segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Capítulo 89

Short but sweet
Decididamente que dormir sozinha não era para Susana. Estava tão habituada a partilhar a cama com Daniela que, a ausência desta a seu lado, dificultava-lhe toda e qualquer paz que fosse bem-vinda no seu sono diário. Fazia parte das regras que ambas tinham estipulado para poderem levar uma coexistência pacífica: não dormiam no mesmo quarto nem passavam mais tempo juntas do que o estritamente necessário e inevitável, como às refeições, junto à família da rapariga e quando a loura tinha alguma aparição pública para fazer importante. Caso contrário, se estivessem ambas em casa na mesma altura, limitar-se-iam a falar o mínimo, o que, tendo em conta a personalidade da outra, era complicado, pois relatava à morena todo o seu dia e recebia, como resposta, monossílabos.
A fachada que ambas mantinham não constituía, para Susana, representação. Afinal, se dependesse de si nunca teriam rompido. Limitava-se apenas a ignorar o facto de já não serem um casal e agia como o faria em condições normais. Dava a mão a Daniela, sorria, posava para fotos e, sobretudo, não ultrapassava os limites que sabia que iriam deixar a morena constrangida. Apenas fazia, com muito esforço seu, o suficiente para não despertar suspeitas. Se pudesse, faria bem mais, mas mais do que as fronteiras que não iria atravessar, a culpa que sentia inibia-a de ir mais longe. Junto à família da rapariga, trocavam as carícias mais discretas para que não parecesse estranho. A loura sabia que teria que poupar Daniela o mais possível à inevitável fúria de sua mãe se descobrisse.
Susana, quando as tentativas de pregar olho acabaram por ser infrutíferas, levantou-se. Ao consultar o relógio constatou que ainda tinha umas horas até que fosse madrugada, o que não a consolou. Sabia que não conseguiria descansar, não dentro daquelas quatro paredes que a cada instante a sufocavam ainda mais. Quem havia de dizer que regressar aos velhos hábitos seria tão difícil? Só de pensar que toda aquela situação podia ter sido evitada…Porém, o que estava feito, estava feito e não valia a pena chorar sobre leite derramado. Indo até à cozinha para beber um pouco de água, não resistiu a fazer um pequeno desvio.
Na sala, enrolada num cobertor no sofá, encontrava-se a morena. Ao observar como esta colocava o braço por baixo da almofada e ao ouvir a sua respiração leve, a loura não conteve um sorriso. Estava tão torta…não podia estar confortável. Se Daniela não fosse tão teimosa, poderia ter ficado com a cama que ela, Susana não se importaria de dormir no sofá. Mas não, tinha que ser orgulhosa. Ainda argumentara que a casa era da loura e, como tal, deveria ficar com a cama. Como se a outra não a conhecesse…Abanando a cabeça, Susana esqueceu-se do que tencionava fazer antes de interromper a sua rota. Sentou-se ao lado da rapariga, com cuidado para não a acordar e afagou-lhe a mão.
“Hm…”, sussurrou a morena, adormecida. Tinha o sono leve e não seria complicado despertar, caso a outra fizesse um movimento menos gentil. Ainda assim, agarrou na mão da loura, apertando-a na sua, sempre inconsciente do que estava a fazer.
Nunca descaindo o sorriso, a outra retirou um pouco do cabelo de Daniela que lhe pendia na face. Brincando com essa mesma madeixa, fez cócegas no nariz da morena, fazendo com que esta emitisse o que se encontrava algures entre um gemido e um resmungo. Pronto, já chegava. Susana fez para se levantar, quando se deparou com a mão ainda envolta na da rapariga. Entre uma onda de ternura e outra de pânico, perante a eventualidade de Daniela acordar, a loura abriu-lhe a mão, devagar. Com calma conseguira, a rapariga nem se movera. Antes de ir embora, a outra deu-lhe um beijo na testa, carinhosamente.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Capítulo 88

Tal como na noite anterior, Daniela não conseguira descansar como lhe daria jeito. Mesmo que fisicamente estivesse melhor, o mesmo não podia dizer a nível emocional. Os acontecimentos do dia que antecedera o presente não lhe permitiram pensar em algo que não se relacionasse com Susana. Pelo menos sempre podia justificar o comportamento volátil da outra até certo ponto, o que lhe servia de algum consolo. Mais do que a mágoa que sentia pelas acções da loura, receava o que viria a suceder a seguir. Não podia perdoar, como o viera a fazer a acontecimentos passados, já eram vezes a mais e Susana nunca se corrigira.
