quinta-feira, 11 de julho de 2013

Capítulo 11

Levando em consideração os eventos daquele dia, Afonso diria que o Natal tinha chegado mais cedo. Se, havia alguns meses atrás, lhe dissessem que iria beijar a rapariga linda que tinha visto no centro hípico, não acreditaria, pois parecia totalmente intangível. Era já véspera de Natal e o rapaz dava consigo a sonhar acordado com o que se tinha passado, sorrindo sempre que revivia aquele beijo. Mais do que o saciar de algo que ele fervorosamente desejava havia algum tempo, representava, mais do que nunca, um acalentar de esperanças e, por isso, ele dava-se por muitíssimo feliz. Não querendo deixar escapar a oportunidade que o Natal propiciava para lhe oferecer qualquer coisa simbólica, comprou um colar que vira numa banca e que lhe deu a entender que ela iria gostar. Como não sabia quando seria a melhor altura para lhe dar a prenda, até porque não sabia se a oportunidade se proporcionaria no dia de Natal, veio mesmo a calhar que Susana lhe dissesse que ia passar por casa de Guida para lhe dar a prenda dela e o convidasse para a acompanhar.

Durante o caminho, Afonso, incapaz de deixar o hábito de sobreavaliar todas as suas acções, começou a ter dúvidas quanto à sua escolha de prenda. Seria pouco? Seria do agrado de Leonor? Parecia-lhe uma prenda simpática e inofensiva, ao contrário das cuecas comestíveis que Rúben iria dar à sua mais recente conquista. Já não ia em altura de corrigir, afinal estava a cinco minutos de casa de Leonor, porém, resolveu perguntar na mesma a Susana, dado que decerto que ela saberia tudo o que havia para saber sobre o assunto, “Vou oferecer um colar à Leonor, achas boa ideia ou chocolates seria melhor?”

“O colar é boa ideia”, respondeu Susana, recordando os tempos em que costumava dar presentes a Daniela sem ter algum motivo para o fazer. Era um hábito que ainda mantinha, com a particularidade de a qualidade das oferendas ter aumentado, em função do tamanho da sua carteira. Abordando Daniela, disse, “Lembras-te de quando eu te dava colares e chocolates? Não era tão querido?”

“Lembro-me dos colares”, comentou Daniela, sem tirar os olhos da estrada, não fosse a chuva, que tinha vindo a intensificar-se ao longo do dia, causar algum contratempo, “E chocolates, se a memória não me induz em erro, quando me davas era só a caixa, os chocolates eu nem lhes punha a vista em cima”

Susana riu-se tanto que teve de se dobrar sobre si mesma. O seu apetite saudável nunca deixaria se fazer das suas e só se aguentava sem engordar porque ainda passava mais tempo, ou na praia, ou no ginásio, do que a comer. Estava, aliás, ansiosa pelo Natal porque lhe permitia comer mais do que durante o resto do ano, não que fosse sentir culpa por não estar a controlar a linha, de qualquer forma. Uma tosse seca fê-la deixar de rir, lembrando-lhe que deveria perder o hábito de fumar. Já tentou, mas revelou-se mais complicado do que o que imaginara e acabou por sucumbir à tentação. Tinha fé que toda a natação que fazia a ajudasse a manter os pulmões operacionais, sendo por isso que também não se esforçara por aí além quando tentou largar o vício.

Quando chegaram ao seu destino, Leonor abriu-lhes a porta, acompanhada por Princess, sempre afogueada e a deixar um rasto de baba por onde quer que fosse, que não podia esperar mais pela companhia de Sara. Cumprimentando todos educadamente, embora não tivesse dedicado particular atenção a Afonso, muito para pena deste, Leonor disse a Sara, com um sorriso, “Quando te foste embora, da outra vez, ela fartou-se de chorar, gostou mesmo de ti”

“Olá Leonor”, disse Afonso, passando-lhe a prenda embrulhada para as mãos, a tremer um pouco. Atrás viu Susana levar dois dedos à têmpora, como se tivesse levado um tiro, quando o viu interagir com Leonor. Sabia qual a opinião da mãe em relação ao melhor modo de abordar raparigas e abanar como gelatina fora do prazo não constituía o seu modus operandi. Preferia ter encarado a situação com mais eloquência, mas a sua personalidade tímida estava decidida a impedi-lo de fazer uma figura impecável, por isso não censurava a mãe. Perante o olhar admirado de Leonor, acrescentou, com a insegurança bem palpável na sua voz, “Vi outro dia e achei que se calhar irias gostar, é só uma lembrança, nada de especial”

“Não era preciso, obrigada por te teres lembrado de mim”, agradeceu a rapariga, dando-lhe um beijo na bochecha. Afonso, orgulhoso, esperou que Susana tivesse visto o seu feito, mas ela estava distraída a falar com Guida. Aproveitando a proximidade que criara entre ambos, Leonor sussurrou-lhe ao ouvido, “Também tenho qualquer coisa para ti, vens comigo lá acima?”

Acenando em sinal afirmativo com a cabeça, o rapaz seguiu Leonor, bastante retraído, visto estar em terreno desconhecido e na iminência de entrar no quarto dela. Aproveitando a oportunidade que tinha para apreciar os atributos da rapariga enquanto esta subia as escadas, deu consigo a imaginar cenários que envolviam o que seria, nas suas mais inalcançáveis fantasias, a prenda ideal. De tão absorto que acabou por ficar, apenas despertou quando Leonor lhe acenou em frente da cara. Só lhe restava implorar a qualquer entidade metafísica que ela não o tivesse apanhado em flagrante delito. Vendo-a entrar no quarto, teve de resistir a espreitar, porque lhe pareceu uma violação da privacidade da rapariga, por muito que estivesse curioso. Para que ele não ficasse especado à sua espera, Leonor disse, “Podes entrar, se quiseres”

Pouco à vontade, Afonso entrou no quarto, num andar que o fazia parecer um pato. Não sabia o que esperava, talvez uma cama de dimensões exageradas e um quarto todo decorado a cor-de-rosa e purpurinas e de certeza que as boas vindas não lhe seriam dadas por um tapete de roupa suja como era o caso do seu quarto. Ao invés, a decoração era tão minimalista quanto possível e em tons de bege, o que o admirou porque esperava algo mais vistoso vindo da rapariga. Apoiando o peso ora num pé ora no outro enquanto Leonor tirava qualquer coisa de dentro de uma gaveta, pensou no que poderia ser a prenda. Ficava felicíssimo por ela se ter lembrado dele e aceitaria qualquer coisa, mas estava curioso. Leonor retirou um pequeno presente embrulhado em papel amarfanhado da gaveta e passou-lho para a mão, dizendo, “Desculpa, tive que ser eu a fazer o embrulho e não correu lá muito bem”

Pegando na prenda, o rapaz observou o papel preso com quantidades exageradas de fita-cola. A imperfeição do embrulho era, tal como nos momentos em que a rapariga se mostrava mais à vontade, adorável, a seu ver. Pelo que sentia além da fita a prender-se aos dedos, era algo fino e duro, provavelmente uma pulseira, o que até viria a calhar, quando se levava o seu presente em consideração. Entusiasmado como no dia em que recebeu no Natal um skate novo, agradeceu, com um sorriso de tal modo enorme que lhe fazia doer a cara, “Obrigado pela prenda, fiquei mesmo contente por te teres lembrado de mim”

“De nada”, disse a rapariga, que ainda tinha a prenda que ele lhe tinha dado consigo, “Achas que iria parecer mal se a abrisse aqui e não esperasse até amanhã?”

