sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Capítulo 85


Feliz Ano Novo!

“Calma, se não há notícias é porque está tudo bem”, tentou Marta, fazendo os seus melhores esforços para apaziguar Daniela, que continuava uma pilha de nervos por Susana já ter, havia muito tempo, dado por terminado o concerto e não aparecer em casa, nem dar sinal de vida. Normalmente, não se teria importado, porém, dado o estado da loura nos últimos tempos, já temia que tivesse acontecido alguma coisa. Ao ver que de nada servia continuar de pé à espera de notícias, achou por bem desistir. Fazendo das tripas coração, agradeceu à amiga pela ajuda e desligou a chamada, decidindo ir descansar e não se preocupar mais com a outra. Quando quisesse aparecer ou dizer algo, que o fizesse.

Na manhã seguinte, depois de uma noite um tanto mal passada, decidiu pôr essa mesma noite por trás das costas. Para alegria sua, o dia estava fantástico, solarengo e com aquele aroma a calor que sempre gostara, era realmente a terapia ideal. Munida de óculos de sol, bikini, iPod e um livro do seu agrado, deitou-se numa esteira no jardim, onde podia estimular a produção de vitamina D. Assim que aplicou protector solar em toda a extensão da sua claríssima pele e colocou os fones nos ouvidos, continuou a leitura onde a tinha deixado previamente, esquecendo a sua preocupação por uns tempos, alheada de tudo e todos.

Cerca de uma hora, alguns capítulos e os primeiros indícios de um escaldão depois, uma sombra intrometeu-se entre ela e a sua leitura, obrigando-a a tirar os fones e a olhar para cima. De pé e com a expressão mais esgotada, encontrava-se Susana, com o cabelo num emaranhado ninho de cegonhas e ar de quem dormira com aquela mesma roupa, roupa essa que usara no concerto. Com um sorriso genuíno, a loura, por muito estafada que estivesse, conseguiu dizer, “Bom dia, amor”
“Bom dia”, retribuiu a morena, levantando-se para cumprimentar a outra numa maneira mais carinhosa. Quando a abraçou, sentiu-a letárgica contra si, como se necessitasse que a mantivesse segura em cima das pernas ou caso contrário cairia. Preocupada, Daniela interrogou, “O que é que se passou? Estive tão preocupada”

“Mh…preciso de descansar um ‘cadinho”, disse Susana, em voz baixa, quase a sucumbir ao cansaço, ali mesmo nos braços de Daniela.

“Vai tomar banho enquanto eu te preparo qualquer coisa para comer, pareces tão mal”, sugeriu a rapariga, auxiliando a loura até à casa de banho. Apenas quando se certificou que esta ficaria bem, é que foi até à cozinha para lhe preparar qualquer coisa rápida, depois recambiá-la-ia para a cama e só quando a visse a chateá-la para fazerem bodyboard de novo é que iria sossegar. Enquanto ouvia a água correr, fez uma sandes e um sumo, antes de se dirigir ao quarto e fazer a cama, para que a outra se pudesse deitar.

Ao deixar de ouvir o som da água a correr, dirigiu-se à casa de banho com roupa lavada. Lá, deparou-se com Susana, desta vez com melhor aspecto, ainda que as olheiras e a palidez persistissem. Ajudando-a a vestir-se, a morena propôs, “Deita-te que eu levo-te a comida”

A loura concordou, estendendo-se na cama, demasiado esfomeada para adormecer imediatamente. Ao ver toda a atenção que a mulher lhe dava e o quão preocupada esta tinha ficado, a outra voltou a sentir uma culpa insuportável por não a ter tratado tão bem como esta merecia nos últimos tempos e por ter ponderado traí-la com a entrevistadora. Engolindo a culpa, sorriu esplendorosamente quando Daniela voltou trazendo a comida. Quando a rapariga pousou a travessa na mesa-de-cabeceira e o risco de entornar a refeição deixou de ser um problema, a outra puxou a morena para si, beijando-a calorosamente, tentando mostrar-lhe por carícias o quanto ela significava para si, já que as palavras e os actos não tinham resultado tão bem como pretendido.

“Hm…calma, Susana”, disse Daniela, admirada com o gesto. Já tinha saudades das demonstrações afectivas espontâneas tão características de Susana. Afagando as costas da loura, sentiu-as ainda quentes do duche, o que a tornava ainda mais agradável de se abraçar. Olhando para esta, em vez da raiva e da frustração que outrora contaminavam aqueles olhos azuis límpidos, o que viu foi adoração e carinho. Passando a mão na face da outra, a rapariga sorriu, antes de a voltar a beijar.

Quando o ambiente ameaçava aquecer, o telemóvel de Susana tocou, muito para irritação de ambas, a rapariga foi ver de quem se tratava, preferindo deixar a loura comer o que lhe preparara em paz. A pessoa que se encontrava do outro lado da linha era Guida. Com a boca cheia de comida, a outra implorou, “Atende tu e diz que estou a dormir ou qualquer coisa, ela faz tanto barulho!”

A medo, a morena acabou por anuir, tendo o cuidado de afastar o aparelho uns centímetros do ouvido, “Estou?”

“Puta! Ah, desculpa, és tu pussy, quer dizer, Daniela!”, fingiu corrigir, Guida, rindo-se. Aquela era a nova alcunha de Daniela, por a amiga de Susana a achar uma “coninhas”. A rapariga, consciente de que de nada servia mandar Guida para todos os sítios possíveis e imaginários, apenas podia esperar que a alcunha não pegasse. Com a voz elevada demasiados decibéis para os tímpanos da morena, continuou, “A Susy que tire o dedo da rata e que atenda aí”

A última parte fora dita com audibilidade suficiente para que a loura ouvisse e, ainda com a sandes toda enfiada na boca, gesticulasse para que Daniela fizesse alguma coisa para impedir a destruição dos seus ouvidos. Afastando ainda mais o telemóvel, a rapariga disse, “Ela teve uma noite difícil e está a descansar, coitada”

“Coitada de ti se não lhe passares já o telemóvel”, rosnou Guida, prestes a bombardear a morena com tudo quanto fosse insultos e, verdade seja dita, a maior parte deles Daniela nem conhecia. Não sabendo o que mais dizer, a rapariga desligou a chamada e o aparelho, antes de respirar fundo. E fora assim que assinara a sua sentença de morte.

Agradecendo várias vezes, Susana abraçou a morena, antes de fazer mais um pedido, “Podias fazer-me companhia, enquanto eu não adormeço?”

Aceitando, Daniela acomodou a loura de modo a que pudesse afagar-lhe os cabelos, sabendo que esse gesto sempre a ajudara a dormir. Ouvindo o ronronar da outra, a rapariga sorriu para si, enternecida, como é que seria possível não a adorar?

