quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Capítulo 4

O ecoar do som do despertador nas paredes do quarto assinalou definitivamente o fim da noite de sono de Afonso, bem como das suas férias, com grande pena sua. Mesmo não tendo problemas em acordar de manhã cedo, pelo menos não sofria de rabugice crónica como Sara ou Daniela, não resistiu a deixar-se ficar a saborear um pouco o conforto da cama, antes de dar início ao seu dia. As férias pareciam ter passado demasiado depressa para o seu gosto e a ideia de voltar às aulas só não lhe pareceu desagradável porque significava que ia ver Leonor diariamente. A ideia deu-lhe um novo alento para encarar o dia. Ponderando os mais diversos cenários em que se poderiam encontrar e almoçar juntos, não deu pelo tempo passar até que Daniela bateu à porta, quase a esmurrando, “Acorda! Achas que tens muito tempo, é?”
Rindo, o rapaz levantou-se, energicamente Nada batia o mau humor matinal da mãe, excepto talvez o de Sara. Ambas partilhavam a teoria de que o dia não começava verdadeiramente antes do meio-dia e, se Daniela subsistia à base de café, Sara deveria seguir-lhe as passadas. Susana não era assim, tinha sempre um sorriso no rosto independentemente das horas que fossem. Já Afonso, percorreu todo o seu ritual matinal que consistia em fazer a barba, afinal esta estava no ponto intermédio entre agradavelmente grande e pedinte de rua, duche e todo o processo necessário para garantir que não emanava odores desagradáveis durante o dia. Assim que se despachou, desceu para tomar o pequeno-almoço, bem-disposto.
À mesa, Sara mastigava os cereais sem grande ânimo, deitando olhares mortíferos, ora na direcção do relógio que assinalava a proximidade do começo oficial do novo ano lectivo, ora para os pássaros chilreantes no parapeito da janela. A irmã era, para o rapaz, um verdadeiro mistério. Por muito que puxasse pela cabeça não compreendia como é que alguém que encarasse a escola tão levemente conseguisse sair-se tão bem. Ele próprio era bom aluno, mas tinha uma respeitável dose de dedicação por detrás disso, como aliás em relação a tudo a que se propunha fazer. Por sua vez, Daniela olhava para a sua torrada como se esta fosse a razão de todos os males. Não querendo irritar ainda mais nenhuma, cumprimentou-as, recebendo um grunhido monossilábico em resposta, e focou a sua atenção nas papas de aveia.
Quando já via o fundo da tigela, Susana apareceu, acabada de sair da cama. Com o seu habitual sorriso, cumprimentou-os, distribuindo simpatia e envolveu Daniela num abraço, “Ora bom dia a todos!”
“B’dia…”, replicou Daniela, com a energia de um moribundo. Sara não foi muito mais efusiva, até porque pouco faltava para que enterrasse a cara dentro da tigela dos cereais. Apenas Afonso, naturalmente bom madrugador e com a particularidade de ter um motivo para estar ansioso pela chegada à escola, respondeu com igual simpatia, “Bom dia, mãe!”
“Acho que nunca te vi tão animado pelo primeiro dia de aulas”, comentou a loura, rindo, “Não é por estares cheio de saudades da Dona Adelaide, pois não?”
“Porra, não!”, esclareceu o rapaz, tremendo da cabeça aos pés ao imaginar a professora obesa, permanentemente cheia de pêlos de gato na roupa e de higiene duvidosa que, por algum motivo sempre embirrara com ele. Não era fruto da sua paranóia se ele era sossegado nas aulas, ao passo que Rúben fazia barulho pela turma toda e no entanto ela nunca repreendia o amigo e aparentava gostar dele. Enquanto se perguntava se ela já teria tratado da verruga peluda enorme que tinha no nariz, sentiu Daniela dar-lhe um caldo na nuca, “Au! Para que é que foi isso?”
“Cuidado com a linguagem”, repreendeu a mãe, lançando-lhe um olhar austero, porém não evitou descair e rir, “Mas…tenho que concordar que a mulher é assustadora, pelo menos quando fui a reunião ela tinha coisas verdes nos dentes”
“Até sei porque é que estás tão feliz”, brincou Susana, divertida ao ver a face do filho ruborizar, “Só a Leonor para te fazer tirar essa barba”
“Opa!”, queixou-se Afonso, embora também ele estivesse a sorrir. Daniela, terminando o pequeno-almoço, despediu-se da família, dando um abraço a Susana, abraço esse que demorou mais do que o necessário. Provavelmente adivinhava um dia longo. Afagando ambos os filhos, saiu para o trabalho, deixando, como últimos indícios da sua presença, o som dos pneus a chiarem no asfalto. Que mais esperar da pessoa que considerava o limite máximo de velocidade como sendo o mínimo recomendável?
Acabando o pouco que restava dos cereais, o rapaz despediu-se da mãe, que lhe desejou boa sorte para o primeiro dia de aulas. Decididamente que Susana não se podia queixar da vida que levava. Mesmo tendo deixado a ribalta pouco tempo depois de o filho nascer, ficara-se por fazer uma aparência ocasional de vez em quando e compunha para outros, ganhando bom dinheiro com isso ao mesmo tempo que mantinha a sua vida privada realmente privada. Como o dinheiro estava longe de ser um problema, os filhos estavam seguros, embora Daniela estivesse sempre presente como mediadora da quantidade de regalias que eles tinham, afinal a ultima coisa que queria era mimá-los demasiado. Afonso, finalmente despachado, arrastou o peso morto de Sara desde casa até à paragem do autocarro, embora não sem mimar Mocas, antes de sair da periferia.
Uma vez lá, consultou o relógio para se certificar que não tinham perdido o transporte, permitindo-se a soltar um suspiro de alívio por ver que chagaram com uns minutos de antecedência. Aproveitando aquele tempo para abordar um assunto que o andava a incomodar, virou-se para a irmã, já mais desperta e disse, “Já sabes, se aquele otário do João Esteves te der problemas diz-me e eu tenho uma conversa com ele”
Era nada mais, nada menos que o causador de ondas na vida escolar de Sara. Esta nunca tivera problemas, sendo extrovertida tinha facilidade em fazer amigos e dava-se bem com quase toda a gente. O quase devia-se a João Esteves, aquele que, desde os tempos de primária, que decidira implicar com ela, não se fazendo rogado em mandar comentários maldosos sempre que a oportunidade surgia, geralmente em relação à família peculiar desta. Afonso não podia utilizar o rapaz como saco de boxe, por muito que a ideia lhe agradasse, mas intimidá-lo um pouco não era má ideia. Sara, a eterna paz de alma, tinha, no entanto, outros planos, “Deixa estar, mais cedo ou mais tarde, ele farta-se”
“Mas quero que me digas na mesma se ele te incomodar”, insistiu o rapaz, tanto que a irmã nem voltou a contestar. Vendo o autocarro chegar, apertou o ombro da irmã de forma encorajadora, antes de entrar e percorrer o autocarro com o olhar, em busca de uma determinada pessoa. A idosa que parecia ter feito do acto de tricotar uma manta a sua missão de vida, conhecidos de vista da escola, o miúdo que comia bifanas pela manhã em pleno autocarro, Rúben a mandar o belo do charme a um elemento do sexo feminino desconhecido…nada de novo. E ele que estava convicto que ela apanharia aquele autocarro, embora não se atrevesse a enviar uma mensagem a perguntar por ela, não fosse ele dar a imagem de chato. Segurando-se, despediu-se de Sara, que iria esperar mais um pouco pelo seu autocarro para a direcção oposta, com um aceno.
Cerca de dez minutos mais tarde, quando a manta tricotada estava uns centímetros mais comprida, a bifana comida e a companhia de Rúben corada, chegou à escola. Aguardando que aquele momento constrangedor em que Rúben finalmente deixava ir a rapariga, por entre risadinhas passasse, Afonso, espreitando por cima do ombro do amigo de vez em quanto, cumprimentou, “Oi, não paras tu”
“Elas é que vêm ter comigo, parece que tenho mel”, gabou-se Rúben, piscando o olho à sua companhia de antes, que se riu, encantada, antes de partir com um grupo de amigas, todas elas rindo, entre si. Voltando-se para o rapaz, disse, em tom mais sério, “Quanto àquilo do outro dia…desculpa ter arranjado problemas com a tua amiga, ou o que é…já estava meio bezano”
“É na boa”, respondeu Afonso, encolhendo os ombros. Estava satisfeito por o amigo ter reconhecido que se havia excedido um pouco na festa e, dado o temperamento teimoso deste, fora um grande esforço para reconhecer que errara. E falando em Leonor, nem sinais. Tinha o resto do ano, mal seria que não tivesse oportunidades em barda para a ver. Quando a visse punha-se, também, o problema de balbuciar como parvo, mas isso era outra história.
“Conta lá melhor isso, onde é que encontraste uma gaja daquelas?”, inquiriu Rúben, incapaz de se conter por muito mais tempo. A sua surpresa era ainda maior por não ver o rapaz na companhia de uma rapariga havia algum tempo, afinal abordá-las era para ele um bicho-de-sete-cabeças e a última apenas dera em problemas. Aquelas com quem conseguia desenvolver uma relação de amizade ficavam-se por isso mesmo, amigas, e aquelas esporádicas por quem se interessava por norma, ou estavam comprometidas, ou o viam só como amigo, ou as duas coisas. Depois havia a Beatriz, mas esse era outra história.
“Já te tinha dito que é filha de umas amigas das minhas mães, foi lá jantar a casa há uns tempos”, explicou Afonso, sem evitar ruborizar um pouco, algo que parecia acontecer sempre que o tema de Leonor vinha à conversa, “Não tem sido muito fácil aproximar-me dela mas gosto de acreditar que já estive mais longe, acho que no fundo é muito querida, mas não mostra”
“Ela não está aqui, podes admitir que estás cheio de vontade de a comer”, troçou o amigo, a quem a conversa permanentemente respeitadora do rapaz nunca deixaria de surpreender. Havia pessoas como Afonso, pessoas essas que, na opinião de Rúben, deviam ser o sonho de namorado de qualquer rapariga, com os seus modos gentis e bem-comportado. Depois havia pessoas como ele, Rúben, aqueles com quem as raparigas encornavam os rapazes como Afonso.
“Também, mas não quero só isso”, disse o rapaz, revirando os olhos, “Não sou assim”
De súbito, o amigo, de olhos abertos e sobrancelhas bem erguidas, perdendo todo o seu ar gozão, como se tivesse acabado de ter uma epifania, perguntou, “E se ela…gosta de gajas?”
“NÃO!”, respondeu Afonso, com a voz um bocado mais aguda e estridente do que o normal. Tal possibilidade nunca lhe passou pela cabeça e, agora que ponderava o assunto, implorava a uma qualquer entidade metafísica que não fosse aquele o caso, “De certeza que não…não pode, eish”
“Não desesperes, não?”, troçou Rúben, num tom que se usaria para falar com uma criança pequena. Não o iria expressar em voz alta, mas, a seu ver, o rapaz continuava a não ter a mínima hipótese com Leonor, tivesse ela as preferências que tivesse. O gozo valeu-lhe um soco no ombro, na brincadeira.
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Enquanto percorria o corredor até à sala, na companhia de umas amigas, Sara ia fazendo um balanço positivo do comportamento demonstrado por João, que, pelo menos, se abstivera de lhe chamar quaisquer nomes pejorativos quando tiveram que conviver no intervalo. Se as coisas se mantivessem assim, até poderiam vir a ter uma coexistência pacífica, uma vez que amizade ainda parecia uma etapa muito distante. Além disso, tinha gente nova na turma que aparentavam ser simpáticos, portanto previa um bom ano. Animada, sentou-se no seu lugar habitual, segunda fila ao meio a contar da esquerda, sempre. Isto porque se ficasse atrás adormecia e à frente seria apanhada na conversa e aquela técnica resultava havia o seu primeiro ano.
Enquanto Cláudia, a única amiga mais chegada que tivera a sorte de ficar na sua turma, a punha a par dos últimos acontecimentos do Verão, Sara não conseguia ignorar a sensação de estar a ser observada. Estavam trinta pessoas na sala, era natural que, a algum ponto todos olhassem para todos, mas a sensação começava a constrangê-la. Não aguentando mais, voltou-se para trás, vendo, nada mais, nada menos que Tomás. Ele, ao reparar que ela já dera pela sua presença, dirigiu-lhe o seu característico sorriso sádico. Engolindo em seco, Sara voltou-se para a frente. E foi assim que viu as suas previsões de um ano agradável irem por água abaixo.
“Já viste o rapaz novo?”, questionou Cláudia, entusiasmada, acenando com a cabeça para trás. Aparentemente estava determinada em relembrar Sara da presença de Tomás, mesmo o que ela precisava. Sempre radiante, continuou, “É tão giro!”
