Após
a vigésima mensagem que não obtivera resposta, Tomás viu-se forçado a admitir
que talvez Sara não quisesse falar com ele. Ele nem tinha tomado
deliberadamente a decisão de proceder de forma a arranjar sarilhos e agora via-se
a braços com toda aquela situação desconcertante e, como se isso não fosse já
fonte de dores de cabeça suficiente, a rapariga não lhe estava a dar uma
oportunidade de colocar tudo em pratos limpos. Por muito que Leonor lhe
dissesse para ter calma porque Sara, muito provavelmente, ainda estaria a
digerir tudo o que se tinha passado, ele, fosse pela sua inexperiência, fosse
pela sua maneira de ser, não conseguia evitar estar uma pilha de nervos. O que
é que lhe garantia que a situação não estava tão negra que não havia salvação
possível?
Como
não podia haver apenas uma chatice no seu quotidiano, Guida não teria nenhuma
viagem de negócios tão cedo e Leonor, por estar com Afonso muito tempo, não
estava por perto o suficiente para pôr água na fervura. Ficava feliz por ver que
a irmã estava bem, mesmo que achasse que o seu gosto em rapazes deixava muito a
desejar, mas o tempo que ela passava fora de casa não contribuía para lhe facilitar
a vida familiar, afinal Marta não podia fazer de agente dupla permanentemente. Felizmente
para as cutículas das suas unhas, que foram de tal forma roídas que fizeram
sangue, as férias de Natal tinham terminado e, dentro de instantes estaria de
volta às aulas e, uma vez que estavam na mesma turma, a rapariga não tinha como
o continuar a evitar. Ainda teria que ver a mãe à noite, mas até lá não
perderia muitos neurónios a pensar nela.
Ainda
com as múltiplas advertências de Leonor a ecoarem-lhe dentro do crânio, sendo
que variavam entre “se ela não quiser falar não a pressiones” e “não deixes que
o teu mau feitio leve a melhor”, correu pelo pátio da escola até à porta da
sala, esperando conseguir apanhar Sara antes da aula. Ao avistá-la, sentiu uma
certa apreensão que o fez hesitar. Não sabia como começar aquela conversa e
estava a sentir um nervosismo que o estava a fazer praticar malabarismo com o
pequeno-almoço no estômago. Contendo-se quando lhe pareceu que vomitar não
ajudaria a sua causa, avançou para a rapariga, que se encontrava a falar com
umas colegas da turma. Hesitando de novo, pareceu-lhe que ela se voltara de
costas de propósito.
Entretanto,
de modo a colocar um final abrupto nos seus planos, a professora chegou,
batendo com a porta para que a sua entrada fosse ainda mais sonante. A
expressão de enfado que tinha deixava transparecer que tinha tanta vontade de
estar ali quanto eles. Aproveitando a azáfama que os colegas fizeram para se
instalarem, abordou Sara, ainda que soubesse que aquele não era o local
apropriado, certificando-se que empregava o seu melhor sorriso, “Hey”
Sara
sabia que não podia continuar a fugir com o rabo à seringa. Sempre que lia uma
mensagem de Tomás e carregava no botão vermelho, sabia que estava apenas a
adiar o inevitável. A verdade era que não sabia como lidar com a situação e,
como não tinha com quem falar, ainda mais perdida se sentia, embora tivesse a
perfeita consciência de que não estava a proceder da melhor maneira. E ele
estava, naquele momento, diante de si e ela não podia carregar num certo botão
e ejectar-se daquela sala. Nem podia saltar pela janela e correr para longe
dali, “007 style”. Suspirando, respondeu, “Bom dia”
“Então,
as férias foram boas?”, tentou Tomás, numa tentativa infrutífera de preparar
terreno sem que tivesse que ir directo ao assunto. Não podia deixar que os
conselhos de Leonor fossem desperdiçados, ora, e se provassem vir a ajudá-lo,
tanto melhor, afinal sentia-se tão desamparado que toda a ajuda era bem-vinda.
Se dependesse única e exclusivamente de si teriam ali mesmo a conversa, que
iria correr lindamente, depois seriam felizes para sempre. E, já que estava a
fantasiar, Guida teria que usar um açaime até que ele lhe desse permissão para
falar e, antes de ele ser feliz para sempre com Sara, proporcionar-se-ia uma
ocasião para comprovar a qualidade dos atributos de Cláudia.
Como
a professora se estava completamente a borrifar para as peripécias de um grupo
de miúdos pré-adolescentes hormonais e borbulhentos, bateu com o livro de ponto
na mesa, numa tentativa de os silenciar, mais bem sucedida do que a do rapaz de
deixar Sara à vontade. Parecia, também, decidida a fazê-los trabalhar tanto que
não haveria oportunidade de conversarem. Resmungando, Tomás foi fazendo os
exercícios de matemática que ela lhes passou, ainda que a sua atenção estivesse
longe dali. Ao que parecia, a de Sara estava, igualmente, a anos-luz das
fracções, pois ela não parava de desenhar nas margens do caderno. Mesmo que
tivesse passado um trimestre a observar a arte de sala de aula da rapariga,
Tomás ficava sempre boquiaberto ao ver os traços precisos com que ela ia adornando
o papel, tanto que se sentia quase honrado por poder ter a oportunidade de a
ver em acção todas as aulas e, quando se apercebeu, nem uma fracção foi
resolvida naquela aula.