O mais provável seria ter que se separar da loura, nem que fosse temporariamente até a situação estabilizar. Mas…não era que se pudessem separar assim, simplesmente. Os media não lhes iam dar sossego nos próximos tempos e, um possível divórcio, seria dar o braço a torcer a todas as pessoas, sobretudo a sua família, que chamaram àquele casamento um fiasco. Encostando a testa ao volante enquanto estava encalhada no meio do trânsito, a rapariga tentou assentar tudo aquilo. A conversa que teria que ter com a outra não seria fácil. Entretanto iria buscá-la ao hospital e depois se veria.
Uma vez chegada ao seu destino, a morena percorreu aqueles corredores empestados de desinfectante, cada vez mais nervosa. O que resultaria da conversa inadiável que teria, ela não sabia, o que sabia era, no entanto, que a sua relação com Susana não voltaria a ser a mesma. Ao menos a culpa não tinha sido sua, o que lhe aliviava a consciência. Quanto mais se aproximava do quarto, pior se sentia. Para se consolar, atribuiu as culpas àquele cheiro a hospital, sim, só podia ser disso. Detendo-se à entrada, preparou-se. A vontade de ver como é que a loura se encontrava foi parte da razão por que não se quedou especada muito mais tempo.
Assim que entrou, os olhos brilhantes da outra percorreram todo o quarto até repousarem nos seus. Ainda que continuasse pálida e cansada, a diferença entre o seu aspecto no curto de espaço de dois dias era notória. Já parecia ter recuperado, mesmo que pouco, aquela “luz” que a tornava a Susana que Daniela amava. Sorrindo-lhe, a loura acenou-lhe para que entrasse. A rapariga assim o fez, com uma expressão neutra, embora por dentro estivesse a tremer, “Bom dia, tens aqui a roupa”
“Bom dia”, cumprimentou a outra, sentando-se na cama. Pegando na roupa que a morena lhe atirou, começou a despir a bata do hospital. Daniela, constrangida, nem a própria sabia porquê, foi até à janela, observando a outra ala do edifício como se nada lhe interessasse mais. Notando o comportamento estranho da rapariga, a loura disse, “Já estou quase pronta, podes olhar que continuo a mesma”
A morena não respondeu, fingindo ver qualquer coisa no lado de fora do vidro, ainda menos à vontade do que quando entrara no quarto. Quando arranjou coragem para voltar a encarar a loura, pronunciou-se, “Ahm…e se fossemos indo?”
Susana tentou pôr-se de pé, pela primeira vez desde que estava internada. No entanto, as pernas cederam e acabou sentada na cama. Suspirando, pediu, “Ajudas-me, se faz favor?”
Recalcando o incómodo interior, Daniela passou o braço da loura por cima dos seus ombros para que se apoiasse e auxiliou-a até chegarem ao carro. Mal pôde, arrancou, pondo toda a sua atenção na estrada, tudo para ignorar a outra. Tinha que falar com ela, mas não arranjava coragem para ter a iniciativa. Aparentemente a sua bazófia, que nunca fora muita, ficara algures junto da confiança que depositara em Susana. Muito para seu alívio, foi a loura a primeira a falar, “Para a semana começo a fazer tratamento numa clínica…decidi deixar-me disto”
“Ainda bem”, respondeu a rapariga, apreciando o veículo que ia à sua frente. Não era que não estivesse feliz pela outra, pois estava e não era pouco. Porém, no que dependesse de si, a distância entre ambas seria intransponível.
“Deve durar uns três meses…mas dizem ter bons resultados”, insistiu Susana, torturada pelo silêncio constrangedor que se fizera sentir antes, “Gostava era que…que estivesses lá para mim agora…”
A morena permaneceu impávida, embora interiormente estivesse a baixar as defesas, ainda que não fosse essa a sua intenção. Como podia ela resistir à loura? Por muito que quisesse, ela não lhe era sequer desprezível, quanto mais odiável. Vê-la assim tão vulnerável despertava em Daniela um sentimento de carinho e protecção que se sobrepunha à mágoa e desilusão que sentia.
“Não sei como é que ficamos, o que quer que queiras eu tenho que respeitar…”, disse a outra, encostando a cabeça à janela, sempre ditando a rapariga, uma vez que não estava no seu feitio acobardar-se, “Mesmo que não queiras continuar comigo, não me deixes agora…ao menos como amigas”
A morena agarrou o volante com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Ela era só uma pessoa, não lhe podiam exigir que aguentasse aquilo. Após uma pausa, arranjou força para falar, “Não seria capaz de te abandonar agora…”
Sentindo esperança, os olhos de Susana iluminaram-se, tanto que esta sorriu e afagou a mão de Daniela que estava sobre a manete das mudanças. Não se sentindo capaz de tanto, a rapariga retirou a mão como se tivesse tocado em fogo. Não querendo fraquejar perante o olhar magoado da loura, manteve o olhar bem afastado desta e clarificou, “Não te vou deixar quando precisas, mas não esperes que esqueça o que fizeste”
“Onde queres chegar?”, inquiriu a outra. A pior das hipóteses não era impossível e ela não podia pôr de parte essa eventualidade, aliás, por muito que não quisesse pensar nisso, sabia que o mais provável seria que a morena não quisesse continuar a ter o que quer que fosse com ela que não uma relação de amizade tremida. Mesmo isso já seria suficiente, o que Susana não queria era ter Daniela fora da sua vida.
