Sara, ao sentir
no ar o cheiro da água de colónia de Afonso, o que, estando ela a uns bons
metros de distância, era preocupante, não precisou que este lhe dissesse para
onde ia ou, tampouco, com quem ia. Quem mais o faria passar mais do que os
habituais cinco minutos a arranjar-se, senão Leonor? Tapando o nariz, ou não
fosse ela sensível a cheiros, enfiou a cabeça no quarto do irmão, que tentava,
sem grande sucesso, domar os caracóis, e gozou, com uma cara de náusea
propositadamente exagerada, “Vais deixar a moça enjoada com esse perfume
horroroso!”
“Vou passar umas
horas ao lado dela, não posso cheirar a cavalo, não te parece?”, replicou o
rapaz, desistindo de fazer o que quer que fosse com o cabelo. Podia ser pior,
podia ter uma afro massiva como André, o filho adoptivo de Rodrigo, o seu
padrinho, mas o seu cabelo sempre revolto não lhe permitia fazer grande coisa
com ele. Aproximando-se da irmã, sem perder uma oportunidade para a provocar, acrescentou,
com olhos de Bambi, “E tu não te pões bonita para o “Tommy”?”
“O que é que ele
tem?”, inquiriu a irmã, confusa. Durante aquela semana fora fiel à promessa que
fizera a Leonor e fizera um esforço para incluir Tomás no grupo, algo que ele
aceitara, muito para seu espanto. Porém, por muito bem que ele se tivesse
comportado e ela não tinha mesmo nada a apontar, ela recusara a proposta dele
de a acompanhar a casa depois da escola, mais que não fosse porque ainda não
confiava nele o suficiente para ficar sozinha na sua companhia. Ainda iam dar
com ela no dia seguinte dentro de uma valeta. Mas admitia que a divertia muito
ver Cláudia desatar aos guinchos cada vez que o via de manhã, tanto como ver
João fazer ar de vómito cada vez que ele se aproximava.
“Ainda não
reparaste que hoje só tu é que não tens planos e, portanto, vais ficar em casa
do Tommy fofinho?”, troçou Afonso, exacerbando o olhar de Bambi, irritando Sara
com sucesso. A culpa era dela por insultar o seu perfume predilecto. Rindo ao
ver a irmã correr do quarto a gritar por Susana, não evitou pensar no quanto
esta crescera ultimamente, tanto que estava na “idade do armário” e isso
significaria, para mal dos seus pecados, dores de cabeça lá por casa. Claro que,
quando a picara em relação a Tomás, estava mesmo a brincar, deus o livrasse que
Sara se fosse meter com ele, era bom que ela tivesse melhor gosto que isso.
Batendo três vezes na madeira, pensou que seria melhor começar a preparar-se
para assustar os possíveis candidatos.
“Mãe!”, chamou
Sara, correndo pela casa até que encontrou, tanto Susana como Daniela, ambas
arranjadas para uma saída. Franzindo o sobrolho, perguntou, num só fôlego, fosse-se
lá saber como é que não desmaiara, “Se estão assim vestidas é porque vão sair,
não é? E se não me disseram para tomar banho é porque não vou, não é? E se não
vou quer dizer que vou ficar nalgum lado que não aqui, não é?”
“Brilhante
dedução”, ironizou Daniela, sem tirar os olhos do espelho enquanto colocava os
brincos, “Pois é, vais para casa da Guida e da Marta e vamos lá buscar-te, mais
tarde”
“Também gostamos
de ter tempo para nós de vez em quando”, explicou Susana, num tom
condescendente, despenteado o cabelo à filha, algo que ela detestava. Na
verdade, não lhe agradava nada deixar Sara com Tomás, depois do susto que
apanhara, mas Guida prometera-lhe que iria ter o filho debaixo de olho e não
tinham outra opção, portanto era isso ou abdicar de uma noite só para si e
Daniela, o que também não lhe apetecia, visto aquelas ocasiões não serem tão
frequentes como preferiria.
Como se lhe
conseguisse ler os pensamentos, Sara, a quem a ideia de ficar em casa de
praticamente desconhecidos, com alguém que já dera provas de ter um humor
instável, não agradava nada, inquiriu, esperançosa, “E os avós?”