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Capítulo 84

Mais uma vaga de concertos, entrevistas, sessões fotográficas e todos os derivados da vida que Susana levava. Era completamente extenuante, mas não podia vir em melhor altura, na perspectiva da loura, assim, era da maneira que não tinha que lidar com os problemas que tinha com Daniela. Não era que as coisas estivessem caóticas, nada disso, mas notava uma certa reticência por parte da rapariga sempre que estava perto de si, parecia preocupada e assustada, como se a qualquer instante a outra a pudesse atacar. Face a este comportamento da morena, Susana não sabia como reagir para lhe assegurar que estava tudo bem, além de que tinha tido várias alterações de humor nos últimos tempos e, ora queria acarinhar Daniela, ora queria gritar-lhe.
Mal os primeiros raios de claridade lhe tocaram no rosto, a loura deu início ao dia preenchido que iria ter, levantou-se, aprontou-se, tomou o pequeno-almoço e acendeu um cigarro, antes de voltar ao quarto, onde ficou a observar a forma adormecida da rapariga. Tão cedo não estaria de pé, certamente, pensou a outra, levando o cigarro à boca. Nestas ocasiões, Susana costumava deixar um bilhete com uma frase meiga para a morena mas já não o fazia há tempos. Boa ideia. Pegando num resto de papel, ponderou no que havia de escrever. E pensar que antes lhe saía tão natural…Após algum tempo, desistiu e rabiscou, “Amo-te”. Encolhendo os ombros, deixou a missiva em cima da mesa-de-cabeceira e, olhando para Daniela uma última vez, deu-lhe um beijo na testa, antes de sair de casa.
Assim que chegou ao local combinado para uma entrevista com sessão de fotografias, nem teve tempo de pousar o capacete, tal foi a pressa com que o produtor a rebocou até à sala onde seria maquilhada, antes da entrevista, por entre “Já cá devia estar”/”Ai meu Deus, já estás atrasada”. Resmungando, a loura sentou-se e deixou que a senhora encarregue de a pôr apresentável fizesse como entendesse, por muito que detestasse todos aqueles cremes e pinturas.
“Credo, está tão pálida”, comentou a senhora, franzindo o sobrolho enquanto estudava o que haveria de fazer à cara da outra, “Estas olheiras vão-lhe até aos pés”
“Os últimos tempos têm sido complicados”, desabafou Susana, abatida, “Não sei como é que vou aguentar até ao fim do dia”
“Então?”, perguntou a empregada, fazendo o seu melhor por dar um tom mais saudável e resplandecente à face da outra.
“As coisas com a minha mulher não andam bem, mal paro em casa, não durmo em condições, não tenho tido tempo para mim nestes últimos tempos”, contou a loura, amargamente, “O pior é que não sei como resolver as coisas lá em casa nem tenho tempo para o fazer”
“Pense positivo, o dinheiro ajuda muito…eu trocava consigo, tenho três bocas para alimentar em casa”, replicou a senhora, escovando-lhe o cabelo, “Já não lhe falta muito para voltar a ter paz, coragem”
Agradecendo à empregada por a ter tentado moralizar, Susana seguiu até à varanda, onde estava a entrevistadora já sua conhecida, só era pena que daquela vez estivesse demasiado rabugenta para sequer lhe conseguir apreciar as pernas. Pelo menos podia desfrutar do sol tórrido do Verão, enquanto bebia um sumo de laranja fresco. Assim que a viu, a entrevistadora não perdeu tempo a apertar-lhe a mão, bem-disposta, “Bom dia, Susana, como está?”
“Vou andando, obrigada”, respondeu a loura, sentando-se na cadeira em frente à da repórter, acomodando-se, “E você?”
“Muito bem”, replicou a entrevistadora, antes de cruzar as pernas, deixando a saia subir-lhe pelas pernas. Daquela vez a outra não pôde ficar indiferente, mas não se podia censurar, andava carente e a repórter era digna de se ver. Voltando a olhar para cima, Susana escutou a primeira questão, “Quais as expectativas para os festivais de Verão?”
A loura respondeu àquela pergunta e às que se seguiram, afinal não eram nada que já não previsse e não seria nem a primeira nem a última vez que lhas faziam. Durante todo esse tempo, a entrevistadora não parou de tomar notas, dando ocasionalmente um bom plano do seu decote à outra, que não perdia uma oportunidade para o apreciar. Abstraindo-se da entrevista, Susana deu consigo a ponderar se conseguiria seduzir a repórter. Mesmo que não jogasse para a sua equipa, dificilmente iria perder a oportunidade, nem que fosse só para dizer que tinha estado com a Susana Marques.
“Então diga-me”, continuou a entrevistadora, sorridente, “Como tem conseguido conciliar a sua agenda com a sua vida pessoal?”
Nesse momento, um sentimento de vergonha abateu-se sobre a loura. Como é que tinha tido coragem de considerar trair Daniela? Incomodada e pouco à vontade, acabou por dizer, em voz baixa, “Não é fácil e é certo que acabo por passar menos tempo em casa do que gostaria, mas espero que corra tudo pelo melhor”
Parecendo satisfeita com a resposta, a repórter insistiu, “A sua relação com a sua mulher não acaba por sofrer?”
“Nem sempre estamos como na lua-de-mel, mas nunca tivemos nenhum problema que não resolvêssemos e o tempo e a distância nunca constituiu um”, respondeu a outra, esboçando um sorriso.
Depois daquela resposta, a entrevistadora decidiu começar com a sessão de fotos. Pedindo a Susana ora para posar de uma maneira, ora de outra. O calor abafado que se fazia sentir, juntamente com os disparos e com as muitas exigências da repórter fomentavam a má disposição da loura. No entanto, conseguira convencê-la de que não se deixaria fotografar em trajes menores, ainda reservava esse privilégio para Daniela. Depois do que pareceu um milénio, já estava despachada. A suar e prestes a ter uma quebra de tensão, voltou para dentro, onde tomou um copo de água com açúcar e uma refeição forte, pensando que fazia valer o dinheiro que recebia até ao último cêntimo.
Assim que acabou de comer, o produtor voltou, ordenando-lhe que fosse andando para o carro, visto que ainda tinham que ir para o local do concerto daquela noite. Suspirando de impaciência, a última coisa que a outra queria era ir actuar para um festival, para um bando de adolescentes demasiado entupidos em droga para distinguirem a pessoa que estava a tocar. Durante o caminho, começou a sentir os primeiros sinais de cansaço, com os olhos a pesarem-lhe e o corpo dormente. Assim que chegou ao seu destino, pousou as coisas no camarote, se é que tal se podia chamar àquele espaço degradado e a cheirar a mofo, e sentou-se, esperando não adormecer. Para mal dos seus pecados, um grupo de repórteres entrou-lhe de rompante no quarto, num frenesim barulhento, “Estamos aqui com Susana Marques que tão gentilmente nos concedeu esta entrevista instantes antes de subir ao palco”
“Não me podem dar logo um tiro no pé?”, pensou Susana, ponderando partir o espelho e cortar os pulsos com ele, “Boa tarde”
“A tua presença é a mais requisitada e esperada da noite de hoje”, comentou o jornalista, transbordando entusiasmo, “Que tal te sentes?”
“Com vontade de te meter esse microfone pelo cu acima”, foi o que a loura teve vontade de dizer. Porém, o que lhe saiu pelos lábios sorridentes foi muito diferente, “Sabes, é fantástico ouvir isso, para mim é um privilégio poder actuar para um público tão excepcional como este”
Felizmente, a entrevista fora breve e, minutos depois, já estava entregue ao seu silêncio e paz, esgotada e sem disposição para tocar. Não podia actuar assim, ainda quinava para cima do público. Procurando a solução entre os seus pertences, tirou uma embalagem do que dizia ser comprimidos para a dor de cabeça. Oh se iria tirar mais do que as dores de cabeça. Tomando uma pastilha a mais do que costumava fazer, a outra esperou que esta corresse tão bem quanto as suas outras experiências com ecstasy. Dali a meia hora, já defronte para a multidão entusiasmada, quaisquer vestígios de mal-estar deram lugar a uma sensação de euforia e energia como há muito não sentia.
Durante hora e meia, tocou, cantou e falou com o público, levando-o ao rubro, numa maré de aplausos como raramente ouvia. A sua disposição anterior e a que sentia durante o concerto estavam a 180 graus uma da outra. Depois de, a pedido do público, ter repetido meia dúzia de músicas e improvisado outra, tocando mais meia hora do que o previsto, abandonou a ribalta, com grande pena da multidão. Uma vez no camarote de novo, o produtor, emanando tanto orgulho e satisfação que parecia brilhar e caminhar a uns centímetros do solo, veio felicitá-la, “Mas que concerto, oh Marques, o público está doido!”
“Imagino, imagino”, comentou Susana, ainda no mais perfeito estado de êxtase, tão perdida que as cores pareciam ter sons. Não queria ir para casa, estava tão em sintonia com tudo, tão feliz que seria um desperdício não aproveitar e divertir-se, afinal também tinha direito a fazê-lo e voltar para junto da rapariga, onde não iria fazer grande coisa, não constituía serão que lhe agradasse naquele momento.
Voltando para junto do público, agora como mais uma entre eles e não como cabeça de cartaz daquele dia, foi saudada como se se tratasse da chegada do Messias à Terra, pagando-lhe bebidas, que aceitou sem demoras e metendo-se com ela. A loura, agora juntando o álcool ao que tinha previamente tomado, sentia-se cada vez mais alucinada, mal se conseguindo manter de pé, quando resolvera dar a noite como terminada. Ao caminhar de volta para o camarote, via tudo a desfocar, até não reconhecer mais onde estava. Por obra de Deus, só podia, encontrou o quarto que procurava, onde se deixou abater no sofá, vendo o candeeiro por cima de si dar voltas e mais voltas, antes de perder os sentidos, ainda alegre.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Capítulo 83