Dado que já se encontravam em casa, a rapariga estacionou o carro e invocou toda a sua coragem. Não iria adiar mais aquela conversa e diria o que tinha a dizer, “Eu amo-te, isso é incontestável”
A loura limitou-se a escutar, deixando para si tudo o que queria dizer. Honestamente, nem sentia que estivesse no direito de dizer nada, quanto mais fazer pedidos. A única coisa que queria era ter a morena na sua vida, fosse de que maneira fosse, claro que preferia que continuassem como antes, mas naquele ponto qualquer coisa lhe servia. Voltando a falar, Daniela prosseguiu, numa voz frágil, “Não me peças para continuarmos, não consigo ter confiança em ti e, se não o tenho, como é que iríamos ter um relacionamento saudável?”
“Por muito que queira, não estou em posição de implorar por uma nova oportunidade”, constatou a outra, abafando um soluço que teimava em sair. Depois de ouvir a rapariga, todas as suas esperanças foram eliminadas.
“Posso só pedir-te um favor?”, tentou a morena, afagando a mão de Susana carinhosamente. Não sabia se era razoável estar a fazer uma proposta daquelas, mas na sua opinião poupá-las-ia a ambas a muito. Ao ver que a loura concordara, disse, “Não quero que a minha família saiba disto, eles não me iam deixar em paz…podemos manter a fachada quando estivermos com eles? Ou é pedir muito?”
“Quer dizer que é mesmo o fim?”, perguntou a outra. Não conseguindo articular uma resposta, Daniela limitou-se a afastar a cara, não querendo mostrar lágrimas. Chorar era sinal de fraqueza. Por muito forte que se fizesse, não conseguiu ocultar o seu estado de Susana, que a acolheu num abraço, soluçando ela, também. O que aconteceria dali em diante nenhuma sabia, mas o certo é que ambas mantinham viva uma réstia de esperança.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Capítulo 87

Susana acordou do que lhe pareceu um sono profundo e longo. Doía-lhe a cabeça e sentia-se como se tivesse sido arrastada por uma falésia. Gemendo de desconforto, tentou virar-se na cama mas algo lhe parecia diferente. Abriu os olhos preguiçosamente e levou uns instantes a situar-se. Em vez do pequeno quarto onde dormia mais Daniela, deu com um espaço mais amplo, todo ele branco e desprovido de qualquer aconchego. Atordoada, ergueu-se da cama, tentando perceber onde estava. Ainda devia ser cedo, o sol brilhava por entre uma fresta da cortina e essa pequena fonte de luz permitia-lhe ver o sítio onde se encontrava. Um hospital.
Esta constatação não a acalmou, antes pelo contrário. Não sabia como ali tinha ido parar e para piorar a situação os acontecimentos da noite anterior não eram mais do que fragmentos na sua memória…luzes, pessoas, uma sala enevoada…agora estava num quarto de hospital. Tentando sossegar, olhou para o colo, onde repousara os braços. Num deles estava uma agulha, ligada a algo num suporte junto a si. Ao seu lado, viu um amontoado de cabelo escuro, pertencente à rapariga que adormecera sentada numa cadeira à beira da cama e apoiara a cabeça nesta.
“Dani…”, tentou a loura, não dando importância às dores que sentia, que a puxavam de novo para a cama. Provavelmente a morena saberia dizer-lhe o que tinha acontecido, “Dani acorda”
“Hm…”, sussurrou Daniela. Doía-lhe as costas da posição em que adormecera e não se sentia de maneira nenhuma repousada, quando muito, à agonia da noite anterior agora juntava uma coluna dorida. Porém, mais do que o cansaço físico, sentia-se tão emocionalmente estafada que chegava a ponto de estar apática. Ou preferia estar…
“Puque é que eu ‘tou aqui?”, perguntou a outra, ainda sem dominar por completo a função da fala. Toda a força que lhe restava era usada para se manter erguida na cama, sem ceder e tombar.
A rapariga ainda envergava a bata que lhe cederam no hospital para colocar por cima da t-shirt larga que usara para dormir, uma vez que adormecera ali ao lado de Susana, não tinha tido oportunidade para ir a casa pôr-se mais apresentável. Esfregando os olhos, não arranjou forças para lhe responder, nem tampouco sabia por onde começar. Em bom rigor, nem sabia como se sentia. Desapontada? Sim. Magoada? Sim. Enganada? Sim. Aliviada por saber que a loura estava, tanto quanto possível, bem? Duplo sim. De certa forma, a chegada da médica permitiu-lhe não ter que dar uma resposta à outra, pelo menos naquele momento.
