terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Capítulo 6


Sara, ao sentir no ar o cheiro da água de colónia de Afonso, o que, estando ela a uns bons metros de distância, era preocupante, não precisou que este lhe dissesse para onde ia ou, tampouco, com quem ia. Quem mais o faria passar mais do que os habituais cinco minutos a arranjar-se, senão Leonor? Tapando o nariz, ou não fosse ela sensível a cheiros, enfiou a cabeça no quarto do irmão, que tentava, sem grande sucesso, domar os caracóis, e gozou, com uma cara de náusea propositadamente exagerada, “Vais deixar a moça enjoada com esse perfume horroroso!”

“Vou passar umas horas ao lado dela, não posso cheirar a cavalo, não te parece?”, replicou o rapaz, desistindo de fazer o que quer que fosse com o cabelo. Podia ser pior, podia ter uma afro massiva como André, o filho adoptivo de Rodrigo, o seu padrinho, mas o seu cabelo sempre revolto não lhe permitia fazer grande coisa com ele. Aproximando-se da irmã, sem perder uma oportunidade para a provocar, acrescentou, com olhos de Bambi, “E tu não te pões bonita para o “Tommy”?”

“O que é que ele tem?”, inquiriu a irmã, confusa. Durante aquela semana fora fiel à promessa que fizera a Leonor e fizera um esforço para incluir Tomás no grupo, algo que ele aceitara, muito para seu espanto. Porém, por muito bem que ele se tivesse comportado e ela não tinha mesmo nada a apontar, ela recusara a proposta dele de a acompanhar a casa depois da escola, mais que não fosse porque ainda não confiava nele o suficiente para ficar sozinha na sua companhia. Ainda iam dar com ela no dia seguinte dentro de uma valeta. Mas admitia que a divertia muito ver Cláudia desatar aos guinchos cada vez que o via de manhã, tanto como ver João fazer ar de vómito cada vez que ele se aproximava.

“Ainda não reparaste que hoje só tu é que não tens planos e, portanto, vais ficar em casa do Tommy fofinho?”, troçou Afonso, exacerbando o olhar de Bambi, irritando Sara com sucesso. A culpa era dela por insultar o seu perfume predilecto. Rindo ao ver a irmã correr do quarto a gritar por Susana, não evitou pensar no quanto esta crescera ultimamente, tanto que estava na “idade do armário” e isso significaria, para mal dos seus pecados, dores de cabeça lá por casa. Claro que, quando a picara em relação a Tomás, estava mesmo a brincar, deus o livrasse que Sara se fosse meter com ele, era bom que ela tivesse melhor gosto que isso. Batendo três vezes na madeira, pensou que seria melhor começar a preparar-se para assustar os possíveis candidatos.

“Mãe!”, chamou Sara, correndo pela casa até que encontrou, tanto Susana como Daniela, ambas arranjadas para uma saída. Franzindo o sobrolho, perguntou, num só fôlego, fosse-se lá saber como é que não desmaiara, “Se estão assim vestidas é porque vão sair, não é? E se não me disseram para tomar banho é porque não vou, não é? E se não vou quer dizer que vou ficar nalgum lado que não aqui, não é?”

“Brilhante dedução”, ironizou Daniela, sem tirar os olhos do espelho enquanto colocava os brincos, “Pois é, vais para casa da Guida e da Marta e vamos lá buscar-te, mais tarde”

“Também gostamos de ter tempo para nós de vez em quando”, explicou Susana, num tom condescendente, despenteado o cabelo à filha, algo que ela detestava. Na verdade, não lhe agradava nada deixar Sara com Tomás, depois do susto que apanhara, mas Guida prometera-lhe que iria ter o filho debaixo de olho e não tinham outra opção, portanto era isso ou abdicar de uma noite só para si e Daniela, o que também não lhe apetecia, visto aquelas ocasiões não serem tão frequentes como preferiria.

Como se lhe conseguisse ler os pensamentos, Sara, a quem a ideia de ficar em casa de praticamente desconhecidos, com alguém que já dera provas de ter um humor instável, não agradava nada, inquiriu, esperançosa, “E os avós?”

“Estão num cruzeiro nas ilhas gregas”, respondeu Daniela, acabando de dar os últimos retoques na maquilhagem. Um dia, quando se reformasse, o que ainda ia demorar infelizmente, aquela também seria a sua vida. Quando terminou, agarrou-se ao braço de Susana, que se deixou arrastar com um sorriso sugestivo, e, com um sorriso idêntico, puxando-a, disse, já a sair pela porta, “São só umas horas, vais ver que não custa nada”

E com isso desapareceram mais depressa do que Sara conseguiu processar. Aparecendo ao seu lado, Afonso, sabendo como as mães podiam ficar com as demonstrações de afecto, comentou, arrepiado, “Deixa lá, de certeza que também não querias ir com elas, foda-se!”

Partilhando o arrepio com o irmão, Sara acabou por considerar que ficar em casa de Tomás talvez fosse mais agradável do que à primeira vista pensara. Por sua vez, o rapaz mal conseguia conter o entusiasmo, tanto que começava a enervar a irmã, falando durante a distância que separava a sua casa da de Leonor, ora de como tinha a rapariga só para si durante duas horas, ora das suas fantasias sobre o que podia acontecer no escuro. Além de que sonhar nunca fizera mal a ninguém e ele também estava no direito de ter um “momento Rúben” de vez em quando. A bem do seu apetite, Sara teve que lhe pedir para não partilhar mais, não fosse ela ficar com uma imagem mental muito desagradável. Assim, foi com grande alívio que avistou a casa em questão.

Após a observar, impávida, durante o tempo que lhe demorou até formular uma reacção, Sara exclamou, admirada, embora já devesse suspeitar, depois de ter visto o desportivo de Guida, desportivo esse que se encontrava na entrada, “Eles vivem aqui?! Tipo, já viste o tamanho da casa?”

Afonso teve que concordar. Não era que ele se pudesse queixar do sítio onde vivia, afinal era espaçoso e bem localizado, além de que sempre tinham a casa antiga de Susana, casa essa onde vivera os primeiros anos da sua vida, tendo-se mudado para a actual quando Sara nascera, mas a casa de Leonor fazia três da sua e ainda tinha piscina e corte de ténis. A própria já lhe dissera que achava excessivo, até porque a casa onde vivia nos Estados Unidos não chegava a ser assim, mas as mães gostavam de ostentar e ela gostava da piscina, portanto não se queixava. Tocando à campainha, pouco demorou até que Leonor lhes abrisse a porta, puxando Tomás pela mão.

