“Hm…ai”, queixou-se Daniela,
rolando sobre si mesma, no sofá de Marta. A dor no peito que sentia
impossibilitou-a de continuar a dormir, embora estivesse esgotada. Não era uma
dor interior, era superficial e aguda, tão forte que tirara a camisa para ver
se havia algo de errado, apenas para se deparar com um piercing, uma argola
ainda por cima, num mamilo, “FODA-SE!”
“Fala baixo, não estás em
casa!”, respondeu Marta, no andar de cima. A ressaca era notória. Porém, por
muito cansada que estivesse, por muito enjoada que se sentisse, era hora de se
preparar para o grande evento.
Enquanto a rapariga continuava
em parafuso pela sua mais recente aquisição, Marta aprontou-se. Saindo de outra
divisão, Tiago, de smoking, penteado e a cheirar a aftershave, apareceu. No
entanto, nem o melhor duche nem baldes de litro de café o fariam despertar, os
efeitos da noite anterior estavam bem visíveis sob a forma de olheiras enormes
e uma indisposição que não se desejaria a ninguém. Por sua vez, Marta, em
melhor estado que, tanto Tiago, como Daniela, apareceu, sorridente e ansiosa.
Mas, ao ver a morena, ainda com a roupa da noite anterior, fulminou-a com o
olhar, “Ainda estás assim?!”
“Tu deixaste que aquela gaja
de ar sinistro me fizesse isto?”, interrogou a rapariga, furiosa, levantando a
camisola. Sensível ao álcool como era, ter discernimento suficiente para
recusar uma proposta de um piercing duvidoso feito por alguém igualmente
duvidoso, sob aquelas condições, era impossível.
“Nós ficámos com as Strippers
mas tu tinhas que ser mais hardcore…”, justificou Marta, sem conter o gozo,
“Foi a risada e, se pensares positivo, tens uma história para contar aos netos”
Daniela, ao invés de dar uma
resposta coerente, limitou-se a deitar a língua de fora a Marta. Mas ela ia
ver, oh se ia. De momento só esperava que Susana gostasse daquele lindo exemplo
de arte corporal. Mas, por enquanto, teria que ajudar nos preparativos. Ora
ajeitando a gola da camisa de Tiago, assegurando-o de que estava no seu melhor
e prestes a fazer boa figura, ora garantindo a Marta de que iria correr tudo
bem e que o fato lhe assentava bem, a rapariga não se pôde queixar de que não
tinha que fazer. Arranjando-se como pôde, apesar de não ser o seu grande dia,
fez por ficar bem, mais que não fosse para si própria e para Susana.
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Susana, acordada,
abruptamente, diga-se de passagem, do seu sono pela mão de Guida a aterrar, de
modo nada delicado, na sua cara, começou o dia por barafustar, “Foda-se,
cuidado pega!”
“Ahm…”, murmurou Guida,
rolando sobre si mesma, para continuar o seu sono de beleza. E tê-lo-ia feito,
caso o bigode postiço do dia anterior não tivesse acabado na sua boca,
fazendo-a engasgar-se até o cuspir, “Pff…que horror”
Mais desperta, a loura consultou
o telemóvel, mais descansada por ver que Daniela a avisara de que estava tudo
bem, e viu, muito para sua inquietação, de que dispunham de apenas duas horas
para se aprontarem. Normalmente, para ela seria apenas necessária meia hora,
mas, sendo a amiga a eterna perfeccionista, aquele tempo era insuficiente.
Abanando o ombro de Guida, apressou-a, “Tens duas horas para estares toda boa e
pronta a sair daqui!”
Olhando para o relógio e para
a lista mental de todas as coisas que tinha que fazer, Guida, num momento em
que perdeu toda a sua elegância e compostura, voou da cama, conseguindo
tropeçar nos lençóis e aterrar no chão do quarto, arrancando os cobertores e
arrastando a outra para o chão. Após ajudar a amiga a pôr-se de pé, Susana
começou a despir-se, antes de ir para o duche. Entretanto, Guida, ao observar a
loura, reparou que esta não tinha um único pêlo nas…zonas baixas. Ao olhar para
o que restava do bigode postiço, bigode esse que estivera na sua cara todo o
dia, notou que este era louro e demasiado realista.
“SUSANA!”
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Já no local combinado, uma
quinta junto às imediações, com tudo, desde lago às melhores condições para uma
festa do género, com Marta cruzando e descruzando os braços, Rodrigo em
situação semelhante e Daniela tentando abstrair-se da dor, aguardaram por Guida
e Rodrigo que, por algum motivo, estavam atrasados. Embora não fosse motivo
para preocupações, não era característico de nenhum deles esquecer um princípio
tão básico como a pontualidade.
“Achas que lhes aconteceu
alguma coisa?”, perguntou Marta à rapariga, já prestes a roer as unhas, hábito
que tentara largar mais que não fosse por ficar inestético.
“Pouco provável, a Susana já
me disse que chegaram todos bem”, assegurou a morena, a eterna voz da
serenidade e razão, ou pelo menos, era nisso que gostava de acreditar.
O som de o que aparentava ser
um tractor enferrujado distraiu os presentes. Franzindo o sobrolho, todos se
voltaram para a direcção de onde vinha o ruído. Aproximando-se, quando muito a
quarenta quilómetros por hora, vinham os restos moribundos do Mercedes de
Guida. Gemendo como um animal ferido, o carro, num derradeiro esforço, parou
diante de todos os espectadores. Empurrando a porta que acabou por cair, Guida
saiu, de cabeça erguida, seguida por Rodrigo, ao colo de Susana. Rodrigo não
sabia se havia de chorar pelo seu jipe que iria para a sucata, se pela sua
masculinidade magoada. Não deixando que pormaiores desses lhe estragassem o
dia, sorriu.