“É, é…”, respondeu Sara, azeda. Se escondessem as tesouras dele na aula de educação visual então estariam seguros, mas não se admirava nada que ele fosse criativo e se lembrasse de improvisar algum objecto aguçado. Ignorando o par de olhos que já estaria a queimar-lhe a nuca, decidiu ali mesmo não lhe falar a não ser por motivo de força maior.
“Um bocadinho esquisito mas giro”, insistiu Cláudia, com o entusiasmo esmorecido ao reparar no sorriso perturbante de Tomás. Quando se punha de parte a maneira de ser bizarra do rapaz, até que tinha boa figura, mas isso era uma perspectiva que Sara não conseguia ver, depois de este lhe apontar uma faca. Já que a amiga não sabia disso, comentou, “Acho que te achou piada”
Rindo, embora sem qualquer vestígio de humor, Sara abanou a cabeça em sinal de negação, antes de se concentrar na figura da professora, disposta a ignorar os buracos que, por aquela altura, já teria na cabeça.
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Depois de limpar com a manga da camisola, pela décima sétima vez, as partículas de saliva da Dona Adelaide que lhe iam parar à cara, Afonso, ora consultando o relógio, ora olhando para fora da janela, suspirou de impaciência. Aquela mulher decidira persegui-lo até ao fim da sua carreira académica. Dava a sua disciplina preferida, História, mas era certo e sabido que nunca lhe daria mais do que uma nota medíocre e uma dor de cabeça. Passando a mão pela partícula de ADN da Dona Adelaide que lhe acertara em cheio entre os olhos, estremeceu. Felizmente que só tinha mais duas aulas, depois podia ir para os treinos descarregar as suas inquietações. Estava a riscar as bordas do caderno quando Rúben lhe deu uma cotovelada, apontando para fora da janela, “É aquela a Leonor?”
Voltando a cabeça na direcção da janela tão depressa que não soube como não torceu o pescoço, constatou que se tratava mesmo de Leonor. Engolindo em seco, ficou-se a contempla-la, como quem observa uma obra de arte. De tão embrenhado que ficou em algo tão simples como a postura da rapariga, ou como o cabelo desta esvoaçava, que só se apercebeu onde estava quando o amigo comentou, manifestando o seu grande apreço pelo que via, “A gaja é tão boa”
Dividido entre repreender Rúben por fazer um comentário daqueles e continuar especado a olhar, optou pela segunda alternativa. Ou optaria, se a Dona Adelaide não tivesse outros planos. Irritada, guinchou, “Mas querem fazer o favor de prestar atenção?!”
O grito foi o suficiente para o fazer voltar-se para a professora. Só de pensar que, ainda há um segundo atrás estava a observar a perfeição que era Leonor e tinha que voltar a levar com saliva da Dona Adelaide…No entanto, o som do toque safou-o. Atirando com as coisas para dentro da mochila, disse ao amigo para não esperar por ele e, num acesso de coragem, correu Leonor, que, com um horário na mão e um ar confuso na cara, pareceu aliviada por ver alguém conhecido. Envergonhado com a forma abrupta com que aparecera ali, o rapaz, gaguejou, “O-olá, Leonor”
“Olá”, cumprimentou a rapariga, esboçando um pequeno sorriso. Constituía uma prova do seu progresso, antes ela nem se dignaria a levantar um bocadinho que fosse os cantos da boca. Sem grande cerimónia, foi logo ao assunto, “Podias dizer-me onde é que é a sala 23?”
“Ahm…é naquele pavilhão atrás daquele ao fundo”, explicou Afonso. Quando ela agradeceu e fez por seguir naquela direcção, o rapaz, respirando fundo, ofereceu, “Posso acompanhar-te até lá, se quiseres”
Parecendo indecisa, a rapariga não respondeu no momento. Hesitante, talvez não quisesse arriscar perder-se pelo caminho, acabou por concordar, “Se não te importares”
“Claro que não”, assegurou o rapaz, encaminhando-os para a tal sala. Vendo que Leonor não fazia qualquer esforço para continuar a conversa, Afonso encarregou-se de levar a cabo essa tarefa, “Só entras agora ou não tiveste a primeira aula?”
“O meu irmão fez das dele e não consegui vir mais cedo”, esclareceu a rapariga, embora no fundo tivesse achado piada à imagem de Guida, encharcada, embrulhada numa toalha, a perseguir Tomás pela casa quando descobrira os mosquitos mortos no champô. A bulha que se seguira fizera com que ela perdesse o transporte e tivesse que esperar pela boleia de Marta, acabando por perder a aula. Contudo, valera a pena só pelos anos de vida que ganhara com o que se rira.
Preferindo ficar na ignorância, a bem da sua fé na espécie humana, o rapaz optou por não insistir mais no assunto. Enquanto caminhava ao lado da rapariga, ia, ao mesmo tempo que dava graças por aquele momento, por mais pequeno que fosse, olhando com pouca subtileza. Felizmente para si, mais oportunidades não haveriam de faltar. Ao ver que o intervalo passara demasiado rápido para o seu gosto, perguntou, “Também tens hora de almoço à uma e um quarto?”
Consultando o horário, Leonor respondeu, instantaneamente, sem se aperceber até que era tarde demais, da proposta que vinha aí, “Sim, depois entro dali a uma hora”
“Isso é óptimo!”, disse Afonso, transparecendo o seu entusiasmo, mesmo que nem isso o anestesiasse ao ponto de não se sentir nervoso, “Ahm…então…queres vir almoçar comigo? Como ainda não conheces ninguém…”
“Pode ser”, aceitou a rapariga. Em boa verdade, não estava com vontade de passar aquela hora isolada e era só uma vez, para a semana já teria travado conhecimento com mais alguém, não custava muito. Quem é que estava a tentar enganar? Gostava da companhia de Afonso e a perspectiva de passar a sua hora de almoço com ele era agradável.
“Então depois quando saíres manda mensagem”, pediu o rapaz, sorridente, sem poder acreditar que tinha, de facto, sido assim tão simples. Assim que teve a confirmação de Leonor, despediu-se dela e foi para a aula, com a cabeça leve do efeito da adrenalina. Mal se sentou, ao lado de Rúben, não se conteve e deu a boa nova, efusivo como uma criança ao ver as prendas debaixo da árvore de Natal, “Vou almoçar com ela!”
“Óptimo, sempre é um começo”, admitiu Rúben, sinceramente. A seu ver era um progresso mínimo e mais certo de o rotular como amigo aos olhos de Leonor, mas não queria dizer isso e estragar a alegria ao rapaz. Por muito que gostasse de tentar a sua sorte com a rapariga, claro que com intenções menos nobres que Afonso, gostaria de ver ainda mais o rapaz a ser bem sucedido.
Demasiado entusiasmado para prestar a atenção devida à aula, o rapaz passou-a pedindo conselhos ao amigo, afinal toda a ajuda que conseguisse era bem-vinda. Enquanto Rúben lhe dava dicas sobre como melhor conquistar Leonor, umas dicas mais explícitas que outras, Afonso ia desenhando “L’s” na margem do caderno, intercalando a tarefa com consultas do telemóvel. Quando o amigo lhe estava a explicar a sua famosa técnica de sexo oral, testada e voltada a testar, certa de funcionar em qualquer elemento do sexo feminino, o rapaz, que durante a descrição, se esforçara por afastar quaisquer imagens mentais perturbantes, recebeu a mensagem que tanto desejava:
“Já saí, vens ter à entrada?”
Ansioso por ouvir a professora dar a permissão para irem embora, o rapaz prestou atenção pela primeira vez naquela aula, aula essa que, em bom rigor, nem sabia qual era. Heterónimos de Fernando Pessoa? Pronto, pelo menos já sabia em que aula estava mas a professora não parecia estar a pensar em deixá-los sair mais cedo. Consultando o relógio, verificou que a aula, ao contrário do que lhe parecera, não estava perto de terminar. Aborrecido por estar a ser bombardeado com uma introdução às características do ortónimo quando tinha planos bem mais agradáveis em mente, suspirou, de impaciência. Avisando a rapariga que ainda não saíra e que não sabia quanto mais se iria prolongar a aula, cruzou os braços e voltou a suspirar, pouco satisfeito por a fazer esperar.
Após o que lhe parecera uma vida inteira, a campainha tocou. Despedindo-se de Rúben, saiu da sala, numa marcha que se encontrava na fronteira entre passo rápido e corrida. Segundo Leonor lhe dissera, encontrara um banco para se sentar, debaixo de uma arvora junto ao campo de jogos. Não teve particular dificuldade ao encontrar o tal sítio, era, afinal, o seu local de eleição quando não queria ter que lidar com mais gente e só desejava um momento para si, ou simplesmente, quando queria fazer revisões de última hora para um teste. Lá estava a rapariga, observando o jogo de futebol que estava a ocorrer diante de si, dentro do recinto. Sentando-se ao lado dela, apanhando-a de surpresa, disse, “Adoro isto aqui”
Ainda a refazer-se do susto, Leonor, olhando ora para o jogo que decorria normalmente, ora para Afonso que, por sua vez, olhava para ela, assentiu, “Sim, parece-me agradável”
“Então…vamos indo?”, ofereceu o rapaz, subitamente interessado numa ferida cicatrizada que tinha abaixo do joelho, ocorrida nos últimos treinos quando fora placado. Tinha que se controlar para não se deixar estar embasbacado a olhar para a rapariga, não fosse ela ficar arrepiada pelos modos constrangedores dele. Se ao menos emanasse confiança e o que quer mais que Rúben tivesse que parecia atrair tudo quanto era raparigas, então sempre faria melhor figura.
Afirmando que sim com a cabeça, Leonor não pôde deixar de se sentir curiosa pelo que fosse que estaria a cativar tanto Afonso. Vendo a crosta, algo que, pelo menos, sempre a deixava mais à vontade do que agulhas, perguntou, mais para arranjar um tópico de conversa que impedisse o silêncio constrangedor de se instalar, “Como é que fizeste isso?”
“O quê?”, questionou ele, sem entender a que é que ela se referia até que ela lhe apontou para a perna. Fazendo por formar uma linha de raciocínio sólida, explicou, rapidamente, “Foi nos treinos, fui placado e raspei a perna…mas não acontece muitas vezes, costumo ser eu a placar os outros!”
“A sério que jogas bem?”, brincou ela, divertida ao vero rapaz corar um pouco, algo que ela conseguia fazer sem quaisquer dificuldades e cada vez mais vezes. Ao vê-lo de calções, pôde reparar que, mais uma vez, os efeitos do rugby estavam à vista e ela estava muito grata por eles.
“Jogo! A sério”, insistiu Afonso, defendendo fervorosamente o seu orgulho e a sua técnica no campo. Era titular em todos os jogos, capitão da equipa e nunca ficara a aquecer o banco, portanto podia afirmar-se a favor do seu talento, que tinha os resultados para o provar. Ao ver que Leonor erguera uma sobrancelha em sinal de incredulidade, propôs, “Tens que me ver, não te iam restar dúvidas de que jogo bem”
“Então qualquer dia tenho que ver”, replicou a rapariga, rindo-se. Nem parecia má ideia, sempre era o que de mais parecido havia com futebol americano e ir assistir a um jogo deixá-la-ia nostálgica. Não querendo ter de almoçar à pressa, propôs, “Vamos andando? É que faltei à primeira aula e não queria chegar tarde a esta”
“Sim claro, vamos”, concordou o rapaz, que se permitiu a fantasiar um pouco e imaginou-se a ganhar o campeonato, a segurar a taça enquanto Leonor corria para ele, para o felicitar. Se estivesse no seu mais realista, duvidava que tal cenário alguma vez acontecesse, não só porque alguns jogadores da sua equipa estavam lesionados e avançar no campeonato nessas condições ia ser complicado, como também a ideia da rapariga agarrada a ele parecia ainda menos concretizável que ele próprio ganhar o campeonato sozinho. Mas até lá, iria sonhar um bocadinho. Estava ainda com um sorriso pateta a olhar para o ar, quando Leonor, já a ficar chateada, voltou a pedir que fossem andando. Embasbacado, pediu desculpa, levantando-se finalmente do banco.
Enquanto se dirigiam ao café, uma vez que Afonso garantira à rapariga que a comida do refeitório era incomestível e que uma vez encontrara pêlos na pata do coelho que lhe serviram, iam mantendo conversa de circunstância, sempre em torno de temas como a escola e a primeira impressão de Leonor da escola. Mesmo que não parecesse particularmente entusiasmada, a rapariga garantira-lhe que estava a gostar e de que não tinha razões de queixa. Porém, o tom abatido com que falava, levou o rapaz a insistir, “A sério que estás a gostar? Não parece”