A respiração quente de Susana na testa de Daniela acordou-a. Na verdade, aquela noite havia sido bem mais agradável do que esperava, tendo dormido o sono dos justos, extremamente confortável, recostada na loura e sentindo-se fresca e descansada. Levantando a cabeça, deparou-se com a mais aperfeiçoada personificação da tranquilidade e inocência. A outra, cuja face pendia para o lado da rapariga, de lábios entreabertos e expressão de contentamento, nunca deixaria de a enternecer. Quem as observasse diria que os acontecimentos anteriores tinham sido muito do agrado de ambas, a julgar pela forma como a morena sorria ao olhar para Susana, ainda adormecida.
“Dani…”, sussurrou a loura, num tom infantil, ainda toldado pelo sono.
“Hm?”, disse Daniela, só então percebendo que a outra ainda estava a dormir e que devia estar a sonhar. Não conseguindo conter um sorriso deliciado, a rapariga afagou-lhe a bochecha, conseguindo um risinho por parte de Susana. Eram momentos como aquele que a faziam esquecer quaisquer incidentes mais violentos passados com a loura. Mesmo que esta tivesse andado bastante irritadiça nos últimos tempos e a morena sem saber o motivo, tinha, também, ocasiões em que era a antiga Susana adorável, sempre com um sorriso no rosto. E era precisamente nesses instantes que Daniela se sentia incapaz de se afastar.
“Dani…hm…”, balbuciou a outra, daquela vez acordando quando a morena lhe acariciou a face no local onde esta fazia covinha. Olhando para o lado, um tanto embaraçada por ter sido apanhada, a rapariga abafou o riso, antes de enterrar a cara no pescoço da loura. Fazendo com que Daniela a encarasse, Susana disse, “Alguém acordou feliz, estou a ver”
“Dormi bem, não me posso queixar”, admitiu a rapariga, desejando que a loura não puxasse o assunto que ficara pendente na noite anterior. Quando mais pudesse adiar, melhor.
“A conversa com a polícia, como correu?”, interrogou a outra, não deixando que a morena tivesse a sorte de escapar àquele diálogo constrangedor.
Tomando consciência de que não havia como sair daquela, Daniela, pausando para ponderar a escolha de palavras, acabou por responder, “Perguntaram-me se queria apresentar queixa contra ti, eu disse que não e deixaram-me ir em paz”
“Só isso?”, insistiu Susana, perfurando a rapariga com o olhar. Por muito que a morena adorasse aqueles olhos azuis, era em momentos como aquele que se tornavam arrepiantes, tanto que sentiu um calafrio. Nervosamente, acenou que sim, o que não sossegou a loura, que voltou a tentar, “Tens a certeza?”
“Absoluta”, respondeu Daniela, pretendendo encerrar o assunto, mas mais uma vez, a outra tinha outros planos. Por muitas perguntas que fizesse, dizia tudo menos o que a rapariga queria ouvir, o que afinal era o mínimo que Susana podia fazer, que era um pedido de desculpas.
“Bom”, disse a loura, puxando a morena para si, “Só me perguntaram se te tinha batido e do que eram aquelas marcas, disse que não e depois disse a verdade em relação às marcas”
Decidindo correr o risco, Daniela perguntou, numa voz arrastada, “Olha…porque é que tens estado tão irritável ultimamente? Fiz ou disse alguma coisa que não tivesses gostado?”
“Ahm? Não se passa nada”, respondeu a outra, parecendo voltar ao seu eu dito normal, sorrindo e mimando a rapariga, “Tenho andado com muito trabalho só isso”
“Pronto”, disse a morena, correspondendo aos beijos de Susana, por breves instantes, antes de questionar, “Se tens andado sob imensa pressão eu compreendo, mas não voltes a fazer aquilo, pode ser?”
“Sim, desculpa”, pediu a loura, por fim, antes de se voltar a inclinar para beijar Daniela. Subitamente, teve uma ideia que, na sua mente, seria a reconciliação certa. Pediu à rapariga que esperasse e, correu ao seu stock da festa, enrolando duas enquanto o diabo esfrega um olho e voltou para junto da morena, passando-lhe uma para a mão. Se dependesse de si, teria atacado as reservas de heroína, no entanto, queria guardar essas para qualquer festa a que fosse. Não era que não tivesse aprendido a lição da última vez, mas comprara aquela por impulso havia algum tempo atrás e suponha que muito esporadicamente não fosse fazer mal.
Daniela, um pouco desapontada com o gesto, esperava que Susana fosse tentar redimir-se como o fazia anteriormente, através de alguns actos simpáticos e atenciosos, mas parecia que tinha que se contentar com erva. Voltando a aninhar-se na loura, lá acendeu o canhão, não partilhando a mesma satisfação da outra. Uma cabeça pesada e um corpo dormente mais tarde, levantou-se de junto de Susana, que pareceu triste, “Já vais embora?”
“Convém despachar-me, prometi ao Pedro que tomava conta dos miúdos enquanto ele passa o dia com a Cláudia”, explicou a rapariga, esperando que o duche a acordasse daquele torpor em que se encontrava, “Não te importas?”
“Não! Eu adoro aqueles miúdos”, replicou a loura, entusiasmada. Num instante, levantou-se da cama e encaminhou-as às duas para o duche, mostrando plenamente o seu entusiasmo à morena, que não estava com grande disposição para tal, mas que preferiu alinhar para não a aborrecer.
A pontaria de Pedro desde sempre que se mostrara eficaz. Assim que tanto Daniela, como Susana se encontravam vestidas e apresentáveis, tocou à campainha, trazendo João e Maria João adormecidos, um em cada braço, “Bom dia fofa, obrigada por fazeres isto por mim”
“É sempre um prazer”, respondeu a rapariga, pegando nas duas crianças com tanto cuidado como se fossem quebrar a qualquer momento, para que não acordassem, “Susana, chega aqui, se faz favor”
Dizer que a loura apareceu depressa seria um eufemismo, dizer que se tinha materializado era mais próximo da realidade. Pegando na mochila que Pedro trouxera com o que os filhos pudessem precisar e em João Pedro, não perdeu tempo a embalar o bebé, ternamente. Quando se afastou para levar as coisas para dentro, Pedro comentou, “Há algo nela…”
“Está pedrada”, replicou a morena, acomodando melhor a bebé contra si, derretendo-se com a expressão desta, profundamente adormecida.
“Está sempre”, insistiu o amigo, revirando os olhos, “Mas não é isso, ela parece…não sei, mas não me agrada…”
Daniela preferiu dar por encerrada a conversa, mesmo que conseguisse ver porque é que Pedro dissera o que dissera. A expressão alegre e viva da outra desaparecera e apenas vinha ao de cima ocasionalmente, parecia carregada e, basicamente o oposto do seu eu habitual. Tal visão magoava a rapariga cada vez que se lembrava da Susana que amava. Agora que pensava bem, aquela versão perturbante da loura já se começara a manifestar há algum tempo, mas nada como naquele momento. A morena só esperava que se devesse ao cansaço e à horrível noite anterior.
Despediu-se do amigo, prometendo que iria ter todo o cuidado do mundo e mais algum com as crianças e voltou para dentro, até porque Maria João já estava a dar sinais de vir a acordar. Os sons abafados da bebé, juntamente com os seus movimentos lentos, tudo colmatado com um fatinho branco macio, faziam da criança algo impossível de não achar adorável, aos olhos de Daniela. Uma vez junto à outra, cada uma com uma criança no colo, a rapariga deu consigo a pensar o que seria um ser assim, mas com uns olhinhos azuis e sardinhas. Ao visualizar a possível criança, rapidamente afastou essa imagem, preferindo não pensar naqueles olhos que tanto a assustaram naquela manhã.
No entanto, Susana parecia ter-lhe lido os pensamentos. Sorridente, mimou João, muito para alegria da criança que se ria e disse, “Agora imagina se fossem os nossos”
A morena anuiu, com um sorriso ligeiro que prontamente desapareceu. Por muito que essa utopia lhe agradasse, aquele não era o momento para pensar em tal, pelo menos enquanto aquela disposição da outra durasse. Mas não invalidava a hipótese de que, no futuro, tal coisa viesse a tornar-se realidade.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Capítulo 82