Ao ver a loura, Daniela correu
para junto desta, abraçando-a. Com os noivos presentes, puderam dar início à
cerimónia. Primeiro as senhoras, como Marta fez questão de lembrar a Tiago.
Picando Rodrigo, a outra, servindo-se da dica de Marta, encorajou o amigo a ir
primeiro, afinal este era mais feminino que a maioria da população feminina.
Rodrigo limitou-se a virar a cara, indignado. Suspirando por ter que assistir a
tais picardias, Guida limitou-se a seguir com o protocolo, pegando na mão de
Marta. Depois de ditos os sins, muito para gozo de Daniela, que fingiu fungar
para um lenço, o que resultou num olhar de morte de Marta, o par trocou um
beijo, selando o acordo.
Ajeitando a gravata, Rodrigo
deu a mão a Tiago, repetindo o que tinha sido feito anteriormente, Se Tiago
limpava o suor que lhe escorria pela testa de tão ansioso que se sentia,
Rodrigo emitia risinhos agudos que poderiam ter vindo de uma rapariga de doze
anos. No final, após os sins terem sido proferidos, Rodrigo pegou em Tiago pela
cintura, não se fazendo rogado a trocar saliva, de modo explícito, por dois
minutos inteiros. Junto a Daniela, Susana perguntou-se se deveria ficar enojada
ou enternecida, se calhar ambas as hipóteses. Quando se separaram, ainda com
saliva entre os dois, Rodrigo voltou a ajeitar a gravata, recuperando a
compostura, com um sorriso enorme.
Depois de estarem concluídas
todas as formalidades, a rapariga, saindo do pé da loura por um pouco, com um
sorriso travesso, encontrou forma de se dirigir a Marta, ainda na presença de
Guida. Mantendo a sua melhor poker face, perguntou, como quem não quer a coisa,
“Então já mostraste à Guida a tua mais recente amostra de arte corporal?”
“Do que é que estás a falar?”,
perguntou Marta, de olhos arregalados. Sabia que tinha bebido um pouco mas nada
a ponto de fazer com que não se lembrasse da noite anterior.
“Mostra aí as costas”, disse a
morena, com a poker face a desfazer-se a cada segundo. A amiga assim fez,
exibindo, no fundo das costas, num padrão tribal, nada mais que o nome da ex
namorada, tatuado para todo o mundo ver.
“O QUÊ?!”, gritou Guida,
encolerizada, tanto que Tiago se escondeu atrás de Rodrigo, que por sua vez se
escondeu atrás de Susana, que perdera toda a tonalidade da cara. Ia ser bonito…
“Juro que não sei como é que
isto apareceu!”, balbuciou Marta, atónita. Se não estivesse a ver o nome da ex
a reluzir à luz do dia, não acreditaria.
Daniela, mesmo podendo deixar
a amiga a sofrer mais um pouco, resolveu salvá-la, antes que rebentasse uma
veia a Guida, “Fiz isso a caneta de acetato, não te irrites”
“Puta que te pariu!”,
guincharam Marta e Guida em simultâneo, muito para dor dos ouvidos da rapariga,
que não teria sido poupada caso a loura não interviesse, para a levar dali.
Muito para alívio de todos, o
resto do dia decorreu nos conformes, tanto que se tivessem que voltar atrás e
mudar alguma coisa, não o fariam. Depois de acalmados os ânimos, Guida e Marta
já se riam com a partida da morena. No final do dia, preenchido por todas as
formalidades e tradições do mais convencional dos casamentos, no momento das
danças mais lentas, Daniela, que vira todos os vídeos educativos sobre o assunto
quanto conseguira, propôs à outra, “Apetece-te?”
“Daniela Sousa, não acredito
que me estás a convidar para dançar”, replicou Susana, arqueando as
sobrancelhas em jeito de gozo, “Aceito sim”
Puxando a loura pela mão, a
rapariga pôs os braços por detrás do pescoço da outra, revirando os olhos
quando esta pousou as mãos sobre as suas nádegas. Ainda assim, quando a música
ia a começar, Susana assumiu a posição correcta. Não trocando os passos, a
morena conseguiu acompanhar a outra, desta vez sem a pisar ou fazer cair,
embora não fosse graciosa. O esforço valeu-lhe que a loura aproximasse os
lábios do seu ouvido e murmurasse, “Muito bem”
“Queres sair por um bocadinho?”,
convidou Daniela, já a ficar cansada, não apenas da dança, como, também, de
estar rodeada por grandes magotes de gente.
A outra, dando a mão à
rapariga, esquivou-se das pessoas, até saírem do edifício, para o jardim.
Estava uma noite linda, amena e com o leve som de grilos como banda sonora.
Sentando-se na relva, entre as pernas de Susana, a morena deixou-se apenas
embalar, ouvindo os grilos e a respiração da loura. Já esta colocou os braços
em torno do pescoço de Daniela, em silêncio. Manifestando-se, a rapariga
perguntou, séria, “Gostas de piercings nos mamilos?”
“Ahm?”, admirou-se a outra. E
pensar que a morena quebrara aquele momento para fazer a pergunta mais
aleatória que lhe poderia ocorrer.
Sem responder, Daniela
aninhou-se melhor nos braços de Susana. Se um dia lhe tivessem dito que a
pessoa que conhecera um dia num bar de aspecto suspeito seria a mesma com quem,
depois de muito tempo e muitos acontecimentos, estaria ali, a partilhar aquele
momento, não acreditaria. E a melhor parte? Era que estava perfeitamente feliz.