“Eu vejo a minha se tu vires a tua”, sugeriu Afonso, entusiasmado. Depois de muito ter passado os dedos pelo embrulho estava convicto de que se tratava de uma pulseira, mas a prenda em si era irrelevante, o que o deixava capaz de começar aos saltos era mesmo o facto de Leonor se ter dado ao trabalho de lhe comprar qualquer coisa. Mal a rapariga aceitou a sugestão, rasgou o papel tentando danificar o menos possível, mas estava complicado devido a toda a fita-cola. Quando conseguiu retirar a prenda, viu que não se tinha enganado, tratava-se mesmo de uma pulseira. De metal, com alguns ornamentos, era discreta e ele, com a pressa de a pôr, conseguiu fazer a depilação ao pulso. Aguentando-se para não dizer mil e uma profanidades, agradeceu, “Obrigado, adorei!”

Como a tarefa de embrulhar a prenda não foi realizada pelo rapaz, Leonor não teve que arrancar bocados de fita-cola tosca. Abrindo o papel, retirou um colar metálico muito fino que tinha um pendente de cor âmbar. Levantando o cabelo, pediu, “Pões-mo, se faz favor?”

Passando o fio em redor do pescoço da rapariga, teve de se esforçar por não lhe arrancar cabelo, de tão ansioso que ficou. Claro que a visão do pescoço de Leonor era bastante tentadora e ele, se pudesse agir conforme era a sua vontade, tê-lo ia mordiscado, mas isso só teria lugar nos seus sonhos. Se ela não perdera tempo em usar o colar isso indicava que tinha gostado do presente, pelo menos era isso que ele esperava. Quando ela o encarou, ele perguntou, “Gostas?”

“É perfeito”, disse Leonor, encantada, ainda a observar o pendente. Era simples e podia usar em qualquer ocasião mas, mais do que um presente esteticamente agradável, tratava-se de um oferecido por Afonso, o que o diferenciava de qualquer outro colar. Já não lhe causava comichão admitir que gostava do rapaz e sabia perfeitamente, tal como sabia que a água evapora a cem graus, que o sentimento era recíproco. O que é que a impedia de dar um passo em frente, já que o rapaz estaria, decerto, de pé atrás por causa da rejeição que sofrera havia uns meses atrás e que, por isso, não faria nada? Ela teria de ter uma conversa muito franca com ele na qual colocaria todas as cartas na mesa e, consequentemente, ele fugiria tão depressa quanto os seus pés lhe permitissem. Mas não queria colocar a questão ainda, preferia desfrutar daqueles momentos enquanto podia.

“Achei que dava com os teus olhos”, comentou Afonso, corando. Por muito lamechas e sobre usada que tivesse sido aquela frase, era verdade. Das poucas memórias que tinha da rapariga antes de ter ido para os Estados Unidos, por muito vagas que fossem essas mesmas memórias, a ideia dos olhos invulgares dela era a mais nítida e, desde que ela voltara, dava consigo extremamente intrigado por eles. A sua cor rara, bem como o seu formato, conferia-lhe um ar felino que para Afonso era extremamente atraente.

“Tiraste a ideia de alguma novela, foi?”, brincou Leonor, embora se sentisse muito tocada, mesmo que jamais o fosse admitir em voz alta. Aliás, de que é que lhe serviria fazê-lo quando picar o rapaz era uma alternativa muito mais tentadora?

“Não, não!”, respondeu o rapaz, assustado com a possibilidade de a sua confissão ter parecido excessivamente melosa e que não tivesse caído bem à rapariga. A prenda foi, ao que parecia, um sucesso, mas ele já estava a estragar tudo, como o fazia sempre que falava mais do que o necessário. Angustiado, continuou, com o objectivo de reparar os danos, “Só queria dizer que acho que tens uns olhos lindos, só isso”

“Estava só a meter-me contigo”, garantiu-lhe Leonor, colocando-lhe um dedo sobre os lábios. Retirou o dedo a tempo quando Afonso a tentou morder na brincadeira, e disse, “Parvo!”

“Mas tu gostas”, respondeu o rapaz, repetindo uma das tiradas menos originais possíveis, mas que se adequava à situação e pelo menos sempre tinha a vantagem de o fazer provocar a rapariga. Se o quisesse fazer, era a sua prerrogativa, portanto fá-lo-ia.

Com grande pena de ambos, a conversa teve que ficar por ali, pois tinham chegado mais visitas e Leonor não queria parecer antipática, por muito que quisesse aproveitar o facto de estarem sozinhos. Sabia, inclusive, que, mais cedo ou mais tarde, acabariam por ter uma conversa acerca do que se passava entre ambos, mas estava a gostar do desenrolar dos acontecimentos e não queria pôr um fim ao que tinham. Assim que desceram as escadas foram para a sala, onde estavam todos, incluindo as visitas que tinham acabado de chegar, Rodrigo, Tiago e André, o filho adoptivo dos dois. Afonso já não via André há algum tempo, presumia que ele estivesse ocupado com a faculdade, mas sentia algumas saudades. Em tempos costumavam brincar os dois e Afonso lembrava-se de quando jogavam basquetebol e ele não conseguia tirar a bola a André por este ser muito mais alto, o que o frustrava imensamente.

Desencostando-se da parede mal os viu, André cumprimentou-os, sempre no tom bem-disposto que Afonso lhe costumava associar, “Boas”

“Então tudo bem? Nunca mais disseste nada”, respondeu Afonso, aborrecido, não só porque o amigo não havia dado sinal de vida até ao momento, mas também porque estava a notar que já havia parado de crescer significativamente e estava longe de o apanhar em altura.

“Ao contrário de ti eu tenho que fazer pela vida”, respondeu André, erguendo uma sobrancelha, afinal seria sempre o sarcástico que Afonso conhecia desde que se lembrava, “E não, não ando a dar o cu”

“Presumi que a faculdade te ocupasse muito tempo”, disse Afonso que, por muito que se expusesse aos modos de André, jamais conseguiria criar imunidade. Ao longe, viu Leonor a falar com Rodrigo, o seu padrinho cuja libido faria inveja a um actor porno que ingerira viagra para gado, ambos animados, e perguntou-se sobre o que estariam a falar, antes de ter concluído que preferia não saber. Voltando a sua atenção para André, perguntou, “Está-te a correr bem o curso?”

“Ganda mel mesmo”, respondeu André. Estava orgulhoso com a sua prestação e não era caso para menos, afinal o curso corria-lhe de vento em poupa e desafiava-o o suficiente para que se sentisse realizado. Notando que Afonso olhava com muita frequência para a “jeitosa enjoadinha”, inquiriu, “Passa-se alguma coisa entre ti e aquela cachopa?”

“Não, é só uma amiga”, disse Afonso, cujo tom com que falara denunciava o quanto gostava que não se ficassem por ali. Em tom cúmplice, acrescentou, “É linda, não é?”

“É…quer dizer, acho que sim mas falta ali qualquer coisa”, respondeu André, torcendo o nariz. Não podia concluir a partir da sua interacção de um minuto com Leonor, mas parecia-lhe desinteressante, não no sentido de ser feia, pelo contrário, mas não era o seu género. Como viu que Afonso já não o estava a ouvir, acabou por não elaborar, optando por lhe colocar a mão em frente dos olhos, impedindo-o de tirar as medidas à rapariga, para se meter com ele. A brincadeira valeu-lhe um caldo na nuca, que foi amortecido, de qualquer forma, pela afro.

