sexta-feira, 29 de março de 2013

Capítulo 9


Se havia algo que assegurava Tomás da sua orientação sexual, coisa de que ele não precisava, seria, sem dúvida os momentos passados no balneário que antecediam a hora de educação física. A seu ver, não havia nada de mais desagradável que estar encafuado numa sala pequena, abafada, húmida, cheia de uma dúzia de outros rapazes, todos eles semi-nus, isto quando não estavam mesmo despidos. Como se a visão de um colega seu, em tronco nu, a rodopiar a camisola por cima da cabeça não fosse inestética que chegasse, ainda tinha que se sentir exposto quando era a sua vez de trocar de roupa. Cerrando os olhos, tirou a camisola, vestindo, tão depressa como conseguiu, uma t-shirt velha. Até ele tinha que admitir que havia vindo a engordar nos últimos tempos, o que não contribuía para a sua auto-confiança.

Caminhando para o ginásio da escola com o passo atrasado devido ao sono que sentia por ser ainda de manhã, estava a lamentar não ter ficado a dormir, que era o que mais queria neste mundo até que Guida lhe frustrara os planos, quando, assomado por aquela sensação estranha no estômago que teimava fazer-se notar sempre que avistava Sara, viu a sua disposição melhorar assim que ela, já equipada, se juntou a ele, sorrindo, embora o seu sono, tal como o seu, fosse aparente, “Bom dia, Tomás”

Podia já ter passado semanas, semanas essas em que Tomás fizera um esforço que superara todas as expectativas, inclusive as dele próprio, por não repelir tudo e todos com as suas extravagâncias, mas o sorriso pouco convidativo ainda se fazia notar. Estava certo que os progressos não haviam sido imensos, mas considerando que duvidara de início que fosse capaz de os fazer, já se dava por muito realizado. Não era que desejassem a sua presença como se da segunda vinda do Messias se tratasse, mas já não sentia os olhares de tudo e todos em si, como se esperassem que fosse atacar alguém. No fundo, a crescente perda de poder deixava-o desamparado, pois não sabia como se adaptar à situação.

Em contrapartida, se começava a deixar para trás a sua maneira de lidar com a pressão a que era sujeito, aos poucos, ia encontrando em Sara, um porto seguro. Não se iludia, sabia que ela ainda criava uma certa distância entre ambos e que mantinha um pé atrás em relação a ele. Não a podia censurar, decerto que o episódio da faca a assustara, mas esperava que fossem tempo passados e que pudessem começar de novo. Mais do que a sensação de leveza que sentia junto dela, ou a cara a ferver, sentia que ia ficar tudo bem. Quando se sentia enervado por qualquer motivo, a rapariga conseguia surtir nele um efeito apaziguante, nem ele sabia como ao certo, mas sentia-se simplesmente bem junto a ela. Não era infalível, afinal Guida transtornava-o mais do que qualquer provocação dos colegas, mas ajudava-o e muito e, por isso, ele sentia-se grato.

Sara, na parte que lhe dizia respeito, sentia-se feliz por Tomás. Se a início se sentira apreensiva e, mesmo, assustada pela presença dele, com o decorrer do tempo e pelo facto de ele não lhe ter voltado a dar motivos para recear, conseguira sentir-se mais à vontade com Tomás, embora não ao ponto de lhe dar total confiança. Ainda tinha os acontecimentos do primeiro encontro com ele bem presentes na sua memória e sem dúvida que assim continuariam, mas agora conseguia empatizar com o rapaz, o que tornava mais fácil não o repelir imediatamente. Tendo em conta que, da última vez que tivera que ficara em casa de Tomás, tivera a oportunidade de voltar a presenciar a ira de Guida, a sua posição face ao rapaz apenas se fortalecera.

O certo era que se sentia profundamente dividida em relação a ele e, por muito que matutasse o assunto, conseguia acabar sempre mais confusa do que o que começara. Se, por um lado, temia que alguma coisa o fizesse perder a cabeça um dia e, se isso acontecesse, até onde iria ele, por outro, sentia que o devia ajudar, porque nem lhe parecia que fosse má pessoa, só que para ele as circunstâncias não haviam sido as mais desejáveis. A tendência do rapaz para se fechar cada vez que ela o via numa posição mais vulnerável magoava-a, mas mesmo nessas situações sentia-se disposta a arriscar e enfrentar o temperamento instável dele, o que, e ela bem sabia, não era a atitude mais sensata. Depois sempre se faziam notar aquelas ocasiões em que dava por si a corar junto a Tomás.

A impressão que sentia no estômago, sensação essa a que se viera a acostumar e que coincidia com os momentos em que via Sara, deu sinal de vida, fazendo com que demorasse uns segundo extra a reagir. Conseguira admitir a si próprio que nutria particular afeição por Sara, como é que poderia não ser assim quando ela, segundo lhe disseram, em bebé, tinha por hábito vomitar sempre que Guida lhe pegava ao colo? Quando o fez, dirigiu-lhe um sorriso, tão afável quanto conseguiu, mesmo estando ciente de que faria uma criança pequena chorar, e replicou, “Good Morning”

Não houve grande possibilidade de desenvolver uma conversa, uma vez que Cláudia, irrequieta como um Chihuahua cada vez que se encontrava próxima de Tomás, apareceu e, ignorando Sara, que olhava para todo o lado menos para ela, constrangida, se agarrou ao rapaz, que se limitou a deixar envolver num abraço desconfortável. Cláudia havia sido a única pessoa que nunca tivera, em tempo algum, medo dele, quando todos fugiam, e isso deixava-o confuso. Gostava da atenção, sem dúvida, mas aquela invasão ao seu espaço pessoal deixava-o numa posição dominada e com isso ele não podia. Estava para a afastar, quando viu Sara cumprimentar João com dois beijinhos. Vê-la desinibida a falar com João e sem qualquer preocupação em manter a distância, afectou-o mais do que esperava.

