Se havia algo
que assegurava Tomás da sua orientação sexual, coisa de que ele não precisava,
seria, sem dúvida os momentos passados no balneário que antecediam a hora de
educação física. A seu ver, não havia nada de mais desagradável que estar
encafuado numa sala pequena, abafada, húmida, cheia de uma dúzia de outros
rapazes, todos eles semi-nus, isto quando não estavam mesmo despidos. Como se a
visão de um colega seu, em tronco nu, a rodopiar a camisola por cima da cabeça
não fosse inestética que chegasse, ainda tinha que se sentir exposto quando era
a sua vez de trocar de roupa. Cerrando os olhos, tirou a camisola, vestindo,
tão depressa como conseguiu, uma t-shirt velha. Até ele tinha que admitir que
havia vindo a engordar nos últimos tempos, o que não contribuía para a sua
auto-confiança.
Caminhando para
o ginásio da escola com o passo atrasado devido ao sono que sentia por ser
ainda de manhã, estava a lamentar não ter ficado a dormir, que era o que mais
queria neste mundo até que Guida lhe frustrara os planos, quando, assomado por
aquela sensação estranha no estômago que teimava fazer-se notar sempre que
avistava Sara, viu a sua disposição melhorar assim que ela, já equipada, se
juntou a ele, sorrindo, embora o seu sono, tal como o seu, fosse aparente, “Bom
dia, Tomás”
Podia já ter
passado semanas, semanas essas em que Tomás fizera um esforço que superara
todas as expectativas, inclusive as dele próprio, por não repelir tudo e todos
com as suas extravagâncias, mas o sorriso pouco convidativo ainda se fazia
notar. Estava certo que os progressos não haviam sido imensos, mas considerando
que duvidara de início que fosse capaz de os fazer, já se dava por muito
realizado. Não era que desejassem a sua presença como se da segunda vinda do Messias
se tratasse, mas já não sentia os olhares de tudo e todos em si, como se
esperassem que fosse atacar alguém. No fundo, a crescente perda de poder
deixava-o desamparado, pois não sabia como se adaptar à situação.
Em
contrapartida, se começava a deixar para trás a sua maneira de lidar com a
pressão a que era sujeito, aos poucos, ia encontrando em Sara, um porto seguro.
Não se iludia, sabia que ela ainda criava uma certa distância entre ambos e que
mantinha um pé atrás em relação a ele. Não a podia censurar, decerto que o
episódio da faca a assustara, mas esperava que fossem tempo passados e que
pudessem começar de novo. Mais do que a sensação de leveza que sentia junto
dela, ou a cara a ferver, sentia que ia ficar tudo bem. Quando se sentia
enervado por qualquer motivo, a rapariga conseguia surtir nele um efeito
apaziguante, nem ele sabia como ao certo, mas sentia-se simplesmente bem junto
a ela. Não era infalível, afinal Guida transtornava-o mais do que qualquer
provocação dos colegas, mas ajudava-o e muito e, por isso, ele sentia-se grato.
Sara, na parte
que lhe dizia respeito, sentia-se feliz por Tomás. Se a início se sentira
apreensiva e, mesmo, assustada pela presença dele, com o decorrer do tempo e
pelo facto de ele não lhe ter voltado a dar motivos para recear, conseguira sentir-se
mais à vontade com Tomás, embora não ao ponto de lhe dar total confiança. Ainda
tinha os acontecimentos do primeiro encontro com ele bem presentes na sua
memória e sem dúvida que assim continuariam, mas agora conseguia empatizar com
o rapaz, o que tornava mais fácil não o repelir imediatamente. Tendo em conta
que, da última vez que tivera que ficara em casa de Tomás, tivera a
oportunidade de voltar a presenciar a ira de Guida, a sua posição face ao rapaz
apenas se fortalecera.
O certo era que
se sentia profundamente dividida em relação a ele e, por muito que matutasse o
assunto, conseguia acabar sempre mais confusa do que o que começara. Se, por um
lado, temia que alguma coisa o fizesse perder a cabeça um dia e, se isso acontecesse,
até onde iria ele, por outro, sentia que o devia ajudar, porque nem lhe parecia
que fosse má pessoa, só que para ele as circunstâncias não haviam sido as mais
desejáveis. A tendência do rapaz para se fechar cada vez que ela o via numa
posição mais vulnerável magoava-a, mas mesmo nessas situações sentia-se
disposta a arriscar e enfrentar o temperamento instável dele, o que, e ela bem
sabia, não era a atitude mais sensata. Depois sempre se faziam notar aquelas
ocasiões em que dava por si a corar junto a Tomás.