No canto oposto da sala, Leonor foi falar a Rodrigo, decidindo não roubar a Afonso tempo precioso que podia ser utilizado para colocar a escrita em dia com o amigo. Sendo que o tema da conversa era o novo filme que tinha acabado de estrear, foi apanhada desprevenida quando Rodrigo, no que foi um desabafo comovente, apontou para Afonso e disse, “Epa, se aquilo não é o melhor cu do mundo, não sei qual é”

Susana, que estava a beber o chá que Guida lhe tinha servido, ao ouvir a conversa, engasgou-se. Quando recuperou do choque, Leonor disse, “Concordo”

Sara, enquanto afagava a cabeça de Princess, não conseguiu conter os guinchos. Achava a cadela tão simpática que quase esqueceu o motivo que a levara ali. Quando um trovão ecoou pela casa e a bichinha se assustou e foi refugiar a um canto, é que Sara se lembrou do que viera fazer. Deixando Princess por um instante, foi ver se encontrava Tomás, que estaria na sala a jogar, se bem o conhecia. Tal como previsto, ali estava ele, a jogar com uma rapariga que ela não conhecia mas que era mais velha, talvez uma prima ou uma amiga de Leonor.

“Ai miúdo, ainda tens muito a aprender”, disse Adriana, fazendo-lhe uma festinha na cabeça. Ela tinha, a juntar ao seu talento natural, anos de prática com jogos, portanto, não era de admirar que, sem se esforçar, tivesse ganho ao rapaz. Ela só ali fora trocar presentes com Leonor, mas nunca resistiria a um desafio e Tomás tinha-se na conta de melhor jogador do que na verdade era e ela teve de lhe dar uma lição. Mas admitia que até gostava do rapaz, podia ter um olhar que, numa primeira impressão, a arrepiara, mas era educado e partilhava os seus gostos no que dizia respeito a jogos de vídeo, por isso até que se davam bem.

Gostava, aliás, daquela família no seu todo. Podia ser mais exótica do que aquilo a que estava habituada, por motivos óbvios, mas, depois de o seu pai ir lavar o carro para o jardim da frente em roupa interior enquanto cantava uma música medonha, ela não tinha moral para determinar o que era convencional ou não. Acolheram-na bem desde início e sempre tinha sido bem-vinda, por isso uma diferença daquelas não lhe fazia impressão. Guida conseguia intimidá-la, algo a que não estava habituada, pois, ao longo da vida, aprendera a lidar com as situações em que se sentia vulnerável, mas depois não era como parecia, muito à semelhança de Tomás. Marta já era mais descontraída e impedira-a de sair dali enquanto a chuva não parasse.

O ânimo de Tomás, que se deixara ir abaixo com a sua má prestação no jogo, voltou acima quando viu Sara. Largando o comando, correu para a rapariga, desatando numa tirada rápida e quase incompreensível, ora em inglês, ora em português, sobre o jogo da sua equipa, que acabara por ganhar no outro dia. Nem soube como se entusiasmou tanto, mas só tinha vontade de falar, falar e falar. Sara, que não estava a compreender praticamente nada, ou não fosse o facto de todos os seus conhecimentos sobre basquetebol terem sido adquiridos nas aulas de educação física, onde valia tudo menos cortar gargantas, achou por bem interrompê-lo, “Fico muito feliz por a tua equipa ter ganho, mas o que eu precisava mesmo de saber é se sempre podes ir à festa em casa da Rafaela”

“Ainda não perguntei”, admitiu o rapaz, cujo ânimo se esmoreceu, passando a mão pela nuca. Sentia-se lisonjeado por ter sido convidado, mas não acreditava que Guida o deixasse ir. Talvez se perguntasse a Marta e Leonor o ajudasse, mas ainda assim não lhe parecia que estivesse dentro das possibilidades. Não querendo aumentar muito a esperança de Sara, esperança essa que o alegrava muito, visto gostar de saber que a sua companhia era desejada, continuou, “Acho que não me vão deixar ir”

“Não sabes se não perguntares”, teimou a rapariga, puxando-o pela mão. Se ele ia continuar naquele impasse, ela iria tomar medidas. Arrastando Tomás, encontrou Guida, para pânico do rapaz e, assim que conseguiu a atenção dela, pediu, sem qualquer cerimónia, “Desculpe, na passagem de ano uma amiga minha vai dar uma festa em casa dela com mais uns amigos e eu gostava de saber se o Tomás pode ir”

Susana, que assistia à conversa, teve de apelar a todo o seu auto-controlo para não impedir Sara de ir. Concordara com o plano da festa porque lhe pareceu inofensivo e engraçado o que, juntando ao facto de Sara nunca ter dado problemas, não lhe dava motivos para se opor. Porém, se Tomás, que já mostrara que não era uma pessoa estável, também lá estaria, estava tentada a exercer o seu poder de veto. Claro que Guida não iria considerar deixar o filho ir, só se quisesse que acontecesse uma tragédia, por isso manteve-se calada e limitou-se a ver o que iria acontecer. Entretanto Leonor, que ainda se encontrava a falar com Rodrigo, aproximou-se para assistir ao que se estava a passar.

“Não”, pronunciou-se Guida, voltando as costas a Sara, mostrando que não estava disposta a entrar em negociações. Já tinha demasiados cabelos brancos ganhos graças ao filho, a ideia de ele ir para ambiente não supervisionado era o suficiente para a fazer envelhecer cinco anos. Admitia, ainda assim, que ele, nos últimos tempos, até que se tinha portado bem.

“Oh mãe, vá lá”, intercedeu Leonor, como se lhe conseguisse ler a mente, “Ele tem-se portado bem, não achas que ele merece um voto de confiança? Só desta vez?”

“E quando ele fizer asneira como é de esperar quem é que resolve?”, replicou Guida. Não acreditava que, se Tomás sempre tivera aquela maneira de ser, as coisas fossem mudar só porque nos últimos meses se comportou como um miúdo médio. Já se perguntara onde é que tinha errado e, se tivesse que responder a essa pergunta, não saberia por onde começar. Nunca havia sido uma mãe ideal, mas também nunca quisera ser mãe, apenas fizera a vontade a Marta. Era difícil não se apegar a Leonor, afinal ela era o que de mais próximo podia haver a uma filha perfeita. Já Tomás sempre exigiu mais atenção, atenção essa que ela, desde o primeiro momento, não estivera disposta a dar, pois, à conta dele, acabara por ter de abrandar a sua carreira profissional, para a qual tinha trabalhado toda a vida. Já recuperara, como se tal não fosse acontecer, mas acabou por perder muito tempo de interacção com o filho e a maneira mais fácil de lidar com ele era mesmo dando-lhe rédea curta, como ele viera a provar que adorava medir forças. E ela não tolerava que alguém, filho ou não, se atrevesse, por um momento que fosse, a desafiá-la.

“Só desta vez”, disse Marta, decidindo arriscar, “Se não se portar bem é a primeira e última vez, não te parece justo?”