Cabisbaixo, dirigiu-se para o ginásio, onde o resto da turma já estava, com Cláudia ao seu lado e Sara e João atrás, sempre animados com a conversa, o que lhe fazia o sangue borbulhar. Como os lugares no banco estavam praticamente ocupados, acenou para que Sara se sentasse ao lado de Cláudia e João, que haviam conseguido um espaço. A rapariga, educada para recusar aqueles gestos em prol da cortesia, insistiu para que se sentasse ele, mas sem sucesso. Tomás limitou-se encostar à parede, optando por ficar de pé, e aproveitou para lançar um olhar presunçoso na direcção de João. Sara, embora sensibilizada pela delicadeza, não gostava de ser contrariada, mas parecia que não ia levar a sua avante.

Assim que a professora, uma mulher excessivamente musculada e carrancuda, apareceu, anunciou, com grande pena sua pois preferia obrigar a turma a fazer flexões, que a aula seria dedicada a danças latinas. Tomás, que sempre fora pouco adepto de actividades que implicassem mexer-se muito e uma aula encher parecia-lhe um calvário, aprovava a ideia de uma aula menos intensa. O que já não lhe parecia boa ideia era merengue, que coisa tão ridícula, ainda por cima ia ser a pares, o que o deixava desconfortável. Escolhendo os pares, que depois iriam trocar para que todos dançassem com todos, de modo a evitar comentários e atitudes parvas, a professora demonstrou o passo que iria fazer e ordenou que continuassem a praticar.

Ao constatar que Sara iria dançar com João, sentiu a sua irritação voltar, e vê-los, a rir enquanto tentavam acertar com os passos, aniquilou a satisfação que sentira com o gesto que fizera ainda há uns cinco minutos atrás. Procurando ignorá-los, dirigiu-se ao seu par, que olhava para todo o lado como se alguém a pudesse tirar dali e depressa. Mas ninguém a poupou a fazer par com Tomás e, depois de um grito da professora para que começassem, não teve outra alternativa. Se não estivesse tão determinado em fazer a vontade a Leonor e a construir uma nova imagem, teria aproveitado a situação para assustar a colega, fazendo algo de perturbante. Como estava, de facto, a fazer por melhorar, pôs, com alguma pena, de parte a ideia de gozar um pouco e estendeu a mão para a colega.

A rapariga, hesitante, colocou-lhe uma mão no ombro e deu-lhe a outra, tal como a professora lhes indicara. Quando ele lhe pôs a mão na cintura, quase sentiu a pele a arrepiar-se por baixo do toque dele. O nervosismo da colega foi bem aparente a Tomás, que teve que se conter para não lhe dirigir um dos seus olhares característicos. Mantendo uma expressão neutra, percorreu o esquema que era suposto fazerem, sem reparar que a colega, muito mais baixa que ele, precisava de dar dois passos para acompanhar um dele. Quando a professora ordenou que trocassem de par, o cenário foi, em tudo, análogo, nenhuma colega estava radiante por dançar com ele, mas abstiveram-se de exteriorizar a sua má vontade. A situação alterou-se quando foi a vez de Cláudia.

A rapariga, que havia passado a aula em ânsias por que a vez dela com Tomás chegasse, mas cabia em si de entusiasmo quando o momento chegou. Agarrando-se a ele como se tivesse medo que ele fosse fugir, aproximou-se tanto dele que lhe conseguia contar as poucas sardas que lhe sobravam do Verão nas maçãs do rosto. Tomás, pouco habituado a grandes proximidades, engoliu em seco. Cláudia podia ser irrequieta e estridente, mas, era das raparigas mais desenvolvidas da turma e isso ele apreciava. A forma como Cláudia olhava para ele, como se estivesse a ver uma celebridade, sabia-lhe muitíssimo bem, visto gostar da sensação de ser quase venerado, por isso, não lhe custou provocar um pouco a rapariga, piscando-lhe o olho.

Cláudia, como previsto, acabou a trocar os passos, de tão derretida que ficou. Era opinião geral das raparigas da turma que Tomás era bem-parecido, embora todas preferissem manter uma distância considerável dele, uma vez que era uma figura demasiado extravagante para que não tivessem um pouco de medo que fosse. Mas ela não via porquê, ele era, na sua opinião, adorável, um pouco estranho sim, mas isso só o tornava mais misterioso e atraente para ela. Não esperava que ele, que sempre se distanciava um pouco quando ela não resistia a exteriorizar o seu fascínio, fosse fazer um gesto assim. Em bom rigor, tinha-se apercebido que ele, de Sara já não se afastava e ela parecia estar bem com isso, o que provocava acessos de ciúmes a ela, Cláudia, tanto que já pensou em ter uma conversa com Sara, para deixar bem claro que Tomás era território seu. Entretanto, desfrutaria da oportunidade de dançar com ele.

Pouco depois, o apito da professora ecoou pelas paredes do ginásio, avisando-os de que estava na altura de trocarem de par. Cláudia emitiu um queixume longo quando estava na altura de largar o rapaz, mas depressa recuperou quando ele lhe voltou a piscar o lho. Tomás, divertido ao ver o ar de deslumbre da rapariga, riu-se, até que viu que era a sua vez de dançar com Sara. O sorriso esmoreceu, de tão nervoso que se sentiu, embora não tivesse razões para tal, já dançara com a turma toda e mais nenhuma rapariga o desconcertara daquela maneira. Embasbacado, pegou na mão de Sara, engolindo em seco quando ela lhe colocara a outra no ombro. Procurando não a encarar, porque já sentia a cara quente que chegasse, olhou para tudo menos para ela.

A rapariga, quando soube que era a sua vez de dançar com o rapaz, sentiu-se mais ansiosa do que gostaria de admitir. Foi com alguma pena sua que o viu despir-se de toda a simpatia com que tratara Cláudia para nem sequer olhar para ela, sendo seco durante todo o tempo que o esquema durou. Perguntava-se se teria feito alguma coisa para o aborrecer ou se, para ele, era um martírio dançar com ela. Se já se sentia mal por, de cada vez que olhava para ele, o ver decidido a não olhar para ela, ainda ficou pior quando ele, mal a dança acabou, a largar tão depressa como se ela estivesse a escaldar. Não sabendo o que se passava com ele, voltou para o pé de João, que ao menos era simpático.