Por
um instante, a rapariga permitiu-se a ter esperança de que Tomás se tivesse
esquecido do que se tinha passado e que, consequentemente, aquela conversa que
ele tanto insistia para terem nunca visse a luz do dia. Se não a conseguisse
mesmo evitar, o que é que lhe diria? Ainda não tinha resposta para essa
pergunta, mas esperava que lhe ocorresse alguma coisa. Se tudo corresse como
ela desejava, Tomás seria completamente ajustado e teria causado boa impressão
desde a primeira vez que o vira, Afonso aprovaria Tomás, Cláudia ter-se-ia
interessado por outra pessoa e seria tudo mais fácil. Até porque, por muitas
provas de confiança que o rapaz lhe desse e, por muito que ela nutrisse um
certo carinho por ele, ainda sentia uma certa apreensão quanto ao seu feitio
extravagante.
Quando
a campainha tocou, Sara ponderou acerca do que iria fazer. Não se podia escapar
com algumas colegas e deixar Tomás para trás, pois Cláudia ainda não o queria
ver nem pintado, ele e João ainda não se podiam considerar amigos e, apesar do
constrangimento que sentia, não o podia deixar sozinho. Parecia que não podia
mesmo continuar a adiar. Agarrando-lhe um pulso, Tomás, enfatizando o facto de
que ela não se iria escapar, pediu, “Posso falar contigo a sós?”
“Hm…”,
disse Sara, observando as condutas de ar condicionado por cima de si. Podia ter
um momento James Bond e evacuar-se por ali. Podia dizer que estava com uma dor
de barriga enorme, o que a faria passar o intervalo na casa de banho, mas isso
seria vergonhoso. Aquele aperto no seu pulso lembrava-lhe que ele não iria
desistir, por isso, inspirando, resolveu concordar. Seria como arrancar um
penso, quanto mais depressa, melhor, certo? Seguindo Tomás pelos corredores até
a um banco isolado junto a uns arbustos, preparou-se para o que previa ser uma
conversa desconfortável.
Assim
que ambos se instalaram, o rapaz, que tinha o seu discurso ensaiado mas que,
por algum motivo, não se conseguia recordar dele, disse, depois do que pareceu
uma hora mas que não devia ter sido mais do que um minuto, “This is going to
sound like a mess, but bear with me, alright?”
“Força”,
encorajou a rapariga, passando as mãos pelos braços ao sentir o frio tão
próprio daquela época do ano. Que aquela conversa ia acontecer, isso aceitava,
agora que a tinham que ter ao relento, quando a temperatura rondava os cinco
graus e estava prestes a chover, isso já era uma ideia intangível. Quando se
lembrava que, naquele momento, podia estar no bar a beber leite com chocolate e
a comer um croissant, tinha vontade de cortar os pulsos. E, para tornar tudo
tão mais agradável, ainda tinha que ter a conversa. Para não se deixar
desanimar, pensou no que faria o irmão naquela situação, afinal ela estava à
nora, ainda que duvidasse que ele soubesse o que fazer. Primeiro diria que
Tomás só não tinha frio porque era gordo e, por isso, tinha pele de foca e o
frio não passava, agora, quanto à conversa, provavelmente cavaria um buraco
para se enterrar, se estivesse no lugar dela.
O
rapaz, ao ter reparado no gesto de Sara, perguntou-se se não lhe deveria
oferecer o seu casaco. Isso implicaria que passasse ele frio, mas ele não devia
ser um cavalheiro? Outra alternativa seria passar-lhe um braço em torno das
costas, mas como as coisas entre os dois tinham estado tremidas desde o Ano
Novo, ela, muito provavelmente, não queria grandes proximidades. Já estava a
divagar, como o olhar impaciente da rapariga lhe lembrou. Passando as mãos pelo
cabelo, começou, “Queria pedir-te desculpa, you know”
“Porquê?”,
questionou Sara, confusa. Tanto quanto sabia, ele não tinha feito nada por que
necessitasse de pedir desculpa. Toda aquela novela ranhosa por que estavam a
passar era provocada por factores externos e nenhum deles tinha culpa.
Realmente, ele tinha sido um pouco chato ao bombardeá-la com mensagens a
insistir para que falassem, mas se ela tivesse respondido, ele teria parado, ainda
que ele devesse ter encarado o seu silêncio como pouca vontade de falar. Ao que
parecia, ele estava tão baralhado quanto ela, tanto que não largava o cabelo
que, entretanto, tinha ficado todo no ar. Quando ele ficava corado e com o
cabelo todo fora do sítio, tal como estava naquele momento, ficava tão adorável…
“Por
causa daquilo com a Cláudia, não queria que tivesse acontecido nem quero que
ela arranje problemas contigo”, esclareceu Tomás. Na verdade, na altura não se
tinha apercebido de que poderia haver hostilidade entre as duas, mas Leonor
colocou essa hipótese e ele achou por bem falar nisso a Sara. Estava a ser
honesto, por muito que a ideia de ser disputado por duas raparigas lhe elevasse
o ego, não queria sabotar o que quer que tivesse com Sara. Tinham alguma coisa?
Ela foi a primeira rapariga que ele alguma vez beijara, ainda que Cláudia lhe
tivesse feito uma emboscada pouco tempo depois. Quanto mais pensava, mais a
situação lhe parecia caricata.