Era inacreditável a velocidade a que a face dele passara de um esgar de repulsa ao ver Afonso, para um sorriso, tão normal quanto lhe era possível, ao ver Sara, embora continuasse um tanto sinistro, o que fez com que esta se retraísse para junto do irmão. Ao ver a reacção de Sara, Tomás, decidido a não a assustar, tentou esboçar o sorriso mais encantador que conseguiu, embora, a julgar pelo ar nervoso da rapariga, tivesse tido o efeito oposto. O próprio Afonso, que, se antes admirava a beleza de Leonor, que parecia ter-se cuidado especialmente para a ocasião, ao ver a tentativa de um sorriso de Tomás, estremecera. Só a rapariga, que tinha os braços em torno do pescoço do irmão, não reparara, não deixando esmorecer o seu sorriso, “Boa noite”

Desviando a atenção de Tomás, Afonso, deslumbrado com a imagem de Leonor, engoliu em seco e gaguejou, com os olhos ligeiramente vidrados, “E…estás linda”

“Obrigada”, respondeu a rapariga, sem grande entusiasmo, embora Tomás sentisse que o aperto no seu pescoço se intensificara, “Vamos andando?”

“Vamos…claro”, anuiu o rapaz, sem nunca deixar de a fitar. Quando ela se despediu do irmão e já não podia ver a sua expressão, Afonso dirigiu a Tomás um olhar tão ameaçador que conseguiu fazer com que este erguesse o sobrolho de espanto. Quanto a Leonor, esta aproveitara para murmurar ao ouvido de Sara, desfazendo-se em gratidão, “Obrigada pelo que tens feito, a sério”

Mudando de expressão radicalmente quando considerou que Tomás havia percebido a mensagem, que mais não era “se fizeres alguma à minha irmã, dou cabo de ti”, despediu-se de Sara, antes de abrir o portão a Leonor, sempre com um ar afável. Ao ver o irmão afastar-se, cheio de boa disposição e despreocupado, Sara, mordendo o lábio inferior de tão apreensiva que se sentia, virou-se para encarar Tomás. Previa, na hipótese mais agradável, um serão constrangedor e, na menos agradável…bem, preferia não pensar nisso. Qual não foi o seu espanto quando o viu, quase que envergonhado, a passar a mão pela nunca, dizendo, “I was playing….if you’d like to join me…”

Sem conseguir articular palavra, não só porque não entendera o que ele lhe tentara dizer, como, também, porque aquela mudança de atitude a apanhara desprevenida, a rapariga limitou-se a ficar especada. Repetindo a sugestão, agora em linguagem que ela percebesse, Tomás perguntou, com o seu carregado sotaque, sotaque esse com que João não se cansava de troçar e Cláudia de suspirar, “Es…tava a jogar, se quiseres fazer-me…companhia”

Por muito que o rapaz tentasse, o sotaque não desaparecia, nem se atenuava, e em situações em que se sentisse mais ansioso, voltava sempre ao outro idioma, tanto que lhe custava encontrar as palavras certas quando mudava para português. Satisfeito, tanto quanto possível, por ter encontrado a expressão correcta, ilustrou o convite, apontando para a televisão da sala. Aceitando, mesmo que não ligasse nenhuma a jogos de vídeo, a rapariga acompanhou-o, sentando-se tão longe quanto conseguiu, o que não foi pouco, tendo em conta as dimensões do sofá. Retomando o jogo, o rapaz não se voltou a pronunciar, ainda que ocasionalmente olhasse na direcção de Sara. Primeiro não conseguia formar uma frase inteira sem parecer atrasado mental, depois não pontuava no jogo…aquela não era a sua noite. Enervado, ofereceu, “Queres tentar tu?”

Encolhendo os ombros, a rapariga aceitou, mesmo não sabendo como é que o comando funcionava, nem tendo particular interesse em aprender, mas era melhor do que olhar para as paredes. Olhando, ora para o ecrã, ora para o comando, Sara estava para desistir, quando Tomás, pegando-lhe na mão, fez tenções de mostrar como funcionava. O que valeu à rapariga foi o facto de a sua pele morena esconder o rubor com que ficara. Já o rapaz não podia dizer o mesmo, sendo muito branco, corou até à raiz dos cabelos. Vacilando um pouco, Sara, incapaz de prestar atenção ao jogo, perguntou-se por que motivo é que se estaria a sentir assim, não era coisa que alguma vez lhe tivesse acontecido, embora não pudesse dizer que era desagradável.

Tomás, por seu turno, sentiu que perdera de vez o domínio sobre a situação. Ousando olhar na direcção da rapariga, viu que ela parecia tão perturbada como ele, o que sempre o descansou um pouco. Ignorando a cara a ferver e o nó no estômago, o que era uma sensação à qual não estava habituado, ponderou sobre como proceder a seguir. Uma coisa era garantida, não podia dizer que não gostava, era aconchegante até. Fazendo de tudo para não deixar transparecer o seu nervosismo, colocou o outro braço em torno das costas de Sara e segurou-lhe na outra mão, continuando a ajudá-la com o jogo. Incapaz de reagir, a rapariga sossegou um pouco ao sentir a respiração irregular do rapaz no seu pescoço, constatando que ele, também, tinha saído da sua zona de conforto.

Quando estavam ambos prestes a relaxar e a deixar a situação encaminhar-se a si mesma, sem se importarem com o que pudesse acontecer, um grito forte o suficiente para fazer com que Sara fosse até ao tecto com o salto que dera, interrompeu-os, “Ah! Estás aí, anormal! Arrumares a porra do teu quarto é que está quieto, não é?!”

Se a rapariga sentiu os tímpanos a lamentarem-se, a expressão de Tomás transparecia um ódio tão intenso que Sara desejou estar no meio de Daniela e Susana, sujeitando-se aos constrangimentos todos. O rapaz nem podia acreditar no timing da mãe, não sabia como mas ela tinha a tendência para aparecer sempre quando menos a queria ver. Pronto, a verdade era que nunca a queria ver, mas ela arruinara-lhe um momento que ele próprio não sabia como classificar mas que estava a adorar, e isso enervava-o até mais não. Guida, insensível ao olhar que o filho lhe dirigiu, continuou, detendo-se apenas quando viu Sara, encolhida, “Se não arrumares aquele quarto agora mesmo, sobes as escadas de joelhos ao pontapé…ai! Desculpa, ainda não te tinha visto, querida”

“B…boa n…noite”, cumprimentou a rapariga, tentando estabilizar o ritmo cardíaco. Nunca vira nem Daniela, nem Susana assim, nem quando entornara Coca-Cola em cima do trabalho de Daniela, ou quando partira um serviço de jantar por estar a brincar com uma bola dentro de casa. A mãe de Tomás, pelos vistos, virava dragão por algo tão mundano como um quarto desarrumado. Perguntava-se, contudo, se ela também seria assim com Leonor, mas não lhe parecia, afinal a impressão com que ficara fora a de que a rapariga era a menina de ouro da família. Vendo Guida afastar-se, dirigiu-se a Tomás, que tremia com o que aparentava ser raiva pura. Pedindo-lhe para se acalmar, foi recebida com um olhar gélido, sendo sacudida por ele, que retirara a mão com brusquidão. O gesto magoou-a.