A impressão que
sentia no estômago, sensação essa a que se viera a acostumar e que coincidia
com os momentos em que via Sara, deu sinal de vida, fazendo com que demorasse
uns segundo extra a reagir. Conseguira admitir a si próprio que nutria particular
afeição por Sara, como é que poderia não ser assim quando ela, segundo lhe
disseram, em bebé, tinha por hábito vomitar sempre que Guida lhe pegava ao
colo? Quando o fez, dirigiu-lhe um sorriso, tão afável quanto conseguiu, mesmo
estando ciente de que faria uma criança pequena chorar, e replicou, “Good
Morning”
Não houve grande
possibilidade de desenvolver uma conversa, uma vez que Cláudia, irrequieta como
um Chihuahua cada vez que se encontrava próxima de Tomás, apareceu e, ignorando
Sara, que olhava para todo o lado menos para ela, constrangida, se agarrou ao
rapaz, que se limitou a deixar envolver num abraço desconfortável. Cláudia
havia sido a única pessoa que nunca tivera, em tempo algum, medo dele, quando
todos fugiam, e isso deixava-o confuso. Gostava da atenção, sem dúvida, mas
aquela invasão ao seu espaço pessoal deixava-o numa posição dominada e com isso
ele não podia. Estava para a afastar, quando viu Sara cumprimentar João com
dois beijinhos. Vê-la desinibida a falar com João e sem qualquer preocupação em
manter a distância, afectou-o mais do que esperava.
Cabisbaixo,
dirigiu-se para o ginásio, onde o resto da turma já estava, com Cláudia ao seu
lado e Sara e João atrás, sempre animados com a conversa, o que lhe fazia o
sangue borbulhar. Como os lugares no banco estavam praticamente ocupados,
acenou para que Sara se sentasse ao lado de Cláudia e João, que haviam
conseguido um espaço. A rapariga, educada para recusar aqueles gestos em prol
da cortesia, insistiu para que se sentasse ele, mas sem sucesso. Tomás
limitou-se encostar à parede, optando por ficar de pé, e aproveitou para lançar
um olhar presunçoso na direcção de João. Sara, embora sensibilizada pela
delicadeza, não gostava de ser contrariada, mas parecia que não ia levar a sua
avante.
Assim que a
professora, uma mulher excessivamente musculada e carrancuda, apareceu,
anunciou, com grande pena sua pois preferia obrigar a turma a fazer flexões,
que a aula seria dedicada a danças latinas. Tomás, que sempre fora pouco adepto
de actividades que implicassem mexer-se muito e uma aula encher parecia-lhe um
calvário, aprovava a ideia de uma aula menos intensa. O que já não lhe parecia
boa ideia era merengue, que coisa tão ridícula, ainda por cima ia ser a pares,
o que o deixava desconfortável. Escolhendo os pares, que depois iriam trocar
para que todos dançassem com todos, de modo a evitar comentários e atitudes
parvas, a professora demonstrou o passo que iria fazer e ordenou que
continuassem a praticar.
Ao constatar que
Sara iria dançar com João, sentiu a sua irritação voltar, e vê-los, a rir
enquanto tentavam acertar com os passos, aniquilou a satisfação que sentira com
o gesto que fizera ainda há uns cinco minutos atrás. Procurando ignorá-los,
dirigiu-se ao seu par, que olhava para todo o lado como se alguém a pudesse
tirar dali e depressa. Mas ninguém a poupou a fazer par com Tomás e, depois de
um grito da professora para que começassem, não teve outra alternativa. Se não
estivesse tão determinado em fazer a vontade a Leonor e a construir uma nova
imagem, teria aproveitado a situação para assustar a colega, fazendo algo de
perturbante. Como estava, de facto, a fazer por melhorar, pôs, com alguma pena,
de parte a ideia de gozar um pouco e estendeu a mão para a colega.