Um pouco hesitante devido ao facto de se estar a expor, Leonor acabou por revelar que o problema não estava na escola em si, mas que tinha saudades da escola antiga e das pessoas que deixara para trás. No entanto, não revelou que, por outro lado, estava muito aliviada por ter deixado uma outra parte da sua vida para trás, mas isso era outra história. Por sua vez, Afonso, abriu a porta do estabelecimento para a rapariga, gesto esse que a surpreendeu por não ser algo a que estava acostumada, e esperou até que estivessem sentados para responder, sorrindo com ternura, “Oh, vais acabar a fazer amigos novos e a habituares-te a isto por aqui, vais ver”
“Sim, tens razão”, anuiu ela, sorrindo de igual modo. A tentativa de a reconfortar conseguira comovê-la, o que era algo que não acontecia com frequência, mas só um pouco. Desejando mudar o tópico da conversa, para algum que não implicasse partilhar mais do que aquilo a que estava disposta, perguntou, não sabendo bem como formular a pergunta sem que houvesse a possibilidade de que ele a levasse a mal ou que se ofendesse de alguma forma, “Ahm…tu podes comer…como és diabético…”
“Hm? Desde que não tenha açúcar, posso”, esclareceu Afonso, sem grandes constrangimentos, afinal tinham-lhe diagnosticado a doença aos oito anos, lidava com ela com a maior das naturalidades e não lhe era impedimento para nada, “Convém é ter atenção aos níveis de açúcar e tomar a insulina, como vou fazer agora, aliás...é melhor ir para a casa de banho, não é?”
“Não, não vás por minha causa”, disse Leonor, embora a ideia de ver agulhas e sangue a estivesse a fazer perder cor. Fosse porque se sentia genuinamente curiosa quanto ao procedimento, fosse porque se queria redimir desde a outra vez em que fora bastante rude, encorajou-o a que o fizesse ali, “A sério, não faz mal, até gostava de ver como é que fazes isso…se te sentires à vontade, claro”
“Está bem, mas se te estiver a fazer impressão podes virar a cara”, advertiu o rapaz, tirando o aparelho da mochila. Enquanto deixava tudo a postos, ia explicando para que é que cada coisa servia. Quando picara o dedo, não lhe passou despercebido a expressão desconfortável da rapariga, que se mexera, inquieta, na cadeira. Apontando os valores que a máquina lhe indicara, afinal o seu médico iria querer verificar tudo, assegurou a Leonor que estava quase, só faltava tomar a insulina.
Quanto à parte que lhe tocava, Leonor, ao vê-lo injectar-se, julgou por um momento que não se iria aguentar. Encontrando, nem a própria sabia onde, presença de espírito suficiente, aguentou-se. Após o que lhe parecera os dois minutos mais longos da sua vida, sentiu um alívio imenso, alívio esse a que juntara uma sensação de satisfação para consigo própria, visto ter aguentado assistir ao procedimento sem, tanto quanto pudesse aferir, ter feito Afonso sentir-se mal. Sorrindo como se tivesse acabado de receber um prémio, perguntou, “Tens que fazer isso todos os dias?”
“Duas vezes por dia, mas já estou tão habituado que é parte da minha rotina”, disse o rapaz, comovido pelo gesto da rapariga, ainda mais porque bem notara o quanto lhe custara. Conversando mais um pouco enquanto almoçavam, a barreira que havia entre ambos, que começara por ser sólida como uma parede de tijolo, começava, a atenuar-se e os progressos eram notórios. Durante aquela hora, Leonor permitira-se a falar mais de si própria, de como era a sua vida familiar além de mostrar mais interesse pelo que Afonso dizia, honestamente, e não apenas porque a cortesia a obrigava a tal.
Foi com grande pena que o rapaz consultou o relógio e verificou que pouco faltava para que terminasse a hora de almoço e tivessem que regressar à aulas. Indicando à rapariga que convinha irem andando, viu uma nova oportunidade de voltar a estar com ela, quando a ouvira dizer que aquela era a sua última aula e que depois iria buscar o irmão à escola. Uma vez que só tinha, também, mais uma aula e Sara estaria despachada por volta daquela hora, era o pretexto ideal. Sem grande receio, mais que não fosse porque a interacção entre ambos estivera, durante o almoço, a decorrer fluida como água, propôs, “A Sara também sai a essa hora, se quiseres podemos passar por lá os dois”
“Parece-me bem”, disse Leonor, a quem a companhia não desagradava e até agradecia. A seu ver, Afonso era atencioso e simpático, além de que, mesmo sabendo quais as intenções dele sem que ele alguma vez necessitasse de as verbalizar, não lhe parecia que ele alguma vez se impusesse, portanto não havia nada a temer e sempre era um amigo.
Assim que chegaram à sala onde a rapariga ia ter a aula, ele despediu-se, deixando, mesmo sem querer e apesar dos seus melhores esforços para se conter, transparecer o seu entusiasmo. Vendo-o afastar-se, mas não sem antes cumprimentar uma rapariga com os seus modos tímidos, Leonor não evitou reparar no quão enternecedor ele conseguia ser, mas depressa volveu a sua atenção para a turma em si. Na aula anterior sentara-se sozinha, mas a maioria dos lugares parecia já estar ocupada. A última coisa que queria era relacionar-se com as pessoas erradas e como tinha a habilidade de conseguir aperceber-se de quais eram as raparigas intriguistas e susceptíveis de dar problemas a milhas, fugiu delas depressa.
Parecia que não ia conseguir encontrar nenhum lugar. De sobrolho franzido, voltou-se para trás, avistando um lugar vago ao lado da rapariga que Afonso cumprimentara antes. Com o seu cabelo frisado e óculos grossos, aparentava ser o estereótipo de alguém pacífico e abordável. Dirigindo-se a ela, pediu, “Olha, posso sentar-me?”
“Claro, estás à vontade”, respondeu ela, com um sorriso enorme que deixava em evidência o aparelho nos dentes. A simpatia com que lhe falara apanhou Leonor de surpresa, dado estar habituada a que a etiquetassem como convencida e outros adjectivos mais ofensivos sem sequer lhe falarem primeiro. Quando se sentou, a rapariga, bem-disposta, apresentou-se, “Já agora, sou a Adriana e tu?”
“Muito prazer, sou a Leonor”, retribuiu Leonor, sorrindo. Em parte porque queria um motivo para continuar a conversar, perguntou, curiosa, “Conheces o Afonso?”
“O Marques?”, questionou Adriana, ajustando os óculos no nariz. Quando a rapariga lhe confirmou, continuou, “Já o conheço desde a primária mas não se pode dizer que sejamos amigos, costumamos falar-nos só, é simpático”
“Sim, lá isso é”, concordou a rapariga, sorrindo enquanto apontava o exercício no caderno. Não contava que começassem logo a dar matéria na primeira aula, mas ia servir para fazer o ponto da situação. Sendo física a sua melhor disciplina, começou a resolver o exercício, com confiança.
“Uma vez um amigo dele estava a gozar comigo por causa dos óculos e ele defendeu-me”, acrescentou Adriana, “Desde aí que fiquei com boa impressão dele”
“Ele é decente, a julgar pelo pouco que conheço”, respondeu Leonor. Ao acabar o exercício, espreitou para o que Adriana tinha feito, para comparar o resultado. Ao constatar que era diferente do seu, verificou melhor a resolução. Estava convicta de que não tinha cometido erros, então não estava a ver o que podia ter corrido mal. Vendo a resolução de Adriana, entendeu, “Olha…enganaste-te”
“Onde?”, perguntou Adriana, estupefacta. Tratava-se de física, a sua especialidade, as probabilidades de cometer um erro eram poucas. Por muito segura que se sentisse, estava sempre disposta a aprender e a ser corrigida e, se aquela desconhecida o conseguisse fazer, tanto melhor.
“Começaste bem mas usaste o teorema errado a partir daqui”, explicou a rapariga, apontando-lhe o erro. Não queria abusar da sorte, mas Adriana parecera-lhe uma pessoa descontraída e razoável, por isso resolvera trocar impressões com ela. Geralmente o seu talento para matemática e física costumava apanhar as pessoas de surpresa, mas Adriana não fez nenhum reparo em relação a isso, limitando-se a agradecer efusivamente e por isso Leonor estava-lhe muito grata. O resto da aula correu melhor a Adriana, tendo tido inúmeras oportunidades para se redimir, provando à rapariga que iria ter concorrência à altura. No final da aula, recebeu uma mensagem de Afonso:
“Já saí, vens ter à portaria?”
Mal confirmou, a campainha tocou, ainda nem o professor tinha acabado de resolver o exercício, já turma se tinha levantado, deixando para trás o homem a falar sozinho. Despedindo-se de Adriana, Leonor encontrou-se com Afonso, a quem a cara se abriu num sorriso enorme, como acontecia sempre que a via. Satisfeita por ter encontrado alguém com quem se pudesse dar bem, deu a boa nova ao rapaz, “Aquela rapariga a quem falaste antes de eu ir para a aula, a Adriana, é uma simpatia”
“Ela é impecável, tenho pena que o Rúben passe a vida a gozar com ela”, disse o rapaz, abanando a cabeça. O amigo considerava-a o seu anti-género de rapariga e fazia questão que ela soubesse, era algo que durava desde os tempos da primária, quando ele implicara com os óculos primeiro. Uma vez que a sua previsão de que Leonor havia de se dar bem se estava a confirmar, fez questão de o afirmar, “Vês? Bem te disse que ias fazer amigos novos num instante”
“Até agora não me posso queixar”, admitiu a rapariga. Enquanto se dirigiam para a escola onde andavam os irmãos, Leonor, preocupada, perguntou-se como se estaria a dar Tomás. O irmão não fazia amigos com facilidade e, vendo bem as coisas, nunca o vira com um amigo. Sabia que o irmão tinha uma personalidade pouco acessível, mas estava certa de que se lhe dessem uma oportunidade, poderiam vê-lo como ela o via.
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Sara, ao dar as aulas por terminadas, soltou um suspiro de alívio. Pelo menos em casa não teria que olhar para o sorriso arrepiante de Tomás, que a perseguira o dia todo. Parecia que, para onde quer que fosse, ele estava lá, saía da casa de banho e lá estava ele, ia ao bar e lá estava ele, quase podia jurar que ele era omnipresente. Não ajudava ter Cláudia constantemente a comentar o quão querido era o sotaque de Tomás ou o quão verdes eram os olhos dele. Quando Afonso lhe mandara mensagem a dizer que estava à entrada à espera dela, deu corda aos sapatos, ansiosa por ter um momento que fosse longe de Tomás. Dirigindo-se ao irmão, com uma expressão carrancuda, disse, apesar dos esforços deste para a impedir e antes de reparar em Leonor, “Não me livro daquele Tomás nem por nada, o gajo é tão esquisito!”
Quando finalmente viu a rapariga, que se limitou a olhar para o chão, constrangida, empalideceu, antes de se desfazer em desculpas, “Ai! Desculpa, não era isso que eu queria dizer”
“Eu compreendo”, admitiu Leonor, olhando, ora para Sara, ora para o chão. Pelos vistos Tomás não causara grande impressão, o que não podia dizer que a surpreendesse muito. Mas a situação tinha que mudar e, caso Sara estivesse disposta a ajudá-la, poderia resultar. Por fim, decidiu-se e disse, “Posso pedir-te um favor?”
“Diz”, encorajou Sara, embora repetisse o cântico mental “por favor que não tenha nada a ver com o Tomás” vezes e vezes sem conta. Preferia, no entanto, assumir que o favor seria bem mais feliz do que o pressentimento que tinha lhe indicava.
“É sobre o meu irmão”, começou a rapariga, com uma expressão tão cabisbaixa que Sara não conseguiu ficar indiferente, “Eu sei que ele tem uma maneira de ser difícil, mas é bom rapaz…nunca teve muitos amigos, para dizer a verdade…o que te queria pedir era que te tentasses dar com ele, podia ser tão bom…podias fazer isso por mim e por ele, por favor?”
Por muito que Sara não quisesse ter nada a ver com Tomás, não conseguia dizer que não a Leonor. Só desejava que a rapariga lhe tivesse pedido algo mais simples, como rastejar sobre um ninho de víboras para encontrar no meio um duende montado num unicórnio. Olhando para Afonso em busca de auxílio, viu que a ideia também não lhe agradava, embora não se pronunciasse. Ao ver a face tristonha de Leonor, acabou por concordar, “Pronto, está bem”
“Obrigada, muito obrigada”, repetiu a rapariga, “Vais ver que vai valer a pena, ele no fundo é um amor”
“Imagino”, replicou Sara, com cara de quem acabara de engolir um pedaço de limão. A sua expressão, porém, foi-se suavizando quando viu Tomás dirigir-se à irmã com um abraço. Era incrível a forma como toda a maneira de ser dele mudava ao pé de Leonor. Comovida quando a irmã lhe deu um beijo na testa, Sara pensou que, afinal, talvez a tarefa em mãos fosse mais concretizável do que imaginara e, para si, ainda bem.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Capítulo 3


