Daniela decidiu ir para casa pelo caminho mais longo, guiando excessivamente devagar, ao contrário do que faria. Deixou-se ficar um pouco no carro, à entrada de casa, tentando acalmar um pouco, mas sentia o coração a palpitar na garganta. Ao sentir a vibração do telemóvel na perna, fechou os olhos e rezou para que não fosse Susana, ou que pelo menos esta estivesse a avisar que afinal não podia comparecer:
“Em meia hora estou aí”
Porra! Não havia mesmo volta a dar. Saiu do carro batendo com a porta e entrou em casa, verificando que os pais já lá estavam.
“Então Dani, sempre é hoje que conhecemos o teu príncipe?”, picou o pai, com um sorriso brincalhão. A mãe manteve-se à parte com um olhar venenoso.
“É sim…”, limitou-se Daniela a informar, sentindo os joelhos em gelatina, “Sejam brandos, se faz favor. A pessoa em causa é um bocadinho diferente do que têm em mente”
Foi quanto bastou para desencadear um discurso por parte da mãe, acusando a filha de andar com um drogado ou um cigano. A rapariga suspirou e fingiu que a ouvia, batucando com o pé no chão. Sentiu o telemóvel vibrar outra vez:
“Cheguei, amor!”
Estava tão nervosa que nem pensou em revirar os olhos, pediu licença aos pais e saiu de casa, sem tomar consciência de um par de olhos que a observava pela janela. Susana já estava à entrada de casa, com um sorriso rasgado. Se estava nervosa, então disfarçava bem. Ainda assim, a morena não pôde deixar de reparar na nova indumentária desta, antes de se lhe lançar ao pescoço, num abraço apertado, que ergueu a rapariga do chão ligeiramente.
“Parabéns, amor!”, disse Susana, ainda com os braços em torno da cintura da morena.
“Obrigada”, respondeu Daniela, sem nunca largar o pescoço da outra.
Ficaram assim mais um pouco até que a loura as separou, tirando algo quadrado embrulhado. A rapariga apressou-se a abrir e viu que era um CD não identificado.
“Disseste que gostaste de me ouvir tocar”, disse a outra, esfregando a parte de trás da cabeça, “Então gravei algumas músicas que toquei, as que mais gostaste. Mas espera que ainda não é tudo, o resto fica para depois”
“Tens mesmo a certeza que queres fazer isto?”, perguntou Daniela. No fundo implorava por que a loura tivesse um acesso de cobardia.
“Claro”, respondeu Susana, erguendo as sobrancelhas, admirada. Na parte que lhe tocava, não tinha a menor dúvida, era algo que precisava de fazer. Só daria o anel à namorada depois de ver se esta era mesmo capaz de levar a sua palavra até ao fim.
“Hm, ok”, disse a morena, totalmente pálida. Preferiu mudar de assunto, de modo a aligeirar tanto o ambiente como a sua incerteza, “Ainda não te conhecia essa roupa”
“Oh, é da Guida e ela nem se lembrava que tinha”, informou a outra, rindo-se, “Achas que eram minhas? Só estas calças custam mais que o meu guarda-roupa todo”
Avançaram até casa num passo lento, embora Susana caminhasse decidida e sem hesitações, ao contrário de Daniela que estava a ganhar uma tonalidade esverdeada. Ao passarem a porta, a loura pegou na mão da rapariga que, num último esforço a segurou. Os pais que estavam a ver televisão, desligaram o aparelho, voltando-se os dois em simultâneo para as raparigas. De ansiosas as suas expressões mudaram para confusas, até que questionaram a filha, “Afinal o tal rapaz ainda demora?”
“Ahm…a tal pessoa que queria que conhecessem é ela”, clarificou Daniela, completamente lívida, segurando a mão da outra com tanta força que já tinha os nós dos dedos brancos, “Susana, pais, pais, Susana”
Aí o pai de Daniela desfez-se. Desatou a rir a bandeiras despregadas, agarrado à barriga. Ao ouvirem-no rir, as raparigas não conseguiram evitar senão rir também. Durante um bom bocado todos se riram, um riso bem-disposto e não nervoso. Todos, menos a mãe, que observou o desenrolar dos acontecimentos com um esgar de terror.