“Não
tem mal, acho que ela está mais chateada contigo, não devia estar a contar que
lhe fosses dar uma barra dessas”, disse Sara, rindo um pouco. Agora que não
estava no epicentro da fúria da amiga, conseguia achar graça a vê-la a espumar
de raiva quando o rapaz a empurrou. Ainda que Cláudia lhe tivesse chamado todo
um leque de nomes e inventado mais uns quantos quando tinha esgotado o seu
arsenal de insultos, continuava a estar apanhadinha por ele. Numa tentativa de
mudar a conversa para longe de si, continuou, “Ela ainda gosta de ti, sabes?”
“Não
estou muito interessado nela”, confessou Tomás, encolhendo os ombros, sem nunca
tirar os olhos do chão. Não era de todo verdade, mas, se tinha que optar por
uma, era Sara, sem dúvida. Estava consciente de que estava a pisar gelo prestes
a estalar e que, assim que enveredasse por aquela via, não havia como voltar,
mas, depois dos acontecimentos do Ano Novo, parecia-lhe que se podia sentir confiante,
até Leonor lhe dissera isso mesmo. O que é que aconteceria dali para a frente
na eventualidade de tudo correr bem? Sentindo o nervosismo voltar com tanta ou
mais intensidade como antes, voltou a passar as mãos pelo cabelo, que mais
despenteado também não ficava, e lembrou-se a si mesmo para não colocar a
carroça à frente dos bois, pois não sabia como é que o resto da conversa se
iria desenrolar.
“Então?!”,
perguntou a rapariga, surpreendida, tanto que empregara um tom de voz mais
agudo e estridente do que o que pretendia. Estavam a falar de Cláudia, a
rapariga que, com os seus doze anos, passava por dezoito, caso não falasse, o
que denunciava logo a sua idade. Chegava ao ponto de, sempre que usava uma
camisola mais reveladora, ser assunto de conversa para o resto do dia, junto da
população masculina da turma. O facto de ter Tomás debaixo de olho desde que o
vira fazia do rapaz o alvo da inveja de todos os rapazes e agora ele dizia-lhe
que não estava interessado? Definitivamente que ela não entendia o sexo oposto.
Ao
que tudo indicava, o ponto em que o retorno não seria possível estava ali.
Agora mais valia continuar, mais que não fosse porque não se perdoaria se
recuasse no último momento, afinal podia ser muita coisa, mas cobarde não seria
uma delas. Procedendo como era seu hábito sempre que as suas emoções levavam a
melhor sobre os seus esforços para se manter tão coerente quanto possível para
que os seus interlocutores o compreendessem, o rapaz voltou à língua na qual
estava mais à vontade, “I like someone else already”
Não
era necessário socorrer-se de uma bola de cristal para saber quem seria a tal
pessoa. A revelação deu a Sara uma alegria imensa. Mais do que disparar a sua
auto-estima para a estratosfera, saber que tinha conseguido atravessar o fosso
que tinham entre ambos no início a ponto de ele sentir algo mais por ela, era
algo de que ela se regozijava. No fundo, ainda que jamais fosse entreter
demasiado a ideia, sentia uma certa vaidade por ele gostar dela e não de
Cláudia, até porque ela era apenas humana e, de vez em quando, alguma atenção
sabia bem e, como a população feminina da turma, ainda que o considerasse
estranho, tinha um certo fascínio pelo rapaz, ela ainda mais especial se
sentia. Ainda assim, gostava de o ouvir, tanto que perguntou, “Who?”
Era
em momentos como aquele que faziam com que Tomás tivesse pena de não ter visto
mais filmes românticos, assim não sabia como fazer uma declaração que fosse
enternecer a rapariga. O balanço da situação parecia-lhe muito positivo, ele
tinha, inclusive, trazido calças limpas naquele dia, portanto só podia correr
bem. Sentindo-se confiante, colocou uma mão sobre a de Sara e respondeu, com um
sorriso que poucos vestígios deixava daquele que a rapariga lhe tinha conhecido
a início, “You”
A
euforia que Sara sentira ainda há pouco esmoreceu quando o seu lado racional a
lembrou que tinha que colocar um travão naquilo, pois Afonso iria mover céus e
montanhas para que o rapaz se afastasse e a sua relação com Cláudia
desfazer-se-ia. Ponderando os prós e os contras, concluiu que o que sentia por
Tomás não era nem de longe o suficiente para a fazer enfrentar os problemas que
se seguiriam. De qualquer forma, acabaria por esquecê-lo tão depressa como o
rapazinho da primária. De modo a cortar o mal pela raiz sem magoar o rapaz mais
do que o inevitável, tentou, “Desculpa, gosto muito de ti mas é só como amigo”
Era
o momento de lhe dar um beijinho daqueles com olhos fechados, não era? Podia
ser que o conseguisse fazer melhor do que da primeira vez, em que estivera
nervoso e acabara por lambuzar a rapariga. Podia ser que o seu hálito não
cheirasse demasiado a Chocapic, ou ela até gostava disso? Carecia mesmo de umas
dicas acerca de como encantar meninas. De uma coisa tinha a certeza, aquela
parte em que fariam o que se faz nos filmes que ele via, aqueles filmes que
enchiam o computador de Guida de vírus, era muito interessante e ele não duvidava
que seria muito do seu agrado. Calma! Tratou de rebobinar mentalmente até ao
momento em que a rapariga falara. O que é que Sara tinha acabado de dizer? Pestanejando,
questionou, “Como?”