“Estou a ver que já acordou”, disse a médica, abrindo as cortinas de par em par, o que fez com que os olhos sensíveis de Susana se queixassem, obrigando-a a tapar a cara com o braço. Não ligando, a médica consultou a sua prancheta, prosseguindo, “Boas e más notícias, quais é que quer primeiro?”
“Não sei…as más”, resmungou a loura, cuja disposição piorava. Já não chegava não saber porque é que acordara num hospital, ainda lhe faziam perguntas daquele género sem a elucidarem sequer.
“Pior que consumir heroína é não saber dosear”, explicou a médica, abanando a cabeça, “Se se vai injectar, ao menos tenha juízo nas quantidades, olhe que podia ter ido desta para melhor se não tivesse sido socorrida a tempo”
Levantando a cara do braço, a outra olhou, ora para a médica, ora para a morena. Antes de o fazer esperava uma expressão de reprovação por parte desta, no entanto deparou-se com tristeza, nada mais que isso. Naquele momento, a sequência de acontecimentos tornou-se mais concreta…naquela sala enevoada, um grupo de pessoas, proporem-lhe consumir…nem conseguiu encarar mais Daniela, preferia que esta lhe batesse, que gritasse, tudo menos que fitasse o chão com um olhar magoado.
“Pelo menos a situação está sob controlo e amanhã já pode ir para casa”, continuou a médica, enquanto verificava os fios que ligavam Susana a uma série de aparelhos, “Preferimos que passe cá a noite para a mantermos sob observação”
Certificando-se que estava tudo nos conformes, saiu do quarto, deixando a loura e a rapariga na companhia uma da outra. Não sabendo o que dizer, a outra preferiu que fosse a morena a manifestar-se. O certo foi que algum tempo depois, Daniela acabou por falar, numa voz que transparecia toda a sua desilusão, “Acho que vou embora, amanhã passo por cá”
A dor com que dissera aquilo tocou tanto a outra que não conseguiu formular o que quer que fosse. Apenas quando viu a morena levantar-se para sair é que disse, assustada, “Desculpa!”
Daniela parou onde estava, virando-se para encarar Susana. Esta, aproveitando aquela oportunidade, continuou, de uma só vez, “Sei que não chega, mas não sei o que mais dizer…não tem perdão o que fiz, mas é o mínimo que posso fazer”
Suspirando, a rapariga subitamente pareceu muito mais velha, pálida e cansada, com olheiras e o cabelo despenteado. Como se só a falar lhe fosse como uma maratona, murmurou, quase sem se conseguir fazer ouvir, “Já começam a ser vezes a mais…”
“Primeiro bates-me, pedes desculpa, eu aceito e voltas a fazê-lo”, disse a morena, quase a perder o fôlego, “Fazes o que fizeste no bar há uns anos, pedes desculpa, eu aceito, para variar, ainda há pouco tempo te perguntei se não andavas a tomar nada e tu disseste que não”
À medida que Daniela falava, a loura ia tomando consciência das consequências daquela noite. As coisas com a rapariga ainda estavam instáveis, apesar dos progressos que ambas fizeram. O sucedido não só deitara por terra todos os esforços que as duas fizeram, como minavam as hipóteses de recuperação. Pedir uma nova oportunidade parecia-lhe impossível, isto para não falar de ser quase um desrespeito à morena. Considerando tudo isto, a outra, que não queria, de forma alguma, desistir do que tinham, ia a desfazer-se em desculpas de novo, quando Daniela disse, “Só quero saber porque é que tens que ser sempre assim, nunca aproveitas as segundas e terceiras oportunidades…o problema é meu e não teu, só assim”
“Não! Tu não tens problema nenhum”, replicou logo Susana. Gostaria de ter podido levantar-se e tocar na rapariga, qualquer coisa, mas os fios que a ligavam às máquinas impossibilitavam-lhe isso. Limitada à cama, continuou, desesperada, “Eu é que não me consigo controlar, nunca consegui, não queria deixar as coisas chegar a este ponto”
“Podias ter sido honesta logo no início”, respondeu a morena, encostando-se à parede, “Ao menos podes dizer-me, sinceramente, há quanto tempo andas nisto?”