“Estão num
cruzeiro nas ilhas gregas”, respondeu Daniela, acabando de dar os últimos retoques
na maquilhagem. Um dia, quando se reformasse, o que ainda ia demorar
infelizmente, aquela também seria a sua vida. Quando terminou, agarrou-se ao
braço de Susana, que se deixou arrastar com um sorriso sugestivo, e, com um
sorriso idêntico, puxando-a, disse, já a sair pela porta, “São só umas horas,
vais ver que não custa nada”
E com isso
desapareceram mais depressa do que Sara conseguiu processar. Aparecendo ao seu
lado, Afonso, sabendo como as mães podiam ficar com as demonstrações de afecto,
comentou, arrepiado, “Deixa lá, de certeza que também não querias ir com elas,
foda-se!”
Partilhando o
arrepio com o irmão, Sara acabou por considerar que ficar em casa de Tomás
talvez fosse mais agradável do que à primeira vista pensara. Por sua vez, o
rapaz mal conseguia conter o entusiasmo, tanto que começava a enervar a irmã,
falando durante a distância que separava a sua casa da de Leonor, ora de como tinha
a rapariga só para si durante duas horas, ora das suas fantasias sobre o que
podia acontecer no escuro. Além de que sonhar nunca fizera mal a ninguém e ele
também estava no direito de ter um “momento Rúben” de vez em quando. A bem do
seu apetite, Sara teve que lhe pedir para não partilhar mais, não fosse ela
ficar com uma imagem mental muito desagradável. Assim, foi com grande alívio
que avistou a casa em questão.
Após a observar,
impávida, durante o tempo que lhe demorou até formular uma reacção, Sara
exclamou, admirada, embora já devesse suspeitar, depois de ter visto o
desportivo de Guida, desportivo esse que se encontrava na entrada, “Eles vivem
aqui?! Tipo, já viste o tamanho da casa?”
Afonso teve que
concordar. Não era que ele se pudesse queixar do sítio onde vivia, afinal era
espaçoso e bem localizado, além de que sempre tinham a casa antiga de Susana,
casa essa onde vivera os primeiros anos da sua vida, tendo-se mudado para a
actual quando Sara nascera, mas a casa de Leonor fazia três da sua e ainda
tinha piscina e corte de ténis. A própria já lhe dissera que achava excessivo,
até porque a casa onde vivia nos Estados Unidos não chegava a ser assim, mas as
mães gostavam de ostentar e ela gostava da piscina, portanto não se queixava.
Tocando à campainha, pouco demorou até que Leonor lhes abrisse a porta, puxando
Tomás pela mão.
Era
inacreditável a velocidade a que a face dele passara de um esgar de repulsa ao
ver Afonso, para um sorriso, tão normal quanto lhe era possível, ao ver Sara,
embora continuasse um tanto sinistro, o que fez com que esta se retraísse para
junto do irmão. Ao ver a reacção de Sara, Tomás, decidido a não a assustar,
tentou esboçar o sorriso mais encantador que conseguiu, embora, a julgar pelo
ar nervoso da rapariga, tivesse tido o efeito oposto. O próprio Afonso, que, se
antes admirava a beleza de Leonor, que parecia ter-se cuidado especialmente para
a ocasião, ao ver a tentativa de um sorriso de Tomás, estremecera. Só a
rapariga, que tinha os braços em torno do pescoço do irmão, não reparara, não deixando
esmorecer o seu sorriso, “Boa noite”
Desviando a
atenção de Tomás, Afonso, deslumbrado com a imagem de Leonor, engoliu em seco e
gaguejou, com os olhos ligeiramente vidrados, “E…estás linda”
“Obrigada”,
respondeu a rapariga, sem grande entusiasmo, embora Tomás sentisse que o aperto
no seu pescoço se intensificara, “Vamos andando?”
“Vamos…claro”,
anuiu o rapaz, sem nunca deixar de a fitar. Quando ela se despediu do irmão e
já não podia ver a sua expressão, Afonso dirigiu a Tomás um olhar tão ameaçador
que conseguiu fazer com que este erguesse o sobrolho de espanto. Quanto a
Leonor, esta aproveitara para murmurar ao ouvido de Sara, desfazendo-se em
gratidão, “Obrigada pelo que tens feito, a sério”
Mudando de
expressão radicalmente quando considerou que Tomás havia percebido a mensagem,
que mais não era “se fizeres alguma à minha irmã, dou cabo de ti”, despediu-se
de Sara, antes de abrir o portão a Leonor, sempre com um ar afável. Ao ver o
irmão afastar-se, cheio de boa disposição e despreocupado, Sara, mordendo o
lábio inferior de tão apreensiva que se sentia, virou-se para encarar Tomás.