“Passa-se alguma coisa?”, perguntou João, ao ver Sara com uma expressão abatida. Na sua opinião, ter de dançar com Tomás deixaria qualquer uma de mau humor, mas sendo a rapariga, custava-lhe. Ainda para mais, ela parecia gostar de estar com Tomás, o que o enraivecia, já que não gostava do rapaz e ele canalizava a atenção de Sara, quando ela podia estar a falar com ele, João. Não suportava ver Sara triste e faria tudo o que estivesse ao seu alcance para a animar. Recorrendo ao seu maior talento, troçar, algo em que era muito bom, sobretudo tratando-se de Tomás, disse, propositadamente alto para ele ouvir, “Até estou surpreendido por o terem posto a fazer par com uma rapariga, com umas mamas daquelas o gordo parece uma menina”

Tomás, ao ouvir o que João proferira, sentiu-se tão humilhado que não conseguiu fazer nada. O que o poupou foi Sara, que não achou graça, ter acudido, sem saber que o rapaz a conseguia ouvir, “João! Pára com isso, gostavas que ele te chamasse pauzinhos?”

Sara conseguiria sempre surtir um efeito animador, ainda que o orgulho do rapaz o fizesse ressentir-se por necessitar de ser defendido quando preferia ser ele a encarnar o papel de cavaleiro andante. Talvez assim ele conseguisse dar a tal boa imagem que desejava havia algum tempo, mas os planos saiam sempre frustrados. Aquela vez não fora excepção. Podia tê-la feito sentir-se mais à vontade quando dançaram, mas, não sabia porquê, sentiu-se acanhado e deu a impressão errada. Não obstante, a rapariga encontrava sempre forma de o fazer sentir-se bem, como se o que quer que o estivesse a incomodar fosse passar.

Porém, tinha que dar uma certa razão ao colega, Guida, inclusive, já lhe dissera, de forma directa, que estava a precisar de um soutien, mas custava sempre. Antes de ter ingressado na escola primária até era de constituição normal, ainda que sempre maior do que a maioria dos colegas, mas em altura e não em largura. Entretanto, ganhara, progressivamente, peso e havia vindo a ser alvo de comentários por parte dos colegas, mas sempre nas costas porque nenhum se atrevia a dizer-lhe isso e impor medo era coisa que lhe sabia bem. Se não podia fazer nada quanto aos ataques de Guida, podia transferir a sua raiva para os colegas. Desde a primária que assim era, sem que alguém o defendesse ou pensasse nele como o Tomás, em vez de “aquele gajo esquisito”.

Sentindo uma onda de afecto pela rapariga, o rapaz fez tenções de lhe mostrar que se sentia agradecido pelo que ela havia vindo a fazer por ele, o que constituía um grande esforço da sua parte por engolir o orgulho e as suas pretensões. Assim que terminaram a aula, Tomás conseguiu um pouco da atenção de Sara, sem que João ou Cláudia se intrometessem e disse-lhe, “Obrigado…por me teres defendido quando o João disse aquilo”

A rapariga foi apanhada de surpresa. Achava que o rapaz se sentia aborrecido com ela por algum motivo, afinal fora tão pouco amigável quando fizeram par. Além de que demonstrações de humildade e gratidão por parte dele eram escassas, pois ele nunca deixava que o vissem mais vulnerável. Assim, não conseguiu continuar magoada com ele e acabou por sentir afecto por ele, como se fosse alguém por quem lhe coubesse zelar. Retribuindo a gentileza, respondeu, calorosamente, “Oh não tens de quê”

“Sara, temos que ter uma conversa”, interrompeu Cláudia, fulminando-a de tal maneira com o olhar que quase a reduziu a pó. A sua expressão apenas se suavizou quando se virou para Tomás, “Não te importas de nos dar privacidade, não?”

Assim que viu o rapaz a distância suficiente para que não ouvisse nada do que estava prestes a dizer, continuou, num tom gélido que arrepiou Sara, “O que é que pensas que estás a fazer?”

A rapariga, se antes estremecera com o tom que a amiga usara, agora sentia-se confusa. Ainda puxara pela memória mas não se lembrou de nada que tivesse feito que fosse aborrecer Cláudia, estava de consciência tranquila, portanto. A amiga estava determinada a esclarecer a Sara o que a corroía, insistindo, “Achas que eu não vi que estavas a fazer olhinhos ao Tomás?”

“Deves estar parva”, contra-atacou a rapariga, indignada. Nunca gostara de ouvir rumores, ainda que não a incluíssem de maneira nenhuma, quanto mais ser ela alvo de tais insinuações. Não desejava nada mais do que a deixassem em paz e, portanto, recusava-se a alimentar mexericos, sobretudo se isso fosse criar atrito entre ela e uma boa amiga sua. Querendo colocar um ponto final na conversa disse, “Não lhe estava a fazer olhinhos e agradecia que parasses com isso”

“Óptimo”, sibilou Cláudia, finalizando a conversa de forma tão ríspida que Sara ficou boquiaberta, sem reacção. Ou melhor, não ficou indiferente à troca de palavras, tanto que sentiu uma raiva inexplicável tão intensa que a fez ranger os dentes, apanhando-a, a ela própria, desprevenida. Incerta do motivo que desencadeara aquela irritação, justificou-a com o desagrado que sentia por intrigas e fez por esquecer o assunto.

O riso de João era como um quadro de ardósia a ser arranhado aos ouvidos de Tomás, que ainda não olvidara a ousadia que ele tivera ao gozar com ele. Se ele achava que ia escapar impune, estava enganado, isso era certo. Quando João se afastara do resto dos colegas para ir beber água, Tomás viu a sua oportunidade de lhe lembrar quem metia respeito. Agarrando-o pelo colarinho da camisola, sem qualquer aviso prévio, agitou-o como se de um boneco se tratasse e, levando um momento para saborear o pânico nos olhos do outro, o que constituía uma visão agradabilíssima para si, rosnou-lhe, “Agora já não gozas, pois não?”