Na verdade, a situação fazia-a lembrar-se de quando Mocas fora apanhado numa armadilha deixada pelos caçadores na floresta. O cão gania tanto que era impossível não o socorrerem, mas quando se aproximavam ladrava, ameaçando morder. Fora necessário, com muita calma, Sara sossegar Mocas, enquanto Afonso abria a armadilha. Tentando de novo, aproximou-se do rapaz, sussurrando-lhe o que quer que lhe viesse a cabeça para o acalmar. Quando ele pareceu menos hostil, tentou, a medo, tocar-lhe. Mesmo que o sentisse tenso, arriscou, até que lhe conseguiu passar os braços em torno da cintura, abraçando-o. Devagar, foi com um suspiro, que ele relaxou, deixando que ela lhe passasse as mãos pelas costas, reconfortando-o.

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O cavalheirismo de Afonso era algo que não deixava de surpreender Leonor, por mais que ele o provasse, vezes e vezes seguidas. Ainda pensou que ele o estivesse a forçar apenas para conseguir dar boa imagem, mas, além de nunca descurar, não era apenas a ela que ele tratava assim. Quando fora almoçar outro dia com ela e com Adriana, também fora impecavelmente bem-educado para ela, o que o fez subir na consideração da rapariga que, teve que admitir, que ele era naturalmente boa pessoa sem ter segundas intenções. Era como uma lufada de ar fresco encontrar alguém assim, como Adriana dissera e muito bem. Claro que, na opinião de Leonor, também ajudava o facto de ele ser bem-parecido, mas nunca comentaria tal coisa com alguém que não Adriana, mesmo que ele não fizesse o género da amiga.

Como ainda tinham uma hora até que o filme fosse exibido, decidiram, depois de darem uma volta pelo shopping, volta essa que a rapariga tentou que fosse breve, pois podia reparar que ver roupa não era algo que Afonso apreciasse, ir jantar. Naquela noite, o rapaz parecia estar a fazer um esforço extra, o que enterneceu Leonor: ora lhe abria as portas, ora lhe puxara a cadeira quando ela se sentara no restaurante, além de que tivera uma paciência infinita para percorrer lojas sem conta com ela. O melhor era, sem dúvida, o facto de a interacção entre ambos ter fluído sem que nenhum a forçasse, como já tinha vindo a acontecer, progressivamente, portanto não tiveram um único momento constrangedor.

Quando Afonso, antes de jantar, se refugiou na casa de banho para tratar dos níveis de açúcar, pois aquele restaurante não se encontrava quase vazio como o café do outro dia, a rapariga, pôde, então, ter um instante para organizar a cabeça. Primeira tarefa em mãos, parar de sorrir como se ainda fosse pita. Por algum motivo, ultimamente não se sentia nada ela. Era seu hábito afugentar todos e quaisquer admiradores como se tivessem alguma doença que lhe pudessem pegar, mas, mesmo tendo ainda um pé atrás em relação a Afonso, não se sentia capaz de correr com ele, chegando mesmo ao ponto de ansiar pela companhia dele e de se sentir mal cada vez que o afastava, por força do hábito. Isso quereria dizer que ele era especial? Que ideia absurda.

O seu momento de introspecção foi interrompido pela chegada do rapaz, que lhe tocara no ombro, assustando-a. Como sobressaltá-la não havia sido a sua intenção, Afonso, fazendo um mau trabalho a conter o riso, brincou, “Tenho as agulhas escondidas, descansa”

Dando-lhe um estalo em jeito de brincadeira na mão que ainda estava sobre o seu ombro, Leonor limitou-se a erguer uma sobrancelha, antes de, também ela, se rir. Aparentemente, a sua capacidade de mover uma sobrancelha ao mesmo tempo que mantinha a outra quieta, deixara o rapaz intrigado, tanto que ele lhe pedira para o fazer outra vez. Levantando, ora uma, ora outra, ora as duas, a rapariga fez-lhe a vontade. Quando ele a tentou imitar, sem sucesso, acabou a levantar as duas ao mesmo tempo de uma maneira que fez com que a idosa na mesa ao lado, ultrajada, abanasse a cabeça em sinal de reprovação, o que fez com que ambos se rissem. Fora um momento engraçado, contaminado apenas com uma mensagem que Rúben lhe enviara para o telemóvel, mensagem essa que o fez revirar os olhos ao ponto de até conseguir ver o candeeiro por cima de si:

“Então a gaja está papada?”

Pouco depois, o jantar chegou. Afonso, um tanto limitado pela sua doença, teve que se abster de pedir um prato de massas, por mais que fosse essa a sua vontade, afinal os pratos amigos da diabetes eram tão insípidos que tornavam as refeições uma hora sensaborona para qualquer um. Mas, ao avistar o prato escolhido por Leonor, não pôde evitar ficar com água na boca. Vendo o prato do rapaz intocado e desprezado, enquanto ele observava o seu como alguém que aprecia uma pintura num museu, ofereceu, “Queres provar?”

A ideia de comer massa envolta em natas ainda fumegante parecia-lhe um oásis no meio do deserto e, só por provar não haveria de fazer mal, desde que não acabasse a raptar o prato da rapariga. Aceitando o pouco que Leonor lhe levara à boca, deixou-se deliciar. Já havia ganho o dia. Notando que ele ficara com um pouco de natas no canto da boca, a rapariga, rindo, limpou-o, levando-lhe um guardanapo à boca. Com outra tentativa frustrada de levantar uma única sobrancelha, o que apenas conseguiu fazer com que Leonor se risse, ainda mais, fingiu um ar indignado, antes de sucumbir ao riso. Dando-lhe a provar, também, o seu prato, afinal era o mínimo, teve a oportunidade de lhe limpar o bago de arroz com que ficara na cara. Assim estavam quites, como ela fez questão de lhe dizer.