“Gosto
muito de ti e és um querido, mas acho que estamos melhor como amigos”, elucidou
a rapariga, depois de ter levado um momento para pensar na melhor maneira de o
dizer sem ser demasiado bruta. Não sabia o que é que teria acontecido se a sua
resposta tivesse sido diferente, mas naquele momento não se sentia nada bem com
o que estava a fazer e gostaria que as circunstancias tivessem sido outras.
Afagando a mão ao rapaz, continuou, “Desculpa”
Não
podia estar a fazer como devia ser a tradução mental do que Sara estava a
dizer. No Ano Novo ela tinha correspondido ao beijo que ele lhe tinha dado, não
era que tivesse sido unilateral e, por muito inexperiente que ele fosse, isso
era um sinal de que ele não lhe era indiferente, mas agora ela dizia-lhe que só
o via como amigo. Não sendo pessoa para desistir à primeira, disse, “What about
that kiss? Não significou nada?”
Estava
visto que Sara não iria ter a vida facilitada. Não queria que tivesse que ser
assim, tinha alimentado a esperança de conseguir fazer aquilo sem te de magoar
Tomás, mas estava a ver que já o fizera. Estava arrependida por não ter dado
ouvidos ao seu sexto sentido que lhe dissera para não ir com ele para a varanda
naquela noite. Pelo menos, já que tinha que o rejeitar, gostava que as coisas
voltassem a ser como antes. Suspirando, disse, sem o conseguir encarar, “Não”
Tomás
tinha que admitir que aquela tinha doído. E pensar que ainda há pouco tempo
estava tão certo de que tudo iria correr lindamente. Além de sentir que tinha
sido gozado, como se aquilo tivesse sido uma brincadeira de mau gosto,
sentia-se humilhado e com a confiança severamente atordoada. Parecia estar tudo
tão bem encaminhado, a rapariga parecia gostar dele, ele até se atrevia a dizer
que tinham uma certa química, e afinal não teve importância nenhuma? Então para
que é que ela tinha correspondido? Mais valia que na altura lhe tivesse dito
para não fazer aquilo, pelo menos dessa forma ele não iria acalentar
esperanças. Esteve para lhe perguntar isso mesmo, quando achou que preferia não
saber, já estava transtornado que chegasse.
“Podemos
esquecer isto?”, tentou Sara, temendo a resposta. Quando o rapaz não lhe
respondeu, tocou-lhe no ombro, sendo repelida com um movimento brusco. Não só
estava a ver que as coisas não voltariam a ser como eram, como também não
considerou que Tomás, às vezes, era imprevisível e que podia reagir mal. O
misto de emoções que a expressão do rapaz lhe transmitiu lembrou-lhe que seria
boa ideia retirar-se, mas sentia-se culpada por o fazer sentir-se assim, tanto
que preferiu ficar e insistir, “ Desculpa, mas tem mesmo que ser assim? As
coisas não podem voltar a ser como antes?”
Ela
gozava com ele e depois ainda pedia para que deixassem o assunto cair no
esquecimento? Custava-lhe assim tanto ver que o conseguira magoar ou estaria
ela a achar que o miúdo estranho não tinha sentimentos como os demais? Aquela
rejeição atingira-o mais do que pensava ser possível. Levantando-se, Tomás, disse,
por entre dentes, antes de se dirigir de novo para a sala, “Leave me alone”
Estava
de tal forma desnorteado que, pelo caminho, acabou por chocar com um miúdo
escanzelado, que deixou cair os livros que segurava. O miúdo ainda tentou
ignorá-lo, até começou a apanhar os livros do chão, ou não fosse a diferença em
termos de estatura desencorajar quaisquer comportamentos de retaliação, mas
Tomás, irado, empurrou-o contra os cacifos. Talvez tivesse sido mais violento
do que pretendera, afinal o barulho que o miúdo fizera ao ir contra os cacifos
ecoou pelo corredor, mas não se importou, ele estava no seu caminho na hora
errada. Tinha-lhe dado uma certa satisfação, mas não a ponto de arrefecer a
cabeça por aí além. Ainda tinha que ver Sara o dia todo, o que não ajudava a
que se acalmasse e ele não estava a ver como é que aguentaria sem ter outro acesso
de raiva.
Correndo
para o miúdo, que estava a tactear no soalho à procura dos óculos, a rapariga,
impressionada com o que acabara de ver, apanhou-lhe os livros que ficaram
espalhados, bem como os óculos, que, por sorte, não se partiram, enquanto se
desfazia em mil desculpas, “Estás bem? Ele não costuma ser assim mas está muito
transtornado, espero que ele não tenha aleijado muito”
“Um
bocadinho mas vou ficar bem, obrigado”, agradeceu o miúdo, ainda que não
tivesse feito um bom trabalho a disfarçar a dor que sentia. Como se não
bastassem as nódoas negras com que ia ficar, todos os presentes tinham ficado a
assistir impávidos e ninguém tinha feito nada em relação à besta que o tinha
empurrado e que se escaparia sem ser castigado. Pelo menos a rapariga que
entretanto aparecera dera-se ao trabalho de parar para lhe perguntar se estava
bem e para o ajudar, o que sempre o fazia depositar alguma fé nos seus colegas.