A adaptação no novo país, mesmo sendo o seu país de origem, não se revelou pêra doce. A rotina a que Leonor estava habituada ficara para trás, juntamente com o solo americano. Tinha saudades das amizades que deixara para trás e daqueles aspectos culturais que diferenciavam os dois países, fossem os carros de grandes dimensões e as ruas largas, fossem as idas às lojas de café depois das aulas. Apesar das boas recordações que guardava do país que para sempre consideraria a sua segunda terra, bem sabia do que não teria saudades. E a oportunidade de se afastar daquilo foi algo que agarrou com as duas mãos. De momento restava-lhe reconstruir a sua vida de raiz e se havia algo que ela não fazia, era cometer o mesmo erro duas vezes.

Em terras luso, cabia-lhe, imediatamente, procurar reconstruir a rotina, de modo a ficar tão idêntica quanto possível àquela que fazia nos EUA e, dado que o desporto sempre fora uma parte importante da sua vida, voltaria a praticar o quanto antes, não seguisse ela a máxima de “Uma mente sã num corpo são”. Já pouco tempo depois da vinda tivera a oportunidade de experimentar equitação mas preferia exercitar o corpo, em vez das suas técnicas de controlo do cavalo. Vendo as hipóteses que tinha na sua área, optou por se inscrever num ginásio. Agora se conseguisse convencer Tomás a acompanhá-la de vez em quando, seria ideal. A sua opinião foi reforçada quando tirou os olhos do livro que estava a ler para o irmão, sentado no sofá a jogar.

O estilo de vida sedentário e pouco activo de Tomás era algo que a vinha a preocupar e a pouca vontade que ele tinha de largar as bolachas e a consola e fazer qualquer coisa ao ar livre, algo que implicasse mexer-se, ainda agravava mais a situação. Bem que o encorajava a ir correr uma vez por outra com ela mas ele nunca concordava. Marta, por sua vez, já lhe tentara ensinar a jogar futebol, mas Tomás não dava para aquilo, sempre a rematar para todo o lado menos para onde devia. Em bom rigor, a sua atitude preguiçosa na escola e comportamento bizarro era algo que as preocupava mais do que qualquer outra coisa. Que tinha bom aproveitamento apesar de passar as aulas a dormir ou a atirar coisas aos outros, era algo que surpreendia tudo e todos, o problema era mesmo a forma como se comportava. A última coisa que Leonor queria era que o irmão acabasse preso ou num colete-de-forças numa sala acolchoada.