“Ai filha, por esta não esperava eu”, falou finalmente o pai, quando acalmou, “Mas não faças essa cara que não tens razões para isso, a vida é tua e tu és adulta e sabes o que fazes, não é por namorares com uma rapariga que te vamos renegar”
“Foda-se, ainda bem”, aliviou-se a morena, permitindo-se a respirar pela primeira vez. Detendo-se logo a seguir.
“Tento na língua”, avisou o pai, fulminando-a com o olhar, à medida que se levantava para cumprimentar a loura. Aproximou-se desta, que lhe esticou a mão, mão essa que o senhor apertou sem evidenciar sinais de desconforto ou desagrado. Quando Susana se dirige à mãe com um sorriso feliz, esta recua para trás, com os olhos esbugalhados.
“A senhora…rapariga…homem, ou lá o que é”, semi-gritou a mãe, olhando para a loura com uma expressão de desagrado, não parecendo notar a sua falta de coerência, “É que nem se atreva a tocar na minha filha”
“Tenha calma”, tentou Susana, afastando-se, “Eu juro que só tenho as melhores intenções para a sua filha”
“Nem devia ter intenções nenhumas!”, replicou a mãe, com os olhos a faiscar de raiva, “Largue-a, só a vai desencaminhar!”
“Acredite que só quero o melhor para ela”, insistiu a loura, mantendo-se calma, “Eu amo-a”
Todos os olhares das pessoas naquela sala se voltaram para ela, incluindo a rapariga. A loura respirou fundo e prosseguiu, “Eu amo a Daniela…sei que a consigo fazer feliz, mas gostaria que aprovasse da nossa relação”
Antes que a mãe pudesse abrir a boca para gritar mais obscenidades, Daniela colocou-se entre esta e Susana e interveio, interrompendo-a, “Mãe! Isso foi escusado, mesmo que a ideia te incomode não a podes tratar assim”
A senhora foi apanhada de surpresa, pelo menos a filha conseguira chamá-la à razão. Fechando os olhos por um segundo, a rapariga ganhou coragem e prosseguiu, “Mãe…eu sei que isto te apanhou de surpresa e que nunca foi o que idealizaste, mas entende que amo a Susana e que não me vejo com ninguém que não ela”
“Daniela…por favor sê razoável”, implorou a mãe. A sua atitude deu uma volta cento e oitenta graus, passando de furibunda a destroçada, “O que é que as pessoas iam pensar…”
“Não íamos andar a exibirmo-nos, apenas nos limitamos a estar juntas como qualquer casal convencional”, tentou a morena, à medida que observava a mãe a engolir em seco.
Por esta altura, Susana aproximou-se, colocando os braços em torno da cintura da namorada, de forma protectora. Tanto quanto dependesse de si, a sua “sogra” nem se atreveria a levantar a mão à rapariga. Pelo menos sem que retaliasse. O gesto foi o suficiente para que a senhora se enfurecesse outra vez, “Mas você…olhem-me bem para isso!”
Saindo do seu canto, o pai de Daniela sai em auxílio das raparigas, interrompendo a mulher, “Ana, posso dar-te uma palavrinha em privado?”
A mãe ainda tentou responder mas não conseguia formular qualquer frase, deixando-se arrastar para a cozinha, fechando a porta atrás de si com um estrondo. Apenas quando os pais foram embora é que Daniela se permitiu a sentar no sofá, enterrando a cara nas mãos e deixando cair uma lágrima. Nesse momento amaldiçoou com todas as suas forças a terrível decisão de contar aos pais. Estava ainda a pensar numa maneira de reatar as coisas com a mãe quando sente umas mãos quentes pousarem nas suas. Engoliu um soluço e levantou a cabeça, olhando para a loura com os olhos húmidos.
“Tem calma, reagiu melhor do que eu estava à espera. A minha avó disse-me que no início ela podia não reagir bem, mas com o tempo ia lá. Só temos que ter paciência. Continuo a gostar de ti na mesma, e muito”, reconfortou Susana, colocando-se de cócoras defronte da rapariga.
“Ela não vai lá, Susana”, lamentou-se a morena, esforçando-se por conter as lágrimas que teimavam em querer soltar-se, “Tu não sabes como ela é, ela nunca vai aceitar”
“Ssh”, sossegou a loura à medida que afagava a face de Daniela, “Vai correr tudo bem, estou aqui, aconteça o que acontecer”
A rapariga, instintivamente, desesperada por algum conforto, pegou na face da loura e beijou-a ao de leve, agarrando-se-lhe ao pescoço depois. Ficaram assim um pouco, com Susana a passar a mão pelas costas da rapariga, até que as separou.