De tão assustado que se sentiu, João, que teria gritado se fosse capaz, sentiu o fôlego esmorecer-se-lhe na garganta. Não era apenas a diferença de tamanho que o fazia ficar apavorado, era mais o brilho sinistro nos olhos de Tomás, como se, naquele momento, fosse capaz de fazer alguma loucura. Antes de cair dobrado sobre si mesmo, sentiu o rapaz desferir-lhe um soco no estômago. Ainda no chão, contorcendo-se com dores, viu Tomás afastar-se, dizendo, “Só para que não te esqueças onde é o teu lugar”

Agora que descarregara alguma da sua frustração, o rapaz podia encarar o dia com novo alento. Tendo em conta que a próxima aula era Português e, nessa aula, a professora decidira sentá-los por ordem alfabética, de forma a colmatar o mau comportamento da turma, estaria sentado com Sara, o que lhe dava um ânimo ainda maior. Assim, como a rapariga tinha pouco interesse naquela aula e estava sempre disposta a conversar, sempre o podia fazer sem ter os dois apêndices atrás. Tentando distrair-se do par de boxers de higiene duvidosa atirado do outro lado do balneário e que fora parar ao pé de si, vestiu-se tão depressa quanto possível e saiu dali, já atrasado para a aula seguinte, como acontecia sempre que tinham educação física antes.

Se pudesse, teria passado pelo bar para comprar um croissant, pois estava esfomeado. Mesmo que não estivesse, saber-lhe ia bem comer. E depois perguntava-se porque é que a roupa estava tão justa…Puxando a cadeira que estava ao lado de Sara, que se despachava sempre depressa, sentou-se. A sua súbita presença assustou a rapariga que estava debruçada sobre o caderno, absorta no seu trabalho. Sossegando-a, disse, “Sorry, I didn’t mean to startle you…”

Sara limitou-se a acenar-lhe e a continuar o seu trabalho, tendo o cuidado de colocar o braço de modo a que ele não pudesse ver, embora não tivesse sido subtil o suficiente e tivesse acabado por chamar à atenção de Tomás. Vendo um pretexto para conversar, o rapaz, com um sorriso, tentou, “O que é que estavas a fazer?”

“Oh nada”, respondeu a rapariga, sorrindo, também, embora tivesse aberto o caderno noutra página, para que ele não pudesse ver. Pelo menos parecia que Tomás esquecera o que quer que ela tivesse feito para o incomodar e estava de novo a tentar ser amigável, o que a descansou. Não sabendo se devia, ou não, perguntar se tinha feito algo, achou que era melhor fazê-lo, ainda que isso pudesse deixar o rapaz de novo de mau humor, assim podia evitar repetir o erro no futuro, “Há bocado quando tivemos que dançar os dois parecias chateado, aconteceu alguma coisa, o João chateou-te mais?”

“Hm? Não…”, disse Tomás, encolhendo os ombros. João estava no outro extremo da sala a fuzilá-lo com o olhar, mas, a seu ver, isso era a confirmação de que a conversa que ambos tiveram havia servido para colocas os pontos nos I’s. Não querendo desperdiçar momentos preciosos com Sara a falar de João, insistiu, “Não era preciso teres deixado o que estavas a fazer por minha causa”

“A aula está quase a começar, de qualquer forma”, justificou-se a rapariga. Bem dito e bem feito, a professora entrou, batendo com o livro de ponto na mesa, o que fez com que a turma se calasse, ficando a sala tão silenciosa que dava para ouvir as infiltrações a pingar no canto.

“Estão animados os meninos, é?”, ironizou a professora, quebrando o silêncio, sendo notório a satisfação que sentia, “Vamos lá ver se continuam depois de verem as vossas notas”

Juntando o gesto à palavra, começou a chamar, um a um, para que fossem à sua secretária buscar o teste. Cláudia, das primeiras, voltou mais pálida do que fora. João limitou-se a suspirar de alívio quando constatou que não tinha tirado negativa. Sara não se sentia muito preocupada, uma vez que o seu calcanhar de Aquiles era línguas estrangeiras, sobretudo o inglês que não entendia nem por nada. Quando chegou a sua vez, viu um “85%” e sorriu. Já dava para deixar Daniela contente.

Tomás, a quem o teste tinha corrido pior que mal, viu o esgar da professora tornar-se num de náusea quando lhe entregou a prova. Erguendo o sobrolho, pegou na folha, desinteressadamente. Assim que viu a nota, ele que não se preocupava minimamente com a escola, conseguiu ficar arrepiado. Tinha sido mesmo muito mau, ainda pior do que pensava. Em sua defesa, sempre falara outra língua durante toda a sua existência, com excepção do que falava em casa, mas isso era muito pouco. A única coisa que o preocupava era que Guida havia de lhe perguntar pelo teste e aí iria haver sangue, mas com sorte talvez a convencesse que as notas iam de zero a vinte.

Voltando ao seu lugar, tentou rir para aligeirar o ambiente quando a rapariga lhe perguntou que tal se saíra. Não queria mesmo que Sara pensasse que ele era limitado ou alguma coisa do género, mas não teve como contornar a pergunta, respondendo, “Digamos que vou ter que deitar fora o teste depressa ou a minha mãe não me vai dar paz”

“Vais ver que no próximo sobes isso, não te preocupes”, disse a rapariga, dando-lhe uma palmadinha nas costas, “A seguir recebemos o de inglês e de certeza que foste óptimo nesse”

Para mal dos seus pecados, parecia a Sara que não tinha ganho aptidões para línguas do ano passado para aquele. Pelo menos Daniela já sabia o que é que a casa gastava, portanto não a repreenderia como se não houvesse amanhã. Dobrando o enunciado, visivelmente chateada, ouviu a professora felicitar Tomás, que tivera uma classificação perfeita. O rapaz a quem o teste parecera brincadeira, não conseguiu sentir-se propriamente consolado, afinal se não o tivesse resolvido a 100% seria grave. Sentando-se ao lado da rapariga, viu-a, aborrecida, a desenhar algo no caderno, com tanta força que quase rasgara as páginas. Espreitando por cima do seu ombro, viu o desenho de um dragão a incendiar a professora. Mais do que cómico, o esboço pareceu-lhe fantástico, mesmo muito bem feito, com uma linha cirurgicamente precisa.