Guida, por sua vez, limitava-se a revirar os olhos. Verdadeiramente falando, revirava os olhos a tudo quanto o filho fazia, excepto quando era para o repreender, aí já tinha tolerância zero e um poder vocal de fazer inveja, quando os castigos não eram corporais. Porém, Leonor nunca entendera o porquê de a mãe ser assim, pois com ela sempre tivera paciência infinita e adorava mimá-la. Desde miúda que assim era, Guida não perdia uma oportunidade para lhe vestir fatinhos e pentear. O que valia ao rapaz era que Marta tentava chegar a ele através do diálogo e, se Guida fazia distinção entre os filhos, ela já não e, quando a mulher ignorava o filho, ela tentava dar-lhe atenção extra, mas nunca se aproximara tanto dele como da irmã, a menina de ouro da família. Eram pessoas antagónicas, se, por um lado, Tomás era hiperactivo e malcomportado, Leonor era aplicada e sossegada, sempre prestável e doce. No entanto, os dois não podiam ser mais próximos, mesmo que nem ela conseguisse compreender o irmão em alturas.

Enfim, Tomás era o maninho de Leonor e, sempre que ela podia, facilitava-lhe a vida. Desde que se lembrava, tinha por hábito ser a primeira a perguntar ao irmão como estava e como lhe tinha corrido o dia. Outra actividade que os acabou por unir eram os serões que passava a jogar consola com ele, algo que não apreciava muito mas gostava de o ver feliz. Sorrindo, voltou a atenção para o livro, até ser interrompida pelo som do descapotável da mãe a ecoar nas paredes da garagem. Felizmente para si, Guida prometera-lhe aquele carro quando tirasse a carta e, apesar de não se tratar de um dos carros tipicamente americanos, tal como o Corvette que guiava na altura, não cabia em si de contente.

Era altura de começar a pensar em ir andando para a mesa, mais que não fosse porque a mãe fazia questão de jantarem em família, ou não bastasse o tempo que passava fora de casa. Sempre assim fora e desde sempre que tentava compensar ao máximo a sua ausência. Só era lamentável a sua falta de dotes culinários, o que fazia com que Marta não tivesse outro remédio senão preparar as refeições. Pousando o livro, levantou-se, antes de se dirigir ao irmão e perguntar, “Ainda demoras?”

“In a while…”, respondeu ele, sem tirar os olhos do ecrã. Não era que o português não fosse a primeira língua dele, até porque a praticava diariamente em casa, mas considerando o quão novo fora para os Estados Unidos, e o tempo que passava a falar inglês, era de esperar às vezes escapar para a língua ao qual estava habituado. Sendo inteligente, os progressos que ia fazendo eram notórios, mesmo que mantivesse o sotaque carregado.

Na cozinha, após ter deixado Tomás entregue ao seu jogo, qualquer coisa que tinha a ver com invasões alienígenas, Leonor sentou-se à mesa, onde Marta e Guida já se encontravam. Ali a rotina não variara muito, independentemente do país onde habitavam. Jantavam em família logo depois de Guida ou Marta chegar a casa, mas era quase sempre Guida a última a chegar, e depois cada um ia à sua vida, o que geralmente era sair, ver televisão ou acabar os trabalhos de casa. Era a ocasião para falarem, embora Guida dedicasse a sua atenção quase exclusivamente à filha ou a Marta, ao filho respondia com monossílabos. A parecença física entre ambos era vincada mas ficavam por aí. Ou talvez não, eram ambos teimosos e de personalidade difícil, mas no fundo eram boas pessoas, quando o mau feitio não levava a melhor.

Ao ver que Tomás ainda não estava pronto, de mãos lavadas e sentado à mesa, Marta chamou-o, “Tomás! O jantar está a arrefecer”

O ritual era o mesmo, o irmão de Leonor respondia que já ia, que era só até chegar a uma parte do jogo em que pudesse gravar. Porém, depois da terceira tentativa acabava por vir, sem grande entusiasmo mas acatava. A rapariga, enquanto enchia o prato, deitou uma olhadela a Guida, com quem ainda estivera a falar de trivialidades, prevendo chatices iminentes. Depois de Marta chamar Tomás pela quarta vez, Guida perdera a paciência. Levantou-se da mesa e trouxe-o da sala pela orelha. Encolhendo-se a ouvir os queixumes do rapaz, Leonor voltou o olhar para o prato. A relação entre o irmão e a mãe sempre fora conturbada, porém, mantinha esperança de que esta melhorasse um dia, por obra e graça do espírito santo, não havia outra maneira.

Sempre com uma expressão carrancuda, Tomás espetava o garfo no tofu como se este fosse a razão de todos os males. Não gostava daquele género de comida e, contudo, não tinha como escapar. Estava tão sossegado a jogar e apareceu a mãe e começou a embirrar, coisa a que estava habituado, mas não lhe era indiferente. Suspirando, perguntou-se quando é que Guida estaria fora em trabalho, outra vez. Levando o garfo à boca, engoliu, pesarosamente. Deitando um olhar fulminante à mãe, esta respondeu-lhe com um em todo idêntico, como o reflexo num espelho, mais do que qualquer um quisesse admitir.

Em resposta ao desconsolo do irmão, Leonor sorriu-lhe, de modo encorajador, conseguindo que a cara de ira dele aligeirasse. E assim prevalecia a relação de protecção mútua entre ambos: ela apoiava-o dentro do agregado familiar, e ele tinha-a em grande conta e demonstrava-o, zelando como podia pelo bem-estar da irmã. Se era para ser o principal alicerce de Tomás dentro do agregado familiar, ao menos iria fazer o melhor trabalho possível.

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Durante as duas semanas que precederam à reentrada no ano escolar, Afonso não se voltou a encontrar com Leonor. Não era que tivesse faltado vontade, apenas não surgira uma oportunidade. Claro que o rapaz aproveitou para lhe ir falando, fosse por via de mensagens, fosse pelo facebook, mas sempre em pequenas doses, não fosse ele correr o risco de a enfastiar com a sua insistência, embora, se dependesse dele, as conversas fossem tão extensas quanto possível. Não era que as conversas tidas adiantassem muito, mas pelo menos mantinha a relação de ambos num ritmo estável e qualquer bocadinho que conseguisse da atenção dela era um motivo de satisfação para ele. Sempre ia conhecendo a rapariga um pouco melhor e, por isso, sentia-se muito grato.

Mas, como quem espera sempre alcança, um dia teve sorte. Ou uma noite, mais propriamente. Parte do treino de rugby que fazia passava por musculação, afinal não se podia dar ao luxo de ser fraquinho quando fosse placado, não fosse acabar no hospital. Assim, não eram de admirar as peregrinações que fazia ao ginásio. E, na sua opinião, a melhor altura era ao final da tarde ou à noite, quando as máquinas não estavam ocupadas por grupos de indivíduos demasiado preocupados em impressionar os demais com as suas proezas do que em melhorar a condição física. E aquela ocasião não foi excepção, como pôde comprovar ao entrar no balneário vazio.

Logo que se despachou, dirigiu-se à sala dos pesos, tendo, como única companhia, o telemóvel para ouvir música e, dessa forma, ajudar a passar o tempo. A única desvantagem de um ginásio vazio era o quão monótono acabava por se tornar depois de um bocado e, como Rúben tinha planos, planos esses que preferia não saber do que se tratavam, a bem da sua sanidade, estava por sua conta. Até preferia, assim não tinha que aturar a vaidade do melhor amigo que se pavoneava em tronco nu depois de uma sessão de musculação. Mesmo que nunca o fosse admitir, Afonso adoraria ter uns abdominais como os de Rúben, mas a sua prioridade era a performance e não a estética e nisso batia-o de longe. Assim que aqueceu, afinal a última coisa de que precisava era uma lesão mesmo no início da época, deitou mãos à obra, tencionando fazer aquela hora render ao máximo.

Depois de percorrer três aparelhos diferentes, já ofegante e a suar em bica, levantou a cabeça e eis que viu Leonor na passadeira. Sentindo o coração a saltar-lhe do peito, não só porque já estava cansado, pousou o haltere que estava a levantar. Se calhar devia falar-lhe, era a oportunidade perfeita e só estavam os dois, não havia ninguém que o fosse provocar. Passando uma toalha pela cara suada, olhou na direcção dela. Ao vê-la com uns calções justos e curtos, colados às pernas exercitadas, e um top que não deixava nada à imaginação, engoliu em seco. Não havia mesmo algo que pudesse ser melhorado nela. Sem coragem para a abordar, quedou-se a observá-la por um bocado. Ela ainda não o vira e, se ficasse quieto e calado, podia ser que testemunhasse um acidente com a roupa…abanando a cabeça, procurou afastar aquele pensamento. As hormonas não iriam levar a melhor.

Era humano e, de imaginar o que estaria por baixo da roupa reduzida, não conseguiu evitar fantasiar um pouco, mesmo que algumas dessas fantasias envolvessem material explícito. O que começou com passar as mãos pela cintura bem definida de Leonor, depressa evoluiu. No entanto, foi forçado a abandonar a terra dos sonhos, quando um gemido audível se fez sentir. Se a rapariga estivera, ainda instantes antes, na passadeira, enérgica e entusiasmada, de momento estava agarrada ao tornozelo, agachada no chão. Vê-la em sofrimento foi como que um balde de água fria que o fez perder a timidez e correr em seu auxílio, “Estás bem?”

“Sim…quer dizer, assim, assim”, respondeu ela, franzindo o sobrolho com dores, quando se tentou pôr de pé, “Pus mal o pé e aleijei-me, foi mesmo estúpido mas acho que vou ficar bem”

Olhando para o tornozelo dela, viu-o inchado. Não era uma lesão por aí além, mas era o suficiente para proporcionar uns dias pouco confortáveis. Experiente com esse tipo de mazelas, Afonso propôs, “Também me acontece de vez em quando…queres ajuda com isso?”

Avaliando a extensão dos estragos, Leonor achou que conseguia sair dali pelo próprio pé, chegar a casa e encher aquilo de gelo. Que humilhante, ter testemunhas de um acidente tão evitável que nunca lhe acontecera. Com um sorriso amarelo, respondeu, “Não é preciso, obrigada, aguento até casa”

“Era só pôr gelo nisso, não custa nada”, insistiu o rapaz, a quem a inflamação do tornozelo da rapariga preocupava. Já lidara com lesões bem piores, afinal num jogo menos feliz levara um pontapé na face que lhe arrancara um dos caninos, um tornozelo torcido não era nada. Conseguiria aliviar-lhe a dor facilmente e até já lhe disseram que fazia óptimas massagens.