Apanhada. Ou dizia a verdade e arriscava-se a eliminar todas e quaisquer hipóteses de manter o casamento, ou mentia e esperava que Daniela nunca viesse a saber. Dividida, acabou por decidir que lhe devia a verdade. A medo, confessou, “Depois da minha avó morrer deixei de consumir, só voltei no ano seguinte, quando tinha dinheiro para isso”
Pelo menos a parede suportara parte do peso da rapariga, que se deixou descair até ficar sentada no chão. Perguntara à loura por diversas vezes se nunca mais consumira e esta sempre lhe dissera que não, agora descobria que lhe mentira todas aquelas vezes. O facto de a outra lhe ter mentido ainda era pior do que o que andara a fazer.
“Mas era muito pouco, só de vez em quando, quando ia sair”, disse Susana, na esperança de melhorar a sua situação, “Agora com todo o trabalho que tinha é que o passei a fazer mais vezes, se não o fizesse não aguentava…”
“Chega!”, disse a morena, enterrando a cara nas mãos, “Não és capaz de manter uma promessa, se não o fazes por mim, ao menos fá-lo por ti e não arruínes a tua vida”
“E agora?”, perguntou a loura, com o coração acelerado. Não queria ouvir a resposta, já a sabia de antemão, mesmo que parte de si se quisesse manter agarrada à esperança de que toda aquela situação pudesse ser resolvida e que as coisas fossem como o eram há uns meses atrás.
“Não sei…”, admitiu Daniela, levantando-se, “Vês mesmo futuro no nosso casamento depois de tudo isto?”
“Eu vou para uma clínica, eu faço tudo o que tu quiseres, mas por favor não!”, gritou a outra, ao sentir todo o seu mundo ruir e ela sem saber o que fazer.
“Não é a melhor altura para pensarmos nisso…”, disse a rapariga, tomando a alternativa cobarde. Podia ter resolvido, naquele momento, toda a situação mas não fora capaz de a enfrentar. Antes de deixar Susana, abraçou-a, sendo precisa toda a sua presença de espírito para se separar. Tinha muito em que pensar e para isso precisava de estar sozinha.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Capítulo 86

Bom Ano Gente!

Foi à semelhança daquela ocasião que Susana procurou passar os tempos seguintes, sempre mantendo a compostura e cortando na bebida e nas substâncias, tarefa que não se revelou nada fácil, a necessidade tornava-se cada vez mais intensa e chegava ao ponto de ser agonizante. O que a fazia ter algum autodomínio sobre si mesma era a vontade de se redimir e ser a melhor mulher possível para Daniela. Optou, também, por ir apenas às festas e eventos que fossem estritamente necessários, por obrigações de trabalho, passando antes esse tempo com a rapariga. Assim, os progressos já eram visíveis, ora ficavam por casa, ora faziam um programa a duas.
Contudo, havia, de facto, festas que não dispensavam a sua presença e aquela era uma delas. Na recta final do Verão, o objectivo era encerrar as férias e a estação mais querida de todos da melhor maneira e a comparecência da loura era imperativa. Após muita insistência sua, conseguiu que lhe dessem permissão para levar consigo a morena, sendo aquela a primeira vez que iam a um evento do género juntas. Desta forma, Daniela viu-se, para seu constrangimento, vestida a rigor, numa limusina. Numa limusina! Nunca antes tivera tantas saudades do seu modesto veículo. Alegre, a outra anunciou quando chegaram ao destino, apontando para fora da janela, para um bar, sem dúvida um tanto além da carteira da pessoa comum.
“Hoje está lindo”, comentou Susana, cheia de boas expectativas em relação àquela noite. Exceptuando as muitas perguntas inevitáveis a que teriam que responder, não havia motivos para que qualquer coisa corresse mal. Ao ver a expressão de receio na cara de Daniela, afagou-lhe a mão, a personalidade tímida e recatada da rapariga não era algo com que nunca tivesse lidado, “Vais gostar, não é preciso estares assim”
“Sim, mas…”, tentou a morena, mordendo o lábio inferior. Aglomerados de gente, ainda para mais que só conhecesse de ler em revistas ou ver nas novelas, decididamente que não a deixavam à vontade. O que é que ela, na sua humilde condição de cara-metade da uma das convidadas especiais, estava ali a fazer? Certo, a fazer companhia à dita convidada especial. O esforço da loura para resolver a situação complicada em que se encontravam até há pouco tempo atrás não seria, de maneira nenhuma, ignorado, tanto quanto dependesse de Daniela, que sorriu e disse, “Tenho a certeza que sim”
Agora tranquila, Susana exibiu o seu habitual sorriso que lhe evidenciava as covinhas, antes de levar a mão da rapariga aos lábios e a beijar. Quando saíram do veículo, a loura, sendo a primeira a sair, deu a mão para ajudar a morena a levantar-se. Ao ver toda uma multidão de gente a dispararem flashes, toda a coragem que Daniela sentira esvaiu-se, dando lugar a um nervosismo indiscreto. Porém, a outra não parecia sequer incomodada, não se coibindo de lhe colocar um braço sobre os ombros e de avançar até à entrada sempre bem-disposta. A rapariga já ia arriscar e suspirar de alívio, quando apareceu a entrevistadora habitual, dando às ancas e equilibrando-se nuns saltos de agulha provocantes.