Depois da refeição, Afonso, dando, mais uma vez, provas do seu cavalheirismo, ofereceu-se para lhe pagar o jantar, gesto esse que ela, obviamente, recusou, recusa essa a que ele, ainda mais obviamente, fez ouvidos de mercador. Deixando uma nota no pratinho que o empregado recolheu, respondeu aos protestos da rapariga, com os mesmos olhos de Bambi que tanto enfureciam Sara, “Ups, já foi e não podes fazer nada quanto a isso”

Não sendo pessoa para admitir uma derrota, Leonor, esperou até que saíssem do restaurante para, na primeira oportunidade, o puxar pela camisola para um beco entre duas lojas, onde não estava ninguém. Perante o ar estupefacto do rapaz, pôs-lhe uma mão no peito e encostou-o à parede, não deixando qualquer distância entre ambos. Se ele parecia estupefacto antes, agora, que sentia o corpo dela junto ao seu, parecia prestes a ter uma coisinha má. Incapaz de conter a sua satisfação ao vê-lo tão vulnerável, a rapariga, que quase conseguia ver-lhe o coração a saltar-lhe do peito, provocando-o mais do que julgaria que ele fosse aguentar, sussurrou-lhe ao ouvido, sedutoramente, “Não devias ter feito aquilo…agora vou ter que te compensar de alguma maneira”

“Ahm…”, foi tudo o que Afonso conseguiu dizer. O olhar que a rapariga lhe dirigia era sugestivo o suficiente para que ele ficasse estático, entre ela e a parede. A proximidade entre ambos e a respiração quente de Leonor junto ao seu pescoço fazia com que qualquer tentativa de raciocinar fosse em vão. Verdade fosse dita, imaginara muitas vezes um cenário análogo, mas vê-lo concretizar-se era algo que nunca lhe passara pela cabeça e agora que estava a acontecer, sentia-se demasiado paralisado para agir. Quando ia, finalmente, reagir, afinal aquela situação era um sonho tornado realidade, a rapariga afastou-se e disse, substituindo o olhar de matadora por um de Bambi em todo idêntico ao seu, “Ups, já foi e não podes fazer nada quanto a isso”

O rapaz, a quem a realidade atingira com a força de um comboio em movimento, soltou um grunhido imperceptível de frustração. Bem lhe parecia que algo tão bom era demasiado surreal para lhe acontecer a ele. Com a face tão vermelha que rivalizava com o nariz do palhaço da McDonald’s, o que divertiu a rapariga ainda mais, compôs a camisola, tentando segurar-se ao pouco orgulho que lhe restava. Não fazia mal, fora um momento maravilhoso e, já por si, servia para o deixar satisfeito. Empinando o nariz, numa atitude snob exacerbada, informou Leonor que convinha despacharem-se porque o filme estava quase a começar. Ocupado a rever mentalmente o que acabara de acontecer, o que o deixou com um sorriso parvo, nem reparara que ela entretanto já se adiantara e comprara os bilhetes, só dando por isso quando ela lhos abanou em frente à cara, “Agora estamos quites! Não achavas que te ia deixar pagares-me o jantar sem retribuir?”

“És tão teimosa…”, desabafou Afonso, exasperado, abanando a cabeça. Se ao menos ele tivesse o mesmo poder sobre ela que ela tinha sobre ele, juntando a isso, a capacidade de ser sedutor sem parecer o Mr. Bean, ter-lhe ia feito o mesmo, a ver se ela gostava. Não que ele não tivesse gostado, de forma alguma, mas sentia-se torturado, por muito que valorizasse aquela brincadeira.

Enquanto se dirigiam para os lugares designados, Leonor não conseguiu evitar lembrar-se do que acontecera havia uns minutos atrás. Na altura decidira provocá-lo apenas porque era impensável para ela ser contrariada daquela maneira e, mais ainda, que levassem a sua avante, mas se soubesse que iria ficar daquela maneira devido à proximidade entre ambos, estaria quieta. Reprimindo a vontade que tinha de o recompensar, daquela vez a sério, cruzou os braços e concentrou-se no filme. Não estava mesmo em si e tivera a prova disso. Deitando uma olhadela na direcção do rapaz, podia ver que ele ainda não acalmara. De certa forma, ver que tinha tanto efeito sobre ele, era algo que a fazia sentir-se lisonjeada.

A bem da sanidade de ambos, o resto do filme decorrera sem que mais comportamentos pouco característicos, fossem de quem fossem, acontecessem. Houvera, contudo, a troca de olhares ocasional que serviu para que ambos se recordassem de que o que acontecera estava bem presente na mente um do outro. No caminho para casa, feito sobre um silêncio que, nem um, nem outro, dera conta que se instalara, visto estarem ambos perdidos nos seus pensamentos, Afonso repetia o que acontecera, vezes e vezes sem conta. Sabia que não devia dar demasiada importância ao assunto e que para ela não passara de uma brincadeira, mas não conseguia afastar a sensação de que se calhar…talvez…Já Leonor tentava, a todo o custo, batalhar a dissonância cognitiva, bem que queria e tanto, pelo menos, já admitira a si mesma, o que representava um grande progresso, mas sabia que não podia.

Ao chegarem à porta de casa, o rapaz, tomara uma decisão. Assim iria acalmar a sensação que tinha de que ali estava a sua oportunidade e, caso corresse mal, poderia dizer que só estava a tentar pagar-lhe da mesma doença. Respirando fundo, de modo a ganhar coragem, deteve a rapariga à porta de casa. Vendo o ar confuso dela, encostou-a à parede e, trocando um olhar, apenas para se certificar que não se equivocara, contra todas as expectativas, até dele próprio, beijou-a. De início, tão ao de leve que o próprio não se apercebera que o fizera, depois, ao sentir que ela lhe colocara os braços em torno do pescoço e o puxava para si, permitira-se a intensificar.

Quanto a Leonor, se passara o caminho até casa a conter a vontade que tinha de repetir a graça, mal podia acreditar na reviravolta que a situação dera quando de vira encostada à parede. Sabia que não podia, que mais tarde se iria arrepender mas, francamente, naquele momento não se importou, lidaria com a culpa mais tarde. Ver Afonso a assumir o controlo por uma vez fora mais que suficiente para baixar as suas defesas. E valera a pena, havia sido bem melhor do que alguma vez imaginara. Quando achou que já se permitira a mais do que devia, afastou-o, embora ele mantivesse os braços em torno da sua cintura, encarando-a com uma expressão de adoração tão sincera, que ela ficara, pela primeira vez, sem palavras. Respirando fundo, o rapaz disse, “Agora sim estamos quites…”

“A sério…foi…qualquer coisa”, continuou Afonso, com uma sensação de leveza que não podia comparar a nada. Mesmo que nada tivesse dito, o sorriso que Leonor lhe dirigira dissipara quaisquer dúvidas que ainda pudesse ter.

“Boa noite, linda! Então diver…”, para mal dos pecados de ambos, Guida resolvera, nesse momento, abrir a porta. Primeiro deparava-se com Sara quando estava a repreender Tomás, agora, que tentara fazer um gesto simpático pela filha, indo-a receber à porta, encontrava-a numa posição deveras comprometedora e, como se não bastasse, com o filho da sua melhor amiga! Susana nunca mais a iria deixar em paz com aquilo! Era melhor bater em retirada sob pena de se enterrar ainda mais, “Acho que…tenho que ir ali!”