“Parece bem”, insistiu Leonor que apostaria um dedo em como o irmão iria estar à altura de um voto de confiança, “Ele não tirou uma única negativa neste período e até disseste que na reunião nenhum professor se queixou dele”

Sem ninguém que a socorresse, Guida, muito contrariada, lá concordou. Como é que elas se atreviam a deixá-la naquela posição? Que humilhação. Pelo menos estava convencida de que Tomás não iria resistir e acabaria por levantar ondas e então aí ela iria ter a maior das satisfações em esfregar-lhes isso na cara. Ainda assim, ver Sara a convidar Tomás para alguma coisa admirou-a, já que nunca pensou ver o dia em que semelhante feito fosse acontecer. Mais depressa acreditava que o filho tivesse exercido alguma forma de controlo mental sobre a rapariga do que uma redenção inesperada e fantástica. Encolhendo os ombros, achou por bem começar a pensar em como resolver qualquer alhada em que Tomás se fosse meter imediatamente, afinal não havia nada melhor do que um bom plano de contenção de danos.

Sara deitou os braços ao pescoço de Tomás, entusiasmada, “Vês? Afinal podes vir!”

Tomás, de tão atordoado que estava, primeiro porque Guida o deixava ir, depois porque era o segundo abraço que conseguia de Sara no espaço de uma semana, ficou sem reacção. Atrás de Sara, Guida lançou-lhe um olhar que faria qualquer um urinar de medo nas próprias calças, mas Tomás, assim que conseguiu recuperar o funcionamento dos músculos, retribuiu o abraço a Sara e dirigiu à mãe a expressão mais arrogante que conseguiu. Ver Guida a ranger os dentes de tão enervada que estava assegurava-lhe que já havia cumprido a sua missão naquele dia. Mas não queria desperdiçar o momento com Sara a olhar para Guida, por isso, dirigiu-lhe mais um olhar convencido e pensou no que podia fazer para agradecer à rapariga.

Quase não conseguia acreditar em tudo o que vinha a mudar para melhor desde que a conhecera. De renegado com tendência para sabotar tudo o que fazia a alguém aceite. E devia tudo isso a Sara. De repente, lembrou-se de algo que podia dar à rapariga em tom de agradecimento. Não seria muito valioso, mais que não fosse porque Guida lhe dava pouco mais do que trocos para almoçar, mas podia ser que servisse para lhe mostrar o quanto lhe estava agradecido sem que tivesse que o verbalizar. Dando-lhe um beijo na testa, disse, “Espera um pouco, já volto”

Indo buscar o casaco, saiu. Sara, que se viu sozinha, foi ter com Afonso, que ainda estava a conversar com André, que ainda não tinha visto. Correndo a abraçá-lo, colocou-lhe os braços à volta da cintura, feliz por o ver, “André!”

“Eh chavala”, retribuiu ele. Num movimento rápido, atirou-a por cima do ombro e deitou-a no sofá, antes de lhe fazer um ataque de cócegas tão intenso que ela mal conseguia respirar de tanto rir.

Leonor, aproveitando o facto de Afonso estar livre, apalpou-lhe uma nádega, o que o fez saltar tão alto que ela se admirou por ele não ter dado com a cabeça no tecto. Naquele momento sim, viu-o corado como nunca antes tivera o prazer de testemunhar. Com a maior das naturalidades, agora que tinha comprovado o que queria, disse a Rodrigo, perdido de riso, “Sim, confirma-se”

André, levantando a cabeça, perguntou, “O que é que eu perdi?”

Adriana, no outro sofá, respondeu, com uma expressão tão estóica que poderia estar a descrever o boletim meteorológico, “Aparentemente o pacote do Afonso é bom, mas não fiques com inveja, o teu de certeza que é melhor, basta seres preto”

Afonso nunca pensou viver o suficiente para ver tal coisa, mas André, o sarcástico temperamental e gozão, ficou sem palavras. Após o que pareceu uma eternidade na qual o ambiente era de cortar à faca, André, sorrindo de orelha a orelha, levantou-se e disse, em tom provocante, “Sabes que mais é que se diz dos pretos?”

Quando a conversa se voltou para os genitais de André, Leonor achou por bem sair dali. Estava a beber uma chávena de chá quando Afonso a abordou. Ele já estava a pensar quando seria a melhor altura para fazer o convite, mas a oportunidade nunca se apresentava e, que melhor momento que aquele? Ainda corado, fosse devido ao facto de Leonor lhe ter apalpado os glúteos, fosse porque a troca de provocações entre Adriana e André estava a ficar cada vez mais explícita e ofensiva, o perturbava, disse, “Tens planos para a noite de Ano Novo?”

“Não, vais fazer algum convite?”, respondeu a rapariga, entre um gole e outro no seu chá de camomila.

“Eu ia a uma festa que vai haver na marina e estava a pensar se não gostarias de vir também”, sugeriu Afonso, ciente de que o seu discurso rivalizava o de um miúdo de cinco anos com Síndrome de Down. Contava que fosse muita gente conhecida mas só com uma grande quantidade de azar é que Beatriz lá estaria.

“Pode ser”, aceitou Leonor. Lembrando-se que Adriana estava sem planos, nunca se perdoaria se a deixasse em casa. Decidindo que iria interromper a conversa entre a amiga e André, convidou, “Eu e o Afonso vamos a uma festa que vai haver na marina no Ano Novo, queres vir?”

“Hm…quem mais vai?”, perguntou Adriana, que tinha vontade de tudo menos de segurar uma vela, “O monte de mer….quer dizer, o Rubinho, vai?”

“Vai sim”, disse Afonso, após uma pausa na qual considerou se devia mentir ou não, mas optou por confessar a verdade. O mais certo era que Rúben estivesse ocupado a meter a cara no peito da nova amiga, mas encontraria tempo para se meter com Adriana. Não queria que assim fosse, visto gostar bastante de Adriana e não querer picardias entre os dois, mas Rúben era incapaz de guardar os comentários para si.

“Mas o teu chocolate preferido também vai”, apressou-se André a informar. Afonso estranhou o súbito interesse dele em ir, ele que lhe dissera que não queria ver gente conhecida nem por nada. Silenciando-o com o olhar, André ergueu as duas sobrancelhas várias vezes para Adriana, que concordou em ir.

Nesse momento, Tomás, encharcado, apareceu à porta e fez sinal para que Sara fosse ter com ele, pois não queria que os presentes se metessem com ele. Vendo-o com o cabelo colado à testa e mais molhado que um pinto, Sara perguntou, preocupada, “Onde é que estiveste? Estás todo molhado”

Passando-lhe um pequeno embrulho para a mão, Tomás disse, “It’s for you”

“É para mim?”, questionou a rapariga, estupefacta perante o facto de o rapaz a estar a presentear. Quando ele lhe confirmou que era, disse, “Oh, não era preciso”

Abrindo o embrulho, Sara retirou um gancho de cabelo, adornado com uma borboleta. Tomás esperou que tivesse gostado, visto que, dado o seu orçamento, não tinha muito por onde escolher e os olhares que a senhora da loja lhe dirigiu quando o viu a escolher acessórios femininos assombrá-lo-ia até ao fim dos seus dias. A rapariga, abraçando-o pela segunda vez naquele dia, disse, “Obrigada, a sério, é tão giro”

“Ainda bem que gostas”, respondeu o rapaz, considerando, naquele momento, que havia valido a pena que a empregada pensasse que ele era travesti à noite. E a rapariga cheirava tão bem…

Retirando a cara do pescoço de Tomás, Sara disse, com um ar desanimado, “Mas não me devias ter dado, eu não tenho nada para ti”

“Não é preciso”, assegurou-a, mantendo-a ainda abraçada pela cintura, “Era só para te agradecer, sabes, por tudo o que tens feito por mim, it really means a lot to me”

Sentindo uma sensação estranha que não conseguia identificar no estômago, Sara perguntou-se sobre qual seria a melhor maneira de proceder, deveria dizer ou fazer alguma coisa? Tomás estava apenas a olhar para ela com um sorriso e bem, como havia ele mudado. Nervosa, rezou para que os seus batimentos cardíacos não fossem audíveis, pareciam-lhe tão exageradamente fortes. Limpando uma gota que escorria do cabelo molhado do rapaz para a cara, achou por bem dizer, quando achou que a situação, fosse lá como fosse, era demasiado abstracta para si, “Acho que vou ter com o meu irmão”

Quando a rapariga o largou, Tomás não a seguiu. Suspirando, tinha uma sensação agridoce. Por um lado tudo aquilo fora demasiado novo e demasiado intenso para conseguir digerir, por outro queria saber o que é que iria acabar por acontecer, se é que acontecia alguma coisa. Talvez fosse melhor assim, ao menos sabia que não estragara tudo, como tendia a acontecer com tudo o que ele fazia. Subitamente, lembrou-se de que estava alagado e, se antes lhe pareceu que estava calor, agora dava consigo a tremer de frio.