“Não vale a pena”, replicou ela e, para provar que estava mais do que bem para andar, tentou pôr-se de pé. Como resultado, não se aguentou e cedeu, acabando sentada no chão. Não era mesmo a sua noite. Com um suspiro, teve que concordar que, talvez, uma ajuda fosse bem-vinda, “Afinal talvez tenhas razão, olha, dás-me só uma ajuda até ali ao banco?”

Era a sua oportunidade. Pondo um braço por baixo dos joelhos de Leonor e outro das costas desta, levantou-a. Não podia dizer que fosse extremamente leve, mas conseguia pegar-lhe sem grande esforço. Com um pouco de sorte nem estaria a cheirar demasiado a suor, pelo menos, era o que ele esperava. Sentindo-se mais corajoso que o habitual, disse, “Põe o braço por trás do meu pescoço, assim seguras-te melhor”

Ela, por sua vez, pareceu tão surpreendida que nem disse nada, deixando-se carregar sem oferecer resistência, resistência essa que, noutras condições, teria redobrado. Não, não era que gostasse de sentir o peito de Afonso contra si, nem que os ombros largos deste fossem muito do seu agrado, não, claro que não. Quando recuperou a reacção, coisa que não demorou muito a acontecer, não perdeu tempo a protestar, como seria de esperar, “Não é preciso pegares-me ao colo, eu consigo andar, mal mas consigo”

Sem ligar ao que Leonor lhe dizia, Afonso levou-a até ao banco, assegurando-se que não apressava muito o passo e que a tinha tão junto a si quanto possível. Não se contendo, aproximou o nariz do cabelo da rapariga. Tinha um odor agradável, floral. Pronto, era melhor parar, não a fosse assustar. Em vez de a levar ao banco, levou-a antes a uma sala ao lado onde estavam as reservas de gelo e uma poltrona mais confortável. Ela, no entanto, não pareceu muito à vontade, tanto mais que franziu de tal forma o sobrolho, que as sobrancelhas se uniram, “Para onde é que vamos?”

“É que é mais cómodo e o gelo está aqui…”, justificou-se ele, implorando nem sabia bem a quem, que ela não pensasse que a levara para uma sala escondida para a poder molestar sem que a ouvissem gritar. Pousando-a na poltrona, aborrecido por não a poder ter ao colo mais tempo, voltou-lhe as costas, para esconder o rubor que estava certo que tinha, enquanto procurava um saco de gelo.

“Se o dizes”, replicou ela, tentando massajar o tornozelo. Não era que as circunstancias a deixassem muito segura, longe de tudo e todos e alguém com um fraquinho grande por ela. Mas era Afonso, se havia pessoa inofensiva e incapaz de se aproveitar da situação era ele, portanto não havia nada a temer e podia relaxar.

“Isso não é nada, uma vez num jogo saltou um olho a um gajo, saltou mesmo, que nojo não é?”, gracejou o rapaz, numa tentativa frustrada de quebrar o gelo e aligeirar o ambiente. Vendo que a rapariga não parecia nada impressionada, achou por bem não se manifestar mais e fazer o que estava ali para fazer. Pegando no saco de gelo, aplicou-lho sobre a zona inflamada, “Sentes-te melhor?”

Fechando os olhos, uma vez que o contraste da sensação quente e latejante que tinha no tornozelo e o gelo, não era mesmo agradável. Quando se habituou à sensação, o que levou um pouco, respondeu, “Sim, obrigada”

Tirando o gelo de cima do tornozelo para puder avaliar o aspecto, Afonso constatou que este voltara ao seu tamanho quase normal, embora a sua experiencia não aconselhasse fazer esforços. Leonor, vendo que já não tinha um inchaço do tamanho de uma meloa, tentou apoiar-se nele e pôr-se de pé, apenas para sentir uma dor aguda que a fez vacilar. Teria caído, caso o rapaz não a tivesse amparado a tempo. Com a cara enterrada no peito de Afonso e os braços deste à sua volta, admitia que não era a posição mais desagradável, por muito constrangedor que fosse. Recuperando a integridade, voltou a sentar-se na poltrona, sem ligar ao sorriso pateta da face corada do rapaz. Porque é que ele tinha que ser tão adorável? E de onde é que esse pensamento veio?

Desejando seguir para a frente com o que tinha em mente, Afonso pediu-lhe que esticasse a perna. Ela, de sobrolho franzido, cooperou, mais para ver onde aquilo iria dar. Estalando os dedos antes de começar, o rapaz respirou fundo, de modo a manter-se calmo, tão calmo como aquela proximidade toda com a rapariga lhe permitia. Colocando as mãos em volta do tornozelo dela, massajou-o, com tanto cuidado para não a magoar como conseguiu. Constatando que a pele dela era tão macia como seda, necessitou de respirar fundo outra vez, para não se desconcentrar. Prosseguindo, certificou-se que aliviava a área onde ela se aleijara, vendo, de vez em quando, a expressão de Leonor, em busca de sinais que lhe mostrassem que estava a ser bem-sucedido.

De olhos fechados, ela, de tão agradada que estava, não se conteve e acabou por lhe escapar um gemido leve, “Hm…não pares”

Afonso foi tão apanhado de surpresa pelo comentário que, corando mais do que parecia possível, parou mesmo, muito para aborrecimento de Leonor. Gostaria e muito de a ouvir dizer aquilo mais vezes, noutras circunstancias de preferência. Com uma expressão de quem fora apanhado, balbuciou, “Ahm…está à vontade…eu não me importo…mesmo”

“Acho que já consigo andar, obrigada”, respondeu a rapariga, revirando os olhos. Primeiro interrompia uma massagem que parecia feita por Deus, depois não dizia nada de jeito? Não tinha perdido nada, assim sabia a quem recorrer quando tivesse uma dor. Se calhar também fazia massagens tão boas nas…costas! Sim, costas! Claro que nas costas, onde havia de ser senão nas costas? Estava mesmo em dia difícil, nunca tal coisa lhe teria passado pela cabeça se não estivesse.

Como se as preces de Leonor fossem ouvidas, naquele momento a porta abriu-se e a cabeça careca do porteiro espreitou, poupando-a a constrangimento prolongado. Com cara de poucos amigos, inquiriu, “O que é que estão a fazer aqui? Pode-se saber?”

“Nós…ahm…”, tentou justificar-se o rapaz, conseguindo enterrá-los ainda mais. Apanhado ainda agarrado à perna da rapariga, não era a posição menos comprometedora. E a situação não era o que parecia, infelizmente para ele.

“Ponham-se a andar!”, gritou o porteiro, escarlate de raiva. Virando as costas, murmurou algo que soou a “cambada de fodilhões”, antes de se berrar, novamente, “Os dois daqui para fora, já!”

Nem foi preciso repetir, já a rapariga se pusera de pé e corria porta fora, tanto quanto conseguia. Quando já ia a sair da sala, parou, voltou para trás e deu um beijo na bochecha de Afonso, agradecendo, antes de sair mesmo. Ele, com a mão no sítio onde Leonor o beijara, deixou-se ficar, sentindo-se um misto de incrédulo com felicíssimo.

sábado, 22 de setembro de 2012

Capítulo 2


Em frente ao espelho, Afonso segurava, em cada mão, uma camisola. Experimentando, ora uma, ora outra, não se decidia. Todos os pormenores eram importantes e queria dar uma imagem melhor do que a que dera quando conhecera Leonor. Já fizera a barba e tomara banho mas não queria cometer o erro de ir mal vestido, não fosse parecer pouco atraente aos olhos dela. Incapaz de conseguir um resultado que lhe agradasse, chamou, desesperado, “Mãe!”

Pouco depois, Susana, batendo à porta, perguntou, “O que é?”

“Preciso da tua opinião”, disse o rapaz, de sobrolho franzido, sem nunca tirar os olhos do seu reflexo no espelho. E se o problema não estivesse na roupa mas sim nele? De facto podia trabalhar mais os músculos da zona abdominal e, mesmo tendo ido à praia várias vezes durante o Verão, ainda tinha uma tonalidade de pele demasiado clara. Angustiado, pegou nas camisolas e questionou, “Qual destas?”

Ponderando durante um instante, Susana abanou a cabeça, em sinal de reprovação, “Nem uma nem outra, leva antes a que compraste outro dia, mas com outros ténis”

“A ideia é favorecer-me o mais possível”, confessou ele, sentando-se na cama, desanimado. Se ao menos fosse mais como Rúben não teria que se preocupar com estes pormenores, por onde quer que passasse as raparigas adoravam-no. Já Afonso era sempre ignorado, pelo menos até saberem que era filho da Susana Marques, mas o fascínio desaparecia quando descobriam que não tocava viola, nem cantava de modo afinado nem que a vida dependesse disso.

“Não digas isso”, reconfortou a loura, sentando-se ao lado dele, “És perfeito como és e não é uma camisola azul ou uma branca que vai fazer diferença…a sério, não te preocupes com isso, a Leonor tem muita sorte por ter alguém como tu interessado nela”

“Dizes isso porque és minha mãe”, lamentou-se o rapaz, embora soubesse que Susana só o estava a tentar animar, “Mas obrigada na mesma”

“Mau”, repreendeu Susana, séria, “Como é que esperas que ela vá gostar de ti se nem tu gostas? Elas não gostam de choninhas inseguros que se sentam num canto a chuchar no dedo, olha que eu sei do que falo”

“Mas…”, insistiu ele, apenas para se calar quando a mãe o fulminou com o olhar. Agradecendo mais uma vez a ajuda, acabou de se despachar, não fosse o tempo começar a escassear-lhe. Prometendo não tomar uma atitude tão passiva durante aquela noite, saiu, esperando que tudo corresse pelo melhor.

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Fiel à sua palavra, Leonor, embora pouco entusiasmada e desejosa que o tempo passasse depressa, aguardava por Afonso à porta de casa, tal como combinado. Durante a espera, observou o seu reflexo na janela, ficando agradada com o que viu. Não era que tencionasse impressioná-lo, mas gostava de fazer boa figura, fosse qual fosse a ocasião. Observando ora o mostrador do relógio, ora a esquina da rua, a rapariga suspirou, exasperada. Se ele chegasse atrasado sempre justificaria a pouca vontade que ela tinha de sair com ele e lhe permitiria recusar convites daqueles no futuro. Porém, estava sem sorte. Às nove em ponto, como fora acordado, já avistava o rapaz a alguma distância. Previa um serão chato, com Afonso a orbitar à sua volta e incapaz de deixar que houvesse um momento de silêncio que fosse, sem descurar as incontornáveis tentativas de a impressionar.