Previa, na hipótese mais agradável, um serão constrangedor e, na menos
agradável…bem, preferia não pensar nisso. Qual não foi o seu espanto quando o
viu, quase que envergonhado, a passar a mão pela nunca, dizendo, “I was
playing….if you’d like to join me…”
Sem conseguir
articular palavra, não só porque não entendera o que ele lhe tentara dizer,
como, também, porque aquela mudança de atitude a apanhara desprevenida, a
rapariga limitou-se a ficar especada. Repetindo a sugestão, agora em linguagem
que ela percebesse, Tomás perguntou, com o seu carregado sotaque, sotaque esse com
que João não se cansava de troçar e Cláudia de suspirar, “Es…tava a jogar, se
quiseres fazer-me…companhia”
Por muito que o
rapaz tentasse, o sotaque não desaparecia, nem se atenuava, e em situações em
que se sentisse mais ansioso, voltava sempre ao outro idioma, tanto que lhe
custava encontrar as palavras certas quando mudava para português. Satisfeito,
tanto quanto possível, por ter encontrado a expressão correcta, ilustrou o
convite, apontando para a televisão da sala. Aceitando, mesmo que não ligasse
nenhuma a jogos de vídeo, a rapariga acompanhou-o, sentando-se tão longe quanto
conseguiu, o que não foi pouco, tendo em conta as dimensões do sofá. Retomando
o jogo, o rapaz não se voltou a pronunciar, ainda que ocasionalmente olhasse na
direcção de Sara. Primeiro não conseguia formar uma frase inteira sem parecer
atrasado mental, depois não pontuava no jogo…aquela não era a sua noite.
Enervado, ofereceu, “Queres tentar tu?”
Encolhendo os
ombros, a rapariga aceitou, mesmo não sabendo como é que o comando funcionava,
nem tendo particular interesse em aprender, mas era melhor do que olhar para as
paredes. Olhando, ora para o ecrã, ora para o comando, Sara estava para
desistir, quando Tomás, pegando-lhe na mão, fez tenções de mostrar como
funcionava. O que valeu à rapariga foi o facto de a sua pele morena esconder o
rubor com que ficara. Já o rapaz não podia dizer o mesmo, sendo muito branco,
corou até à raiz dos cabelos. Vacilando um pouco, Sara, incapaz de prestar
atenção ao jogo, perguntou-se por que motivo é que se estaria a sentir assim,
não era coisa que alguma vez lhe tivesse acontecido, embora não pudesse dizer
que era desagradável.
Tomás, por seu
turno, sentiu que perdera de vez o domínio sobre a situação. Ousando olhar na
direcção da rapariga, viu que ela parecia tão perturbada como ele, o que sempre
o descansou um pouco. Ignorando a cara a ferver e o nó no estômago, o que era
uma sensação à qual não estava habituado, ponderou sobre como proceder a
seguir. Uma coisa era garantida, não podia dizer que não gostava, era
aconchegante até. Fazendo de tudo para não deixar transparecer o seu
nervosismo, colocou o outro braço em torno das costas de Sara e segurou-lhe na
outra mão, continuando a ajudá-la com o jogo. Incapaz de reagir, a rapariga
sossegou um pouco ao sentir a respiração irregular do rapaz no seu pescoço,
constatando que ele, também, tinha saído da sua zona de conforto.
Quando estavam
ambos prestes a relaxar e a deixar a situação encaminhar-se a si mesma, sem se
importarem com o que pudesse acontecer, um grito forte o suficiente para fazer
com que Sara fosse até ao tecto com o salto que dera, interrompeu-os, “Ah!
Estás aí, anormal! Arrumares a porra do teu quarto é que está quieto, não é?!”
