Viajante, bem que estranhei a tua ausência. Já estava aqui a deprimir a pensar que tinha perdido a minha leitora assídua, ainda bem que não. Se dissesse que estou curiosa quanto à tua identidade levavas a mal?
Sentada no sofá, Susana permitiu-se a, por fim, relaxar. Os últimos dias tinham sido extenuantes, ocupados por trabalho, tanto de estúdio, como de publicidade. Assim, não era de admirar que todos os momentos que pudesse aproveitar para descansar fossem bem-vindos. E aquele não era excepção, com uma ganza numa mão e um pacote de bolachas ao rápido alcance da outra, era uma mulher contente, afinal, tal como a namorada lhe dizia, só precisava de duas coisas para ser feliz: a sua erva e comida. Mas Susana replicava sempre “Errado bebé, também preciso de ti”, no seu tom mais meloso e adocicado, sempre eficaz em fazer Daniela ranger os dentes.
Colocando os pés em cima da mesinha de café, espreguiçou-se demoradamente, à medida que exalava o fumo. Um movimento mais brusco e uma lasca da madeira da mesa, já por si em estado precário, foi arrancada. Agora que reparava melhor, não se sentia totalmente confortável no sofá, fora a sua tonalidade indefinida, consequência da sua longevidade, este tinha, também, pontas de mola a perfurarem o tecido, graças a uma Susana irrequieta enquanto criança. De certa forma, todo aquele aspecto envelhecido, gasto e em vias de necessitar de uma reforma urgente fazia-se notar pela casa toda, dentro e fora, desde as paredes manchadas pela humidade, às mobílias com décadas de existência.
Dando os últimos bafos, o olhar da loura deambulou pela sala de aspecto decadente. Realmente estava em bastante mau estado, sendo o jardim a única parte que se mantinha com bom aspecto. Se alguma vez tivera certeza de alguma coisa, seria do facto de a falecida avó se contorcer na campa caso soubesse que o seu jardim, ao qual dedicara tardes a fio para que as sebes se mantivessem consistentes e bem aparadas. Assim, Susana não conseguiria viver em paz se não mantivesse, a muito custo do seu horário atribulado, as plantas saudáveis e apresentáveis, tal como estavam quando a avó cuidava delas.
“Em que é que estás a pensar?”, perguntou Daniela, levantando a cabeça do colo da loura, ainda ensonada e a retirar o cabelo que lhe caíra para a cara. Respirar passivamente o fumo da outra dera-lhe sono.
“Tenho a casa a cair aos bocados, não ‘chas?”, respondeu Susana, num discurso arrastado, tanto quanto a sua garganta e língua seca lhe permitiam, um dos efeitos posteriores da sua “dose de felicidade”.
“É normal, não é?”, replicou a rapariga, interrompendo-se para bocejar, “O teu pai ainda nasceu aqui…”
“Eu sei, mas repara…a parede está a meia verde nos cantos e os muros também”, insistiu a loura, apagando a beata, “Mas não é só…os etodométicos…”
Ao ouvir aquilo, Daniela riu-se, sempre que estava mocada Susana era sempre comicamente enternecedora. Sorrindo, ergue-se o suficiente para lhe dar um beijo afectuoso na bochecha. A loura, sorrindo de modo maroto, aproveitou a proximidade para aumentar um pouco as intimidades, apenas para se ver impedida pela rapariga, que lhe segurou a cara antes que esta tivesse oportunidade para se aproximar, “Nem penses, quando estás pedrada é tão estranho”
“Ai é? Então não vais gostar nada disto”, resmungou Susana, agarrando a rapariga pelos braços, de modo a obrigá-la a desequilibrar-se e a ficar por baixo de si, antes de a beijar, muito contra vontade desta, que nada pôde fazer.
“Porr…Foda-se oh Susana!”, praguejou a morena, debatendo-se inutilmente, até que a outra finalmente a soltou, “Que áspero!”
A loura só se riu, perfeitamente consciente da sensação de beijar alguém depois de uma ganza. Quando recompôs a seriedade, voltou à conversa que estavam a ter antes da brincadeira, “Agora a sério, achas que a casa está muito degradada?”
“Não te vou mentir”, disse Daniela, “Precisa de uns arranjos sim e de electrodomésticos que não te pudessem electrocutar a qualquer momento, mas olha…agora que podes porque é que não fazes uns arranjos aqui e ali?”
Susana não respondeu imediatamente. O certo era que não se sentia muito confortável com essa ideia, mesmo sabendo que tinha dinheiro suficiente para tornar a casa mais confortável. Até porque as canalizações enferrujadas e a mobília da idade do bronze se tornavam bastante incomodativas e ineficazes, afinal já não seria a primeira inundação daquele ano. Porém, durante toda a sua vida o aspecto da casa mantivera-se inalterado, sempre com a mesma decoração antiga e tradicional. Mudá-la seria como que corromper todas as memorias que aquele local que dava. E mais, a grande maioria das recordações dos avós falecidos estava ali, como é que poderia sequer pensar em alterar fosse o que fosse?