“Boa noite, Susana!”, exclamou ela, saltitando de entusiasmo, o que fez com que o peito lhe saltasse também, o que incomodou Susana, que se lembrou dos pensamentos condenáveis que já tivera. Retribuiu o cumprimento e, chegando mais a morena para si, à sua frente, pôs-lhe os braços em torno da cintura, apoiando o queixo no ombro desta e aguardou as questões incómodas que se seguiriam.
“É hoje que vai finalmente dar a conhecer a sua mulher? Se é que o são, claro”, continuou a jornalista, que aparentava ter um ataque cardíaco se ficasse ainda mais excitada. A loura sabia que não podia adiar mais, as revistas já haviam especulado tudo e mais alguma coisa, assim, tinha mais a ganhar em admitir e aquela seria a melhor altura para o fazer. Podia ser que os boatos de maus tratos parassem e a sua imagem ficasse imaculada.
“Tentei manter a minha vida privada isso mesmo, privada, mas há coisas que vêm sempre ao de cima”, começou a outra, olhando para Daniela, dando-lhe a certeza, apenas com aquele olhar, de que tinha a situação sob controlo. Num registo alegre, pronunciou-se, “Já estamos casadas há mais de um ano e as coisas têm corrido bem, não temos razões de queixa, mas que eu era casada já vocês sabiam”
“Mas agora temos a confirmação”, respondeu a entrevistadora, de olhos reluzentes, como uma criança em dia de Natal. Aquele devia ser o seu dia de sorte e iria aproveitar a onda de confissões de Susana, “Os rumores de agressão não indicam que andem assim tão bem, gostaria de comentar o assunto?”
“São isso mesmo, rumores”, replicou a loura, implorando mentalmente à morena para que interviesse a seu favor, uma vez que o seu testemunho iria ser muito mais credível, “Eu amo a minha mulher”
O entusiasmo da jornalista apenas poderia ser equiparado ao de um cavaleiro que tivesse encontrado o Santo Grahl. Como se tivesse lido os pensamentos da outra, Daniela achou por bem manifestar-se, afinal não havia ocasião mais propícia para colocar um ponto final naquela questão da violência doméstica. Sorrindo de volta para Susana, declarou, “Não passou mesmo de um mal-entendido, ela não me bateu e não podíamos estar melhor, eu amo-a”
“Declarações no seu melhor!”, guinchou a entrevistadora, com o peito em vias de se catapultar para fora do top. Depois de mais algumas perguntas, todas elas sobre a relação de ambas, perguntas essas que conseguiram responder em conjunto, causando boa impressão, apenas ficou satisfeita quando aceitaram que lhes tirassem fotografias, que serviriam para ilustrar o artigo que escreveria, o que, na melhor das esperanças tanto da loura, como da rapariga, iria pôr termo àquele assunto infeliz.
“Estive muito mal?”, inquiriu a morena, encostando a cabeça no ombro da outra, pouco confiante nos seus dotes sociais. Na sua perspectiva, o que dissera soara muito inseguro e transparecera falta de à vontade, o que a enervava, uma vez que a última coisa que queria era embaraçar Susana. Só a possibilidade de tal acontecer causava-lhe um mal-estar imenso.
“Estiveste bem, não te preocupes”, assegurou a loura, encaminhando-as para dentro do bar. Uma espreitadela rápida ao interior permitia constatar que o exterior não era apenas fachada. Construído a partir de uma moradia megalómana antiga, a decoração consistia numa mistura de elementos antigos como esculturas, e estilo moderno, com candeeiros de cariz futurista. Em suma, o local era, mais do que interessante, limitado às elites mais abastadas. Daniela suspirou pelos bares de aspecto duvidoso, reservados aos comuns mortais, que costumava frequentar.
Escolhendo um lugar recatado num canto mais calmo para se sentarem, a rapariga, que nem se achava digna de se sentar naquelas cadeiras, perguntou, corada, “És mesmo paga para vir aqui?”
“Recebo mais por estar aqui do que tu num mês inteiro”, esclareceu a outra, sorrindo. Não era sua intenção gabar-se, mas não podia estar mais realizada consigo própria por estar onde estava. De criança com apenas o suficiente para se alimentar e uma camisola nova no Natal e nos anos, a vedeta principal dos últimos anos, com mais projecção e a mais querida por entre o público. O dinheiro deixara de ser problema e agora vivia a vida que muitos dariam a alma por ter.