A rapariga,
hesitante, colocou-lhe uma mão no ombro e deu-lhe a outra, tal como a
professora lhes indicara. Quando ele lhe pôs a mão na cintura, quase sentiu a
pele a arrepiar-se por baixo do toque dele. O nervosismo da colega foi bem
aparente a Tomás, que teve que se conter para não lhe dirigir um dos seus
olhares característicos. Mantendo uma expressão neutra, percorreu o esquema que
era suposto fazerem, sem reparar que a colega, muito mais baixa que ele,
precisava de dar dois passos para acompanhar um dele. Quando a professora ordenou
que trocassem de par, o cenário foi, em tudo, análogo, nenhuma colega estava
radiante por dançar com ele, mas abstiveram-se de exteriorizar a sua má
vontade. A situação alterou-se quando foi a vez de Cláudia.
A rapariga, que
havia passado a aula em ânsias por que a vez dela com Tomás chegasse, mas cabia
em si de entusiasmo quando o momento chegou. Agarrando-se a ele como se tivesse
medo que ele fosse fugir, aproximou-se tanto dele que lhe conseguia contar as
poucas sardas que lhe sobravam do Verão nas maçãs do rosto. Tomás, pouco
habituado a grandes proximidades, engoliu em seco. Cláudia podia ser irrequieta
e estridente, mas, era das raparigas mais desenvolvidas da turma e isso ele
apreciava. A forma como Cláudia olhava para ele, como se estivesse a ver uma
celebridade, sabia-lhe muitíssimo bem, visto gostar da sensação de ser quase
venerado, por isso, não lhe custou provocar um pouco a rapariga, piscando-lhe o
olho.
Cláudia, como
previsto, acabou a trocar os passos, de tão derretida que ficou. Era opinião
geral das raparigas da turma que Tomás era bem-parecido, embora todas
preferissem manter uma distância considerável dele, uma vez que era uma figura
demasiado extravagante para que não tivessem um pouco de medo que fosse. Mas
ela não via porquê, ele era, na sua opinião, adorável, um pouco estranho sim,
mas isso só o tornava mais misterioso e atraente para ela. Não esperava que
ele, que sempre se distanciava um pouco quando ela não resistia a exteriorizar
o seu fascínio, fosse fazer um gesto assim. Em bom rigor, tinha-se apercebido
que ele, de Sara já não se afastava e ela parecia estar bem com isso, o que
provocava acessos de ciúmes a ela, Cláudia, tanto que já pensou em ter uma
conversa com Sara, para deixar bem claro que Tomás era território seu. Entretanto,
desfrutaria da oportunidade de dançar com ele.
Pouco depois, o
apito da professora ecoou pelas paredes do ginásio, avisando-os de que estava
na altura de trocarem de par. Cláudia emitiu um queixume longo quando estava na
altura de largar o rapaz, mas depressa recuperou quando ele lhe voltou a piscar
o lho. Tomás, divertido ao ver o ar de deslumbre da rapariga, riu-se, até que
viu que era a sua vez de dançar com Sara. O sorriso esmoreceu, de tão nervoso
que se sentiu, embora não tivesse razões para tal, já dançara com a turma toda
e mais nenhuma rapariga o desconcertara daquela maneira. Embasbacado, pegou na
mão de Sara, engolindo em seco quando ela lhe colocara a outra no ombro. Procurando
não a encarar, porque já sentia a cara quente que chegasse, olhou para tudo
menos para ela.
A rapariga,
quando soube que era a sua vez de dançar com o rapaz, sentiu-se mais ansiosa do
que gostaria de admitir. Foi com alguma pena sua que o viu despir-se de toda a
simpatia com que tratara Cláudia para nem sequer olhar para ela, sendo seco
durante todo o tempo que o esquema durou. Perguntava-se se teria feito alguma
coisa para o aborrecer ou se, para ele, era um martírio dançar com ela. Se já
se sentia mal por, de cada vez que olhava para ele, o ver decidido a não olhar
para ela, ainda ficou pior quando ele, mal a dança acabou, a largar tão
depressa como se ela estivesse a escaldar. Não sabendo o que se passava com
ele, voltou para o pé de João, que ao menos era simpático.