Assim que ele se aproximou, ela, ao contrário do que se poderia esperar, acabou por se surpreender, embora nunca o fosse admitir. Se, quando foram apresentados, ele, com os seus caracóis escuros desalinhados e barba por fazer, o que lhe conferira um aspecto desleixado, a deixara pouco impressionada, agora, os mesmos caracóis, ainda molhados e a face suave, que lhe deixava as covinhas em evidência, obrigavam-na a mudar de opinião. Disfarçando com uma expressão estóica, Leonor deixou o olhar passar da cara para os ombros largos e para os braços bem definidos, cortesia de uma camisola sem mangas. Podia ser mais alto, afinal ela, se usasse saltos, ultrapassá-lo-ia em altura, mas, à parte disso, tinha que admitir que o rugby lhe havia feito muito bem.

Por uma centésima de segundo, temeu que o rapaz a tivesse apanhado a observá-lo, isso colocá-la-ia numa posição desconfortável. No entanto, estava tão segura da sua expressão neutra, que manteria mesmo que o mundo estivesse a desabar diante dos seus olhos, que tal seria impossível. O mesmo não se aplicava a Afonso que, com os olhos vidrados, a mirava da maneira mais enternecida. Não fazia mal, estava mais do que acostumada à atenção da população masculina e, se o rapaz tivesse a ideia de tentar algo, ela saberia como lidar com a situação. Dando um passo para ele, confiante, fez com que acordasse do seu torpor, “Boa noite”

“Ahm? Boa noite!”, respondeu ele, pestanejando, claramente embaraçado. Olhando, ora para a imagem de perfeição que se encontrava à sua frente, ora para a janela onde a imagem menos perfeita do irmão de Leonor lhe fazia um gesto obsceno, achou por bem porem-se a caminho, não fosse envergonhar-se mais, “Vamos?”

“Claro”, disse a rapariga, seguindo à sua frente, sem esperar por ele. Mordendo o lábio, tentou recalcar o facto de que, no fundo, até se sentira lisonjeada por ver o trabalho que o rapaz tivera para estar o mais apresentável possível para ela, ainda para mais a forma como ele a olhava, como se estivesse a ver Deus. Mais do que isso, não fosse ela ter constantemente indivíduos do sexo oposto a tentarem impressioná-la, o que a incomodava era saber que até gostara dos esforços do rapaz.

Acelerando o passo, Afonso não tardou a alcançá-la. Não perdendo qualquer desculpa que fosse para se aproximar dela, encheu-se de coragem, coragem essa que encontrou só Deus sabia onde e disse, de modo afável, “Ainda não te pude cumprimentar devidamente”

Assim que terminou a frase, aproximou a cara da de Leonor, para lhe dar dois beijinhos. Ela não teve outro remédio senão retribuir. Ao fazê-lo, não pôde deixar de reparar que ele tinha um cheiro agradável: alguma água-de-colónia, fresca mas nada enjoativa. Primeiro parecia demasiado agradada com o aspecto de Afonso, depois com o cheiro deste? Isso já parecia pouco característico da sua pessoa. Sustendo a respiração, voltou a criar alguma distância entre ambos. Sem o encarar, perguntou, num tom desinteressado, “Então ainda é muito longe?”

O rapaz, felicíssimo por ter sido ela a iniciar conversa, respondeu, entusiasmado, embora a última coisa que quisesse fosse aborrecê-la, “Não, dez minutos a pé, mais ou menos…hm, não faz mal, pois não?”

“Claro que não”, disse a rapariga, encolhendo os ombros. Enquanto a ligeira aragem que se fazia sentir não se tornasse mais fria, estar ao relento sem um casaco não a transtornaria.

Durante o resto do caminho que os separava da casa de Leonor até ao local das festas, Afonso, desejoso de conhecer melhor Leonor, foi fazendo perguntas, todas elas sobre tópicos seguros, como para que escola ia, o que queria seguir, se estava a gostar de Portugal. Muito para seu deleite, ela ia para a mesma escola que ele, o que significava que a iria ver muitas vezes. E, se a rapariga já era, a seu ver, um sonho tornado realidade, ainda mais forte a sua opinião se tornou, quando descobriu que ela era boa aluna e iria seguir algo no ramo das engenharias. Afonso, por sua vez, revelou que ainda estava a trabalhar no seu sonho, que era conseguir viver do rugby, apesar de tencionar seguir para a faculdade, para qualquer coisa relacionada com ciências sociais. Quanto à readaptação da rapariga ao país, esta não comentara muito, apenas que estava satisfeita pela mudança.

Ao chegarem ao local das festas, comprovaram que estas tinham uma adesão maior do que o esperado. Todas as diversões, fossem elas carrinhos de choque, fossem carrosséis, fossem rifas, fossem os concertos, ou, apenas bancas de comida, encontravam-se lotadas. Apontando para uma banca que vendia bebidas, o rapaz, o eterno tímido paranóico, implorando aos céus que ela não pensasse que ele a queria embebedar para a violar e deixar numa valeta, ofereceu, “Queres tomar alguma coisa?”

“Hm…”, matutou Leonor, que já sentia os efeitos de uma caminhada numa noite abafada. Já que Afonso ia buscar qualquer coisa para ele, aproveitou, estendendo-lhe uma moeda, “Só uma Coca-Cola, se faz favor”
Recusando, o rapaz disse, feliz por poder fazer um gesto simpático por ela, “Esta é por minha conta”

Dirigindo-se ao balcão, fez os pedidos, não se abstendo de observar, embevecido, a rapariga, que parecia distraída ao ver umas pessoas atirarem uma bola a uma pirâmide de latas, para ganharem um peluche. Fazendo uma nota mental de passar por aquela banca, nem reparou quando pisou alguém que estava a seu lado. Quando esse alguém, com cara de poucos amigos, se virou, viu que se tratava de Rúben, o seu melhor amigo. Este, por sua vez, pareceu esquecer as intenções que tinha de esmurrar quem o pisara e ostentava um sorriso enorme, “’Tão, meu puto, mé quié?”

Afonso adorava Rúben. Já o conhecia desde a primária e eram inseparáveis desde então, passavam imenso tempo um com o outro e até jogavam rugby na mesma equipa. Apesar de o considerar o seu amigo mais próximo, este era a última pessoa que gostaria de encontrar enquanto estivesse com Leonor. Ao contrário de Afonso, o amigo era extremamente bem-sucedido com o sexo oposto e, como tal, era a mais exacta definição de “putanheiro”. Em parte, invejava-o pela sorte que tinha, fosse por saber a conversa toda, fosse por ser mais alto que ele, coisa que, Afonso admitia, ser bastante patética, mas não conseguia evitar. Não apreciava, contudo, a moral duvidosa de Rúben e, conhecendo-o como conhecia, já teria reparado na rapariga e encontrar-se-ia a instantes de meter conversa. Tentando distraí-lo, disse, “Então a Joana não está contigo?”

“Onde é que ela já vai”, replicou Rúben, rindo ao lembrar-se da pobre coitada que, tal como tantas outras, já tinha sido usada e abusada. Ao tirar os olhos de Afonso, reparou que este estava com uma rapariga, rapariga essa que imediatamente classificou como “avião”. Cessando o riso alarve, abordou-a, com o seu sorriso característico, capaz de derreter qualquer uma, “Olá, menina, sou o Rúben, amigo deste aqui”

Infelizmente para Rúben, Leonor não era qualquer uma e, se ele pensava que ela não lhe tirara a pinta a quilómetros de distância, estava redondamente enganado. Escondendo a repulsa que ele, e todos os da laia dele, lhe causavam, agarrou, de modo pouco ou nada discreto, a mão de Afonso, certa de que isso o desencorajaria, “Olá, sou a Leonor”

Rúben olhou, ora para o rapaz, que tão estupefacto que estava que nem tentou disfarçar o quão corado ficou, ora para a rapariga, que lhe segurava a mão, sorridente. Para que não restasse margem para dúvidas, agarrou-se completamente ao braço de Afonso, sorrindo como se não estivesse consciente das intenções de Rúben. Percebendo a mensagem, Rúben achou por bem retirar-se, por enquanto pelo menos. Noutra altura voltaria a tentar pois adorava desafios e Leonor constituía um. Com um sorriso amarelo, despediu-se, “Vou andando, depois diz qualquer coisa”

À medida que a figura de Rúben se dissipava no meio da multidão, tanto Leonor, como Afonso, respiraram de alívio. Fraquejando pela segunda vez naquela noite, a rapariga, ainda com o pretexto de exorcizar Rúben do pé de ambos, manteve a mão na do rapaz, que não se pronunciou esse tempo todo. Depois das covinhas e dos braços, podia juntar as mãos à lista de pormenores que gostava nele, grandes e calejadas, provavelmente do desporto que praticava. Passando o polegar pelas costas da mão de Afonso uma última vez, Leonor largou-o, por fim. Com um ar desiludido, o rapaz encarou-a, como se perguntasse porque é que o tinha feito, embora não tivesse dito nada.

Desejosa de evitar um prolongamento daquele momento constrangedor, a rapariga, apontando para a banca que estivera a ver antes, propôs, “Não queres passar por ali?”

“Claro, anda”, aceitou ele, que entretanto se contentara com a sorte que tivera. Por sua vontade, não teria largado, mas um minuto de proximidade era uma conquista enorme quando ela pouco mais que respostas monossilábicas lhe dava. Satisfeito com o progresso, serviu-se do pretexto de que não convinha que se separassem no meio de tanta gente e encaminhou-a para a banca com uma mão colocada na cintura, ao de leve. Porém, foi com grande pena sua que ela lhe retirou a mão, “Desculpa…”

Não ligando, Leonor dirigiu-se à banca, onde entregou umas moedas ao dono, uma figura peluda, obesa e bonacheirona, que lhe passou para a mão uma bola. Quando ela ia a atirar, Afonso, que não perdia o mais pequeno movimento da rapariga e, ao vê-la prestes a fazer um mau lançamento, não se conteve, não fossem os anos de rugby que tinha, “Espera!”