Na esquadra, Daniela, sentada numa cadeira cujo muito uso era notório, suspirava de impaciência. O facto de estar ali, prestes a prestar declarações sobre os alegados “abusos que sofrera às mãos de Susana”, como as revistas tão dramaticamente afirmavam, era, na sua opinião, a cereja no topo do bolo de desgraças cujo fermento eram os órgãos de comunicação social. Daquela forma, o que poderia ser um assunto apenas entre ela e a loura, sem que houvesse necessidade de meter quem quer que fosse ao barulho, acabara por atingir dimensões desmesuradas. Só lhe faltava que aquela mesma ida à esquadra aparecesse na capa de outra revista de mexericos.
Cruzando e descruzando as pernas, aproveitou aquela espera para ponderar a única parte de toda aquela situação sobre a qual ainda tinha algum controlo. Apelando à memória e contando pelos dedos, enumerou todas as situações em que a outra se mostrara violenta, primeiro no Sumol, mais tarde quando a sua experiência com heroína não correra nos conformes, depois quando acabaram e Susana lhe torcera o braço e, por último, naquele dia, caso a rapariga não a tivesse segurado. Fora nestas ocasiões, a loura sempre fora muito cuidadosa, tinha era uma certa adoração por álcool e drogas ligeiras e a sua personalidade volátil não ajudava propriamente.
O que a preocupava era o facto de todas as promessas da outra de nunca mais lhe tornar a levantar um dedo que fosse se terem revelado infrutíferas. Assim, como era é que suposto estar casada com uma pessoa que, quando a conversa não lhe agradava, partia logo para a violência? Ela, Daniela, não estava disposta a ser o saco de boxe de ninguém e nada lhe garantia que um dia Susana não a aleijasse a sério. Porém, a última coisa que queria era sequer colocar a hipótese de desistir daquele casamento, depois de tudo porque já passaram. E mais, estava certa de que a loura não a queria mesmo magoar, apenas era propícia a precipitar-se quando ficava de cabeça quente.
O seu momento de introspecção teve que ser interrompido quando a assistente social a abordou, lendo o seu nome no formulário fixo numa prancheta, “Daniela Sousa?”
Levantando a cabeça, a rapariga semicerrou os olhos quando a luz daquela divisão incidiu directamente sobre si. À sua frente, encontrava-se uma mulher de meia-idade, gorducha e atarracada, com cabelos compridos e expressão de misericórdia exacerbada. Contendo o seu aborrecimento, respondeu, “A própria”
“Boa noite, o meu nome é Margarida Simões e estou aqui para falar consigo sobre uma queixa anónima de violência doméstica”, começou a assistente, numa voz enjoativamente doce, que provavelmente visava a deixar as vítimas mais aconchegadas. Só era pena que tivesse o efeito oposto na morena, fazendo-a considerar despejar a última refeição para dentro de um cesto de papéis na sua periferia.
“Gostaria, antes de mais nada, de saber de onde é que partiram essas acusações”, pediu Daniela. Antes de responder ao que quer que fosse, convinha estar a par do que as autoridades sabiam.
“A pessoa que nos fez a queixa diz já ter presenciado mais do que uma ocasião de violência, tendo sido a última esta tarde, quando a Sra. Marques a esbofeteou no carro”, esclareceu a assistente, na sua voz adocicada, “Mas não se preocupe, estou aqui para a ajudar”
“Para que conste, a Susana não me tocou”, esclareceu a rapariga, sequiosa por saber de quem teria partido a denúncia anónima. No entanto, a sua prioridade era resolver toda aquela situação. Qualquer problema que tivesse com a loura resolveria com ela, sem interferência de terceiros.
“Minha querida”, tentou Margarida, afagando a mão da morena com a sua, sapuda, “Não precisa de a defender, se ela lhe tocou merece pagar por isso”
O tratamento arrepiou Daniela, que teve que fazer a sua melhor poker face para esconder o seu desagrado. Aconchegando-se no blazer de Susana, continuou, “Agradeço a sua preocupação, mas as acusações são infundadas”
“E as marcas que tinha ainda há pouco tempo atrás?”, questionou a assistente, sem nunca descorar o sorriso condescendente.
A sua melhor aposta era ser honesta, sem floreados e a morena sabia-o. Pausando um pouco, explicou, “Não querendo parecer vulgar…gosto de sexo bruto e a Susana fez-me a vontade, é normal ter ficado com umas marcas”
A resposta valera a pena apenas pela expressão que assombrou a cara de Margarida, eliminando quaisquer vestígios de doçura. Margarida, ultrajada, tanto que os olhos se esbugalharam, abriu a sua pasta e colocou na mão de Daniela fotografias de cadáveres de raparigas na sua faixa etária, todos eles com hematomas e golpes profundos. Aí, todas as tentativas de manter uma expressão impávida foram por água abaixo. A rapariga levantou o olhar de uma fotografia particularmente gráfica e questionou, “O que é que pretende com isto?”
“Todas estas raparigas julgavam que a última reconciliação era a valer, que as desculpas do namorado eram sinceras e que não voltariam a ser agredidas. Todas elas acabaram dentro de um saco de plástico na morgue”, disse a assistente, elevando o tom de voz, “Mas consigo não tem que ser assim, basta ser sincera. Não duvido que a Sra. Marques consiga ser muito simpática e persuasiva, mas não deixe que chegue a este ponto!”
Juntando o gesto à palavra, pegou numa foto e quase a espetou na cara da morena, que a afastou, agoniada, “Disse e repito, não tenho problemas com a Susana e ela não me bateu, tudo não passou de um mal entendido”
“Por amor de Deus, ela é conhecida por ter um temperamento horrível”, bradou Margarida, já desesperada, “Ela é uma drogadinha! Acredito que o dinheiro lhe saiba muito bem e que ela seja o seu troféu, mas se não fizer nada o mais certo é um dia vir a arrepender-se e, quando esse dia chegar, vai ser tarde demais!”
“Ela não é o meu troféu, estou com ela muito antes de ela ter o estatuto que tem, desde que era Dj, passando pelos tempos em que tocava na rua a troco de esmola”, respondeu Daniela, seriamente incomodada com as acusações, “Não estou com ela pelo dinheiro, é assim tão difícil aceitar que gosto mesmo dela?”
“Vai ver, quando estiver azul e preta vai desejar voltar a este momento e refazer o erro que está prestes a cometer”, concluiu Margarida, esgotada e já sem saber o que mais dizer para incutir o seu ponto de vista à rapariga, “Pode sair se quiser, mas não se esqueça do que lhe disse”
---------------------------------------------------------------oOo---------------------------------------------------------