Na sala, enquanto Adriana conversava com Leonor, André, sentindo que devia uma explicação a Afonso, disse, “Sabes aquilo que eu te disse acerca de faltar algo à Leonor para que ela seja interessante?”

Afonso, acenou negativamente com a cabeça, sem saber o que é que o outro pretendia ao certo com aquela conversa.

“É o que a Adriana tem”, confessou André, sorrindo como se tivesse acabado de ganhar o euromilhões. Conseguia conter pelos dedos de uma mão a quantidade de vezes que alguém o desafiara e, quando contava os que conseguiram responder-lhe de igual modo, o número ficava ainda mais pequeno. Nesse momento, Afonso percebeu o porquê de ele querer ir à festa o que, para ele, tanto melhor.

Pouco depois, Afonso teve de se ir embora, pois ainda ia jantar a casa dos avós, pais de Daniela e aproveitaria para dar boleia a Adriana. Quando se despediu de Leonor, aproveitou para lhe retribuir o favor, apalpando-lhe a nádega, o que fez com que ela se risse e lhe desse uma dentada ao de leve no pescoço. Como Guida estava nas proximidades e a rapariga não queria ser sujeita a um interrogatório, decidiu que era melhor ficarem por ali. Já Sara, achou melhor guardar o gancho dentro do bolso, para que o irmão, que ultimamente andava estúpido, não tecesse considerações. Antes de ir embora, colocou-se em bicos de pés e deu um beijo na bochecha de Tomás, que corou de deleite.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Capítulo 10

O Natal era, sem dúvida, a quadra preferida de Afonso, fosse pelo seu ambiente festivo e aconchegante, fosse pelas férias, nem o próprio sabia ao certo porquê, apenas sentia que era uma altura do ano que, a seu ver, só rivalizava com o Verão no que dizia respeito à paz confortável que lhe proporcionava. Certo era que, se tivesse de ser completamente honesto, admitiria que a nota medíocre que a Dona Adelaide lhe dera fora difícil de aceitar mas não havia nada que pudesse fazer, não lhe restando senão conformar-se. Mas não fazia mal, para contrabalançar a situação Leonor e ele tinham-se vindo a aproximar, não tão depressa como ele gostaria, mas foram dando pequenos passos até os almoços e as ocasiões em que iam buscar os irmãos à escola voltaram e ele não podia sentir-se mais grato.

Era surpreendente, até para ele próprio, o quanto sentia a falta dela. Verdade fosse dita, passar por ela na escola e trocar um cumprimento esmorecido, enquanto se lembrava de como as coisas haviam sido, transtornava-o mais do que pensava que fosse fazer, tendo em conta que até não se conheciam assim há tanto tempo. Assim, foi com muita felicidade que viu as coisas voltaram, ainda que lentamente, ao que eram, deixando a rapariga de erguer uma muralha entre ambos e permitindo-lhe aproximar-se. Foi, até com grande sofreguidão que aceitou todo e qualquer pequeno gesto da parte dela que encurtasse a distância entre ambos. Estava consciente de que quem mais esforços empregava nesse sentido era ele, como Rúben fazia questão de lhe recordar, mas ficava tão feliz que isso não o importunava.

E, foi realmente sem qualquer surpresa, que aceitou o convite de Leonor para lhe fazer companhia enquanto fazia as compras de Natal para a família. Não gostava da ideia de passar uma tarde dentro de um centro comercial, de loja em loja, mas se a rapariga tinha tomado a iniciativa de o convidar, por oposição ao que era comum acontecer, já que hábito ser ele a fazer qualquer convite, não ia recusar. Em bom rigor, não fazia sacrifício nenhum em participar em qualquer programa que incluísse Leonor. Tendo um bom prognóstico para aquela tarde, foi com um sorriso enorme que se acabou de despachar para poder sair. O plano era passar por casa de Leonor, onde deixaria Sara que iria estudar com Tomás, e depois seguiam para o centro comercial. No entanto, se ele mal podia esperar por chegar a casa da rapariga, Sara estava a levar o seu tempo a despachar-se. Tendo em conta o quão ansioso estava, ao ver que a irmã ainda não estava pronta, sentiu a sua exasperação vir ao de cima.

Agora que pensava bem, o facto de Sara estar a planear estudar estava-lhe a parecer estranho. A irmã nunca antes se dera ao trabalho de abrir um livro e agora resolvera tirar tempo precioso de férias para estudar? Quanto a ele só lhe restava sentir-se feliz por Sara, pois os hábitos ociosos que ela mantivera até ao momento eram, para ele, uma fonte de preocupação, portanto gostava do facto de ela estar a criar uma boa ética de trabalho. No entanto, a demora da irmã começava a enervá-lo, uma vez que a última coisa que queria era fazer Leonor esperar. Pronto para arrastar Sara de casa, entrou no quarto desta, sem anunciar a sua chegada.

A irmã, contudo, não pareceu dar pela sua presença, de tão concentrada que estava enquanto penteava cuidadosamente o cabelo. Afonso, que já antes se questionara quanto aos novos hábitos de estudo de Sara, agora mais tinha com que se interrogar. Ela, embora não fosse desleixada, nunca antes se dera a tanto trabalho antes de sair de casa, salvo quando ia aos anos de algum amigo ou ao cinema. Porém agora parecia-lhe decidida a arranjar-se sem razão aparente. Se havia altura para se sentir desconfiado, era agora. Teria ela inventado um pretexto para sair de casa e depois iria para outro sítio? Estaria com más companhias?! O seu instinto protector de irmão mais velho às vezes tendia a fugir ao seu controlo. Clareando a garganta, o rapaz, depois de respirar fundo várias vezes para acalmar, conseguiu a atenção da irmã, “Estás pronta?”

Impedindo uma madeixa de cabelo de lhe cair sobre a face com um gancho, Sara, satisfeita com o produto do seu esforço, respondeu, absorta, sem se aperceber do tumulto interior do irmão, “Hm hm”

Afonso, depois de ultrapassar o choque inicial, tentou ser racional. Em breve a irmã estaria a completar treze anos, idade essa que ele sabia ser um ponto de transição para muitas raparigas, ainda que não soubesse isso por experiencia própria, apenas ia pelo que observava. Era natural que mudasse e começasse a ter outros interesses, ele compreendia isso, afinal também passara por uma fase análoga. Sempre era uma teoria mais reconfortante do que aquela em que a sua irmãzinha se teria juntado a um gang. E pensar que os tempos em que ela andava pela casa a desenhar nas paredes não lhe pareciam assim tão distantes…Desde que se ficasse por aí e, para bem da sanidade dele, não trouxesse rapazes ao barulho, estava tudo bem.

