê-lo nesses preparos, “Que desagradável”

Foi com grande pena que Afonso viu que tinham acabado de chegar a casa de Leonor. A noite tinha passado depressa demais para o seu gosto e, mesmo sabendo que não iam faltar oportunidades para passar tempo com a rapariga, não a queria deixar ir, tanto que, quando ela tentou sair, ele, agarrando-lhe a cintura, disse, num tom de criança teimosa, “Não! Não vás”

Era em momentos como aquele que Leonor se lembrava, como se alguma vez esquecesse, porque é que o achava o ser mais querido. Beijando-o, disse, a sentir o olhar amuado de Tomás que estava fora do carro à sua espera, “Tenho mesmo que ir que o meu irmãozinho está a fazer birra, mas adorei a noite, obrigada por tudo”

Não a deixando ir sem um último beijo, Afonso, com pena, acabou por a largar. Quanto a Sara, esta não pôde despedir-se de Tomás sem que este se desfizesse em desculpas e a fizesse prometer que depois teriam uma conversa. Assim que o carro arrancou, Leonor agarrou-se ao pescoço do irmão, que se limitou a deixar ser agitado, enquanto guinchava qualquer coisa incompreensível. De vez em quando também ela merecia um momento mais “girly” e os acontecimentos justificavam-no. Quando soltou o pescoço de Tomás, questionou, ao ver uma marca estranha no colarinho deste, “What’s this?! I think you have a lot of explaining to do, little brother”

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Logo que se viu em casa, Afonso, atirando Sara por cima do ombro como se ela fosse um saco da batatas, foi-lhe relatando os momentos altos da sua noite, sempre num tom mais agudo do que o que empregaria normalmente. Se não estivesse eufórico teria reparado na melancolia da irmã, mas ela perdoou-lhe, até porque sabia que aquele era fardo que teria de carregar sozinha. Foi um longo percurso até chegar onde estava com Leonor, agora só tinha os olhos postos no futuro, que decerto lhe reservaria coisas maravilhosas.