“Olha, ainda te quero dar a tua outra prenda”, disse a loura, enquanto tirava algo do bolso.
“A sério, não é preciso”, respondeu Daniela, com um sorriso, limpando as lágrimas.
Susana não lhe fez caso, passando-lhe o saquinho púrpura para as mãos. Daniela sorriu e deu-lhe um caldo na brincadeira, murmurando qualquer coisa sobre não querer ser mimada, que entrou por um ouvido da loura e saiu por outro. A loura ficou a observar, com um sorriso no rosto, o ar de intriga da morena enquanto abria os cordelinhos do saco e deixava cair o anel na palma da mão. Quando esta levantou a cabeça para questionar a outra, Susana retira-lhe o anel da mão, segurando-lha na sua.
“Quero ficar contigo”, sussurrou, enquanto lhe colocava o anel no anelar da mão direita. Para sua surpresa o anel servia a Daniela na perfeição. Ergueu-se um pouco e disse-lhe ao ouvido, “Amo-te”
Deixaram-se ficar abraçadas durante mais um pouco, até que o pai de Daniela voltou à sala, visivelmente chateado. Dirigiu-se às raparigas e só então falou, “A tua mãe quer ficar sozinha, olha aproveita e sai, é melhor”
A rapariga achou melhor não insistir, pelo que se levantou e pegou na mão da loura, encaminhando-as para a porta, até que o pai voltou a falar, desta vez dirigindo-se à outra, “Desculpe pelo que se passou…”
“É na boa, pensei que fosse pior”, respondeu Susana, sorrindo.
Despediram-se e Daniela acompanhou a loura até à mota. Visto que a outra só tinha um capacete, optou por ceder este à namorada, assegurando-lhe que não fazia mal. Quando estavam na mota, a caminho da praia, a outra lembrou-se do acidente da menina da avó, o que a fez sentir-se ainda mais aliviada por ter dado o capacete à morena. A rapariga por sua vez, que sempre detestara andar na mota, agarrou-se com força à cintura de Susana. Pouco depois chegaram ao café do costume, onde se encontraram depois da noite no bar.
Percorreram em silêncio o caminho de terra batida até à praia, de mãos dadas. Quando chegaram ao areal, Susana sentou-se, com Daniela entre as pernas e cabeça apoiada no seu ombro. Continuaram sem trocar palavras, apenas entrelaçando os dedos, até a loura quebrar o silêncio.
“Como é que estás por causa da tua mãe?”, perguntou, enquanto desviava algum do cabelo da namorada, para lhe puder beijar o pescoço.
“Pior que mal”, respondeu a rapariga, com um suspiro, “Não sei como é que vou olhar para ela amanhã”
“Não tem que ser assim”, disse Susana, num tom melancólico, “Quando acalmar vai começar a aceitar, vais ver”
Daniela nada disse, limitando-se a recostar-se e a brincar com os dedos de Susana. Só passados uns bons minutos é que falou, “Como é que alguém como tu se tornou tão importante?”
“Fácil, a partir do momento em que foste lá ao bar e não resististe aos meus encantos”, gozou a loura, mordiscando o pescoço à rapariga, que se arrepiou toda.
“A sério, às vezes pergunto-me como é que não fui mais uma”, disse a morena, agora com toda a seriedade, “De certeza que já levaste umas quantas para aquela casa de banho”
“Mas tu foste a única que fugiste”, limitou-se Susana a responder.
Daniela sorriu antes de se virar para trás e beijar a namorada. Por um instante pensou em todas as outras com quem a outra já tinha estado e sentiu calafrios, mas nada que se comparasse ao que sentiu quando se lembrou de Mónica. Pior que calafrios, sentiu-se completa e totalmente inferiorizada, cada vez que se comparava à ex da namorada. No fundo tinha receio que a outra ainda sentisse alguma coisa por ela, embora não tivesse grande autoridade para reflectir sobre essa hipótese. Não ligando ao medo, decidiu testar a loura.
“Suse…vi a tua Mónica hoje”, disse, tentando prestar atenção a todas as expressões da loura.