“O que foi?”, inquiriu ela, de sobrolho franzido, pouco satisfeita por ter sido interrompida.

Pondo-se por detrás dela, o rapaz segurou-lhe o braço e explicou, acompanhando-lhe o movimento, “Se atirasses como ias fazer não acertavas, tenta antes assim”

Fazendo-a lançar a bola, num movimento fluido, foi com um sorriso rasgado que ele viu a pirâmide de latas de refrigerantes ir abaixo. A rapariga, por sua vez, encontrava-se dividida em relação ao que havia de sentir: se, por um lado, se sentia humilhada por ter precisado de ser corrigida, por outro, mesmo que não gostasse de dar o braço e torcer, lá teria que admitir que o gesto a enterneceu, no fundo. Os sentimentos negativos foram arrasados quando Afonso lhe passou para as mãos o prémio, um panda de peluche felpudo. Peluches eram e sempre seriam algo a que não resistia, fosse para agarrar, fosse por decoração. Ainda a afagar a pelagem macia do boneco, disse, “Obrigada mas devia ser teu, se não fosses tu não tinha acertado”

“Oh, não tem mal, podes ficar com ele”, assegurou o rapaz, consolado por saber que a fraca iluminação dos candeeiros da rua escondia o rubor que já ostentava nas bochechas sardentas, consequência do sol do Verão. Desta forma podia dizer que Leonor tinha uma prenda oferecida por ele.

Agradecendo, desta vez com toda a sinceridade em vez de pura cortesia, a rapariga, trazendo o peluche no colo, propôs que continuassem a ver as bancas, proposta essa que Afonso aceitou. Passando por grupos que tentavam a sua sorte a rebentar balões com uma pressão de ar, bancadas com churros e pão com chouriço, e carrosséis, Leonor reparou que o rapaz não tomava a iniciativa para se deter nalguma banca, algo que não a espantava, tendo em conta que tudo nele indicava alguém passivo e tímido. Não querendo que ele se abstivesse de se divertir por sua causa, perguntou, “Não queres comer nada nem dar uma volta nos carinhos de choque?”

Por sua vontade, o rapaz estaria nos carrinhos de choque a atirar os miúdos com excesso de bazófia para fora da pista, caso não estivesse a acompanhar a rapariga. Assim, sob pena de lhe proporcionar uns cinco minutos desconfortáveis, escolheu antes outros planos, “Hm, apetece-te dar uma volta no carrossel?”

“Pode ser”, respondeu ela, a quem a ideia não parecia má, sobretudo se fosse o carrossel maior e não aquele em que as crianças andavam em carrinhos feitos a partir de personagens de desenhos animados populares.

Conseguindo uma ficha, sentaram-se numa espécie de chávena. Contendo a sua vontade de colocar o braço por cima dos ombros de Leonor, Afonso deixou as mãos sobre o colo. Enquanto o carrossel não andava, aproveitou para fazer um balanço daquela noite, até ao momento: muito lentamente, a passo de caracol moribundo, conseguia conquistar a confiança da rapariga, a ponto de ela o deixar aproximar-se, mas daí a ir para além disso ia uma grande distância e, de qualquer das maneiras, ainda era muito cedo para pensar nisso. Sim, conseguir a amizade dela era mais que suficiente e, dali para a frente, estaria com ela normalmente, sem se preocupar se conseguia algo mais ou não. Descansado com a sua epifania, relaxou um pouco e disse, “Segura-te”

Apanhada de surpresa, Leonor não teve tempo de deitar a mão à barra metálica que rodeava a chávena e, quando o carrossel arrancou, foi atirada para cima do rapaz que, apesar de tudo, sorriu quando ela aterrou no seu colo. Se ele corou até à raiz dos cabelos, ela revirou os olhos e voltou para o banco. Acidental ou não, era proximidade a mais para o seu gosto. Agarrada à barra, não voltou a ser projectada durante o resto da volta, que valeu uns bons risos por parte de ambos. A boa disposição dos dois não passou despercebida a uma terceira pessoa, que torcia o nariz ao longe. Ao emborcar a quinta caipirinha, Rúben achou que havia chegado altura de descarregar a frustração que sentira antes. Indo para junto de Afonso e Leonor, pediu ao rapaz, “Posso dar-te uma palavrinha a sós?”

Aceitando, mesmo que para isso tivesse que ignorar o mau pressentimento que tinha, Afonso seguiu o amigo até a um canto que não estivesse a abarrotar de gente. Trocando um olhar com a rapariga, assegurou-a de que não demoraria muito. Uma vez a sós, Rúben, sem cerimónias, perguntou, “Quem é ela?”

“É filha de umas amigas das minhas mães”, elucidou o rapaz, cujo hálito a álcool de Rúben lhe dava a entender que, caso o irritasse, a noite ainda iria acabar mal. Sob a influência do que quer que fosse, ele ficava fora de si.

“Tu e ela…andam?”, inquiriu o amigo, com um tom de incredulidade a dar lugar a um de troça, enfatizado pela risadinha ocasional.

“Não, conhecemo-nos há pouco tempo e nem nos podemos considerar amigos”, respondeu Afonso, saturado com o interrogatório. Sabia que convinha evitar a todo o custo que Rúben, de temperamento instável com tendência para ser violento, se se irritasse, mas a troça dele já começava a ser demais para que ele não lhe desse, pelo menos, uma resposta torta. Antes que ele próprio atirasse fósforos para a gasolina, disse, “Tenho que ir andando”

“Claro, achas mesmo que uma gaja daquelas alguma vez queria alguma coisa contigo?”, provocou Rúben, com um ar desdenhoso. E com isto conseguira atingir Afonso num ponto sensível.

Respirando fundo, Afonso, tentando conter a vontade que tinha de lhe responder no mesmo registo, contornou a questão, “Não sei mas deixa-a em paz, se acontecer alguma coisa quem se fode sou eu”

“Então não estás interessado nela?”, perguntou o amigo, com um olhar céptico. Pela maneira como o rapaz se comportava junto a Leonor, não acreditava nisso, conhecia-o bem demais para tal. Ou mais, qualquer pessoa, mesmo que não o conhecesse, diria que não estava pouco interessado.

Abrindo e fechando a boca sem conseguir emitir um som que fosse, Afonso não sabia o que dizer. Não queria provocar Rúben mas também não o queria atrás da rapariga com o pretexto de que não sabia da paixoneta de Afonso. Decidindo que conseguia aguentar uma boca ou duas, respondeu, “ Estou…quer dizer, acho-lhe piada”

Rebentando em risos, Rúben nem conseguia formular uma frase sem colocar as mãos na barriga, dobrado sobre si mesmo. Mal recuperou, disse, apenas, “Keep dreaming”

Caso não soubesse que toda aquela bazófia era o álcool a falar, o rapaz teria levado a peito aqueles comentários. Sendo as circunstâncias como eram, a única maneira de agir era despedir-se e sair dali enquanto a oportunidade se proporcionava. Deixando Rúben, voltou para junto da rapariga, ainda com as palavras do amigo a ecoarem-lhe na cabeça. Por muito que quisesse dar o desconto, acabou por se sentir magoado. Reparando na expressão cabisbaixa de Afonso, a rapariga perguntou, “Está tudo bem?”

“Sim, sim”, respondeu Afonso, fazendo por se abstrair. Pensando bem, era ele que estava ali com Leonor e o amigo levara uma tampa, só isso serviu para se animar. Voltando a atenção para a rapariga, viu que esta estava toda arrepiada e não tinha um casaco para vestir, “Tens frio?”

“Aguento”, replicou ela, passando as mãos pelos braços, numa tentativa desesperada de se aquecer. Naquele momento arrependia-se de não ter trazido um casaco.

“Oh toma lá”, insistiu o rapaz, passando-lhe a camisola que trouxera e que não chegara a vestir. A verdade era que, também ele, estava com frio mas de bom grado lhe emprestava a camisola e se sujeitava à aragem gélida da noite.

Mesmo que Leonor tivesse recusado, com o pretexto de que depois quem iria ter frio era ele, o vento, agora mais forte, fê-la mudar de ideias e aceitar. Vestindo a camisola, que lhe chegava até meio das coxas, logo se sentiu muito mais aconchegada. Se calhar a persistência do rapaz e a sensação de protecção que este lhe proporcionava afectava-a, se fosse verdadeiramente honesta consigo própria. O facto de ele ser comedido e seguro, nunca insistindo demasiado e incapaz de passar ao ataque, era um bónus.

Depois da confusão com Rúben, Afonso achou melhor voltarem, ainda que desejasse ter mais tempo na companhia de Leonor. A ideia foi bem acolhida por parte da rapariga, a quem a festa já estava a aborrecer. Apertando mais a camisola contra si, fez-se ao caminho, acompanhada pelo rapaz. A pele de galinha nos braços dele saltou à vista a Leonor, que não evitou sentir-se tocada pelo gesto. Pronto, afectava-a, era inegável. Ao chegarem a sua casa, a rapariga despiu a camisola e disse, entregando-lha, “Obrigada pela camisola e pela noite”

“O prazer foi todo meu”, respondeu ele, incapaz de a encarar. A noite havia corrido bem, não havia mal em dar a indirecta de que adoraria que se encontrassem outra vez num futuro próximo, “Hm…depois diz qualquer coisa, se quiseres, claro, senão…vemo-nos na escola”

Com a vista a deambular, ora para Afonso, corado, ora para o peluche que tinha nos braços, a rapariga concordou, com um sorriso, “Claro que sim”

Antes que o rapaz pudesse prolongar a conversa, ou, sequer, responder, Tomás apareceu por detrás da irmã, com o seu sorriso sinistro, “Continuas aqui? Vá, vá, vai-te lá embora”

“Tomás, não devias estar deitado? Vai tu embora”, respondeu Leonor, repreendendo-o. Voltando-se para Afonso, despediu-se, hesitantemente, “Então acho que vou andando…adeus e depois falamos”

Aproximando-se do rapaz para se despedir, coisa que teve pena de fazer, visto até estar a gostar da companhia dele, beijou-lhe as bochechas, tão coradas que rivalizavam o tom de um semáforo. Assim que lhe retribuiu, Afonso teve de ouvir outra boca do irmão, qualquer coisa que soou a “daqui não levas nada”, antes de dar mesmo a noite como terminada. Depois de passado esse momento, continuou até casa, feliz.