Sara
sorriu-lhe, antes de lhe passar os livros para as mãos e voltar para a sala.
Não o conhecia a não ser de vista mas já tinha reparado que ele era alvo de
gozo e todas as variantes de comportamento abusivo por parte dos colegas, o que
a fazia sentir uma enorme compaixão por ele. Era uma pena que Tomás tivesse
resolvido descarregar a raiva nele. Não podia dizer que o tivesse passado a ver
com melhores olhos depois de testemunhar aquele comportamento deplorável. Como
dizia o ditado popular, “há males que vêem por bem”, por isso, até podia ter
sido bom para ela ter tido que rejeitar o rapaz. Podia ter sido ela a ser
agredida em vez do miúdo. Devia ouvir mais as teorias mirabolantes, também
conhecidas por conselhos, de Afonso. Se calhar Tomás era mesmo desajustado e
ela fora ingénua ao dar-lhe uma oportunidade.
Quando
voltou para a sala lembrou-se que estava sentada ao lado do rapaz, ainda por
cima. Suspirando pela enésima vez naquela manhã, voltou para o seu lugar,
implorando para que Tomás não explodisse e lhe enfiasse a cabeça no tampo da
mesa ou qualquer coisa igualmente dolorosa. Ao ver que ele nem sequer olhava
para ela, deu-se por sortuda, afinal não queria uma nova cena como aquela a que
acabara de assistir no corredor. Revirando os olhos quando se lembrava do que
se tinha passado, concluiu que o rapaz lhe tinha acabado de facilitar muito a
tarefa de o colocar por detrás das costas. Retomando o desenho que estava a
fazer nas margens do caderno, uma trepadeira a subir por cima de uma parede grafitada,
esperou que o tempo passasse até se ver livre daquela aula.
Foi
com muito alívio que ouviu a campainha anunciar o final daqueles noventa
minutos, que se tinham arrastado como uma lesma obesa. Quando levantou a cabeça
do seu desenho, a que tinha acrescentado as ruínas de uma casa e que entretanto
tinha ocupado o papel todo, já Tomás não estava por perto. Onde teria ido?
Tentando não pensar muito nisso, foi ter com João e Cláudia, que estavam junto
aos cacifos. Antes que tivesse tempo de dizer o que quer que fosse, Cláudia
perguntou, “O que é que deu ao Tomás há bocado?”
Ao
que parecia, por muito chateada que tivesse ficado com o rapaz, ela não estava
disposta a perder aquela fixação que tinha nele, nem quando assistia aos seus
comportamentos menos correctos. Era de tal forma que andava com uma fotografia
dele que tinha tirado quando ele não estava a ver na carteira e tinha várias a
enfeitar o cacifo. Desinteressadamente, Sara respondeu, “Não está nos dias
dele”
“O
que é que será que se passou?”, questionou Cláudia, sem encarar a resposta
evasiva da rapariga como pouca vontade de discutir aquele assunto, “Estavas com
ele no intervalo, ele não te disse se estava alguma coisa a incomodá-lo?”
“Não
me interessa”, respondeu Sara, um tanto mais ríspida do que o que naturalmente
costumava ser, mas não queria mesmo falar sobre Tomás e a sua paciência estava
a esvair-se. Aquele estava a ser um dia difícil, ela estava emocionalmente
esgotada e só desejava ir para casa e agarrar-se a Mocas, cujo pelo macio
surtia nela um efeito terapêutico.
“Achas
que devia ir ter com ele? Se calhar ele precisa de falar com alguém”, insistiu
Cláudia. Tinha esperança que desse para se reaproximarem depois do que se tinha
passado naquela noite e aquela parecia-lhe uma boa oportunidade. Ele ficava tão
lindo quando fazia aquele ar másculo e feroz, mas ela tinha a certeza que, por
baixo daquela faceta durona, ele era doce como o mel.
“Não
quero saber, podes ficar com ele, faz o que quiseres, mas não me fales nele e
não precisas de ter ciúmes, eu não quero aquele gajo para nada!”, rebentou
Sara, começando num tom mordaz mas baixo, foi aumentando o volume, até que a
última parte foi dita a alto e bom som. Aquilo tinha sido algo que ela
normalmente não faria, mas estava farta. Ela gostava dele, teve que o rejeitar
para evitar dores de cabeça e, não cinco minutos depois de o fazer, ele provava
que era alguém instável e violento, tal como a impressão com que ela ficara
dele quando o conhecera mas resolvera ignorar porque Leonor lhe tinha pedido,
tudo aquilo em dez minutos. Ao ver o ar chocado de Cláudia, fixo num ponto por
cima do seu ombro, perguntou, “O que foi?”
Partindo
do princípio de que o dia não podia ficar pior, voltou-se para o que quer que
estivesse a transtornar daquela forma a amiga. Ao fazê-lo, teve a oportunidade
de ver uma expressão de Tomás que nunca esperaria ver associada à pessoa dele:
mágoa. Dele já vira tudo, raiva, indiferença, alegria, até o seu lado mais carinhoso,
mas nunca tristeza, conhecia-o bem o suficiente para saber que, se algo lhe
causasse dor, ele ficaria irado e não entristecido, e nauseava-a saber que
tinha sido ela a desencadear aquela reacção. Incapaz de reagir, viu-o abrir
passagem por entre a multidão e sair do edifício.