“Passa-se alguma
coisa?”, perguntou João, ao ver Sara com uma expressão abatida. Na sua opinião,
ter de dançar com Tomás deixaria qualquer uma de mau humor, mas sendo a
rapariga, custava-lhe. Ainda para mais, ela parecia gostar de estar com Tomás,
o que o enraivecia, já que não gostava do rapaz e ele canalizava a atenção de
Sara, quando ela podia estar a falar com ele, João. Não suportava ver Sara
triste e faria tudo o que estivesse ao seu alcance para a animar. Recorrendo ao
seu maior talento, troçar, algo em que era muito bom, sobretudo tratando-se de
Tomás, disse, propositadamente alto para ele ouvir, “Até estou surpreendido por
o terem posto a fazer par com uma rapariga, com umas mamas daquelas o gordo
parece uma menina”
Tomás, ao ouvir
o que João proferira, sentiu-se tão humilhado que não conseguiu fazer nada. O
que o poupou foi Sara, que não achou graça, ter acudido, sem saber que o rapaz
a conseguia ouvir, “João! Pára com isso, gostavas que ele te chamasse
pauzinhos?”
Sara conseguiria
sempre surtir um efeito animador, ainda que o orgulho do rapaz o fizesse
ressentir-se por necessitar de ser defendido quando preferia ser ele a encarnar
o papel de cavaleiro andante. Talvez assim ele conseguisse dar a tal boa imagem
que desejava havia algum tempo, mas os planos saiam sempre frustrados. Aquela
vez não fora excepção. Podia tê-la feito sentir-se mais à vontade quando
dançaram, mas, não sabia porquê, sentiu-se acanhado e deu a impressão errada. Não
obstante, a rapariga encontrava sempre forma de o fazer sentir-se bem, como se
o que quer que o estivesse a incomodar fosse passar.
Porém, tinha que
dar uma certa razão ao colega, Guida, inclusive, já lhe dissera, de forma
directa, que estava a precisar de um soutien, mas custava sempre. Antes de ter
ingressado na escola primária até era de constituição normal, ainda que sempre
maior do que a maioria dos colegas, mas em altura e não em largura. Entretanto,
ganhara, progressivamente, peso e havia vindo a ser alvo de comentários por
parte dos colegas, mas sempre nas costas porque nenhum se atrevia a dizer-lhe
isso e impor medo era coisa que lhe sabia bem. Se não podia fazer nada quanto
aos ataques de Guida, podia transferir a sua raiva para os colegas. Desde a
primária que assim era, sem que alguém o defendesse ou pensasse nele como o
Tomás, em vez de “aquele gajo esquisito”.
Sentindo uma
onda de afecto pela rapariga, o rapaz fez tenções de lhe mostrar que se sentia
agradecido pelo que ela havia vindo a fazer por ele, o que constituía um grande
esforço da sua parte por engolir o orgulho e as suas pretensões. Assim que terminaram
a aula, Tomás conseguiu um pouco da atenção de Sara, sem que João ou Cláudia se
intrometessem e disse-lhe, “Obrigado…por me teres defendido quando o João disse
aquilo”
A rapariga foi
apanhada de surpresa. Achava que o rapaz se sentia aborrecido com ela por algum
motivo, afinal fora tão pouco amigável quando fizeram par. Além de que
demonstrações de humildade e gratidão por parte dele eram escassas, pois ele
nunca deixava que o vissem mais vulnerável. Assim, não conseguiu continuar
magoada com ele e acabou por sentir afecto por ele, como se fosse alguém por
quem lhe coubesse zelar. Retribuindo a gentileza, respondeu, calorosamente, “Oh
não tens de quê”
“Sara, temos que
ter uma conversa”, interrompeu Cláudia, fulminando-a de tal maneira com o olhar
que quase a reduziu a pó. A sua expressão apenas se suavizou quando se virou
para Tomás, “Não te importas de nos dar privacidade, não?”
Assim que viu o
rapaz a distância suficiente para que não ouvisse nada do que estava prestes a
dizer, continuou, num tom gélido que arrepiou Sara, “O que é que pensas que
estás a fazer?”