Se a rapariga
sentiu os tímpanos a lamentarem-se, a expressão de Tomás transparecia um ódio
tão intenso que Sara desejou estar no meio de Daniela e Susana, sujeitando-se
aos constrangimentos todos. O rapaz nem podia acreditar no timing da mãe, não
sabia como mas ela tinha a tendência para aparecer sempre quando menos a queria
ver. Pronto, a verdade era que nunca a queria ver, mas ela arruinara-lhe um
momento que ele próprio não sabia como classificar mas que estava a adorar, e
isso enervava-o até mais não. Guida, insensível ao olhar que o filho lhe
dirigiu, continuou, detendo-se apenas quando viu Sara, encolhida, “Se não
arrumares aquele quarto agora mesmo, sobes as escadas de joelhos ao pontapé…ai!
Desculpa, ainda não te tinha visto, querida”
“B…boa n…noite”,
cumprimentou a rapariga, tentando estabilizar o ritmo cardíaco. Nunca vira nem
Daniela, nem Susana assim, nem quando entornara Coca-Cola em cima do trabalho
de Daniela, ou quando partira um serviço de jantar por estar a brincar com uma
bola dentro de casa. A mãe de Tomás, pelos vistos, virava dragão por algo tão
mundano como um quarto desarrumado. Perguntava-se, contudo, se ela também seria
assim com Leonor, mas não lhe parecia, afinal a impressão com que ficara fora a
de que a rapariga era a menina de ouro da família. Vendo Guida afastar-se,
dirigiu-se a Tomás, que tremia com o que aparentava ser raiva pura. Pedindo-lhe
para se acalmar, foi recebida com um olhar gélido, sendo sacudida por ele, que
retirara a mão com brusquidão. O gesto magoou-a.
Na verdade, a
situação fazia-a lembrar-se de quando Mocas fora apanhado numa armadilha
deixada pelos caçadores na floresta. O cão gania tanto que era impossível não o
socorrerem, mas quando se aproximavam ladrava, ameaçando morder. Fora
necessário, com muita calma, Sara sossegar Mocas, enquanto Afonso abria a
armadilha. Tentando de novo, aproximou-se do rapaz, sussurrando-lhe o que quer
que lhe viesse a cabeça para o acalmar. Quando ele pareceu menos hostil,
tentou, a medo, tocar-lhe. Mesmo que o sentisse tenso, arriscou, até que lhe
conseguiu passar os braços em torno da cintura, abraçando-o. Devagar, foi com
um suspiro, que ele relaxou, deixando que ela lhe passasse as mãos pelas costas,
reconfortando-o.
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O cavalheirismo
de Afonso era algo que não deixava de surpreender Leonor, por mais que ele o
provasse, vezes e vezes seguidas. Ainda pensou que ele o estivesse a forçar
apenas para conseguir dar boa imagem, mas, além de nunca descurar, não era
apenas a ela que ele tratava assim. Quando fora almoçar outro dia com ela e com
Adriana, também fora impecavelmente bem-educado para ela, o que o fez subir na
consideração da rapariga que, teve que admitir, que ele era naturalmente boa
pessoa sem ter segundas intenções. Era como uma lufada de ar fresco encontrar
alguém assim, como Adriana dissera e muito bem. Claro que, na opinião de
Leonor, também ajudava o facto de ele ser bem-parecido, mas nunca comentaria
tal coisa com alguém que não Adriana, mesmo que ele não fizesse o género da
amiga.
Como ainda
tinham uma hora até que o filme fosse exibido, decidiram, depois de darem uma
volta pelo shopping, volta essa que a rapariga tentou que fosse breve, pois
podia reparar que ver roupa não era algo que Afonso apreciasse, ir jantar.
Naquela noite, o rapaz parecia estar a fazer um esforço extra, o que enterneceu
Leonor: ora lhe abria as portas, ora lhe puxara a cadeira quando ela se sentara
no restaurante, além de que tivera uma paciência infinita para percorrer lojas
sem conta com ela. O melhor era, sem dúvida, o facto de a interacção entre
ambos ter fluído sem que nenhum a forçasse, como já tinha vindo a acontecer,
progressivamente, portanto não tiveram um único momento constrangedor.