Foi de mão encostada ao vidro da janela e um mal-estar interior que Susana viu Daniela ser escoltada do carro para o interior da esquadra, por uma agente. Deixando a mão escorregar, a loura deixou que o arrependimento e frustração assentassem em toda a sua plenitude sobre si. Quando julgara que conseguiria cumprir a sua promessa de não voltar a perder a cabeça e a partir para a violência, acontecia aquilo. E tudo fora desencadeado por uma coisa tão pequena, como a falta de jeito da rapariga para dançar…se ela, Susana se irritara com uma simples cabeçada acidental a ponto de despoletar toda aquela discussão, o que faria se fosse algo grave.
Não queria, nem por sombras, pôr fim ao casamento porque não conseguia ter auto-controlo suficiente para resolver as suas diferenças através de uma conversa como gente civilizada. Porém, o que é que lhe garantia que da próxima vez não fazia ainda pior? Esforçara-se tanto para não explodir simplesmente e levar tudo à frente cada vez que não concordava com algo ou dito algo a irritava, mas parecia que teria que tentar ainda mais, mais para o bem da morena, que por outra coisa qualquer, já que por si não o conseguia fazer. Talvez o uso recente de substâncias mais pesadas, facto que a rapariga ignorava, tivesse contribuído para aquela instabilidade, mas não o fazia muitas vezes nem queria arranjar desculpas para as suas falhas.
A voz do agente que a trouxera parecia distante, embora a convicção e rispidez com que este bradara tivesse sido suficiente para a fazer largar os seus pensamentos e voltar à realidade, por muito que esta não lhe agradasse, “Importa-se de fazer o favor de me acompanhar?”
“Ahm?”, disse a outra, arrastando a voz, “Ah…sim, claro”
“Ao menos está mais calma”, comentou o agente, acompanhando-a até a uma sala, cuja única mobília era umas gavetas metálicas, uma mesa e duas cadeiras, “Se não se importa, gostaria de ter uma conversa consigo, nada de especial, esperemos”
O ambiente pesado, juntamente com a decoração, se é que tal se podia chamar, da sala, tão impessoal, provocavam em Susana um sentimento ainda maior de desprotecção e receio. Perguntava-se se Daniela estaria numa sala igual a passar pela mesma situação, o que estaria a dizer e, no pior dos cenários, se teria admitido que a loura já lhe tinha, realmente, batido. Gaguejando, a outra só não tremia dos pés à cabeça porque se sentia demasiado esgotada física e emocionalmente para tal, “A D-Daniela…ela está onde?”
“Isso agora não interessa para nada”, replicou o agente, também ele ansioso por dar aquele turno por encerrado, tanto mais que não perdeu tempo a ir directo ao assunto, “Recebemos uma denúncia anónima de violência doméstica e, de acordo com a qual, a Susana, em mais do que uma ocasião, agrediu a sua mulher…”
“Isso não é verdade, pensei que já lhe tinha dito isso!”, interrompeu Susana, exasperada. Não levantara muito o tom de voz, até porque nem conseguia. Não sabia o quanto a rapariga contara, mas achou por bem fechar-se em copas, afinal mais valia prevenir do que remediar.
“…e esta acusação, além de estar alicerçada em testemunhas oculares, ainda é suportada pelo seu comportamento instável”, continuou o agente, como se não tivesse sido interrompido. Subitamente, pondo um ar austero, acrescentou, “Tal como agora”
A loura abriu a boca, presumivelmente, para se voltar a manifestar, mas, ao ser trespassada pelo olhar severo do polícia, voltou a fechá-la, optando antes por deixar que ele prosseguisse, coisa que fez passados alguns instantes, “Ainda esta tarde teve uma discussão feia com a Sra. Sousa, certo?”
“Sim, isso é verdade, mas…”, começou a outra, num tom apressado, mal pronunciando todas as palavras.
“E, no decorrer dessa discussão esbofeteou a sua mulher, certo?”, interrompeu o agente, cortando o discurso incoerente e atabalhoado de Susana.
“Sim…quer dizer, não!”, corrigiu a loura, nervosa, “É assim, eu enervei-me…mas não lhe bati, nem sequer lhe toquei, não pode dizer isso”
“Até pode ser verdade o que está a dizer, mas os factos não abonam muito a seu favor”, disse o polícia, enquanto anotava qualquer coisa, “Uma testemunha anónima afirma ter estado presente em mais do que uma situação de violência sua”
Aí, a outra ponderou antes de falar. Que se lembrasse, em todas as situações em que tivesse batido em Daniela, ambas haviam estado sozinhas e em privado, era impossível alguém ter visto, com excepção daquela vez no carro. Havia ali qualquer coisa que não batia certo, “É impossível, quando tenho um ponto de vista diferente do da Daniela, resolvo-o com ela e não meto mais ninguém dentro do assunto”
“Isso já não sei e não tem nada a ver com o que lhe estou a falar”, respondeu o agente, “Só lhe estou a dizer que está em má posição, tem uma alegada testemunha e fotos suas a sair de um hospital mais a Sra. Sousa. Tem mais a ganhar se admitir em vez de me tentar enganar”
“Fotos…hospital, ah! Isso foi um mal-entendido”, esclareceu Susana, mais confiante, tanto que acabara por divagar, num registo mais alegre, “Nós tínhamos ido ao hospital porque um amigo nosso tinha sido pai nesse dia e nós fomos ver os miúdos, mesmo giros, por acaso”
“Não me tente enrolar que eu não me distraio facilmente”, rosnou o polícia, eliminando a boa disposição da loura, “E as marcas? Se calhar foram os miúdos, não?”
“Eles são traquinas, mas são a coisinha mais querida…”, voltou a divagar a outra. Ao ver a impaciência do outro, corrigiu-se, embora por breves instantes, “Ah, desculpe…as marcas foi porque…ela gosta à bruta, sabe como é, e eu pronto, não ia dizer que não, não acha?”
“Pronto, já percebi, não me dê pormenores”, apressou-se o agente a dizer, corado e constrangido, não fosse Susana voltar a divagar, “Por hoje, pode ir, mas vamos estar de olho em si e, ao menor deslize vai cantar para trás das grades”
Sentindo retirar um peso titânico de cima, a loura desejou boa noite ao polícia que nem se atreveu a olhá-la nos olhos e abandonou a sala, deparando-se com Daniela encostada à parede e ar de aborrecimento. Seria possível que estivesse com mais medo de a enfrentar do que ao polícia pouco agradável? Abrandando o passo, dirigiu-se à morena, “Hm…vamos?”
“Hm, hm”, anuiu a rapariga, agarrando-se ao braço da outra, gesto que surpreendeu Susana, mas esta nada disse e, antes que dissesse, a morena acrescentou, “O que quer que tenhas a dizer, dizes amanhã, não estou com grande cabeça para isso”
Atendendo ao pedido de Daniela, a loura não voltou a falar durante todo o percurso até casa. A situação não podia estar assim tão má, se a rapariga não a fez dormir no sofá e até se aninhou nela nessa noite.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Capítulo 81