Com grande pena sua, a rapariga retirou as mãos de Afonso da sua cintura. Como nem tudo podia ser mau, entretanto apareceram Sara e Tomás, poupando-a a mais momentos desconfortáveis. E parecia que as surpresas não se ficavam por ali, o irmão docilmente, como ela não se lembrava de o ouvir, despediu-se de Sara, “Então…vemo-nos segunda, na escola, fica bem”

Parecia que Afonso teria que deixar para mais tarde tornar Tomás no seu saco de boxe. Sara, no mesmo tom que deixara o irmão agoniado de tão doce que fora, respondeu, “Boa noite Tomás, até segunda”

Leonor não sabia o que acontecera para aquela mudança tomar lugar, mas sentia vontade de fazer vénias a Sara. Como qualquer hipótese de prolongar o momento com Afonso fora por água abaixo, não teve alternativa que não despedir-se, dando-lhe um beijo na bochecha, ainda corada, “Então adeus e obrigada por tudo”

“Ahm…adeus”, retribuiu o rapaz, demasiado atordoado com toda aquela informação que tinha para processar. Quando já não tinha nem Leonor, nem Tomás na periferia, permitiu-se a exteriorizar a alegria que sentia, agarrou na irmã pela cintura e rodopiou-a no ar, “Aconteceu mesmo!”

Só mesmo porque, ela própria se sentia feliz, mesmo sem saber ao certo porquê, é que Sara o deixou agitá-la como se fosse uma boneca. Quando Afonso acalmou, é que ela disse, “Pois é, mano, realmente foi bom”

sábado, 26 de janeiro de 2013

Capítulo 5


Educação física, uma aula pela qual Leonor não nutria particular apreço. Não era que não gostasse de desporto, pelo contrário, mas o espírito excessivamente competitivo dos colegas contribuía para um mau ambiente que arruinava a aula para ela. E, pelos vistos, fosse nos Estados Unidos, fosse em Portugal, havia coisas que não mudavam e essa era uma delas, como se tornou óbvio na escolha de equipas para jogar futebol, quando ninguém queria Adriana na equipa. O professor, pouco atlético e com barriga de cerveja, provavelmente a figura que menos incentivaria alguém a praticar desporto, acabou por encaminhar Adriana para a equipa onde a rapariga estava, para grande enfado dos colegas. Apertando o ombro da amiga em sinal de encorajamento, Leonor iria tentar fazer por que o jogo lhe corresse melhor.

Vendo outra turma ocupar o outro lado do campo, depressa distinguiu a figura alta de Rúben, ao lado de uma mais baixa que pertencia a Afonso. Seria melhor para ela que jogasse bem, uma vez que teria plateia a assistir. A figura animado do rapaz a acenar-lhe apenas comprovou isso mesmo. Retribuindo, não demorou a que se concentrasse no jogo quando uma colega a avisou que já tinham começado. Futebol não era o seu forte, mas Marta deserdá-la-ia se não soubesse dar uns toques na bola. A algum custo, lá conseguiu dar o seu contributo para o primeiro golo, graças a um passe de Adriana, mesmo que não tivesse sido da sua autoria. Aproveitando uma pausa, foi beber água, mas não sem antes sorrir a Adriana pelo trabalho bem feito.

Na fila para a torneira, encontrou Afonso, suado e ofegante, mas bem-disposto. Falando-lhe, o rapaz disse, orgulhoso, “Vamos jogar rugby a seguir, se não acreditas que jogo bem, vê”

“Para te ver ires ao chão?”, brincou a rapariga, divertida ao ver o ar indignado de Afonso, que se limitou a fazer uma expressão tão séria quanto conseguiu sem se começar a rir e a dizer-lhe para esperar e ver. Encostando-se ao muro, observou enquanto se punham em posição, até que começaram a jogar. Afonso e Rúben ficaram em equipas separadas, embora, para grande surpresa dela, o rapaz, mais baixo que o amigo, conseguisse placa-lo, deitando-o ao chão, antes de correr com a bola, marcando ponto. Rúben, levantando-se, não pareceu ter levado a bem a jogada, pois não ficava bem na sua imagem. Correndo atrás de Afonso, não o conseguiu placar, sem que o rapaz se desviasse, antes de passar a bola. Leonor até que ficara impressionada, embora fosse negar tal coisa.

Ao ser chamada de volta para o jogo, ainda conseguiu ver Afonso, sorrir-lhe, satisfeito. Abanando a cabeça, em sinal de aprovação, o que fez com que o rapaz se atirasse de novo para cima do amigo, vitorioso, voltou-se para Adriana, a tempo de a ver fazer uma expressão enojada ao olhar para Rúben. Rindo com o esgar teatral que a amiga fez, disse, “Ele não joga lá muito bem, com sorte pode ser que abra a cabeça no chão”

“Ai não me dês esperanças, era tão bom”, admitiu Adriana, sonhando com a massa encefálica de Rúben espalhada pelo relvado. Ao ver Afonso placar o amigo, não conseguiu evitar o sorriso de satisfação que lhe apareceu no rosto. Rúben era só mania sem grande alicerce para a ter, tanto que comentou com Leonor, “Ele joga mal como tudo mas depois é o maior convencido, pelo menos sempre podia ser como o Afonso que se safa bem e é humilde”

“Lá isso joga…”, anuiu a rapariga, antes de cair em si. Já chegava de observar Afonso com tão bons olhos, aquilo não era mesmo hábito seu. Abanando a cabeça, afastou quaisquer pensamentos que tivessem que ver com o rapaz e voltou para junto da turma, que entretanto já se organizara para continuar o jogo. Como estava calor, a vontade de correr atrás de uma bola durante mais uma hora não era perspectiva que lhe agradasse por aí além. Suspirando, não teve outro remédio senão correr, quando uma colega a repreendera por ter deixado passar uma boa oportunidade para tirar a bola à outra equipa.

Umas quantas pisadelas e caneladas mais tarde, conseguiu dar o seu contributo para um golo por parte da sua equipa, ainda que isso se traduzisse num passe oportuno. Ainda assim, já se dava por contente, afinal sempre era da maneira que não a incomodavam por estar a jogar a meio gás. Adriana, por sua vez, já não teve tanta sorte. Descoordenada e, assumidamente, com tão pouca motivação e vontade que o resultado do jogo lhe era indiferente, não servia de grande auxílio à equipa. Quando a bola rolara junto a ela, a equipa em peso esteve perto de a decapitar, embora ela se limitasse a encolher os ombros. Encorajando-a, ou pelo menos, fazendo o seu melhor nesse sentido, a rapariga disse que lhe passaria a bola para que ela pudesse jogar.