Quando Afonso,
antes de jantar, se refugiou na casa de banho para tratar dos níveis de açúcar,
pois aquele restaurante não se encontrava quase vazio como o café do outro dia,
a rapariga, pôde, então, ter um instante para organizar a cabeça. Primeira
tarefa em mãos, parar de sorrir como se ainda fosse pita. Por algum motivo,
ultimamente não se sentia nada ela. Era seu hábito afugentar todos e quaisquer
admiradores como se tivessem alguma doença que lhe pudessem pegar, mas, mesmo
tendo ainda um pé atrás em relação a Afonso, não se sentia capaz de correr com
ele, chegando mesmo ao ponto de ansiar pela companhia dele e de se sentir mal
cada vez que o afastava, por força do hábito. Isso quereria dizer que ele era
especial? Que ideia absurda.
O seu momento de
introspecção foi interrompido pela chegada do rapaz, que lhe tocara no ombro,
assustando-a. Como sobressaltá-la não havia sido a sua intenção, Afonso,
fazendo um mau trabalho a conter o riso, brincou, “Tenho as agulhas escondidas,
descansa”
Dando-lhe um
estalo em jeito de brincadeira na mão que ainda estava sobre o seu ombro,
Leonor limitou-se a erguer uma sobrancelha, antes de, também ela, se rir.
Aparentemente, a sua capacidade de mover uma sobrancelha ao mesmo tempo que
mantinha a outra quieta, deixara o rapaz intrigado, tanto que ele lhe pedira
para o fazer outra vez. Levantando, ora uma, ora outra, ora as duas, a rapariga
fez-lhe a vontade. Quando ele a tentou imitar, sem sucesso, acabou a levantar
as duas ao mesmo tempo de uma maneira que fez com que a idosa na mesa ao lado,
ultrajada, abanasse a cabeça em sinal de reprovação, o que fez com que ambos se
rissem. Fora um momento engraçado, contaminado apenas com uma mensagem que
Rúben lhe enviara para o telemóvel, mensagem essa que o fez revirar os olhos ao
ponto de até conseguir ver o candeeiro por cima de si:
“Então a gaja está papada?”
Pouco depois, o
jantar chegou. Afonso, um tanto limitado pela sua doença, teve que se abster de
pedir um prato de massas, por mais que fosse essa a sua vontade, afinal os
pratos amigos da diabetes eram tão insípidos que tornavam as refeições uma hora
sensaborona para qualquer um. Mas, ao avistar o prato escolhido por Leonor, não
pôde evitar ficar com água na boca. Vendo o prato do rapaz intocado e
desprezado, enquanto ele observava o seu como alguém que aprecia uma pintura
num museu, ofereceu, “Queres provar?”
A ideia de comer
massa envolta em natas ainda fumegante parecia-lhe um oásis no meio do deserto
e, só por provar não haveria de fazer mal, desde que não acabasse a raptar o
prato da rapariga. Aceitando o pouco que Leonor lhe levara à boca, deixou-se
deliciar. Já havia ganho o dia. Notando que ele ficara com um pouco de natas no
canto da boca, a rapariga, rindo, limpou-o, levando-lhe um guardanapo à boca.
Com outra tentativa frustrada de levantar uma única sobrancelha, o que apenas
conseguiu fazer com que Leonor se risse, ainda mais, fingiu um ar indignado,
antes de sucumbir ao riso. Dando-lhe a provar, também, o seu prato, afinal era
o mínimo, teve a oportunidade de lhe limpar o bago de arroz com que ficara na
cara. Assim estavam quites, como ela fez questão de lhe dizer.