“É que…a casa foi toda decorada pelos meus avós quando se mudaram para cá e desde então que tem estado sempre assim”, explicou a loura, baixando o olhar, constrangida, “E agora estão os dois mortos, a casa é um pedacinho deles que ficou cá, quando olho para isto, lembro-me deles”
Era precisamente naqueles momentos que a rapariga ficava sem saber o que dizer. Com um suspiro, deu o seu melhor para que a sua falta de tacto não viesse à tona, “Suse, não te detenhas por isso, as memórias tem-las tu, não a casa…olha, para seguires em frente é preciso deixar o passado no passado e a casa agora é tua, podia ser que te fizesse bem personalizá-la”
Tal como fazia sempre que procurava um miminho, Susana deitou a cabeça no colo da namorada, para que esta lhe afagasse o cabelo, coisa que ela prontamente fez. Só então a loura prosseguiu, “Acho que tens razão…”
Deixando que ambas ficassem no silêncio durante uns instantes, Daniela não respondeu, ficando só a acariciar a loura. Entendia o ponto de vista da outra, afinal sentir-se-ia da mesma maneira. De repente, lembrou-se de que não acabara de ver o antigo álbum de fotos de Susana, até podia ser que lhe fizesse bem recordar, “Susana, achas que me podias mostrar o teu álbum? Se não te fizer sentir mal claro…”
“Ahm? Porquê?”, questionou a loura, surpreendida com o pedido, tanto que levantou a cabeça do colo da rapariga.
“Pensei que talvez te soubesse bem falar nisso, tens muitas fotos com eles lá…”, tentou a morena, agora constrangida, “Eh, olha deixa lá”
“Não…pode ser”, anuiu, por fim, a outra, puxando Daniela pela mão. Concordava que talvez fosse bom puder desabafar um pouco, mas parte de si estava, mesmo sabendo que não tinha razões, aterrorizada perante a possibilidade de que o que acontecera com a ex namorada voltasse a suceder, mas nada disse.
A rapariga seguiu-a, ainda que se debatesse interiormente sobre a sua decisão de pedir à loura para falar de algo tão pessoal e que deixara uma mazela tão grande. Só esperava que aliviasse a outra um pouco, em vez de lhe abrir ainda mais a ferida. Estava ainda morder o lábio inferior enquanto ponderava o assunto, quando sentiu a mão se Susana ficar estática na sua, fazendo com que parassem ambas em pleno corredor, “Que se passa?”
“É que o álbum está no quarto da minha avó…”, sussurrou a loura, de modo quase inaudível, “Desde que ela morreu que nunca mais lá entrei”
“Suse…”, consolou a morena, afagando o braço da outra, “Não tens que fazer isto se não quiseres”
“Não mas eu devia…já era tempo”, teimou Susana, mantendo o olhar fixo na maçaneta da porta, embora o fraquejar do aperto na mão de Daniela não passasse despercebido a esta. Engoliu em seco, fazendo o seu melhor por ignorar o nó que se ia apertando cada vez mais na garganta, sem dar sinais de ir afrouxar tão cedo e levou a mão à chave, que destrancou lenta mas firmemente. Rodar a maçaneta revelou-se uma tarefa mais melindrosa, com muito custo.
O interior do quarto estava tal como naquela madrugada em que voltara do bar e se deparara com a avó, já sem força para se segurar à vida: a cama encontrava-se por fazer, os estores corridos e uns livros na mesa-de-cabeceira. Na verdade, era a primeira vez que Daniela entrava naquela divisão, mesmo que fosse o que imaginara, muito semelhante ao da sua própria avó. Largou a mão da loura, deixando que esta retirasse o álbum da uma gaveta e optou por nada dizer, até porque não havia nada a dizer. Um último momento de hesitação da parte da outra e abandonaram o quarto. Fechando a porta atrás de si, Susana respirou fundo, como se estivesse estado a suster a respiração o tempo todo. Ao olhar para a rapariga, limitou-se a garantir-lhe que estava bem.
Uma vez sentadas sobre a cama da loura, a morena recostou-se no corpo desta, tal como era hábito. Já a outra abriu na primeira página do álbum, na foto que tinha com os pais. O resto da tarde foi passado com Susana a explicar a maioria das fotos, desde os momentos que as antecederam, como aos hábitos que tinha com os avós, tais como idas ao parque e à praia, enfim, toda uma sinopse da sua vida em criança e adolescente. No final não pôde deixar de notar que de facto se sentia melhor, feliz por puder partilhar tudo aquilo com a namorada. Por sua vez, Daniela não pôde deixar achar piada a tudo o que ainda não sabia sobre a loura. Só esperava ter oportunidade de vir a saber.