“Wow”, pronunciou-se ele, fazendo com que Sara corasse e tentasse esconder o desenho. Colocando uma mão sobre a dela, impediu-a de o fazer. Agora que pensava nisso, o que a rapariga havia escondido antes era, quase de certeza, outro desenho. Tentando provar-lhe de que não iria vexá-la, disse, “Tens mesmo muito jeito”

“Não digas isso, está terrível”, resmungou Sara, a maior crítica do seu trabalho. Aceitava que um teste de inglês fosse desastroso, mas que um desenho lhe causasse dores nos olhos só de o observar era demais. Por muito que lhe dissessem que estava lindo ou outro adjectivo qualquer, nunca lhe parecia suficientemente bom, mas não perdia a esperança de lá chegar com o tempo.

“Não acho”, insistiu Tomás, fascinado com os pormenores do desenho, desde as garras do dragão à réplica exacta da professora. Se ela não estivesse tão chateada, ter-lhe-ia pedido para ver o que estava a desenhar antes.

Sara não costumava levar a sério quando os outros a felicitavam pelo seu talento, mas sentiu um sorriso formar-se-lhe no rosto quando Tomás o fizera. Talvez fosse o facto de lhe parecer tão verdadeiro, talvez fosse o facto de ser uma raridade uma demonstração de entusiasmo por parte dele. O que sabia era que a comovera. Naquele dia, Afonso enviara-lhe uma mensagem a dizer que não a podia ir buscar porque tinha algo para fazer, por isso aceitou o convite de Tomás para ir com ele e com Leonor. Até compreendia porque é que Afonso não via outra coisa à frente que não ela. Dando um abraço ao irmão, falou-lhe com a maior das simpatias, nunca deixando de lhe agradecer, em voz baixa para que Tomás não ouvisse, o que estava a fazer por ele.

Reparando que Sara estava mais cabisbaixa que o costume, Leonor perguntou-lhe, “Pareces tão abatida, está tudo bem?”

“Recebi um teste que me correu mal mas não tem importância, corre melhor depois”, disse Sara, embora fosse visível que não acreditava muito nisso.

“Era de quê?”, questionou Leonor, curiosa sobre o que seria de tão maléfico que a deixava tão pouco confiante. Ela própria sabia que tinha má relação com tudo o que não incluísse números.

“Inglês”, esclareceu Sara, como se a simples palavra lhe causasse enjoos. Ela não estava a pensar em sair do país sequer, não havia motivo para aprender outras línguas.

“Olha, porque é que o Tomás não te dá uma ajuda?”, convidou Leonor, apertando o braço ao irmão, que olhou para ela como se tivesse acabado de sugerir que fosse sabotar os travões do desportivo de Guida, “Podiam ajudar-se mutuamente, ele teve…”

“Sim, por mim está bem”, interrompeu Tomás, impedindo-a de dizer a sua nota a Sara. Não sabia como é que se iria meter nisso, nem sabia como é que a iria ajudar, mas a ideia de ter um pretexto para passar mais tempo com Sara fizera o seu estômago dar cambalhotas.

Já Sara agradecia qualquer tipo de ajuda, mas duvidava que fosse surtir efeito, dado o quão mau era o seu jeito para línguas. A perspectiva de ter explicações com Tomás parecia-lhe estranhamente apelativa, mas justificou isso com o seu desespero. Assim que se despediu de Leonor e de Tomás, em casa, abriu o caderno no desenho que estava a fazer quando o rapaz a surpreendera. Quando se sentia mais agitada tinha por hábito colocar a caneta no papel e simplesmente deixar a mão fazer como entendesse, sem que se apercebesse ao certo do que estava a fazer. Desenhar era a melhor maneira de se expressar, melhor que palavras. Daquela vez desenhara-se, no meio de um grupo, com Tomás. Não era um cenário propriamente feliz, ambos pareciam incomodados, mas senti-a um certo aconchego.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Capítulo 8


Depois de ver as suas expectativas que, se haviam vindo a inflacionar, frustradas, Afonso teve que se mentalizar que a realidade acabara por ser bem diferente, por muito que isso lhe custasse. Ainda não se encontrava completamente convencido com a justificação de Leonor, nem sabia ao certo porquê, mas tinha a sensação de que ela não lhe contara toda a verdade. Podia dar-se o caso de ter sido uma desculpa para lhe dizer que o sentimento não era recíproco sem o magoar muito, como, também, podia ser a pura verdade, isso ele não sabia nem tinha como saber sem que ela lhe dissesse. O que sabia era que a rapariga não queria nada com ele que não fosse amizade e, portanto, orbitar em torno dela apenas o faria parecer chato, além de que poderia fazer com que, possivelmente, estragasse o que tinham e isso ele não desejava.

Desde aquele episódio que havia decorrido algumas semanas, semanas essas em que Afonso deixara de a convidar fosse para o que fosse, mantendo a interacção entre ambos tão ligeira quanto conseguira. Em bom rigor, nada fizera para que a situação fosse assim, e tal vez fora esse o problema, a sua inércia, bem como a de Leonor, que causara que se fossem afastando um pouco. No entanto, admitia que os momentos em que, por acaso, a via, o faziam feliz. Por vezes encontrava-a quando ia ao ginásio, ou quando ia passear Mocas, além de uns vislumbres rápidos pelos corredores da escola, mas a interacção entre ambos ficava-se por uma conversa fugaz, um tanto toldada pelo constrangimento de ambas as partes, o que custava profundamente ao rapaz.

Rúben, de vez em quando, propunha apresentar-lhe uma rapariga nova, como se assim Afonso fosse pôr o sucedido por de trás das costas e, embora este agradecesse os esforços do amigo, não queria, pelo menos tão cedo, desistir. Conseguira aproximar-se de Leonor, gostava genuinamente da companhia dela e achava que, se não conseguisse vir a ter algo mais com ela, a sua amizade bastar-lhe-ia, com algum custo, mas já se daria por muito grato. Assim, a última coisa que queria, era que se afastassem, mas receava insistir, não fosse retraí-la. Havia tanta coisa que gostava de lhe poder perguntar, como ia a vida desde a última vez que puderam falar a sério, se já se habituara mais à nova rotina…no fundo, adoraria poder passar algum tempo com ela, contudo, tinha medo de ouvir um grande e incontornável não, por isso resignara-se a estar à mercê da sorte.