Depois da
refeição, Afonso, dando, mais uma vez, provas do seu cavalheirismo, ofereceu-se
para lhe pagar o jantar, gesto esse que ela, obviamente, recusou, recusa essa a
que ele, ainda mais obviamente, fez ouvidos de mercador. Deixando uma nota no
pratinho que o empregado recolheu, respondeu aos protestos da rapariga, com os
mesmos olhos de Bambi que tanto enfureciam Sara, “Ups, já foi e não podes fazer
nada quanto a isso”
Não sendo pessoa
para admitir uma derrota, Leonor, esperou até que saíssem do restaurante para,
na primeira oportunidade, o puxar pela camisola para um beco entre duas lojas,
onde não estava ninguém. Perante o ar estupefacto do rapaz, pôs-lhe uma mão no
peito e encostou-o à parede, não deixando qualquer distância entre ambos. Se
ele parecia estupefacto antes, agora, que sentia o corpo dela junto ao seu, parecia
prestes a ter uma coisinha má. Incapaz de conter a sua satisfação ao vê-lo tão
vulnerável, a rapariga, que quase conseguia ver-lhe o coração a saltar-lhe do
peito, provocando-o mais do que julgaria que ele fosse aguentar, sussurrou-lhe
ao ouvido, sedutoramente, “Não devias ter feito aquilo…agora vou ter que te
compensar de alguma maneira”
“Ahm…”, foi tudo
o que Afonso conseguiu dizer. O olhar que a rapariga lhe dirigia era sugestivo
o suficiente para que ele ficasse estático, entre ela e a parede. A proximidade
entre ambos e a respiração quente de Leonor junto ao seu pescoço fazia com que
qualquer tentativa de raciocinar fosse em vão. Verdade fosse dita, imaginara
muitas vezes um cenário análogo, mas vê-lo concretizar-se era algo que nunca
lhe passara pela cabeça e agora que estava a acontecer, sentia-se demasiado
paralisado para agir. Quando ia, finalmente, reagir, afinal aquela situação era
um sonho tornado realidade, a rapariga afastou-se e disse, substituindo o olhar
de matadora por um de Bambi em todo idêntico ao seu, “Ups, já foi e não podes
fazer nada quanto a isso”
O rapaz, a quem
a realidade atingira com a força de um comboio em movimento, soltou um grunhido
imperceptível de frustração. Bem lhe parecia que algo tão bom era demasiado
surreal para lhe acontecer a ele. Com a face tão vermelha que rivalizava com o
nariz do palhaço da McDonald’s, o que divertiu a rapariga ainda mais, compôs a
camisola, tentando segurar-se ao pouco orgulho que lhe restava. Não fazia mal,
fora um momento maravilhoso e, já por si, servia para o deixar satisfeito.
Empinando o nariz, numa atitude snob exacerbada, informou Leonor que convinha
despacharem-se porque o filme estava quase a começar. Ocupado a rever
mentalmente o que acabara de acontecer, o que o deixou com um sorriso parvo, nem
reparara que ela entretanto já se adiantara e comprara os bilhetes, só dando
por isso quando ela lhos abanou em frente à cara, “Agora estamos quites! Não achavas
que te ia deixar pagares-me o jantar sem retribuir?”
“És tão teimosa…”,
desabafou Afonso, exasperado, abanando a cabeça. Se ao menos ele tivesse o
mesmo poder sobre ela que ela tinha sobre ele, juntando a isso, a capacidade de
ser sedutor sem parecer o Mr. Bean, ter-lhe ia feito o mesmo, a ver se ela
gostava. Não que ele não tivesse gostado, de forma alguma, mas sentia-se
torturado, por muito que valorizasse aquela brincadeira.
Enquanto se
dirigiam para os lugares designados, Leonor não conseguiu evitar lembrar-se do
que acontecera havia uns minutos atrás. Na altura decidira provocá-lo apenas
porque era impensável para ela ser contrariada daquela maneira e, mais ainda,
que levassem a sua avante, mas se soubesse que iria ficar daquela maneira devido
à proximidade entre ambos, estaria quieta. Reprimindo a vontade que tinha de o
recompensar, daquela vez a sério, cruzou os braços e concentrou-se no filme. Não
estava mesmo em si e tivera a prova disso. Deitando uma olhadela na direcção do
rapaz, podia ver que ele ainda não acalmara. De certa forma, ver que tinha
tanto efeito sobre ele, era algo que a fazia sentir-se lisonjeada.
A bem da
sanidade de ambos, o resto do filme decorrera sem que mais comportamentos pouco
característicos, fossem de quem fossem, acontecessem. Houvera, contudo, a troca
de olhares ocasional que serviu para que ambos se recordassem de que o que
acontecera estava bem presente na mente um do outro. No caminho para casa,
feito sobre um silêncio que, nem um, nem outro, dera conta que se instalara,
visto estarem ambos perdidos nos seus pensamentos, Afonso repetia o que
acontecera, vezes e vezes sem conta. Sabia que não devia dar demasiada
importância ao assunto e que para ela não passara de uma brincadeira, mas não conseguia
afastar a sensação de que se calhar…talvez…Já Leonor tentava, a todo o custo,
batalhar a dissonância cognitiva, bem que queria e tanto, pelo menos, já
admitira a si mesma, o que representava um grande progresso, mas sabia que não podia.