“É bom saber que me matei a estudar durante anos para depois ser explorada a torto e a direito e apareces tu com a mania que sabes cantar e ficas rica”, provocou a morena, revirando os olhos numa expressão exagerada. Como a divertiam aquelas situações de cumplicidade com a outra, “O mundo está perdido!”
“Oh, oh”, resmungou Susana, fazendo cócegas a Daniela, que se contorceu a rir, esquecendo-se, as duas, de onde estavam. A brincadeira valeu-lhes serem, novamente, o foco das atenções, sendo abordadas por um grupo de pessoas. Uma a uma, a loura foi dando conversa, posando para fotos, rindo, tudo para deixar os fãs felizes, afinal devia-lhes isso. Durante o desenrolar da cena, a rapariga recostou-se na cadeira e limitou-se a observar como os olhos daquele grupo de pessoas brilhavam só por poderem interagir com a outra.
Já a entediar-se, a morena deambulou um pouco mentalmente. Não sabia como é que Susana tinha tanta paciência, ela própria já se teria fartado. E daí a loura sempre fora faladora e simpática, Daniela era reservada e de poucas palavras. A voz de um rapaz, dirigida a si, fê-la voltar a dar atenção ao que se passava à sua volta, “Que sorte a tua, quem me dera a mim”
“Oi?”, perguntou a rapariga, baralhada. De onde é que aquela criatura tinha aparecido e de que é que estava a falar?
“A Susana é linda…”, respondeu o rapaz, suspirando, “A sério, toda a gente a quer e só tu é que tens, que sorte mesmo”
Não sabendo ao certo o que dizer, a morena riu de modo constrangido. Causava-lhe imensa confusão pensar na outra como “A Susana Marques”, para si, continuava a ser a mesma Susana que um dia conhecera num bar a mil anos-luz daquele no que dizia respeito a luxo. Não passava da mesma pessoa com quem partilhara momentos que não trocaria por nada daquele mundo e outros menos bons, mas não tinha importância, eram momentos delas. Calmamente, respondeu, “Foi mesmo sorte minha, não a trocava nem por nada”
A última parte fora ouvida pelo resto do grupo, incluindo a loura, que a puxou para si, carinhosamente. Ainda enterrada no pescoço de Daniela, murmurou, para que só ela ouvisse, “Sorte tive eu”. Afagando o cabelo à outra, a rapariga não contou com a dentada que esta lhe deu no pescoço. Afastando-se, numa expressão de indignação fingida, deu um estalo ao de leve na cara de Susana, na brincadeira, muito para diversão do grupo, que achou por bem ir-se embora e deixá-las sossegadas.
“Até te estás a conseguir soltar um bocado, não custa nada, vês?”, replicou a loura, ainda abraçada à morena. Daniela anuiu e recostou-se na outra, afagando-lhe a mão que pendia do seu ombro. Eram momentos daqueles que a faziam esquecer quaisquer problemas que tivessem, sobretudo porque o esforço de ambas para os superar se tinha revelado frutífero.
Nos próximos tempos, ora permaneceram na companhia uma da outra, ora dançaram um pouco, com a rapariga a fazer das tripas coração para não fazer figura de ursa, com os seus péssimos dotes e Susana a guiá-la o melhor que conseguia. No final, não só a morena acabara por se divertir, como aguentara bastante tempo sem parecer um orangotango a ter espasmos. Logicamente que, de vez em quando, apareciam fãs ou repórteres, mas nada que a perturbasse. Qualquer coisa e a loura estava lá, não havia nada a temer.
Quando se cansaram, voltaram a sentar-se, antes de a outra voltar a ser a ser abordada, desta vez por pessoas que Daniela recordava vagamente das novelas em horário nobre. Disseram qualquer coisa a Susana que a rapariga não conseguiu entender, mas a loura pareceu entusiasmada. Voltando-se para a morena, disse, “Não te importas que eu vá só ali com eles num instante?”
“À vontade”, concordou Daniela, soltando-lhe a mão. Depois de trocar um beijo rápido com a rapariga, a outra seguiu o grupo até a uma sala nas traseiras, tão toldada pelo fumo que seria necessário faróis de nevoeiro para se orientar lá dentro. Sentando-se num dos sofás, começou a sentir, pela primeira vez desde que concordara em juntar-se ao grupo, culpa. Tanto tempo sem dar no cavalo e agora estava prestes a fazê-lo outra vez. E a rapariga estava mesmo ali, noutra sala, o que é que ela iria dizer se viesse a saber? Mas tinha tanta vontade…e o resto do grupo, notando a sua hesitação, incentivaram-na. Só por uma vez não iria fazer mal, pois não?