A rapariga, se
antes estremecera com o tom que a amiga usara, agora sentia-se confusa. Ainda
puxara pela memória mas não se lembrou de nada que tivesse feito que fosse
aborrecer Cláudia, estava de consciência tranquila, portanto. A amiga estava
determinada a esclarecer a Sara o que a corroía, insistindo, “Achas que eu não
vi que estavas a fazer olhinhos ao Tomás?”
“Deves estar
parva”, contra-atacou a rapariga, indignada. Nunca gostara de ouvir rumores,
ainda que não a incluíssem de maneira nenhuma, quanto mais ser ela alvo de tais
insinuações. Não desejava nada mais do que a deixassem em paz e, portanto,
recusava-se a alimentar mexericos, sobretudo se isso fosse criar atrito entre
ela e uma boa amiga sua. Querendo colocar um ponto final na conversa disse, “Não
lhe estava a fazer olhinhos e agradecia que parasses com isso”
“Óptimo”,
sibilou Cláudia, finalizando a conversa de forma tão ríspida que Sara ficou
boquiaberta, sem reacção. Ou melhor, não ficou indiferente à troca de palavras,
tanto que sentiu uma raiva inexplicável tão intensa que a fez ranger os dentes,
apanhando-a, a ela própria, desprevenida. Incerta do motivo que desencadeara
aquela irritação, justificou-a com o desagrado que sentia por intrigas e fez
por esquecer o assunto.
O riso de João
era como um quadro de ardósia a ser arranhado aos ouvidos de Tomás, que ainda
não olvidara a ousadia que ele tivera ao gozar com ele. Se ele achava que ia
escapar impune, estava enganado, isso era certo. Quando João se afastara do
resto dos colegas para ir beber água, Tomás viu a sua oportunidade de lhe
lembrar quem metia respeito. Agarrando-o pelo colarinho da camisola, sem
qualquer aviso prévio, agitou-o como se de um boneco se tratasse e, levando um
momento para saborear o pânico nos olhos do outro, o que constituía uma visão
agradabilíssima para si, rosnou-lhe, “Agora já não gozas, pois não?”
De tão assustado
que se sentiu, João, que teria gritado se fosse capaz, sentiu o fôlego
esmorecer-se-lhe na garganta. Não era apenas a diferença de tamanho que o fazia
ficar apavorado, era mais o brilho sinistro nos olhos de Tomás, como se,
naquele momento, fosse capaz de fazer alguma loucura. Antes de cair dobrado
sobre si mesmo, sentiu o rapaz desferir-lhe um soco no estômago. Ainda no chão,
contorcendo-se com dores, viu Tomás afastar-se, dizendo, “Só para que não te
esqueças onde é o teu lugar”
Agora que
descarregara alguma da sua frustração, o rapaz podia encarar o dia com novo
alento. Tendo em conta que a próxima aula era Português e, nessa aula, a
professora decidira sentá-los por ordem alfabética, de forma a colmatar o mau
comportamento da turma, estaria sentado com Sara, o que lhe dava um ânimo ainda
maior. Assim, como a rapariga tinha pouco interesse naquela aula e estava
sempre disposta a conversar, sempre o podia fazer sem ter os dois apêndices atrás.
Tentando distrair-se do par de boxers de higiene duvidosa atirado do outro lado
do balneário e que fora parar ao pé de si, vestiu-se tão depressa quanto
possível e saiu dali, já atrasado para a aula seguinte, como acontecia sempre
que tinham educação física antes.
Se pudesse,
teria passado pelo bar para comprar um croissant, pois estava esfomeado. Mesmo
que não estivesse, saber-lhe ia bem comer. E depois perguntava-se porque é que
a roupa estava tão justa…Puxando a cadeira que estava ao lado de Sara, que se
despachava sempre depressa, sentou-se. A sua súbita presença assustou a
rapariga que estava debruçada sobre o caderno, absorta no seu trabalho.
Sossegando-a, disse, “Sorry, I didn’t mean to startle you…”
Sara limitou-se
a acenar-lhe e a continuar o seu trabalho, tendo o cuidado de colocar o braço
de modo a que ele não pudesse ver, embora não tivesse sido subtil o suficiente
e tivesse acabado por chamar à atenção de Tomás. Vendo um pretexto para
conversar, o rapaz, com um sorriso, tentou, “O que é que estavas a fazer?”