Claro que o velho dito popular “Quem espera sempre alcança” mostrou-se verdadeiro e, numa tarde fria de Outono que dava indícios de estar prestes a ser sucedida pelo Inverno, quando levava Mocas a dar o seu passeio, viu o seu desejo concedido. Visto estar desagradável longe do aconchego da sua casa, Afonso achou por bem levar o cão a passear pela floresta, onde as árvores sempre serviriam de resguardo às rajadas de vento frio. Verdadeiramente falando, nem o levaria a passear se não sentisse que o seu animal de estimação, companheiro desde havia bastante tempo, já idoso, não estaria por ali muito tempo e, assim, todo o tempo que conseguisse passar com ele era precioso.

Trilhando os altos e baixos do caminho por entre as árvores, ligou o piloto automático, enquanto matutava sobre o que ainda tinha para fazer nos tempos mais próximos. A temporada de rugby ia bem, decididamente melhor do que a do ano passado em que sofreram muitas baixas por parte de vários colegas da equipa, e ele encontrava-se na sua melhor forma, ao menos quanto a isso podia estar descansado. Se a sorte estivesse do seu lado podia ser que para o ano o convocassem para a selecção nacional, ainda que não se tivesse na conta de assim tão bom, mas podia sonhar. Fora isso, as aulas corriam-lhe igualmente, embora a Dona Adelaide lhe fosse, como à semelhança dos outros anos, estragar a média, mas preferia manter o optimismo.

Tão distraído estava, que não notou por onde ia, até que o relinchar de um cavalo o fez acordar do seu torpor. Assustado com o cavalo, Mocas, no derradeiro esforço para um animal cujos tempos de glória haviam sido há alguns anos, desatou a ladrar, irado. Os latidos do cão acabaram a provocar o cavalo, que, descontrolado, relinchava, apoiando-se nas patas traseiras. Afonso, temendo o pior, puxou Mocas para trás, segurando-o pela coleira, de modo a impedir que ele se aproximasse. Por sua vez, a pessoa que montava o cavalo conseguiu, depois do que lhe pareceram horas a segurar-se para não cair do dorso do animal espavorido, acalmá-lo, até que pudesse desmontar em segurança. Segurando o cavalo pelas rédeas, Leonor, visivelmente agitada, disse, “Para a próxima mantém o cão longe daqui, por pouco não caí”

A última vez que vira a rapariga tinha sido havia algum tempo e, agora que, por fim, a via, era numa situação que tivera tudo para correr mal e só não correra fosse-se lá saber como. Afonso, se pudesse, cavaria um buraco para se enfiar e não mais voltar. Tornando-se vermelho como um semáforo, ao ponto de sentir que poderia entrar em combustão espontânea, balbuciou, embaraçado, qualquer coisa imperceptível que, com alguma criatividade, Leonor poderia ter interpretado como “desculpa não volta a acontecer, por favor não me crucifiques”. O que o salvou foi o facto de a rapariga não conseguir ficar indiferente ao seu ar de cachorrinho abandonado, tanto que, depois de atar as rédeas do cavalo a um poste, foi ter com ele, “Desculpas aceites, não se fala mais nisso”

“Ele costuma portar-se bem, mas deu-lhe para isto”, justificou o rapaz. Era o seu animal de estimação e já estava habituado a que pensassem que fosse problemático por causa da raça, mas escolhera uma péssima oportunidade para arranjar problemas. Mas tinha que dar o desconto, já não ia para novo. Era melhor ir embora não fosse enterrar-se ainda mais. Assim, decidiu-se a, tendo em conta que a conversa não estava a ser, de todo, aprazível, bater em retirada enquanto podia. Não deixando que o rubor, que havia vido para ficar, lhe dificultasse a vida, continuou, “Acho que vou andando, desculpa mais uma vez e ver-te foi, ahm, bom”

Não via Afonso havia algum tempo, não sabia como, mas ele arranjara maneira de desaparecer do seu circuito, fora a ocasião esporádica em que se cruzavam no ginásio ou no parque. Por um lado, ainda bem que a convivência entre ambos diminuíra e muito, sempre a poupava a constrangimentos e, acima de tudo, invalidava a hipótese de ele tentar insistir. Por outro, tinha, genuinamente, saudades dele, de quando iam almoçar em dias de aulas, ou quando iam buscar os irmãos. Era uma companhia de que gostava bastante, mas estava consciente que era melhor afastarem-se um pouco, a bem de ambos. Ainda assim, quando o viu afastar-se, foi assomada por uma sensação de saudade, tão forte que não se conteve, “Espera…”

Apanhado de surpresa, Afonso fitou, ora Leonor, ora a mão desta no seu braço. Não era preferível ele sair dali e deixá-la continuar o seu passeio a cavalo, do que continuar a ocupar o tempo dela? Se dependesse de si, estariam a pôr a conversa em dia e, de preferência a retomar onde ficaram naquela noite, mas sabia que tal coisa não aconteceria de forma alguma. Não sabendo mesmo o que pensar, esperou que ela dissesse ao certo o que se passava, mas, para grande frustração sua, a rapariga limitou-se a largá-lo, “Nada…não é nada”

O rapaz não ficou convencido. Se não fosse, de facto, nada, não o teria feito, a não ser que estivesse a enxotar um insecto do braço dele, o que, dado o medo de Leonor de tudo o que fosse rastejante e peludo, era improvável. Deixando o receio assumir a posição passiva, algo que, ao contrário do que é habitual nele, tem vindo a acontecer uma e outra vez sempre que se trata da rapariga, insistiu, “De certeza que não é nada?”