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Se
havia alguma coisa que aqueles dias que nem perfaziam uma semana e que iam
contando a duração do seu namoro com Leonor lhe tinham ensinado, era que tinha
que se socorrer de todo auto-controlo para conseguir largar a rapariga por um
bocadinho. Em sua defesa, eram praticamente dezoito anos sem ter uma namorada a
sério e agora que a tinha, tudo o que queria fazer era mimá-la. Mas, como
Susana já lhe avisara, convinha deixá-la respirar para que não se fartasse e o
mandasse plantar batatas. Como, se seguisse os conselhos de Rúben, Leonor
acabaria por o exorcizar da sua vida em menos de um mês, pareceu-lhe que faria
melhor em dar ouvidos à mãe. Foi assim que se decidiu por continuar a enviar
apenas uma mensagem querida de bons dias e a não a raptar todos os intervalos
assim que a via, coisa que, se o seu sexto sentido não o estivesse a induzir em
erro, lhe pareceu que ela agradecia.
Assim,
quando Leonor o convidou para ir ver um filme a casa dela, o seu entusiasmo foi
tanto que se diria que tinha acabado de ganhar o euromilhões. Segundo Rúben, o
entendido no género feminino e o guru do amor, era melhor Afonso passar pelo
supermercado e abastecer-se de preservativos, porque as intenções da rapariga
eram transparentes como cristal. Na parte que lhe tocava, Afonso achava que
seria cedo demais, ainda que o amigo achasse que já tinha tido mais que tempo
para “pitar a gaja”, mas, se a oportunidade se proporcionasse e Leonor quisesse
mesmo, far-lhe-ia a vontade. Na eventualidade de ser uma tarde celibatária,
como lhe pareceria que seria, embora estivesse a contar com qualquer coisa, com
o historial da rapariga, bem, já estava muito acostumado à sua mão direita, por
isso não faria danos.
Assim
que a campainha tocou e transmitiu a boa nova de que as aulas tinham terminado,
quase atropelou quem quer que estivesse no seu caminho, tal era a pressa que
tinha de ir ter com Leonor. Meia dúzia de “desculpa”’s mais tarde, estava
finalmente a avistar a rapariga, que tinha acabado as aulas um pouco mais cedo
e estava com Adriana. Não sendo pessoa para dar espectáculo para os outros, embora
nem por isso sentisse menos ansiedade cada vez que via a namorada, preferiu
comedir-se e cumprimentar Leonor com um beijo rápido ao invés de estar ali duas
horas a trocar saliva. Abraços, por outro lado, eram demonstrações afectivas de
que ele gostava e, por isso, entusiasmou-se tanto que levantou a rapariga do
chão.
Já
quase sem respirar, Leonor, que conseguira ficar com as mãos livres, afagando
os caracóis de Afonso, pediu, num tom de percepção difícil porque o aperto em
que estava era muito forte, “Fico muito feliz por te ver mas acho que me estás
a partir uma costela…au”
“Desculpa”,
disse o rapaz, dando-lhe um beijo na testa, depois de a pousar calmamente no
chão. Nunca lho diria mas, se ele não estivesse tão habituado a levantar os
seus colegas de equipa cada vez que o jogo o exigia, tê-la-ia achado um pouco
pesada. Ainda bem para ele, que nunca tinha achado que raparigas magrinhas eram
particularmente atraentes e sempre as preferira com curvas, coisa que Leonor
tinha e ele adorava, por isso não se queixava. Isso e, quando a levantara,
tinha ficado com o peito dela à altura da sua cara, por isso tinha sido muito
feliz durante aqueles segundos.
Depois
de se despedirem de Adriana, que estava à espera de André e que recusara
terminantemente que ficassem ali a fazer-lhe companhia até ele chegar, foram
buscar os irmãos, como era costume. Piscando-lhe o olho, a rapariga
garantiu-lhe que Tomás ficaria a jogar no quarto dele e que não os incomodaria.
Afonso, engolindo em seco, pensou nas inúmeras possibilidades que poderiam acontecer
e pensou se Rúben não estaria certo. Se, havia ainda uma hora atrás estava
certo de que, se acontecesse alguma coisa, aceitá-la-ia de bom grado, agora
achava que era decididamente cedo demais. Ela quereria mesmo? Ele era
completamente inexperiente e ela tinha o historial que tinha, por isso ele iria
desapontá-la. A suar em bica, achou melhor não tirar conclusões precipitadas, a
bem da sua auto-estima.
Assim
que chegaram, qual não foi o espanto de ambos ao verem apenas Sara. O sexto
sentido de Afonso não era eficaz apenas para o avisar de antemão se podia
contar com sexo, também lhe indicava quando a sua irmã não estava bem e, por
isso, estava a apitar que nem uma sirene. Quando chegassem a casa ela podia
contar com um interrogatório. E, se a fonte do transtorno de Sara tivesse nome,
essa pessoa ia lamentar o que quer que tivesse feito. Sem ver o irmão em parte
alguma, Leonor, partilhando as preocupações de Afonso embora dirigidas ao
irmão, perguntou, “O Tomás?”