“Oh nada”,
respondeu a rapariga, sorrindo, também, embora tivesse aberto o caderno noutra
página, para que ele não pudesse ver. Pelo menos parecia que Tomás esquecera o
que quer que ela tivesse feito para o incomodar e estava de novo a tentar ser
amigável, o que a descansou. Não sabendo se devia, ou não, perguntar se tinha
feito algo, achou que era melhor fazê-lo, ainda que isso pudesse deixar o rapaz
de novo de mau humor, assim podia evitar repetir o erro no futuro, “Há bocado quando
tivemos que dançar os dois parecias chateado, aconteceu alguma coisa, o João
chateou-te mais?”
“Hm? Não…”,
disse Tomás, encolhendo os ombros. João estava no outro extremo da sala a
fuzilá-lo com o olhar, mas, a seu ver, isso era a confirmação de que a conversa
que ambos tiveram havia servido para colocas os pontos nos I’s. Não querendo
desperdiçar momentos preciosos com Sara a falar de João, insistiu, “Não era
preciso teres deixado o que estavas a fazer por minha causa”
“A aula está
quase a começar, de qualquer forma”, justificou-se a rapariga. Bem dito e bem
feito, a professora entrou, batendo com o livro de ponto na mesa, o que fez com
que a turma se calasse, ficando a sala tão silenciosa que dava para ouvir as infiltrações
a pingar no canto.
“Estão animados
os meninos, é?”, ironizou a professora, quebrando o silêncio, sendo notório a
satisfação que sentia, “Vamos lá ver se continuam depois de verem as vossas
notas”
Juntando o gesto
à palavra, começou a chamar, um a um, para que fossem à sua secretária buscar o
teste. Cláudia, das primeiras, voltou mais pálida do que fora. João limitou-se
a suspirar de alívio quando constatou que não tinha tirado negativa. Sara não se
sentia muito preocupada, uma vez que o seu calcanhar de Aquiles era línguas
estrangeiras, sobretudo o inglês que não entendia nem por nada. Quando chegou a
sua vez, viu um “85%” e sorriu. Já dava para deixar Daniela contente.
Tomás, a quem o
teste tinha corrido pior que mal, viu o esgar da professora tornar-se num de náusea
quando lhe entregou a prova. Erguendo o sobrolho, pegou na folha,
desinteressadamente. Assim que viu a nota, ele que não se preocupava
minimamente com a escola, conseguiu ficar arrepiado. Tinha sido mesmo muito
mau, ainda pior do que pensava. Em sua defesa, sempre falara outra língua
durante toda a sua existência, com excepção do que falava em casa, mas isso era
muito pouco. A única coisa que o preocupava era que Guida havia de lhe
perguntar pelo teste e aí iria haver sangue, mas com sorte talvez a convencesse
que as notas iam de zero a vinte.
Voltando ao seu
lugar, tentou rir para aligeirar o ambiente quando a rapariga lhe perguntou que
tal se saíra. Não queria mesmo que Sara pensasse que ele era limitado ou alguma
coisa do género, mas não teve como contornar a pergunta, respondendo, “Digamos
que vou ter que deitar fora o teste depressa ou a minha mãe não me vai dar paz”
“Vais ver que no
próximo sobes isso, não te preocupes”, disse a rapariga, dando-lhe uma
palmadinha nas costas, “A seguir recebemos o de inglês e de certeza que foste
óptimo nesse”
Para mal dos
seus pecados, parecia a Sara que não tinha ganho aptidões para línguas do ano
passado para aquele. Pelo menos Daniela já sabia o que é que a casa gastava,
portanto não a repreenderia como se não houvesse amanhã. Dobrando o enunciado,
visivelmente chateada, ouviu a professora felicitar Tomás, que tivera uma
classificação perfeita. O rapaz a quem o teste parecera brincadeira, não conseguiu
sentir-se propriamente consolado, afinal se não o tivesse resolvido a 100%
seria grave. Sentando-se ao lado da rapariga, viu-a, aborrecida, a desenhar
algo no caderno, com tanta força que quase rasgara as páginas. Espreitando por
cima do seu ombro, viu o desenho de um dragão a incendiar a professora. Mais do
que cómico, o esboço pareceu-lhe fantástico, mesmo muito bem feito, com uma
linha cirurgicamente precisa.