E foi isso que fez. Vendo uma colega correr para si, enquanto tinha a bola, tentou chutá-la na direcção de Adriana, conseguindo, mas não sem antes de a outra chocar contra si, atirando-a ao chão. Adriana, se agisse por sua vontade, não teria feito o menor movimento na direcção da bola, mas como Leonor lhe dera aquela oportunidade, não a queria desiludir. Rematando, conseguiu que a bola, fosse-se lá saber como, passasse em cheio por entre as pernas da pessoa que estava na baliza. Corando com o seu sucesso, sorriu de orelha a orelha à rapariga, realizada. Acenando em sinal de apreço, Leonor, ainda no chão, massajou o cotovelo que aleijara quando caíra. Se a colega que fora contra ela escapara sem uma mossa, ela não podia afirmar o mesmo.

Afonso, depois do jogo, ciente de que a sua prestação fora imaculada, abordou a rapariga, estendendo-lhe a mão para a ajudar a levantar-se, “Então, estás-te sempre a aleijar”

“Considera isto um sacrifício por um bem maior”, replicou ela, não necessitando da ajuda do rapaz para se levantar. Vendo o ar desapontado de Afonso sorriu-lhe, pois não queria entristecê-lo estando ele tão satisfeito, antes de apontar para Adriana, que ainda olhava incrédula para a baliza, como se esta de repente tivesse começado a falar, “Ela conseguiu marcar”

“O Rúben não pode dizer o mesmo, que eu não deixei”, anunciou o rapaz, abanando a cabeça em sinal de reprovação ao ver o amigo passar a mão pelo cabelo, enquanto falava com umas raparigas, como se tivesse motivos para estar tão satisfeito. Afonso não conseguia crer, Rúben conseguia canalizar toda a atenção para ele mesmo quando a situação mais o desfavorecia. A ele, Afonso, por seu lado, já ninguém queria sentir os peitorais. Porém, já estava habituado, sempre fora assim desde o início, ele passava sempre para segundo plano mesmo quando merecia a posição de destaque. O que não queria dizer que apreciasse a situação, mesmo sendo mais reservado e comedido do que Rúben, também gostaria de se sentir especial, uma vez por outra.

“Jogas bem melhor que ele”, admitiu Leonor, o que para o rapaz soube melhor do que um par de raparigas a roçarem-se nele. A rapariga, no que lhe dizia respeito, não conseguia ver porque motivo é que alguém iria venerar Rúben como um deus, ele representava tudo aquilo de que ela só queria distância. Após tal pensamento lhe vir à tona, lembrou-se, com um certo pesar, que ela própria, em tempos também fora assim, mas as circunstâncias obrigaram-na a mudar.

Aparentemente, Adriana lera-lhe os pensamentos, pelo menos os que diziam respeito ao género de pessoa que Rúben era, porque se aproximou e comentou, desdenhosa, “Aquela mania toda é para compensar a pila pequena”

Desmanchando-se a rir, tanto que se tivera que curvar, Leonor teve que se segurar em Afonso, que não sabia se havia de ficar constrangido pelo rumo que a conversa levava, se havia de se derreter como manteiga ao sol. Como qualquer contacto físico que tivesse com a rapariga era muito bem-vindo, escolheu a segunda hipótese. Quanto a Adriana, que observava o cenário com atenção, não fosse regurgitar o seu pequeno-almoço se olhasse mais para Rúben, não lhe foi difícil perceber que o rapaz estava obviamente interessado em Leonor. Já ela, Adriana, não podia dizer que desaprovasse a ideia de os ver juntos, agora que pensava nisso. Mas decidiu por não comentar com a rapariga, para não a deixar desconfortável, até porque ela bem sabia o quão incómodo isso podia ser. Porém, tudo o que pudesse fazer para dar uma boa impressão de Afonso a Leonor, fá-lo-ia.

Vendo a rapariga distraída enquanto bebia água, aproximou-se do rapaz e disse, “Ela há pouco comentou que gostava de ir ver aquele filme que estreou agora, aquele da época medieval, que já não me lembro do nome”

Afonso, pestanejando confuso, não compreendeu imediatamente onde é que Adriana queria chegar com aquela conversa. Sabia qual era o filme, até porque vira um cartaz a anunciá-lo junto à paragem de autocarro, mas não estava a ver por que razão é que lhe dissera aquilo. Continuando, Adriana, que nunca fora a pessoa mais subtil, propôs, “Podias convidá-la…ela não morde, sabes?”

Ora ali estava uma boa ideia. Não a parte de Leonor o morder, embora não se importasse, mas o filme era um bom pretexto para a convidar, isto se ela aceitasse. No entanto, tinha que admitir que ficara admirado por Adriana lhe ter feito aquela sugestão. Seria ele assim tão pouco discreto? E se Leonor já tivesse percebido e estivesse farta de rir à custa dele?! Decidindo arriscar, perguntou, “Porque é que me estás a dizer isso?”

“Já agora não queres um lenço para limpares a baba?”, ironizou Adriana, contendo a vontade que tinha de rir, de modo a não deixar o rapaz mais nervoso do que já estava, “É que se nota muito bem que estás interessado, então achei que a informação podia ser do teu agrado”

“Ahm…obrigado, mas não lhe digas, se faz favor”, pediu Afonso, sem saber como reagir. Perguntava-se até que ponto é que Leonor já se teria apercebido e a ideia de que ela soubesse fazia-o sentir-se terrivelmente exposto.

Como se tivesse capacidades telepáticas, Adriana replicou, “Não te enerves, ela é mesmo muito querida, não admira que gostes dela, mas se o que te preocupa é se ela sabe ou não, tenho que ser sincera, duvido que não saiba, mas se não te mandou ir dar uma volta é porque a ideia não a incomoda”

“Achas mesmo?”, perguntou o rapaz, com urgência. Adriana conseguira renovar-lhe a esperança, pelo menos em parte, já que o que ele mais temia era que a rapariga fugisse dele como se tivesse lepra mal ele lhe dissesse. Assim sempre ficava a saber que Leonor não pensava que ele fosse um tarado qualquer, o que lhe deu novo alento.

“Conheço-a há pouco tempo mas sim, não me parece que ela não te tivesse dado para trás de achasse que eras um porco qualquer”, disse Adriana, embora não o quisesse induzir em erro de todo, “Olha, ela vem aí, aproveita enquanto eu vou beber água”

Enquanto via Adriana afastar-se, Afonso pensou na melhor maneira de fazer o convite. Olhando em redor, como se fosse encontrar inspiração por ali algures, deparou-se com um cartaz afixado junto à paragem da escola, visível dali. Teria que servir, até porque não estava a ver oportunidade melhor. Esperando até que Leonor fosse ter com ele, acenou para o cartaz, comentando, “Aquele filme deve ser interessante, não achas?”