Sara, ao ver o irmão embasbacado a olhar para si, inquiriu, “Estás bem?”

“Ahm? Sim, estou”, apressou-se Afonso a dizer, afastando os pensamentos de irmão mais velho e, talvez, demasiado protector, da mente. Subitamente, lembrou-se do motivo que o levara ali e, impaciente, apressou a irmã, “Se estás pronta porque é que ainda aqui estamos?! Vamos!”

A irmã nem teve tempo para processar a viagem feita em tempo recorde da sua casa até à de Leonor, uma vez que Afonso parecia ligado à corrente eléctrica. De tão ofegante que estava por ter tentado acompanhar o ritmo do irmão, que, quando chegou ao portão, perguntou-se porque é que se dera ao trabalho de compor o cabelo, se este já estava fora do sítio. Se não soubesse o quão ansioso Afonso estava, teria ficado chateada por ver os frutos do seu trabalho desperdiçados, mas ao ver o irmão tão feliz, não pôde evitar o sorriso que ela própria acabou a evidenciar. Se Afonso apoiava o peso, ora num pé, ora no outro, de tão irrequieto que estava, o seu entusiasmo, mal Tomás abriu a porta, murchou de forma considerável.

Era, também, aparente, que o sentimento era mútuo, porque Tomás torcera o nariz quando o viu. Nem sabia ao certo o que é que o enervava profundamente em Afonso, mas o facto de ele seguir Leonor como um cachorrinho carente com a expressão mais imbecil irritava-o até mais não. Bem que tentava compreender o que é que em Afonso fizera Leonor engraçar com ele, mas sem sucesso. O rapaz parecia-lhe mesmo patético. Se não houvesse uma diferença de idades tão grande entre eles, Afonso serviria bem de saco de pancada literal e figurativamente para ele, mas não tardaria a apanhá-lo em altura. Tinha que reconhecer que, pelo menos, Ryan personificava tudo o que ele, Tomás, gostaria de ser. Afastando a sua atenção para Sara, a bem da sua boa-disposição que ainda era alguma porque Guida estava em negócios, nem ele sabia onde, esboçou um sorriso, que aos poucos, haveria de não afugentar tudo e todos, “Hi”

Sem dúvida que Afonso, se tivesse de enunciar tudo o que lhe desagradava em Tomás, estaria a usar dentadura postiça e andarilho, antes de concluir a lista. Todavia, a súbita mudança de atitude de Tomás quando abordara Sara não passou despercebida a Afonso, cujos pavores mais profundos vieram à superfície. Primeiro, irmã tivera atenção extra na aparência sem ter motivo para tal, agora Tomás comportava-se como alguém quase normal. Horrorizado com a ilação, Afonso, cuja tonalidade passara para um verde de aspecto pouco saudável, muniu-se de todo o seu auto-controlo para não decapitar Tomás ali mesmo e Sara logo a seguir. Não, estava errado com certeza, a sua irmã nunca, jamais, em tempo algum, iria ter o mais ténue resquício de uma paixoneta por…nem conseguia dizer o nome. Sim, tal nunca aconteceria e ele estava a tirar conclusões erróneas, tudo o que precisava era de uma tarde com Leonor para purificar a mente.

Felizmente, Leonor apareceu pouco depois, surtindo nele um efeito apaziguador. Animada, cumprimentou Afonso e Sara, antes de se despedir do irmão. Tanto quanto lhe era possível concluir, ver que Tomás estava, finalmente, a fazer amigos, era maravilhoso, até porque Sara parecia uma boa influência, tanto que o via a aplicar-se na escola pela primeira vez, não tendo, também, um temperamento tão explosivo em casa, parecendo, de um modo geral, mais alegre. Sempre era um peso que deixava de sentir, tal como o que a fazia sentir-se constantemente culpada por se ter vindo a afastar de Afonso. Em bom rigor, apesar de as coisas terem voltado à normalidade, o remorso que sentia por ter sido sempre o rapaz a tomar a iniciativa, aparentando sempre uma paciência de um monge budista, foi o que a motivou a convidá-lo para irem às compras. Certo, também tinha que as fazer e assim juntava-se o útil ao agradável.

O plano até lhe pareceu arriscado, uma vez que temia que uma tarde passada dentro de um centro comercial o fosse aborrecer, mas o entusiasmo com que ele aceitara a proposta, assegurou-lhe que estava tudo bem. E, mesmo naquele momento, ele parecia-lhe tão sorridente que ela estava certa de que não o iria torturar demasiado. Foi com essa dedução reconfortante que se despediu do irmão e de Sara, antes de dar um toque com a anca em Afonso, cujo rubor rivalizava com as decorações de Natal, para que se fizessem ao caminho, “Então até logo, portem-se bem”

Era em momentos como aquele que Leonor se lembrava porque é que achava o rapaz um ser totalmente adorável e, em consequência disso, acabava a perguntar-se como é que fora capaz de deixar de se dar com ele. Estava ciente de que a maioria dos indivíduos do seu género não partilharia a sua opinião, mas a timidez de Afonso conseguia sempre comovê-la. O facto de ele ser comedido e de saber respeitar o seu espaço pessoal contribuía para que não se sentisse ameaçada nem na iminência de vir a ser assediada. Era, para ela, uma lufada de ar fresco, sobretudo quando se lembrava dos rapazes que fora conhecendo ao longo da vida que haviam sido tudo menos respeitadores, ainda que lhe tivesse demorado a aperceber-se disso e, a seu ver, uma mudança de vez em quando sabia-lhe muito bem.

O rapaz, por muito que observasse Leonor, encontrava sempre um detalhe ou outro que acabava por prender o seu interesse. A seu ver ela era um paradigma e de muito bom grado ele passaria dias a contemplá-la, coisa que não faria porque isso repeli-la-ia num ápice. Porém, o momento que passara distraído fora o suficiente para o fazer tropeçar numa pedra da calçada. Conseguindo recuperar o equilíbrio antes de cair, recompôs-se, apanhando a rapariga a disfarçar o riso. Estava na presença de Leonor havia cinco minutos e, por aquele andar, se não tivesse cuidado, não sobrevivia até ao fim da tarde. Desanimado porque estava a afigurar-se inevitável fazer figura tosca diante da rapariga, não evitou demonstrá-lo com uma expressão que muito o fazia parecer um cachorrinho abandonado.

A rapariga, fosse por se encontrar bem-disposta, fosse por achar aquela expressão extremamente adorável, afagou-lhe o braço. O gesto não fora nada de especial, apenas um contacto breve que não se prolongara por mais de três segundos, mas Afonso corou de tal forma que condizia com o nariz da rena do Pai Natal. A proximidade cessou antes que o rapaz pudesse ter um enfarte, mas não sem que sentisse uma certa pena. Podia já não atropelar as palavras quando estava com ela, mas contacto físico era outra coisa. Por sua vez, Leonor, a quem as reacções de Afonso nunca deixariam de divertir, ainda reconsiderou, de modo a prolongar a sua diversão, provocar um pouco o rapaz, mas achou melhor estar quieta e sossegada, pois temia que, dado a apenas recente aproximação de ambos, fosse abuso da sua parte.