“Não
sei, depois da aula de História ele foi-se embora e desde então que nunca mais
o vi”, disse Sara, ponderando se estaria a fazer bem em fazer queixinhas e se
não arranjaria problemas a Tomás por contar que ele tinha faltado às aulas.
Estava preocupada, o rapaz desaparecera e ela só não mandava mensagem porque
ele não a queria ver à frente. Olhando para o irmão, não precisou que ele
abrisse a boca para saber que não se ia escapar às mil e uma perguntas que ele
tinha para lhe fazer.
“Passou-se
alguma coisa?”, insistiu Leonor, cada vez mais preocupada. Pensava que o irmão
já tinha passado a fase de armar desacatos e que, de agora em diante, tentaria
portar-se bem e faltar às aulas não era considerado comportamento exemplar.
Não, ele estava decidido a redimir-se e, quando punha uma coisa na cabeça,
ninguém o demovia, por isso tinha que ter um motivo de força maior. Ele até estava
todo contente naquela manhã, ia falar com Sara, estava certo de que tudo
correria nos conformes. Só se não tivesse corrido bem, mas ela esperava que
Tomás lidasse com uma rejeição como devia ser e não fizesse aquela fita toda.
“Nada
de especial”, respondeu Sara, implorando para que Leonor não dissesse nada que
a comprometesse. Se Afonso sonhasse com o que se tinha passado, então rejeitar
Tomás teria sido em vão. Quer dizer, não completamente, porque tinha-se
desviado de uma bala como o Neo do Matrix. Olhando de novo para o irmão, viu-o
com o sobrolho tão carregado que diria que aquelas rugas seriam permanentes.
Até chegarem a casa teria que arranjar uma desculpa convincente.
“Nada
de especial? Ele é meu irmão e eu estou preocupada, se pudesses ser mais
específica eu agradecia”, pediu Leonor, enquanto massajava as têmporas para não
perder a paciência. Ao ver que Sara, que não parava com as respostas evasivas,
não a iria ajudar, tentou ligar para o telemóvel de Tomás. Quando estava quase
a desistir, ele lá atendeu e lhe disse que estava em casa e para não ficar
preocupada. Antes que ela lhe pudesse perguntar porque é que não tinha ido às
aulas, ele desligou. Pelo menos estava bem, por isso sempre a sossegara.
Uma
coisa era certa, agora Afonso não teria que se preocupar com a sua performance
sexual. Depois daquilo Leonor iria confrontar Tomás, como a própria já lhe
tinha dito, por isso não teria sequer direito a uns beijinhos. Uma preocupação
pelo menos tinha sido posta de parte, mas ele queria uns miminhos e não os
teria, portanto era bom que Tomás não lhe aparecesse por ali. E Sara que não
pensasse que ele se tinha esquecido, pois ele estava a desesperar por saber o
que é que se tinha passado e, saber que a irmã, caso tivesse algum problema,
não tinha ido falar com ele, magoava-o um pouco, porque ele só queria o melhor
para ela e achava que ela sabia isso.
“Desculpa
Afonso, vai ter que ficar para a próxima”, lamentou Leonor, quando chegaram a
casa dela. Só queria passar a tarde na companhia do namorado, talvez a ver um
filme e a trocar mimos, ainda que fosse certo e sabido que se ficariam por isso
e que Afonso ainda iria demorar a ver um pouco de pele que fosse.
“Claro,
eu compreendo”, respondeu o rapaz que, de certa forma, até preferia daquela
forma. Não podia deixar passar aquela ocasião para ter uma conversa séria com a
irmã, ainda que para isso tivesse que deixar a namorada para segundo plano,
“Oportunidades não nos hão-de faltar”
Despedindo-se
de Afonso e de Sara, Leonor, fazendo das tripas coração, foi ter com o irmão
que, tal como previra, estava no quarto. Batendo à porta para não o apanhar de
surpresa, entrou e, contendo-se para não o repreender por ter faltado às aulas,
disse, sentando-se na borda da cama do irmão, depois de saltar por cima de um
monte de roupa suja perdida pelo quarto, “Então? O que é que se passou?”
“I
spoke to her…she told me to fuck myself”, disse Tomás, com a voz abafada por
ter a cara na almofada. Nem conseguia olhar para a irmã, sentia-se
completamente humilhado, sobretudo depois de ter estado tão confiante. Quando
Leonor o obrigou a tirar a cara da almofada e a contar-lhe tudo tintim por
tintim, não se conteve e, indo contra a sua natureza, que tendia a levar tudo à
frente quando estava chateado, chegou mesmo a chorar, “manly tears”, como ele
lhes chamou. O que o deixava fora de si mesmo era saber que a única pessoa além
da irmã que se conseguira aproximar dele o rejeitara daquela maneira, indo ao ponto
de dizer que não o queria para nada. Deixou de fora, porém, a parte em que
empurrara um miúdo, não só lhe parecia não ter importância, como não estava
para que a irmã lhe desse na cabeça.
Passando-lhe
as mãos pelas costas numa tentativa de o reconfortar, Leonor foi ouvindo o
irmão. Como é que Sara se atrevia a rejeitar o seu irmãozinho?! Aquilo parecia
tão bem orientado que a resposta dela parecia caída do céu, ou isso ou as
raparigas tinham-se tornado mais complicadas desde o seu tempo. Um miúdo bonito
e simpático dizia-lhe que gostava dela e ela depois dizia que só como amigos?