Susana, por sua vez, pareceu ter levado com um tijolo na cara, quase que os olhos lhe pareciam saltar das órbitas, “Como é que tu…onde…”
“Tu mostraste-me uma foto dela e eu reconheci a partir daí”, respondeu a rapariga num tom neutro, como se estivesse a anunciar a meteorologia, “Passou por mim quando fui dar um passeio a um parque”
“Como…é que ela estava?”, perguntou Susana, um tanto corada.
“Muito bem, alto bronze e tal”, disse Daniela, enquanto observava a expressão tristonha da loura, “Estava sozinha”
O que a rapariga não reparou foi no facto de a outra ter aproveitado também para a testar nesse momento e, a loura podia ser bastante observadora. Sorriu enternecida e disse “Estás insegura.”
A morena foi bem apanhada de surpresa, a ponto de te arregalado os olhos, “Isso foi uma pergunta?”
“Não”, clarificou a outra, dando um toque no nariz da rapariga, sempre sorrindo, “Oh Dani tu és boa actriz mas os olhos são o espelho da alma e os teus são os primeiros a denunciar-te”
“Pronto…talvez um pouco”, admitiu Daniela a custo, era um golpe no seu orgulho mas já tinha sido apanhada, “Tenho razões, ela é mesmo muito bonita”
“Chegou a desrespeitar-me à grande…a sério, podia ser bonita mas não compensava”, disse Susana, apertando a namorada, “Ela está no passado, morta e enterrada. Amo-te é a ti”
Daniela virou-se novamente para Susana e beijou-a, sentindo-se como se tivesse tirado um grande peso de cima. Esta correspondeu, procurando sempre não se deixar levar, mas sim, limitando-se a proporcionar conforto e segurança à morena. Naquele momento limitar-se-ia a ser o que quer que a rapariga precisasse, e naquele momento o que precisava era de se sentir segura, portanto assim seria. Após o beijo, a outra manteve a namorada junto a si, tão junta quanto possível.
“Sabes, nunca gostei de olhos escuros”, disse a loura, à medida que ia beijando o pescoço da rapariga, “Mas gosto dos teus, são tão brilhantes”
“É bom saber isso”, respondeu Daniela, rindo um pouco quando Susana lhe tocou num ponto particularmente sensível no pescoço, “Eu não posso dizer o mesmo, sempre adorei olhos azuis…ai estás-me a fazer cócegas!”
Susana aproveitou para deixar um pequeno chupão no pescoço de Daniela, enquanto esta lutava para se libertar. Claro que os esforços da rapariga foram em vão, já que a outra a tinha bem segura. O que não impediu que esta se desequilibrasse e caísse para trás, arrastando a morena consigo. No momento em que Daniela se ajeitou melhor, sentada por cima da loura, o telemóvel desta tocou, interrompendo-as. Susana, visivelmente irritada, tirou-o do bolso e desligou-o, voltando a aproximar a cara da da rapariga.
“Espera”, pediu a morena, colocando um dedo nos lábios da outra, “ Hoje não trabalhas?”
“Hm?”, murmurou Susana, ainda com os olhos semi-fechados, “Se não for um dia não há de fazer mal, amor”
Daniela deu-lhe um beliscão suave na perna, só o suficiente para que Susana saltasse e disse-lhe, “Nem por serem os meus anos me podes chamar isso, e muito menos faltar ao trabalho, anda lá”
A loura ainda tentou ripostar, dizendo que não lhe apetecia ter que deixar a namorada no dia de anos desta, mas a rapariga propôs que fosse com ela. Susana aceitou, visto que em principio seria uma noite calma e com pouca gente. Levantaram-se, sacudiram a areia e dirigiram-se para a mota, tencionando passar por qualquer sítio para comerem rapidamente. Avistarem uma roulotte na beira da estrada onde pararam. Depois de ambas terem feito os respectivos pedidos, Daniela tencionou pegar na carteira e pagar o seu, mas a loura segurou-lhe o pulso, sorrindo, “Este tempo todo e ainda não percebeste que quando estás comigo eu pago?”
Na verdade Susana tinha ficado ressentida com as acusações feitas pelo melhor amigo da morena, iria tentar redimir-se. Foi o que também ocorreu a Daniela, que a namorada sentisse a necessidade de se provar, o que era coisa que não achava necessário. O instante em que isso lhe ocorreu foi o mesmo em que prometeu a si mesma que tentaria de certa forma “recompensar” a outra, tendo em conta que esta era extremamente teimosa e que não iria sucumbir. Mal a loura entregou o dinheiro ao homem que as atendeu, a rapariga lançou-lhe os braços ao pescoço e beijou-a. Sendo Susana como era, não se coibiu de colocar as mãos na cintura de Daniela e de a empurrar contra o balcão, intensificando o beijo. Foram interrompidas pelo empregado a clarear a garganta, incomodado.