“Então, já sabes que prendas é que vais dar no Natal?”, disparou Afonso, não desejando um instante que fosse de silêncio constrangedor entre ambos, “Eu estava a pensar em dar um cachecol à Sara porque ela perdeu o dela, uma camisola daquelas felpudas à…”

“Calma, abranda um pouco porque eu não estou a perceber nada do que estás a dizer”, pediu a rapariga, ainda a tentar perceber o que é que o rapaz dissera a toda a velocidade. Quando ele se recompôs e falou a um ritmo perceptível, continuou, “Não é má ideia, mas a maioria dessas camisolas tem um corte tão mau que se calhar é melhor escolheres outra coisa. Eu já tenho uma ideia do que quero, menos para o Tomás”

“Pode ser que depois te lembres de alguma coisa que ele goste”, disse o rapaz, mordendo a língua para não sugerir que oferecesse um açaime e uma trela a Tomás. Lembrando-se da sua existência, sentiu uma onda de inquietação, afinal o comportamento de Sara e de Tomás não lhe inspirou confiança e mandou uma mensagem à irmã, mensagem essa que esperava que ela não fosse ignorar e fosse ter em conta.

Leonor, ao colocar um pé dentro do centro comercial, sorriu de orelha a orelha. Uma das suas actividades preferidas sempre fora e, sem dúvida que sempre seria, era fazer compras. Não gostava de preencher o requisito do estereótipo de rapariga supérflua e oca, aliás combatia-o incessantemente, mas não resistia a uma tarde passada num centro comercial. Adorava percorrer as lojas da sua predilecção, experimentar acessórios e roupa e tinha a particularidade de não ter de se preocupar com o dinheiro. Bem podia culpar Guida por isso, ou não fosse ela totalmente fanática por compras. Também adorava aconselhar quem quer que fosse com ela e, se no outro dia Adriana a acompanhara, se desejava a toda a força comprar jardineiras, ao menos que comprasse umas que lhe assentassem bem. E no final, ficara satisfeita com o resultado, por isso Leonor considerou que fora bem sucedida.

Em época de Natal o centro comercial ficava mais lotado do que durante o resto do ano, havendo crianças a correr em todas as direcções e adultos carregados com embrulhos pesados e carteiras leves. Aquele centro devia ter um quinto do tamanho daquele que Leonor costumava frequentar quando ainda vivia nos Estados Unidos mas cumpria bem a sua função. No centro haviam montado um presépio e, não muito longe, estava uma alma caridosa vestida de Pai Natal a tirar fotografias com as crianças. Ainda tinha uma vaga recordação da ocasião em que Marta insistira para que tirasse uma fotografia com o Pai Natal e ela acabara por lhe vomitar em cima, de tão aterrorizada que ficara. Rindo um pouco para si, encolheu os ombros quando o rapaz lhe perguntou o que se passava e sugeriu passarem por uma loja que já tinha debaixo de olho, para procurar uma prenda para Guida.

Para que não se separassem no meio daquela multidão, Leonor colocou o braço à volta do de Afonso, que se limitou a ser arrastado, com uma expressão deliciada. Se fosse honesto, teria que admitir que, se havia loja da qual fugisse mais depressa do que o humanamente possível, seria aquela. Desde as empregadas de aspecto presunçoso e enjoado, à decoração que pretendia ser considerada “sofisticada”, o que quer que isso significasse, tudo o fazia sentir-se pouco à vontade. Pela rapariga, aguentou, dando o seu parecer, sempre que pedido, sobre duas peças de roupa que lhe pareciam iguais. Quando Leonor se decidiu por um casaco que teria feito Susana rir até sufocar, o rapaz expirou de alívio.

“Obrigada por teres paciência para me aturares”, brincou a rapariga, dando-lhe com o cotovelo no braço, “Espero que não te esteja a chatear muito”

“Não, eu até estou a gostar”, disse Afonso, contendo-se para não acrescentar que, se Leonor não soubesse como lhe agradecer, podia ir experimentar roupa interior e pedir-lhe opinião. Esforçando-se para afastar os pensamentos que teriam sido mais característicos de Rúben, lembrou-se de que poderia sugerir à rapariga, como estavam em frente à loja dos bichinhos de estimação, para procurar ali a prenda de Tomás. Redobrando os esforços para banir os pensamentos maldosos, passou a mão pelas costas de Leonor e acrescentou, “Gosto da tua companhia, a sério, é verdade”

“Também gosto da tua companhia”, respondeu a rapariga, conseguindo, dessa forma, assegurar ao rapaz que não o tinha na conta de moralmente duvidoso, o que o deixou feliz.

Com grande pena de Afonso, Leonor não prolongou o momento porque encontrou a tal loja que procurava. Sendo Adriana a fanática que era por jogos de vídeo, a rapariga tinha-lhe, de antemão, pedido umas recomendações acerca de jogos que pudesse oferecer a Tomás, embora a ideia de contribuir para o hábito dele não lhe agradar. Ainda tinha bem presente na memória o aniversário em que dera ao irmão um jogo com dragões na capa porque sabia que ele gostava de dragões, mas tratava-se, na verdade, de um jogo para crianças pequenas e Tomás não gostara. Quando contara o episódio a Adriana, ela desmanchara-se a rir, informando-a de que o “Aventuras dos dragões bebés” não ocorreria nem ao Pai Natal. Para evitar episódios desnecessários, recomendou-lhe alguns da sua lista de eleição. Na loja, ao encontrar uma das sugestões de Adriana, perguntou ao rapaz, “Se te oferecessem isto, gostavas?”

“Não gosto muito de jogos de vídeo, sou mais de actividades ao ar livre”, respondeu Afonso, que só se sentia em paz quando estava a placar alguém. Agora que se lembrava, Sara não lhe respondera à mensagem e, para bem do irmão da rapariga, era bom que ela não estivesse esquartejada. Sombrio, sem censurar o que dizia, acrescentou, “Mas se a cena dele for vegetar num sofá, é ideal”

“Também não gosto mas não posso fazer nada”, comentou Leonor, exasperada. Com a garantia de que aquele jogo iria ligar o irmão cirurgicamente ao sofá, acabou por o comprar, embora contrariada. Já tinha uma prenda para Guida e uma para Tomás, só faltava para Marta. Enquanto passavam pelas várias lojas, lembrou-se, “Então e tu? Não compras nada? Já me estou a sentir mal”

“É que não sei o que é que hei-de comprar, isto é tanta coisa que fico perdido”, confessou o rapaz, coçando a cabeça. Ao que tudo parecia indicar, era o seu dia de sorte, visto que a rapariga parecia ter um doutoramento em compras e, após um meia dúzia de perguntas e meia hora mais tarde, já tinha uns ténis para Sara, uma pulseira para Daniela e uma colectânea de uma série que era do agrado de Susana. No final, agradeceu-lhe, “A sério, tens um jeitinho para a coisa”

“Ainda tu não viste nada”, disse Leonor, fazendo o gesto típico de erguer as sobrancelhas, de modo provocante. Estando a brincar, tinha, no entanto, que admitir que ver o rapaz todo corado era algo de que nunca se fartaria. Ainda faltava, contudo, a prenda para Marta e não podia ficar a mover as sobrancelhas eternamente ou pelo menos até rebentar uma veia a Afonso, por isso, puxando-o pela mão, arrastou-o até mais uma loja.