Se Susana tivesse que metaforizar a sua vida naquele momento, fá-lo-ia através de uma rosa, cujo único espinho era aquele artigo nefasto que a acusava de ser agressora. Enquanto os media se mantivessem longe de si estaria bem e encontrava-se grata por ainda não ter sido bombardeada com questões a torto e a direito acerca da alegada agressão, mesmo que soubesse que seria apenas uma questão de tempo. Porém, adiá-lo-ia o mais que pudesse, desta forma teria um período de paz e sossego prolongado. Mas também, se houvesse grandes problemas, Daniela podia refutar tudo, o que era o pior que podia acontecer?
Relativamente ao resto, a loura não podia exigir mais nada. Com jeitinho e calminha, a rapariga já se começava a tornar mais flexível quanto à ideia de crianças, tanto quanto a outra conseguira observar quando fora buscar a morena a casa de Pedro e a vira a entreter os afilhados. Por muito que Daniela não quisesse admitir para não dar o braço a torcer, orgulhosa como era, Susana sabia que esta se tinha afeiçoado a Maria João, sobretudo, tanto mais que nem parecera demasiado enojada quando a bebé lhe vomitara em cima. Se se tratasse de outra criança qualquer, a rapariga teria decidido, naquele mesmo momento, laquear as trompas só para não se arriscar a ser mãe no futuro.
Satisfeita com os progressos, a loura investiu ainda mais na comemoração do primeiro ano de casamento de ambas, planeando ao pormenor para que tudo ficasse nos conformes. Na véspera, assim que a morena dera como terminado o dia de trabalho, a outra, não descurando um único aspecto do seu plano, pedira-lhe que preparasse umas “vestimentas a rigor” para o dia seguinte, palavras suas, ditas com aquele típico sorriso maroto, acompanhado por brilho no olhar e covinhas pronunciadas. Como é que Daniela havia de resistir? Pergunta retórica, a rapariga não estava minimamente interessada em resistir.
Prevendo os planos de Susana, a rapariga decidiu-se a, finalmente dar uso ao conjunto de lingerie que Guida lhe dera nos anos, acompanhado de um cartão que dizia: “Mais para a Susy que para ti, agora não tens desculpa para usares cuecas de avozinha”. Que insulto, mas também, o que esperar da namorada da amiga? Não aceitando a provocação sem resposta, a morena dera-lhe, nos anos dela, um conjunto de gilletes com a seguinte missiva: “Para a Marta conseguir lá chegar, o corta-relva estava fora das minhas posses”.
Assim, Daniela viu-se, logo pela manhã daquele dia, presenteada com um pequeno-almoço capaz de rebentar o estômago a um elefante e uma Susana particularmente melosa e alegre, se é que tal era possível. Mal se ergueu da cama, a loura atirou-se para cima de si, voltando a deitá-la, antes de a cobrir com abraços, beijinhos e saídas lamechas, “Coisa linda! Mais um aninho contigo a teu lado, bebé!”
“Piegas da gaja…”, rosnou a rapariga, embora não conseguisse manter a seriedade durante muito tempo, o certo era que ela própria também não cabia em si de feliz. Pondo os braços em torno do pescoço da outra, puxou-a mais para si, retribuindo. Quando a necessidade de respirar era demasiado para adiar, a morena volta-as, sentando-se por cima da cintura de Susana, “Toda acesa logo de manhã, não tens remédio”
“Detesto aquela semana do mês”, resmungou a loura, aborrecida por Daniela as fazer ficar no celibato sempre que o Benfica jogava em casa, “Por mim não me importava de ficar com a língua vermelha, tudo menos a abstinação!”
“Abstinação?!”, ultrajou-se a rapariga, que fingiu esganar a outra, na brincadeira, o que originou mais riso, “Abstinência! Ai que ursa!”
“Ou isso”, respondeu Susana, dando uma palmada no traseiro da morena, “Ursa mas tu gostas!”
“Guarda isso para logo à noite”, picou Daniela, baixando-se para beijar a loura, antes de se levantar, piscando-lhe o olho pelo caminho. Quando se encontrava a tomar o pequeno-almoço, pôde verificar que a outra se esmerara e, falando no diabo, ali estava ela, a caminhar para a cozinha ainda com a t-shirt com que dormira vestida e o cabelo caótico. Sentando-se ao lado da rapariga, não se fez rogada em ajudá-la com a refeição, mais que não fosse porque tinha feito bastante porque previa que todas as energias que conseguissem consumir fossem bem-vindas.
Quando acabou de comer foram-se aprontando para saírem. A morena já ia a deitar a mão a um par de calças desbotadas, caso não tivesse sido impedida por Susana, de nariz torcido e expressão desagradada, “Leva antes aquele vestido amarelo clarinho que eu gosto”
“Fazes-me levar vestido quando tu levas calças”, replicou Daniela, vasculhando por entre a roupa. Dada a ocasião faria a vontade à outra.
“São as justas, não as azeiteiras!”, respondeu a loura, lutando para se meter dentro das calças, coladas à pele. Mal as conseguiu vestir, bufou de alívio, antes de se voltar para a morena, “Até levo blazer!”
“Ai coisa mais linda”, zombou a rapariga, mesmo que achasse que as sandálias baixas, as calças justas, a camisa branca e o blazer preto ficassem bem em Susana, “Porque é que eu nunca te vi de vestido?”
“Além de ser incómodo e nada prático…”, começou a loura, recalcando a memória constrangedora de quando Guida a fizera usar uma saia com saltos altos, na qual só dera meia dúzia de passos antes de cair redonda, “…o ventinho nos genitais faz impressão”
“Os teus é que precisam de apanhar ar”, comentou Daniela, com uma expressão repugnada fingida. A outra fulminou-a com o olhar, antes de ir em passos largos para a casa de banho para se acabar de arranjar. Pelo caminho, a morena ainda a ouviu reclamar, “Só me aleijas, tu só me aleijas”
Divertida, a rapariga foi ter com a loura, que se encontrava a lavar os dentes, e atirou-se a ela num abraço, enternecida, “Gostanti!”
Susana afugentou-a, com o sobrolho franzido, com uma sobrancelha tão exageradamente erguida que Daniela apenas conseguiu fazer o seu beicinho, a muito custo. Mesmo assim, a loura foi afectada, tanto que puxou a rapariga para si e a beijou. Quando a morena se conseguiu soltar, virou-se para o lavatório, onde cuspiu pasta de dentes, com uma expressão aborrecida, “A sério, Susana…”
A outra limitou-se a mostrar as covinhas e a continuar o que estava a fazer antes de Daniela ter chegado. A rapariga revirou os olhos e, também ela, se arranjou e se preparou para sair para onde quer que Susana tivesse planeado. Fora um percalço ou outro que envolveu a mão da outra a passear na perna da morena, chegaram rapidamente a um restaurante à beira-mar escolhido pela loura. Mal colocou o pé fora do carro, Susana inspirou fundo, saboreando plenamente aquele aroma a maresia. Ao reparar na expressão risonha de Daniela, a loura compôs o blazer e pôs o braço de modo a tomar o da rapariga no seu, coisa que ela prontamente aceitou.
No restaurante, decorado com um tanque de lagostas na entrada e temas navais, escolheram uma mesa junto à janela, um tanto afastada do resto dos clientes. A outra puxou a cadeira para que a morena se pudesse sentar sem que, desta vez, se estatelasse no chão. Assim que Daniela se encontrava instalada, Susana suspirou de alívio por estar a conseguir contornar todos os possíveis “fails” que estivessem prestes a acontecer. Felizmente para ambas, o almoço decorreu sem contratempos, em bastante privacidade, acrescente-se, a outra não fora abordada por algum fã exaltado.
Quando terminou o prato principal, a rapariga pediu um gelado, que deu a provar à loura, levando-lhe a colher à boca, como se o fizesse a uma criança, gesto que não passou despercebido pela outra, que comentou, “Andas a treinar para o nosso filho?”
A morena tocou-lhe com a colher no nariz, deixando-lhe uma marca amarela de gelado de caramelo, antes de lhe deitar a língua de fora. Susana limpou o gelado da ponta do nariz e olhou, primeiro para a direita, depois para a esquerda, certificando-se que ninguém estava a ver, depois levou o dedo com que limpara o nariz, à boca, apesar do ar de reprovação de Daniela, ao qual respondeu, “Ahm? Não se desperdiça nada!”
Recostando-se na cadeira, a loura observou o pequeno palco onde alguns músicos tocavam, no outro extremo do restaurante, onde também se juntavam alguns casais para dançar. Entusiasmada, levantou-se da cadeira e esticou a mão para a rapariga, que deitou um olhar a quem dançava e depois à outra, horrorizada, “Eu não danço!”