Riram-se e por fim separaram-se, indo jantar. Depois de o fazerem dirigiram-se para o bar, que como esperavam até não estava muito cheio, podia dizer-se que estavam lá cerca de trinta pessoas.
“Podes ir andando enquanto eu vou só buscar qualquer coisa para beber”, disse a morena, dando um toque no braço da outra, “Já vou ter contigo”
A loura concordou, dando uma palmada leve no rabo da namorada quando esta se afastava, fazendo com que esta se virasse para trás, com um sorriso cúmplice. Daniela pediu a sua bebida, que foi bebendo aos poucos. Estar de volta àquele local trazia-lhe uma sensação nostálgica, afinal fora lá que tinha conhecido Susana e desde então que não deixara de pensar que bem que se podia considerar a pessoa com mais sorte do mundo. Estava ainda perdida nos seus pensamentos quando ouviu passar uma música que por acaso gosta, o que a acordou para a vida novamente. Acabou a bebida num trago e dirigiu-se para a pista de dança, apesar de não ser seu hábito dançar.
Apesar de não saber muito bem dançar, aquela música puxava por ela, fazendo com que lhe apetecesse mexer-se. Quando estava mesmo a entrar no espírito, sentiu um par de mãos agarrar-lhe as ancas. Pensou que fosse Susana, apesar de ter estranhado a brutidão com que foi agarrada. Talvez porque tinha péssima resistência ao álcool, deixou-se estar. O local não era bem iluminada, o que não lhe permitiu registar quem a tinha agarrado, sabia apenas que naquele momento algo não estava certo. Virou-se bruscamente, soltando-se de quem quer que fosse que a agarrara.
Para seu horror não se tratava da loura. A pessoa que se encontrava diante da rapariga era tudo menos quem esperava que fosse. Alta e balofa, com roupas que deviam ter sido herdadas do pai (senão mesmo do avô) e feições nada bonitas, o suficiente para que a morena torcesse o nariz. Um olhar mais atento permitiu-lhe reparar que a estranha de certeza que podia enrolar um bigode mexicano. Era precisamente o que detestava, o estereótipo da lésbica camionista. E não parecia bem-intencionada.
Como não estava na sua natureza ser rude, pediu desculpa e tentou retirar-se, apenas para ser agarrada pelo braço.
“Onde vais com tanta pressa?”, perguntou a camionista com um sorriso maldoso, apertando cada vez mais, “Mesmo agora que nos estávamos a dar tão bem”
“Desculpa, vou ter com a minha namorada”, disse Daniela, certa que no dia seguinte iria ter marcas no braço, “Larga, se faz favor”
“Há algum problema?”, interveio Susana, com uma expressão séria. Daniela suspirou de alívio, quase acreditando que estava a ver Deus. A outra riu-se, puxando a rapariga mais para si.
A morena aproveitou o momento para dar um puxão ao braço e tentar soltar-se, mas não foi bem sucedida, apenas irritou mais a outra. O aperto da camionista não sucumbiu, dirigindo-se à loura, “Pah desaparece! E tu ficas aqui”
Susana empurrou a outra, para surpresa desta, que largou a rapariga, que por sua vez foi para junto da loura. Quando se iam a afastar, a estranha virou Daniela para si, com um só dedo e disse, num tom presunçoso acompanhado de um gesto sugestivo, “Se te viro com um dedo imagina o que te faço com dois”
Nesse momento Susana desferiu uma direita mesmo no queixo da outra. Mesmo sendo a loura forte, a outra não recuou mais do que dois passos. A rapariga empalideceu, cheia de medo do que a camionista faria. O seu primeiro instinto foi puxar Susana dali, mas a outra já a tinha empurrado e a multidão tinha feito um círculo à volta delas. Tudo aconteceu muito depressa, Daniela só teve tempo de registar uma troca de socos até que um guarda interveio, separando as raparigas. Só viu Susana com a mão na cara, enquanto a camionista se afastava ainda a gritar, “Isto não fica assim!”