“Wow”,
pronunciou-se ele, fazendo com que Sara corasse e tentasse esconder o desenho.
Colocando uma mão sobre a dela, impediu-a de o fazer. Agora que pensava nisso,
o que a rapariga havia escondido antes era, quase de certeza, outro desenho.
Tentando provar-lhe de que não iria vexá-la, disse, “Tens mesmo muito jeito”
“Não digas isso,
está terrível”, resmungou Sara, a maior crítica do seu trabalho. Aceitava que
um teste de inglês fosse desastroso, mas que um desenho lhe causasse dores nos
olhos só de o observar era demais. Por muito que lhe dissessem que estava lindo
ou outro adjectivo qualquer, nunca lhe parecia suficientemente bom, mas não perdia
a esperança de lá chegar com o tempo.
“Não acho”,
insistiu Tomás, fascinado com os pormenores do desenho, desde as garras do
dragão à réplica exacta da professora. Se ela não estivesse tão chateada,
ter-lhe-ia pedido para ver o que estava a desenhar antes.
Sara não costumava
levar a sério quando os outros a felicitavam pelo seu talento, mas sentiu um
sorriso formar-se-lhe no rosto quando Tomás o fizera. Talvez fosse o facto de
lhe parecer tão verdadeiro, talvez fosse o facto de ser uma raridade uma
demonstração de entusiasmo por parte dele. O que sabia era que a comovera. Naquele
dia, Afonso enviara-lhe uma mensagem a dizer que não a podia ir buscar porque
tinha algo para fazer, por isso aceitou o convite de Tomás para ir com ele e
com Leonor. Até compreendia porque é que Afonso não via outra coisa à frente
que não ela. Dando um abraço ao irmão, falou-lhe com a maior das simpatias,
nunca deixando de lhe agradecer, em voz baixa para que Tomás não ouvisse, o que
estava a fazer por ele.
Reparando que
Sara estava mais cabisbaixa que o costume, Leonor perguntou-lhe, “Pareces tão abatida,
está tudo bem?”
“Recebi um teste
que me correu mal mas não tem importância, corre melhor depois”, disse Sara,
embora fosse visível que não acreditava muito nisso.
“Era de quê?”,
questionou Leonor, curiosa sobre o que seria de tão maléfico que a deixava tão pouco
confiante. Ela própria sabia que tinha má relação com tudo o que não incluísse
números.
“Inglês”,
esclareceu Sara, como se a simples palavra lhe causasse enjoos. Ela não estava
a pensar em sair do país sequer, não havia motivo para aprender outras línguas.
“Olha, porque é
que o Tomás não te dá uma ajuda?”, convidou Leonor, apertando o braço ao irmão,
que olhou para ela como se tivesse acabado de sugerir que fosse sabotar os
travões do desportivo de Guida, “Podiam ajudar-se mutuamente, ele teve…”
“Sim, por mim
está bem”, interrompeu Tomás, impedindo-a de dizer a sua nota a Sara. Não sabia
como é que se iria meter nisso, nem sabia como é que a iria ajudar, mas a ideia
de ter um pretexto para passar mais tempo com Sara fizera o seu estômago dar
cambalhotas.
Já Sara
agradecia qualquer tipo de ajuda, mas duvidava que fosse surtir efeito, dado o
quão mau era o seu jeito para línguas. A perspectiva de ter explicações com
Tomás parecia-lhe estranhamente apelativa, mas justificou isso com o seu
desespero. Assim que se despediu de Leonor e de Tomás, em casa, abriu o caderno
no desenho que estava a fazer quando o rapaz a surpreendera. Quando se sentia
mais agitada tinha por hábito colocar a caneta no papel e simplesmente deixar a
mão fazer como entendesse, sem que se apercebesse ao certo do que estava a
fazer. Desenhar era a melhor maneira de se expressar, melhor que palavras. Daquela
vez desenhara-se, no meio de um grupo, com Tomás. Não era um cenário
propriamente feliz, ambos pareciam incomodados, mas senti-a um certo aconchego.