“Estou para o ir ver um dia destes”, respondeu a rapariga. Ainda estava a tentar convencer Tomás a ir consigo, mas este não parecia ter grande interesse num filme que não tivesse carros, tiros, coisas a explodir e maminhas à vista. De repente, fez-se luz e viu logo o que é que o rapaz pretendia com aquela conversa. Em sua defesa, estava mais lenta porque estivera mais de uma hora a correr debaixo de um sol abrasador.

“Podíamos ir no próximo fim-de-semana, o que achas?”, propôs Afonso, um tanto a medo. Caso ela aceitasse, isso significaria duas horas ao lado dela no escuro, o que era uma ideia que lhe agradava e muito, caso não aceitasse, ele não saberia onde se esconder.

“Hm…está bem”, concordou Leonor, depois de uns segundos de ponderação. Não estava para ouvir Tomás a perguntar-lhe a cada dois minutos quando é que a personagem principal ia pôr as maminhas de fora e Adriana ia estar fora no próximo fim-de-semana, portanto as alternativas não eram muitas. Não se importava.

“A sério?”, exclamou o rapaz, sem poder acreditar na sua sorte. Ao ver o olhar arregalado da rapariga compôs-se, “Claro, então…sábado à noite está bom para ti?”

“Está sim”, concordou Leonor que, ao ver a turma encaminhar-se para o balneário, despediu-se de Afonso, “É melhor ir andando, até logo”

Despedindo-se também, o rapaz esperou até que ela se virasse para deixar, finalmente, escapar o sorriso enorme que tentara conter junto a ela. Mal ele sabia que ela, mesmo que mais comedida e não tão óbvia, também sorrira.

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O sol brilhava, os pássaros chilreavam nas árvores e as crianças brincavam no pátio, animadas. O dia tinha, na opinião de Sara, tudo para ser aprazível. Animada, caminhou para a escola, assobiando o ritmo de uma música do seu agrado. À entrada, encontrou-se com Cláudia, que conversava com João Esteves. Era incrível o quanto ele tinha mudado. Se antes se serviria da menor desculpa para implicar com ela, agora sorriu-lhe e falou-lhe cordialmente. Ela não se queixava e estava mais do que disposta para pôr as suas divergências por detrás das costas. Respondendo-lhe de igual modo, juntou-se à conversa, até que foram interrompidos pelo som do motor de um carro que abafava os demais. Chiando ao travar, um desportivo parou à entrada da escola.

“Ganda carro!”, exclamou João, com os olhos a cintilar. Ali, diante de si, estava o seu carro de sonho e, em bom rigor, não devia ser só seu, porque a sua expressão embevecida era comum a uma grande parte dos colegas, que cochichavam entre si, na ânsia de saber quem é que sairia daquele carro. O queixo caiu-lhe ao chão ao ver Tomás, carrancudo, a sair do desportivo e a bater com a porta. Ultrajado, disse, por entre dentes, “Aquele gajo?!”

Tomás, ao avistar Sara, que se mantivera apática durante aquele tempo todo, até porque tinha preferência por motas, concretamente a de Susana, que ansiava por poder guiar, sorriu-lhe. A rapariga torceu o nariz, virando-lhe as costas, até que se lembrou do favor que Leonor lhe pedira. Voltando a olhar para ele, viu-o cabisbaixo, mas não encontrou coragem para o abordar. Culpada, prometeu a si mesma que, assim que surgisse ocasião, tentaria falar com ele, isto se não estivessem objectos aguçados e cortantes na periferia. Ao seu lado, Cláudia suspirou, derretida e João, por sua vez, continuou a abanar a cabeça, incrédulo. Quando a campainha tocou, foram para a aula.

Observando a sala, deu com Tomás sentado ao fundo, com um ar abatido. O facto de a professora ter aparecido, fez com que tivesse que adiar os seus planos. Até preferia assim, afinal prometera a si mesma que iria tentar falar, não que iria efectivamente falar e, se não tivera oportunidade, não era culpa sua. Francamente, só acedera ao pedido de Leonor porque até simpatizava com ela e porque queria que Afonso ficasse bem visto aos olhos dela, coisa que seria simplificada se não houvesse atrito entre ela e o irmão de Leonor. Sentando-se ao lado de Cláudia, não voltou a pensar em Tomás.

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Depois de ter tido uma conversa com Leonor sobre a importância de fazer o melhor possível por criar uma imagem mais favorável, agora que tinha a oportunidade de começar da estaca zero, Tomás acordara motivado para fazer isso mesmo. Começaria por falar com Sara, a quem achara piada, com a sua maneira de ser bem-disposta e afável, e a irmã garantira-lhe que ela lhe responderia bem. Porém, o seu dia começara por ter como despertador os berros de Guida, sem motivo aparente, não que precisasse de um, claro. Ainda bem para ele, que a mãe estaria fora na semana seguinte, podia ser que conseguisse ter um dia sem que houvesse discussões. O dia só podia melhorar, dali por diante.

Porque demorou tempo a mais a despachar-se, Guida irritara-se. Moendo-lhe a cabeça, ora porque ia chegar atrasada a uma reunião por causa dele, ora porque previa um dia complicado no trabalho e ele era o seu saco de boxe, não lhe deu descanso até que chegou à escola. Enervado, Tomás, que se mantivera calado o tempo todo, bateu com a porta, ignorando os olhares que a mãe lhe mandou antes de arrancar. Avistando Sara, sorriu, da forma mais normal que conseguiu. Não era que quisesse fazer mal à rapariga, mas gostava de saber que a conseguia intimidar. No entanto, parecia que ela não lhe daria essa satisfação. Olhando-o como se fosse algo desagradável colado à sola do sapato, conseguira deixá-lo sem reacção.

Ou melhor, conseguira fazê-lo sentir-se mal, como se tivesse levado um soco no estômago. Tudo o que ele queria era que lhe retribuísse o sorriso, que desse para se juntar aos outros e contar a boa nova a Leonor. Sentindo-se desiludido e magoado, ocupou o lugar no canto da sala, desejando que as aulas terminassem. Fora ter passado o intervalo sozinho, o resto das aulas decorrera dentro dos padrões da normalidade, já se acostumara a que a amiga de Sara estivesse mais interessada em olhar para ele que em prestar atenção à aula, que o rapaz que estava com elas se risse dele e que Sara o fosse ignorar. Se João continuasse a fazer troça dele, facilmente lhe tiraria o sorriso da cara, por isso não estava nada incomodado.

Parecia que os seus contratempos não se ficaram por aí. Procurando dentro da mochila, não encontrou a carteira, o que queria dizer que não poderia almoçar e ainda tinha mais uma aula. Ia a retirar-se, quando alguém choca com ele. Sara, constrangida, foi ainda a tempo de dizer, de modo pouco seguro, “Olá”

“Hi”, respondeu Tomás, falando, por lapso, na língua na qual se sentia mais confortável, “Will you give me my foot back?”