Ignorando as ameaças da outra, Daniela acompanhou Susana até aos sofás. Com jeitinho, pediu-lhe para a deixar ver se tinha ficado muito magoada. Estava um pouco pior do que tinha imaginado, a loura tinha um corte com mau aspecto no lábio.
“É melhor irmos ao hospital, não achas?”, aconselhou a rapariga, franzindo o sobrolho ao ver a ferida da outra.
“Isto passa com gelo”, teimou Susana, esforçando-se por esconder a dor, mesmo mal conseguindo falar. Ter levado da outra e mal lhe ter conseguido deixar mais que um olho negro tinha sido um golpe na auto-estima.
“Susana, isso além de estar cheio de sangue está a começar a inchar”, replicou Daniela, revirando os olhos, “Vamos ao hospital e é já e tu não te atrevas a responder”
A loura acabou por concordar, derrotada. Foi o caminho todo desde o bar até à mota a resmungar qualquer coisa que soou à rapariga algo como “caralho que foda aquela puta, se fosse masé…”. Cerca de meia hora depois estavam nas urgências do hospital, com a morena a começar a ficar com sono e a outra a comprimir a ferida com um lenço de papel. Quando finalmente a chamaram, já Daniela tinha adormecido encostada ao ombro de Susana.
“É tão bebézinha que não aguenta ficar acordada até tarde”, gozou a loura ao ver o ar de ensonado da rapariga enquanto esta esfregava os olhos.
Daniela limitou-se a deitar-lhe a língua de fora e a dizer, “Já vemos quem é a bebezinha”
“Bem que essa língua podia ter melhor uso”, replicou a outra, piscando o olho.
A rapariga limitou-se a rir e a empurrar Susana para a sala onde a iriam ver. Para grande horror da loura, iria ter que ser cosida, pois o golpe era fundo. Saíram do gabinete e dirigiram-se a outra sala, com um aspecto mais esterilizado e com diversos instrumentos. Se a outra já estava horrorizada, então quando o olhar caiu sobre a linha, agulha e o resto do arsenal, perdeu toda a cor que tinha. A morena sorriu maliciosamente e disse, “Vê lá se não queres dar a mãozinha”
Susana fulminou Daniela com o olhar e ainda pensou em recusar, mas mal viu a enfermeira aproximar-se com a agulha reconsiderou, pegando na mão da namorada e apertando-a, de olhos bem fechados. O certo era que a loura não havia sido anestesiada e portanto estava a sentir a enfermeira a passar a linha e a puxar. Até a rapariga estava com pena, aquilo doía só de ver. Deixou que a outra lhe apertasse a mão ao ponto de já nem sentir a circulação. Por sua vez Susana estava absolutamente determinada em não mostrar fraqueza em frente da morena, sobretudo depois da sova humilhante que tinha levado.
Cerca de dez minutos e muito sofrimento depois, a ferida estava tratada. Quando a loura se levantou, tinha as pernas a tremer, mal sustentando o seu peso. Agarrou-se à rapariga para conseguir andar. Entretanto Daniela foi tentando reconfortá-la, dizendo, “Já passou, tu és forte, já tiveste costelas e uma perna partida, isto não foi nada”
Já estava quase a amanhecer, o que lembrou a morena de que tinha que voltar para casa, não fossem os pais, nomeadamente a mãe, dar pela sua falta. Sentindo uma náusea, lembrou-se que teria que enfrentá-la dali a poucas horas, só esperava que a noite lhe tivesse feito bem. Susana pareceu adivinhar o que lhe ia na mente. Abraçou-a, sussurrando, tanto quanto o lábio recém cosido lhe permitia, “Não te preocupes, ela deve ter acalmado, já sabes que estou lá para ti, aconteça o que acontecer”
Daniela apenas suspirou, agradecendo-lhe. O caminho de volta para casa foi uma viagem difícil. A rapariga perguntava-se se alguma coisa iria mudar nas próximas horas. Não queria nem por nada perder Susana. A loura parou em frente à casa da morena, que lhe devolveu o capacete. Tendo em conta o estado da outra, Daniela deu-lhe apenas um beijo rápido, só um encostar de lábios cuidadoso, mas Susana, não ligando à dor que sentia, intensificou-o. Quando se separaram, a morena não conseguiu deixá-la ir, abraçou-a, enterrando a cara no ombro da outra, “Não vás…”
Muito a custo, a loura afastou-a, assegurando-a que estaria de volta no dia seguinte. Foi com um pesar no peito que deixou a rapariga para trás.