“Por favor!”, implorou Susana, fazendo beicinho. Sabia que a morena era, muito provavelmente, a pessoa mais descoordenada à face da Terra, incapaz de seguir o ritmo de uma música, quer a cantar, quer a dançar, mas nunca tinha conseguido convencê-la a dançar com ela.
Daniela rosnou-lhe, antes de voltar a atenção para o mar do lado de fora da janela, esperando que a loura acabasse por esquecer aquela ideia. Ela, Daniela Sousa cujo esquema de dança se assemelhava a um tropa a marchar…
“Mh…vá lá…mh!”, insistiu a outra, ainda com o braço esticado, “Só uma!”
“Pronto, está bem”, resmungou a rapariga, rangendo os dentes. Aceitou a mão de Susana, cujo sorriso radiante a enfurecia, naquele momento, ainda mais. Quando já estavam na pista, perguntou, “E agora o que é que eu faço?”
“Mete a mão esquerda no meu ombro e dá-me a direita”, disse a loura, pondo a sua mão esquerda na cintura da morena, “Agora fazes o que eu faço e o que eu depois disser…começa agora”
Daniela seguiu as indicações, amaldiçoando todos os momentos em que tivera que participar em danças latinas, ou em valsa, ou no que quer que fosse, simplesmente não era talhada para aquilo. Imitando os passos da outra, acabou por se deixar guiar, dando o seu melhor para não sair do esquema, nem para pisar Susana. A loura, por sua vez, era algo que lhe saía naturalmente, como cantar ou desenhar e puder fazê-lo com a rapariga, finalmente, tornava aquilo ainda melhor. Ocasionalmente aproximava-se do ouvido da morena e dizia, “Estás a ir bem”
Sentindo uma onda de confiança, Daniela descontraiu, muito para alegria da outra. Quando a música chegou ao fim, começou outra, num ritmo mais lento, uma balada. Agradada com o à-vontade da rapariga, Susana aproveitou para dançarem mais uma, puxando a morena para si, de modo a ficarem quase encostadas, “Põe os braços no meu pescoço…isso, agora dás passos curtos”
Pondo os braços na cintura de Daniela, a loura deu o primeiro passo, o que baralhou a rapariga durante um pouco até que apanhou o ritmo. Quando ambas se acomodaram, a outra acabou por encostar a testa à da rapariga, sorrindo. Naquele momento, os modos socialmente inadequados da morena, advindos de uma súbita onda de “borboletas no estômago”, emergiram, tanto que esta sorriu atabalhoadamente e disse, “Tens comida…aí entre os dentes”
Susana suspirou, revirando os olhos. Daniela fazia sempre questão de estragar um belo momento romântico. Tentando corrigir os danos, a rapariga aproximou-se para dar um beijo à loura, porém, acabou por dar uma cabeçada na testa desta, com tanta força que a fez desequilibrar-se e cair para trás. No chão, a outra gritou, exaltada, “Sempre a mesma merda, foda-se!”
“Desculpa…”, pediu a morena, embaraçada, esticando a mão para auxiliar a outra a levantar-se.
Resmungando qualquer coisa que soou a “Mónica, volta…estás perdoada”, Susana não aceitou a ajuda de Daniela, pondo-se de pé sozinha e dando-lhe um encontrão com o ombro quando passou por ela. Constrangida e magoada, a rapariga reprimiu-se a si própria pelos seus modos desastrados. Quando chegou ao pé da loura, a quem começava a surgir um hematoma na testa, esta apenas disse que iam embora e atirou com uma nota para cima da mesa, nem esperando pelo troco.
O caminho até ao carro foi preenchido por um silêncio constrangedor, situação que apenas mudou quando a outra bateu com a porta do veículo, o que fez com que a tristeza da morena desse lugar a irritação, “Não estragues o que não é teu”
Susana deitou a cabeça sobre as mãos, antes de suspirar, “Não era mesmo assim que contava que corresse o dia”
“Desculpa lá se sou desastrada”, disse Daniela, num tom propositadamente irónico, “Mas também tu tens os teus defeitos e eu calo-me e levo com eles”
“É diferente, tu pareces mesmo atrasada mental!”, atacou a loura, sentindo a raiva tomar conta de si, “Bicho do mato…”
“Deixa ver…ah sim, oh Dani, a capital dos Estados Unidos não é a Califórnia?”, troçou a rapariga, fazendo uma voz fininha e expressão imbecil, “Queres mais? Mas Dani! Um quilo de chumbo tem que pesar mais que um quilo de algodão! Não podem pesar o mesmo!...Sim, a atrasada mental sou eu”
“Retira o que disseste”, advertiu a outra, lançando-se à morena. Daniela não conseguiu registar o que aconteceu a seguir, quando abriu os olhos, viu que conseguira agarrar a mão de Susana, instantes antes de esta lhe acertar na cara.
A loura pareceu tão abismada quanto a rapariga. Afinal ia fazendo outra vez o que prometeu que não voltaria a fazer. Tremendo dos pés à cabeça, deixou cair o braço, ainda com a mão envolta na da morena, “Desculpa…”
“É melhor…ir-me embora uns tempos”, disse Daniela, sentindo o medo que havia algum tempo que a outra não lhe provocava.
“Não…eu…não queria, não sei em que é que estava a pensar…”, gaguejou Susana, agarrando a mão da rapariga, “Por favor não tenhas medo de mim!”
“Se eu não te tivesse agarrado tinhas-me batido”, murmurou a morena, mais para si do que para a outra. Pela primeira vez desde que dissera o sim à loura estava a pensar se aquele casamento, concretizado no fogo do momento, teria sido a melhor decisão.
Enterrando as mãos no cabelo, Susana soltou um gemido angustiado, até que não conseguiu conter mais o choro. Com os rastos das lágrimas marcados nas faces, aproximou a cara de Daniela, “Bate-me”
“O quê?”, questionou a rapariga, surpreendida. A imagem da loura, banhada em lágrimas a tremer como varas verdes estava a perturbá-la seriamente.
“Dá-me um estalo…qualquer coisa”, pediu a outra, com um tom de voz esganiçado, muito diferente do seu habitual.
“Susana…”, tentou a morena, completamente impotente face ao ataque de histerismo de Susana. Nunca a tinha visto tão descontrolada e não sabia o que fazer. Muito a medo, abraçou a loura, deitando a cabeça desta sobre o seu peito, contendo os soluços desta, que não conseguia parar de chorar. Com calma, foi-lhe passando as mãos pelas costas e pelos cabelos, até que os pedidos de desculpa da outra cessaram e os espasmos acalmaram, “Já passou…calma Suse, pronto”
O tempo foi passando, até que Susana acabou mesmo por adormecer, já sem uma única reserva de energia. Quando Daniela deu por si, já estava a anoitecer e, ela própria, não tinha força para mexer um músculo que fosse. Fechou os olhos e adormeceu, também, junto à loura. Quem as visse teria, diante de si, a perfeita imagem de inocência e fragilidade.
-------------------------------------------------------------oOo----------------------------------------------------------
O som de algo ou alguém a bater no vidro da janela acordou-as a ambas. Era noite cerrada, estava tão escuro que tiveram dificuldades em identificar a figura do lado de fora do veículo. Abrindo a janela, Daniela foi abordada por um indivíduo fardado, que mostrou um distintivo, provando pertencer à PSP, “Vou ter de pedir que saiam do veículo e me acompanhem”
“Ahm?”, questionou Susana, levantando a cabeça do peito da rapariga.
“Recebemos uma queixa anónima de um caso de violência”, declarou o agente, “A Sra. Susana Marques tem que vir connosco”
“Eu não fiz nada a ninguém!”, gritou a loura, cujo estado de histeria ameaçou voltar, “Por favor…diz-lhes”
“É verdade, ela não bateu em ninguém”, esclareceu a morena, afagando o braço da outra, tentando acalmá-la.
“Como medida de prevenção ela tem que nos acompanhar”, repetiu o agente, num tom severo, “A bem ou a mal”
“É a minha mulher, eu não lhe ia bater!”, tentou Susana, apavorada, “Tem que acreditar em mim”
“Eu não tenho que acreditar em nada”, replicou o agente, com uma mão sobre as algemas, não fosse a loura fazer algo, “Só lhe estou a mandar vir comigo e a sua mulher que preste declarações à minha colega, agora como é que quer fazer isto?”
Afagando a face da outra, Daniela murmurou-lhe que seria melhor ir mas que iria correr tudo bem. Abraçando a rapariga antes de sair do carro, a outra seguiu o polícia até a um carro patrulha. Olhando para trás enquanto se afastavam, Susana nem conseguia acreditar no quão surreal toda aquela situação era. Só de pensar que ainda naquela manhã tinha as melhores expectativas em relação àquele dia, iriam almoçar, depois dariam um passeio à beira-mar e passariam a noite num hotel e seria a comemoração do primeiro ano de casadas perfeito. Ao olhar para trás uma última vez, ainda pôde ver um sorriso por parte da morena, tentando encorajá-la.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Capítulo 80