Ao chegarem à
porta de casa, o rapaz, tomara uma decisão. Assim iria acalmar a sensação que
tinha de que ali estava a sua oportunidade e, caso corresse mal, poderia dizer
que só estava a tentar pagar-lhe da mesma doença. Respirando fundo, de modo a
ganhar coragem, deteve a rapariga à porta de casa. Vendo o ar confuso dela,
encostou-a à parede e, trocando um olhar, apenas para se certificar que não se
equivocara, contra todas as expectativas, até dele próprio, beijou-a. De
início, tão ao de leve que o próprio não se apercebera que o fizera, depois, ao
sentir que ela lhe colocara os braços em torno do pescoço e o puxava para si,
permitira-se a intensificar.
Quanto a Leonor,
se passara o caminho até casa a conter a vontade que tinha de repetir a graça,
mal podia acreditar na reviravolta que a situação dera quando de vira encostada
à parede. Sabia que não podia, que mais tarde se iria arrepender mas,
francamente, naquele momento não se importou, lidaria com a culpa mais tarde.
Ver Afonso a assumir o controlo por uma vez fora mais que suficiente para
baixar as suas defesas. E valera a pena, havia sido bem melhor do que alguma
vez imaginara. Quando achou que já se permitira a mais do que devia, afastou-o,
embora ele mantivesse os braços em torno da sua cintura, encarando-a com uma
expressão de adoração tão sincera, que ela ficara, pela primeira vez, sem
palavras. Respirando fundo, o rapaz disse, “Agora sim estamos quites…”
“A sério…foi…qualquer
coisa”, continuou Afonso, com uma sensação de leveza que não podia comparar a
nada. Mesmo que nada tivesse dito, o sorriso que Leonor lhe dirigira dissipara
quaisquer dúvidas que ainda pudesse ter.
“Boa noite,
linda! Então diver…”, para mal dos pecados de ambos, Guida resolvera, nesse
momento, abrir a porta. Primeiro deparava-se com Sara quando estava a repreender
Tomás, agora, que tentara fazer um gesto simpático pela filha, indo-a receber à
porta, encontrava-a numa posição deveras comprometedora e, como se não bastasse,
com o filho da sua melhor amiga! Susana nunca mais a iria deixar em paz com
aquilo! Era melhor bater em retirada sob pena de se enterrar ainda mais, “Acho
que…tenho que ir ali!”
Com grande pena
sua, a rapariga retirou as mãos de Afonso da sua cintura. Como nem tudo podia
ser mau, entretanto apareceram Sara e Tomás, poupando-a a mais momentos
desconfortáveis. E parecia que as surpresas não se ficavam por ali, o irmão
docilmente, como ela não se lembrava de o ouvir, despediu-se de Sara, “Então…vemo-nos
segunda, na escola, fica bem”
Parecia que
Afonso teria que deixar para mais tarde tornar Tomás no seu saco de boxe. Sara,
no mesmo tom que deixara o irmão agoniado de tão doce que fora, respondeu, “Boa
noite Tomás, até segunda”
Leonor não sabia
o que acontecera para aquela mudança tomar lugar, mas sentia vontade de fazer
vénias a Sara. Como qualquer hipótese de prolongar o momento com Afonso fora
por água abaixo, não teve alternativa que não despedir-se, dando-lhe um beijo
na bochecha, ainda corada, “Então adeus e obrigada por tudo”
“Ahm…adeus”,
retribuiu o rapaz, demasiado atordoado com toda aquela informação que tinha
para processar. Quando já não tinha nem Leonor, nem Tomás na periferia, permitiu-se
a exteriorizar a alegria que sentia, agarrou na irmã pela cintura e rodopiou-a
no ar, “Aconteceu mesmo!”
Só mesmo porque,
ela própria se sentia feliz, mesmo sem saber ao certo porquê, é que Sara o
deixou agitá-la como se fosse uma boneca. Quando Afonso acalmou, é que ela
disse, “Pois é, mano, realmente foi bom”