Momentos depois, abandonou a sala, mal se aguentando nos pés, a sensação de euforia era tanta que não dava pelo chão debaixo de si, se calhar até podia estar a pairar no ar, tudo era possível. Outra vez com a morena, conseguiu manter-se consciente o suficiente para perceber que a sua prioridade era esconder o que andara a fazer. Sentando-se ao lado desta, puxou-a para o seu colo, procedendo a distraí-la com afectividade, mas sem sucesso, Daniela obrigou-a a afastar-se, parecendo apreensiva, “Tu estás bem?”
A outra respondeu, sentindo a língua a enrolar-se na boca e o pensamento a perder o fio à meada, “Hm…sim, ‘tava com saudades, não tem mal”
A rapariga arrepiou-se. Não sabia o que se tinha passado naqueles minutos, mas não conseguia afastar a sensação de que não fora nada de bom. Não desejando prolongar aquele mau pressentimento, consultou o relógio. Já podiam ir embora sem causar má impressão. Pegando na mão de Susana, sentiu-a letárgica, o que lhe confirmou que o estado da outra não era o melhor. Tendo que arrastar, praticamente, peso morto da loura até ao carro, a morena ignorou a garra que lhe agarrava as entranhas. Implorando ao motorista que as levasse a casa o quanto antes, foi verificando o estado da loura. Já não dizia coisa com coisa, balbuciando frases absurdas e tentando agarrar qualquer coisa no ar, qualquer coisa que apenas existia na imaginação dela.
O percurso pareceu longo, muito mais do que dera a entender na ida. Entretanto a morena segurou a outra, não fosse ela magoar-se. Felizmente para si, não ofereceu resistência, ficando apenas inerte no aperto de Daniela, como se lhe tivessem sugado a energia, “Ahm…ani…”
Chegando a casa, a rapariga carregou com Susana até à cama, despindo-a antes de a deitar. Não sabia o que se passava, nem tampouco o que fazer, mas a loura parecia mais calma, como se já tivesse adormecido, o que a tranquilizou um pouco. Teria tomado qualquer coisa? Ter-lhe-iam posto algo na bebida? No dia seguinte dir-lhe-ia, esperou a morena, que se deitou também, ainda a sentir os tímpanos em sofrimento da música do bar. Minutos mais tarde, mas que lhe pareceram uma eternidade, estava, também a dormir.
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“Ahm…hm…”, gemeu Susana, fazendo com que Daniela acordasse. Esta olhou para o relógio na mesa-de-cabeceira, constatando que ainda era de madrugada. Seria possível que a loura já estivesse acordada?
Olhando para ela, gelou até à mais ínfima gota de sangue. Contorcendo-se como se estivesse em grande sofrimento, suando em bica, a outra parecia possuída, “Ahm…ai…”
A rapariga quedou-se sem reacção por uns momentos. Mas o que é que se estava a passar? Chamando a si toda a presença de espírito que conseguiu, tocou na pele a ferver de Susana, tentando acordá-la, “O que é que tens?”
Não conseguiu nenhuma resposta, apenas mais espasmos e queixumes. O que quer que estivesse a acontecer era algo para o qual nada a preparara, sentia o coração a galopar-lhe do peito, ou será que estava parado? Já nem sabia. Pegando no telemóvel, ligou para o número de emergência, sem saber como se explicar ao certo. Apesar da voz abafada, conseguiu fazer-se ouvir, por cima dos gemidos de Susana, que subiram de tom. Apenas pousou o aparelho e voltou para junto da loura quando soube que acabaria por chegar ajuda. Sentindo-se impotente, acomodou a outra o melhor que conseguiu, afastando-lhe madeixas de cabelo encharcado da testa.
O que sucedeu a seguir foi tão rápido que ela, no seu estado de choque, não conseguiu registar. Só se recordava de ver os paramédicos chegarem, de estarem na ambulância a tomarem o pulso à outra e a fazerem-lhe a ela, Daniela, perguntas para as quais não tinha resposta, o que em nada contribuiu para que se sentisse mais útil naquele caos. Quando deu por si, estava sentada numa cadeira incómoda numa sala de espera fria, até que chegou uma médica, trazendo os resultados das análises de Susana.
“A situação está estável, mas preciso que colabore tanto quanto possível”, pediu ela, aparentando uma calma tão fria que desconcertou ainda mais a rapariga. Se se conseguiu manter calma foi porque não desejava nada mais do que ajudar no que quer que conseguisse. Impassível, a médica questionou, “Sabe dizer-me se ela tem algum passado com drogas?”
“Tanto quanto sei consome regularmente drogas leves e experimentou com pesadas há já bastante tempo”, respondeu a morena, passando a mão pelos cabelos, esforçando-se para não perder a cabeça.
“As análises acusaram heroína”, disse a médica, não esperando resposta concreta.
Foi então que Daniela teve que se voltar a sentar, não fosse, ela própria, perder os sentidos. Mais forte que a desilusão que sentiu era a vontade de ver Susana bem.