O aniversário do primeiro ano de casamento de ambas estava à porta e Susana já tinha umas ideias na manga, até porque não queria desleixar os momentos e as surpresas românticas que fazia a Daniela desde o início do namoro. Até à data do aniversário ainda tinha uns dias, dias esses que usaria para acabar todos os preparativos. Sorrindo de satisfação, espreguiçou-se na sua cadeira, já devia ser quase horas de almoço e a morena tinha-lhe preparado a refeição. Pegando na lancheira, dirigiu-se à esplanada do estúdio, onde poderia comer em paz descansada.
Desapertando o nó elaborado que Daniela dera ao pano violeta que cobria o recipiente, caiu-lhe aos pés um postal com dois cãezinhos peludos. No verso, na caligrafia redonda e grande da rapariga, estava escrito, “Para a melhor mulher do mundo”. Sorrindo, enternecida, a loura guardou o postal, mais tarde colocá-lo-ia afixado sobre o seu local de trabalho. Abrindo a caixa, deparou-se com a sua sandes predilecta, cuidadosamente ornamentada e cortada. Tinha, também, uma bebida muito do seu agrado, para dar aquele último retoque. Derretida, a outra comeu com gosto, sentindo o sol quente de Junho bater-lhe na face. Estava a dar os últimos tragos no sumo, quando apareceu o produtor, pálido como uma figura de cera.
Avistando-a, caminhou a passos largos na sua direcção, com uma revista enrolada na mão. Ao chegar até junto de Susana, atirou com a revista para cima da mesa, com um som seco. Lívido, questionou, num tom angustiado, “Agora deu-te para isto?”
A loura revirou os olhos, já tinha visto cada pormenor da sua vida privada publicado em revistas, exposto para todo o mundo ver. Mais um não a faria, sequer, levantar o sobrolho. Aborrecida, deu uma mirada à revista, onde estava na capa uma foto sua com Daniela à saída do hospital. Na imagem, as diversas marcas das suas mãos estavam, bem visíveis, na pele clara da rapariga e o facto de, nessa foto, Susana estar a agarrar o braço da morena e esta estar com uma expressão de dor, não contribuía para que tudo aquilo parecesse melhor. O título gritava aos quatro ventos, “MAUS TRATOS”.
Sentindo um calafrio, abriu na página em questão: “No passado dia…foram vistas a sair do hospital, o ambiente parecia tenso…a mulher apresentava marcas distintas das mãos de Susana nos braços e pescoço, bem como várias feridas na cara…conhecida pelo seu temperamento instável é provável que Susana tenha perdido o controlo”. Levantando o olhar da revista, dirigiu-se ao produtor, sem qualquer cor no rosto, “Não acredita mesmo que eu fosse…eu não…é a Daniela, porra, eu nunca lhe iria bater”
Mal aquelas palavras lhe saíram da boca, mordeu o lábio, consciente que acabara de mentir. Mas aquelas acções pertenciam ao passado, quando perdera mesmo a cabeça e, este tempo depois, nunca se perdoara. Ainda sem deixar de fitar o produtor, tentou, “É um mal entendido…”
“Ela está toda marcada!”, explodiu ele, levando as mãos à cabeça, deixando os cabelos, outrora perfeitamente penteados, num ninho, “Para que é que fizeste isso?! E AGORA O QUE É QUE AS PESSOAS VÃO PENSAR?!”
“Eu…ela…”, gaguejou a loura, perdendo qualquer fio de raciocínio que ainda conseguisse, porventura, ter, “Ok fui eu que a deixei negra…mas não foi por isso!”
“Então tu espancaste-a mesmo!”, grunhiu o produtor, colérico, decerto que já estaria a criar uma úlcera no estômago, “Agora como é que justificamos isto?!”
“Nós…”, justificou-se a outra, sabendo que estava a enterrar-se cada vez mais. Mais valia dizer a verdade, por muito íntima que fosse, “Sexo bruto…fizemos”
“Hm?!”, grasnou o outro, num som que aparentava um coelho a ser estrangulado. Agora já tinha ouvido tudo…
“Ela gosta à bruta e eu deixei-me levar”, admitiu Susana, suspirando, com a cara escondida nas mãos, “Por isso é que está assim, acha mesmo que eu lhe ia fazer isso de propósito para a magoar?”
“Eu sei lá, tens um feitio desgraçado e bebes que nem uma esponja”, guinchou o outro, embora o alívio que sentisse fosse notório, “Se a tua imagem se deteriorar, tu pedes à tua mulher que fale, até então, tu não dizes nem fazes nada”
Concordando, a loura esperou que o produtor, tão nervoso que o andar parecia descoordenado, se fosse embora para ligar a Daniela. Chamou, chamou e chamou, mas não obteve resposta, a rapariga deveria estar ocupada. Fechando os olhos em frustração, a outra deixou-lhe uma mensagem para que lhe ligasse o quanto antes. Até lá, teria que acalmar a sua ansiedade com toda a nicotina que conseguisse inspirar. Quando o quarto cigarro não surtiu efeito, ponderou ir dar um passeio, podia ser que conseguisse descontrair.
Assim o fez, deambulando pelas ruas da cidade, em busca da paz interior. Estava a observar a água de uma fonte, quando uma rapariguinha cuja idade não devia estar muito longe dos doze a abordou, com as bochechas ruborizadas, “S-Susana?”
“A própria, diz linda”, disse Susana, sorrindo, aquela era, sem dúvida, a parte mais gratificante do seu trabalho.
“Só lhe queria dizer olá…”, murmurou a menina, envergonhada, olhando para os pés, “Gosto muito de si”
“Obrigada”, agradeceu a loura, afagando a face à criança, nervosa mais nervosa seria impossível.
“Matilde!”, chamou quem seria, em princípio, a mãe, preocupada. Quando avistou a rapariga, a sua inquietação deu lugar a um alívio imenso, tanto mais que até correu para junto desta. Quando viu Susana, desfez-se em agradecimentos, “Ai…obrigada por a ter encontrado! Esta miúda dá cabo de mim…”
“Não tem importância”, retribuiu a loura, levantando a cabeça para encarar a senhora, sorridente. No entanto, quando esta viu de quem se tratava, afastou a menina e advertiu, “Você…sua…como se atreve! Já não lhe basta o que fez à sua…afaste-se!”
Não desejando mais do que não levantar ondas, Susana limitou-se a erguer as mãos em sinal de derrota, antes de se virar costas, desanimada. Quando se ia embora, a voz da criança fez-se ouvir, “Muito prazer em conhecê-la! Gosto muito de si”