“Desculpa, não é mesmo nada”, disse Leonor, embora fosse aparente na sua voz um laivo de hesitação. A situação conseguira deixá-la mais do que abalada, mas sabia que era o melhor e, portanto, teria que aguentar, por muito que não lhe agradasse. Ainda ponderou falar simplesmente com Afonso, como dois amigos, mas temia que uma reaproximação fosse complicar o que era, afinal, uma situação mais tranquila.

“Está bem então…”, murmurou o rapaz, não só desencorajado, como abatido. Por muito que gostasse de desenvolver a conversa, nada podia fazer de a rapariga não queria falar, só lhe restava resignar-se. Estava prestes a despedir-se quando Mocas, fosse-se lá saber porquê, aproximou-se de Leonor, afável, esquecido da sua exaltação de havia uns minutos para lá. Sucumbido aos pedidos de festinhas de Mocas, que se fizeram saber sob a forma de marradinhas na sua mão, a rapariga afagou a cabeça possante do animal, deliciado. Gostava de animais, ou não praticasse ela equitação de vez em quando. No que dizia respeito a animais de estimação, tinha Rosa, a cadela Bulldog mais atarracada de todos os tempos. Podia não causar guinchinhos derretidos por parte de quem a visse, mas era a menina de Leonor.

Vendo o cão deitar-se, para que Leonor lhe fizesse festinhas na barriga, Afonso, aliviado por Mocas não ter, ao invés, decidido fazer algo embaraçoso como agarrar-se à perna da rapariga, brincou, “Vês, ele está arrependido por ter ladrado!”

“ Ele é tão fofo”, disse Leonor, sem nunca deixar de dar atenção ao cão insaciável. Não se teria importado de dar o mesmo tratamento ao dono, não senhora. Abanando a cabeça, afastou o pensamento estúpido, voltando a concentrar-se em Mocas que, ao sentir que ela o ignorara, começou a agitar as patas no ar, em sinal de protesto. Fazendo a vontade ao animal, comentou, “Que coisa mais adorável”

“Olha como é que ele era”, respondeu o rapaz, que não pedia uma oportunidade para exibir Mocas, o rottweiller, passando à rapariga o seu telemóvel. O seu cão era manso que nem um cordeiro e tão medroso que se escondia atrás dos sofás quando ouvia um avião passar, mas Afonso tinha uma certa satisfação em ter um cão de uma raça conhecida por ser feroz, com a particularidade de ser manso.

Pegando no aparelho, Leonor viu uma fotografia, como papel de parede, onde figurava Afonso, quando tinha cerca de seis anos, a dar um abraço a Mocas. A imagem do rapaz, quando ainda tinha o ar mais angelical imaginável, tão enternecedor que parecia inacreditável, com o cão, consideravelmente maior que ele, quando ainda tinha o pelo brilhante e era imponente, deu-lhe a conhecer um novo significado de adorável.

A fotografia trouxe-lhe à memória uma que tinha em que estava com o rapaz, ainda Tomás e Sara não eram nascidos, tirada num parque, onde costumavam brincar. Uma recordação que conservara desde então era aquela vez em que trepara a uma árvore e, depois de se sentir muito realizada com o seu feito, quando viu a altura a que estava, teve medo de descer. O rapaz, já na altura, muito paciente, conseguiu sossegá-la ao ponto de ela arriscar descer. Claro que acabou por escorregar e cair em cima dele, ficando Afonso com o braço esfolado e ela sem mais do que um susto, mas ficou, desde então, tocada pelo gesto. Só não o iria lembrar disso. Não se contendo, brincou, “Parecias um daqueles anjinhos das fontes, aqueles que fazem xixi”

“Não parecia nada!”, replicou o rapaz, corando até à raiz dos cabelos, indignado. Já lhe haviam dito muita coisa, tendo tido a alcunha de “ovelha” no jardim de infância devido aos caracóis, mas aquilo nunca. Entretanto, com o passar dos anos e a sua inabilidade com membros do sexo oposto, evoluíra para, por cortesia de Rúben e do resto da equipa, “ovelha negra”. Querendo retaliar, desafiou, “Então mostra lá tu uma foto de como eras!”

“Pronto, está bem”, cedeu Leonor, ainda a rir-se. Ao sentir o vento frio acrescentou, “Mas lá dentro está mais agradável”

Não necessitando de ouvir o convite de novo, Afonso seguiu-a até ao estábulo, ansioso por prolongar a conversa, porém não pôde entrar porque ainda tinha Mocas consigo, mas não se conteve de observar de longe todos e quaisquer gestos que ela fazia, por mais pequenos que fossem. Sentindo um nó na garganta, tão forte que era quase doloroso, perguntou-se como é que alguém podia ser tão perfeito. Era mesmo algo de maravilhoso, na sua opinião muito pouco imparcial. De tão distraído que ficou a contempla-la, só acordou quando ela, confusa, o chamou. Atando Mocas à porta do café que ficava ao lado do centro hípico, murmurou para o cão, certo de que ele o compreenderia, “Vá Mocas, vou tentar não demorar muito, está bem?”

Mocas lambeu-lhe a mão, como se pretendesse dar-lhe a sua aprovação. Aninhando-se num canto mais resguardado do vento, o cão, sempre prazenteiro, deitou-se, o que acalmou a culpa do rapaz por o deixar à sua espera. Voltando para dentro, encontrou Leonor já sentada, aguardando por ele. Para seu alívio, a interacção entre ambos não estava a ser constrangedora nem desconfortável, quem os visse de fora diria que nunca havia acontecido nada. Reconfortado, puxou uma cadeira e sentou-se, tentando não olhar demasiado para a rapariga, por muito que adorasse.

Leonor, se a início sentira um certo desconforto por se ver numa situação em que não conseguira fugir a ter que dar conversa a Afonso, passara pela fase das saudades e da nostalgia, agora, vendo-o tão feliz por ter alguma da sua atenção, começava a sentir a culpa a tornar-se cada vez mais difícil de ignorar. Quando tomou conscientemente a decisão de criar distância entre ambos, pensou que ele fosse ficar magoado por uns tempos mas que depois fosse esquecer. Certo que, de vez em quando, deparara-se com um par de olhos tristonhos a fitarem-na, mas não assumiu que fosse nada por aí além. Agora via-o tão contente que a fazia sentir uma onda de ternura para com ele, tanto que se chegou mesmo a perguntar como é que fora capaz de se afastar.