“Como?”, questionou Sara, pestanejando, confusa. Línguas não eram, de forma alguma, o seu forte e dizer que o seu inglês era terrível, era ser generoso.

“Estás-me a pisar”, esclareceu o rapaz, a quem o tom de voz soou mais austero do que desejava. Corrigindo-se, com o intuito de não afugentar a rapariga, que já estava prestes a virar-lhe costas sem que ele tivesse direito a mais do que um “desculpa” pouco sincero, mesmo que para isso tivesse que sacrificar a sua unha do dedo pisado, disse, “Wait! Podíamo-nos vir a dar melhor…”

A tirada com que Tomás se saiu deixou Sara ainda mais confusa do que quando não falara em português. Encarando-o, como se ele tivesse dito a coisa mais absurda do mundo, esperou que ele prosseguisse. Não sabendo bem como o dizer, o rapaz, pouco à vontade, tentou, “Acho que começámos mal e queria corrigir a situação…mas não precisas de ter medo que eu não te vou fazer nada”

“Pronto…”, respondeu a rapariga, ponderando na melhor maneira de lidar com a situação. Tomás parecia estar a ser sincero, mas já esperava qualquer coisa vinda dele. Como planeava almoçar com João e Cláudia, podia convidá-lo para vir também, assim sempre tinha apoio caso ele lhe tentasse espetar um garfo num olho ou qualquer coisa igualmente má do género. Suspirando, pensou no grande favor que estava a prestar a Leonor, favor esse que provavelmente a faria a sua escrava para o resto da vida e disse, “Olha, eu ia almoçar com uns amigos, se não tiveres planos podes vir se quiseres”

“P…posso?”, inquiriu o rapaz, incrédulo. Não se lembrava da última vez que alguém que não Leonor o convidara para fazer o que quer que fosse. Por norma, os outros miúdos costumavam manter distância dele, embora ele nunca se tivesse importado pois gostava da sensação que tinha quando intimidava os outros. Era algo de poder, já que em casa não o tinha. Agora estava aquela rapariga, que mal conhecia e que já antes lhe conseguira tirar a posição dominante, a convidá-lo para uma das coisas mais mundanas mas que ele não estava certo de já ter experimentado? A situação era toda uma novidade para ele, tanto que o assustava, mas sabia que a irmã iria gostar de o ver com outras pessoas da idade dele, portanto estava inclinado para aceitar.

“Sim, mas vê lá se não te estraguei os planos”, insistiu Sara, desejando e muito que ele não se quisesse juntar, “Podias já te companhia ou outro sítio onde estar”

“Não, não tinha com quem almoçar”, disse Tomás, ainda a processar a informação. Parece que afinal sempre iria poder levar para casa notícias que a irmã gostasse de ouvir. Quando voltou à realidade, pediu, “Devolves-me o pé, se faz favor?”

A rapariga, que não se tinha apercebido que ainda tinha o pé do rapaz debaixo do seu, retirou-o depressa, desfazendo-se em desculpas, o que fez com que Tomás se risse. Não muito depois, apareceram João e Cláudia. João, ao ver Tomás, arregalou os olhos, antes de os revirar, obviamente pouco interessado na companhia dele. Cláudia, por sua vez, sorriu de orelha a orelha, antes de o bombardear com perguntas, do tipo, de onde é que ele vinha para ter um sotaque assim. Enquanto o rapaz respondia, João questionou Sara, em tom baixo, “O que é que este gajo está aqui a fazer?”

“Ele não tinha com quem almoçar, então convidei-o para não ficar sozinho”, respondeu a rapariga, observando Tomás e Cláudia rirem-se de qualquer coisa que ela tinha dito. Mais tranquila, pediu, “Tenta não o provocar, não sei como é que ele iria reagir”

“Não gosto da pinta dele”, resmungou João, trocando um olhar com Tomás, olhar esse com que ambos estabeleceram o seu desagrado mútuo.

Sara nada disse, escolhendo ao invés, ir para a fila, afinal estava a tornar-se cada vez maior e ela estava com fome. Vendo que Tomás não pegou num tabuleiro, perguntou, “Não comes nada?”

“Esqueci-me da carteira em casa”, respondeu o rapaz, encolhendo os ombros. Até ao presente momento estava tudo a correr bem, conseguira não assustar ninguém, embora a cara de João o irritasse. Talvez ele lhe desse uma desculpa para o esmurrar, como lhe estava a apetecer desde que o vira. Já Cláudia parecera-lhe simpática, mas monopolizava a conversa e ele não tivera grandes chances de falar com Sara, que parecia mais interessada em fazer companhia a João, para grande raiva sua.

“Não estou com muita fome, se quiseres podemos dividir”, ofereceu Sara, que tomara um pequeno-almoço reforçado e não tinha assim tanta vontade de comer. Não acontecia muito, mas quando acontecia detestava ver um prato cheio diante de si.

“Oh não, deixa estar”, apreçou-se Tomás a dizer, embora o seu estômago roncasse de modo indiscreto. O “tão querido” que Cláudia proferira, ainda mais servira para o constranger. A situação já escapara ao seu controlo havia algum tempo e isso ele não gostava.

“Dividimos o almoço e não se fala mais nisso”, disse a rapariga, enquanto punha o prato no tabuleiro. Carregando o tabuleiro, até que o rapaz lho tirou, ganhando outro “tão querido” de Cláudia, foi abrindo caminho por entre a multidão, até encontrar lugares vazios.

João, que se mantivera calado, resmungou. Primeiro Tomás aparentava ser podre de rico, depois ocupava o seu espaço, depois Cláudia derretia-se com ele e, como se não bastasse, Sara desfazia-se em simpatias com ele. Decidira que não gostava mesmo do americano. Não soube porquê, mas a proximidade com que Sara e Tomás se sentaram, ainda que fosse necessário para partilharem um prato de esparguete à bolonhesa, enfurecia-o. O ar de satisfação que o rapaz lhe mandou conseguiu fazer com que a sua fúria duplicasse.

“Para a próxima ofereço-te eu o almoço”, replicou Tomás, pouco saciado com meio prato, não estivesse ele em crescimento a olhos vistos. Se antes não gostava da falta de controlo que detinha sobre a situação, agora sentia-se sensibilizado pelo gesto de Sara. Estava certo de ter visto João a fazer olhinhos à rapariga, o que não lhe agradou de todo e tencionava usar isso para o provocar. Sorrindo para Sara, que lhe retribuiu, consciente de que isso enraiveceria João, sentiu que, de novo, controlava a situação, para sua satisfação.