No seu tempo qualquer uma se teria derretido! A parte de não o querer para nada
é que escapava a toda e qualquer tentativa de compreensão, uma coisa era não
querer nada de mais com ele, outra era dizer-lhe uma coisa daquelas, sobretudo
quando eram amigos. Depois de ouvir o que ele lhe tinha para contar, pensou um
pouco e, tentando racionalizar aquilo tudo, disse, “Se calhar é uma situação
tão nova para ela como para ti, ela ainda está a arrumar as ideias e acabou por
ter uma reacção absurda”
“You
think so?”, perguntou Tomás, a quem não tinha ocorrido essa hipótese. Se fosse
o caso, não estava tudo perdido mas, ainda assim, Sara tinha-o magoado a sério.
Ele também estava em falta, não tinha lidado bem com a situação, mas se ela não
o tivesse mandado passear, ele teria reagido melhor!
“Yes,
I do think so”, assegurou Leonor, esperando não estar enganada. Queria poupar o
irmão a um desgosto, até porque, tendo em conta tudo o que Sara tinha feito por
ele, aquela rejeição tinha-o atingido, mais do que ela julgara, pois, se a
memória não a enganava, a última vez que tinha visto o irmão chorar foi quando
tinha partido a cabeça no que fora a sua primeira e última tentativa de andar
de skate e tivera que levar pontos e o tinham anestesiado mal. No entanto, não
podia deixar passar a forma desadequada como Tomás tinha lidado com a rejeição
e fez questão de o obrigar a, no dia seguinte, ir pedir desculpa a Sara. Achou
melhor aconselhá-lo a manter uma amizade platónica com a rapariga, de modo a
colmatar os danos e manter o que tinham antes, que era muito bom. Para que não
restassem dúvidas, perguntou, “Are we crystal clear?”
“Sure”,
garantiu o rapaz, certo de que a melhor maneira de proceder seria reparar os
danos causados, o que implicava engolir o seu orgulho, mas Sara valia a pena.
Quando a irmã o puxou para si e lhe deu o beijo na testa, sempre sentiu algum
conforto.
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Libertando-se
da mochila, Sara, no que foi uma tentativa mal sucedida de se escapar às
perguntas que Afonso lhe ia fazer ao ritmo de um revolver, tentou escapar-se
pela porta das traseiras, tendo sido detida quando sentiu a mão do irmão
agarrar-lhe o capuz da camisola. Quando encarou o irmão, esperou ver um dragão
a expelir fogo, depois lembrou-se que essa seria a reacção dele caso soubesse a
história toda. Ao invés, viu-o um tanto cabisbaixo, o que a apanhou desprevenida,
mas ele adiantou-se, “Sara, agora a sério, passou-se alguma coisa?”
Se
Afonso tivesse tido uma abordagem mais agressiva, ela não se sentiria tão mal
por o enganar. Pondo as coisas daquela maneira era impossível ficar indiferente
aos remorsos. Nem sequer tinha uma história preparada! Vendo a hesitação da
irmã, o rapaz acrescentou, “Podes confiar em mim, eu só te quero ajudar, se não
quiseres falar eu não levo a mal, mas se falares não me tentes mentir”
Mesmo
quando Sara pensava que não se podia sentir menos culpada. E daí, agora que
pensava a sério, Tomás tinha, com muito sucesso, sabotado a sua nova imagem,
ela não queria nada com ele a não ser uma distância mínima de cem metros, que
mal fazia contar ao irmão? Ganhando coragem, pediu-lhe que se sentasse e, quase
num fôlego, contou o que se tinha passado naquele dia, embora tivesse deixado
de parte aquele pormenor insignificante dos seus sentimentos e do que se tinha
passado na noite de Ano Novo, “pormenores técnicos”. Durante toda a sua
narração, viu o rapaz pestanejar, confuso, ranger os dentes até que, no fim,
sorriu de orelha a orelha. Quando tinha tudo contado, sentiu um alívio enorme, não
tinha custado nada.
Era
em momentos assim que Afonso sentia um orgulho enorme. Alguma vez aquele
vira-latas badocha e desajustado ia agradar à sua irmã, alguém como deve ser?
Jamais! Ela merecia o seu equivalente masculino e essa pessoa não era Tomás. Agora
que ela tivera provas concretas acerca do verdadeiro carácter de Tomás, não havia
como continuar a dar-se com ele. Ela era tudo menos estúpida. Ainda assim,
tinha que admitir que não esperava um gesto tão sensível por parte do rapaz,
como aquela declaração que, até ele, tinha que admitir que fora adorável. Mas
isso não tinha qualquer relevância. Puxando a irmã para si, que retribuiu o abraço,
“Muito bem”
Sim,
o alívio era inegável e sentia-se bem por ter agradado a Afonso. Então porque é
que tinha uma sensação desagradável que não sabia descrever? Decidindo não lhe
dedicar demasiado tempo, empurrou esse pensamento para longe e decidiu que era
melhor assim, quanto menos pensasse em Tomás melhor. Ainda tinha que o ver nas
aulas e nos almoços que Guida e Susana combinavam, mas estava certa de que não haveria
nada. Dali por diante as coisas seriam melhores.