Coibindo-se de conter qualquer demonstração de afecto que traduzisse o carinho que sentiu naquele momento, o que coincidiu com a ocasião em que Afonso parara de falar, afagou-lhe a mão. O rapaz, por sua vez, conseguiu conter a sua primeira reacção que seria saltar até a cabeça tocar no tecto em prol de não fazer com que a rapariga se retraísse e tirasse a mão. O que escapou ao seu controlo foi a tonalidade com que as suas bochechas ficaram, mas aparentemente isso conseguira um sorriso por parte de Leonor. Se, por acaso, se tratasse de outra pessoa, ele teria retirado a mão, afinal ela afastara-se porque quisera e ele respeitava isso, mas a rapariga impossibilitava qualquer pensamento coerente.

Apesar de tudo, o gesto não levou a embaraços por parte de nenhum deles. Se a rapariga, por um lado, pôde demonstrar como se sentia naquele momento, o rapaz, teve direito a uma das raras expressões de carinho por parte dela, o que para ele significava imenso, por muito pequeno que esse gesto pudesse parecer. Afonso, chamando a si uma dose de sangue frio, conseguiu, não só retribuir, como acabar por lhe dar a mão. Nem o facto de não terem sido trocadas palavras durante todo aquele momento o contaminou com desconfortos, era como se estivesse tudo dito e não fosse necessário acrescentar fosse o que fosse.

Para constrangimento de ambos, o empregado, uma figura afável e conversadora, interrompeu-os, primeiro para lhes perguntar o que queriam tomar, depois para os servir e meter conversa. Por muito simpático que Chico fosse e por muito que gostasse da companhia dele em dias em que ele tinha pouco que fazer e se podia dar ao luxo de dar dois dedos de conversa, Leonor achava que ele não podia ter pior sentido de oportunidade. Afonso, porém, parecia estar a fazer um esforço herculeano para lhe sorrir. Quando, por fim, os deixou entregues aos seus cafés, já eles tinham quebrado o contacto havia algum tempo. Receando que se seguisse um silêncio desconcertante, o rapaz disse, rindo-se, “E a tal fotografia que me ias mostrar?”

Leonor não estava nada à espera daquela tirada, tanto que começou a rir. Assim que se recompôs, lá tirou o telemóvel e, depois de um minuto à procura, a sua busca deu resultado e mostrou a Afonso uma fotografia sua, não devia ter mais de seis anos na altura. O rapaz, enternecido com as bochechas de criança que Leonor tinha então, mas que entretanto perdera, constatou que afinal, quem estava no colo dela, era, nada mais, nada menos, do que Tomás, sem o ar assustador que tinha actualmente. Azedo, pensou “também está com um cão ao colo”, mas o que acabou por dizer foi, em tom de brincadeira, “Que querida, o que é que aconteceu?”

Fingindo uma indignação exacerbada, a rapariga deu-lhe um estalo no braço. Afonso retaliou num tom de voz agudo, mostrando-se, também, ultrajado pelo estalo ao de leve que Leonor lhe dera, juntando uns quantos gestos de mão. Pelo menos conseguiram colmatar os estragos que Chico causara quando os interrompera com os cafés e com a história daquela vez em que um pastel de nata encravara atrás do micro-ondas.

Mais tarde, o telemóvel de Leonor tocou. Já começava a escurecer e Guida não ficava descansada enquanto ela não estivesse em casa. Foi com grande pena sua que, assim que voltou a colocar o aparelho no bolso, disse, “Era a minha mãe, já se faz tarde e eu devia ir andando para casa”

“Sim…eu também devia ir”, tartamudeou Afonso, sem conseguir esconder a sua decepção, afinal a tarde estava a ser, na sua opinião, reconfortante, tanto que colocar-lhe um ponto final lhe parecia quase fisicamente doloroso. Não querendo nada mais do que continuar, convidou, certo, pela primeira vez, de que não ouviria um não, “E se eu te acompanhasse? É que é de noite, estás sozinha…”

Aceitando sem grande sacrifício, Leonor colocou as moedas de ambos em cima do balcão e, nesse instante, ainda que por pouco tempo, o rapaz podia jurar que a viu fulminar Chico com o olhar, o que lhe deu um certo contentamento. Lembrando-se de que Mocas ficara aquele tempo todo à sua espera, Afonso correu para junto do cão, pedindo-lhe mil desculpas. Mocas, a algum custo, levantou-se, mas ficou, decididamente, mais consolado quando a rapariga o mimou. O caminho até casa foi, sob pretexto de não cansar muito o cão, feito em passo lento, mas, ainda assim, quando já se avistava a casa de Leonor, ambos esmoreceram um pouco.

À porta de casa, a rapariga, encarando o rapaz, confessou, “Gostei mesmo muito desta tarde…desculpa por ter sido tão parva ultimamente”

“Podemos repetir quando quiseres”, respondeu Afonso, sorrindo. Quando Leonor lhe beijou a face, quase sentiu os joelhos cederem.

Nesse momento, Tomás abriu a porta, surpreendendo-os. O rapaz, se estava para receber a irmã com um sorriso afável, ao ver Afonso revirou os olhos. Não via mesmo como é que Leonor engraçara com aquele banana mas enfim, raparigas era algo de muito abstracto. Estava já para ter uma saída pouco simpática quando Mocas, indo em socorro de Afonso, decidiu que as partes de Tomás eram interessantes, tanto que não fez cerimónia em colocar o focinho entre as pernas dele, dando à cauda. Tomás, incomodado com o facto de ter um cão enorme a cheirar-lhe as zonas baixas, recuou, mas não sem enviar a Afonso uma mensagem telepática manifestando o seu desagrado para com quaisquer pretendentes da irmã.

Afonso, bem como Leonor, desmancharam-se a rir, só parando quando sentiram dores de barrigas. Mais calmos, não tiveram mais desculpas para esticarem o tempo que passavam na companhia um do outro, acabando por se despedirem, ambos com aquele sorriso.