Afonso, tentando não chocar contra ninguém daquela maré de gente, seguiu-a. Assim que entrou na loja e se deparou com mil e uma cores e um ambiente tão “amaricado”, como diria Susana, torcei o nariz, o seu martírio parecia não ter fim. Só entrava numa loja daquelas porque Leonor a queria ver, caso contrário não se aproximaria nem por nada. Quando uma empregada os abordou, não pôde deixar de reparar nos atributos desta. Pelo menos, enquanto a rapariga se entretinha com os trapos ele sempre podia apreciar a empregada que tão amistosa lhe parecera. Quase que podia jurar que ela lhe tinha acabado de piscar o olho, mas não podia ser porque esse tipo de coisas não lhe acontecia. Mantendo contacto visual com a empregada, teve a resposta à sua pergunta, quando ela repetiu o gesto. Se a rapariga não lhe ligava nenhuma, pelos vistos tinha agradado a outra pessoa.

“Dá-me só um minuto para ir ver aquela blusa ali”, pediu Leonor, cujo olho clínico para compras estava tão apurado que numa questão de segundos avistara uma potencial peça de roupa que assentaria lindamente a Guida. Correndo para lá, apreciou o tecido e rapidamente calculou a relação qualidade preço da blusa. Resolvendo pedir a opinião do rapaz, mais para que ele não morresse de tédio do que por necessidade, virou-se a tempo de o ver, corado mas a adorar a atenção da empregada, que não fazia qualquer cerimónia, a ponto de já lhe estar a brincar com a camisola.

Dizer que o descaramento da empregada chateara Leonor era o mesmo que dizer que aquele centro comercial encontrava-se a ser frequentado por algumas pessoas naquele momento. A começar pela mão atrevida da empregada que não largava o rapaz, a acabar na expressão derretida deste, tudo irava a rapariga, que já deitava fumo. Nem sabia o porquê daquela reacção tão exagerada, mas resolveu agir. Agarrando-se ao braço de Afonso, com uma expressão tão doce que era assustadora, disse, “Ah não querida, acho que ele está bem e não precisa de ajuda para escolher roupa, obrigada na mesma”

“Pronto, fiquem à vontade”, respondeu a empregada, com uma expressão capaz de fazer crianças chorar.
A ver a empregada afastar-se, o rapaz, teve pena. Teria, por algum motivo, encarnado a alma de Rúben, para ter duas raparigas a disputarem a sua atenção? A sua escolhida seria sempre Leonor, mas a atenção parecia-lhe muito bem. E, estando no campo das coisas improváveis, aquilo afigurava-se como ciúme por parte da rapariga ou era impressão sua? Não, que a empregada estivesse interessada ainda conseguia acreditar, mas Leonor com ciúmes já não. Estava mesmo aborrecido por a rapariga lhe ter frustrado o momento com a empregada, sobretudo ao ver as ancas desta quando andava. Chateada, Leonor disse, “Estás-te a babar”

“Ahm?”, inquiriu Afonso, até que deu pela saliva que deixara acumular no canto da boca. Piscando o olho à empregada, que retribuiu, seguiu a rapariga para fora da loja, com um sorriso. Dada a raridade de situações daquele género, a atenção soubera-lhe muito bem.

“Nada!”, disse Leonor, desdenhosa. O descaramento da empregada parecia-lhe um abuso. E o ar do rapaz, todo derretido e a salivar a olhar para ela era a cereja no topo do bolo. Sentando-se numa cadeira, de braços cruzados e expressão amuada, estava consciente de que não estava a lidar como deveria com a situação, mas irritara-se tanto que só a recordação da cara da empregada quando lhe frustrara os planos a acalmava. Agora que estava de cabeça mais fria, podia reflectir sobre o que se tinha passado. Estava tão habituada a ser o foco de toda a atenção de Afonso que era normal sentir ciúmes quando ele, na sua cara, a deixava para segundo plano a favor de uma desconhecida com pouca vergonha. Já admitira previamente que até tinha uma paixoneta, mas nada que justificasse um acesso de raiva daqueles.

Enquanto observava a rapariga a fulminar o ar que tinha em frente da cara, o rapaz, constrangido, já se arrependera de ter sido tão receptivo quanto à empregada. Mesmo assim, Leonor já fizera saber que o beijo que lhe tinha dado não significara nada e que não queria nada com ele que não amizade, por isso ele não fizera nada de errado. Talvez tivesse deixado a rapariga numa posição desconfortável, mas não era caso para ficar tão chateada. Agora não sabia o que dizer ou fazer para remediar a situação. E pensar que a tarde estava a ser tão agradável até que se estragara tudo. Estava ele a censurar-se por algo que escapava ao seu controlo, quando Leonor disse, “Desculpa”

Afonso levantou a cabeça e encarou a rapariga, sem saber o que dizer. Não necessitou de dizer nada, ela continuou, mesmo que não tivesse tirado os olhos do vazio, “Não sei o que é que me deu, mas estava a ser parva”

“Um pouco”, admitiu o rapaz, suspirando. Estava a ponderar os prós e os contras de perguntar a Leonor o porquê daquela atitude, mas não gostaria de a chatear mais do que já estava. Ainda assim, a curiosidade quase que era fisicamente dolorosa e ficar na expectativa era algo que o torturava. Sem se preocupar mais com as consequências, decidiu arriscar, “Para que é que foi aquela cena toda?”

A rapariga podia ter arranjado uma desculpa, fosse ela o facto de se ter irritado com a pouca vergonha da empregada, ou os efeitos de uma certa altura do mês, mas achou que, depois do seu comportamento menos do que apropriado, era melhor ser sincera. Hesitando um pouco, acabou por confessar, “Não gostei de ver a empregada da loja a fazer-se a ti”

“Ela estava só a ser simpática”, respondeu Afonso, tentando minimizar a questão tanto quanto possível. A sua auto-estima definitivamente agradecia ser elevada de vez em quando, mas se o preço a pagar era ficar mal com Leonor, então não lhe parecia uma boa troca.

“Simpática? Viste a babar-se toda?”, comentou a rapariga, revirando os olhos. Talvez estivesse a ficar ilogicamente possessiva, mas a verdade é que não o conseguia evitar.

“E então?”, perguntou o rapaz, encolhendo os ombros. Estaria Leonor a ter uma crise de ciúmes ou estaria ele no paraíso?

“E então?”, repetiu a rapariga, incapaz de formular um discurso digno. Quando lhe ocorreu algo para evitar que a conversa descarrilasse para zonas inseguras, disse, “Ahm…que descaramento e se estivesses com uma namorada? Ela arranjava logo problemas”

“Não estava e por isso não aconteceu nada”, replicou Afonso, contendo-se para não acrescentar que só não estava porque ela não queria. Aproveitando para provocar Leonor, disse, num tom de gozo, “Quer dizer, acontecer, aconteceu, tu estás toda lixada, isso são ciúmes?”

“O quê?!”, balbuciou a rapariga, à medida que uma tonalidade avermelhada lhe percorria as bochechas. Na opinião do rapaz tinha imensa piada a súbita inversão de papéis entre eles, já que costumava sempre a ser ele a ficar embasbacado. Por outro lado, na parte que lhe dizia respeito, Leonor não achava qualquer piada a não deter o controlo completo da situação, mas isso iria mudar mais rapidamente do que Afonso julgava. Aproveitando para brincar com ele e, assim, o fazer recuar e voltar ao seu lugar, a rapariga apontou para o Pai Natal e troçou, “Aquele é que é um trabalho bom para ti”

“Hm?”, murmurou o rapaz, franzindo o sobrolho. O que é que ela pretenderia com aquela mudança de conversa? Se julgava que ele ia deixar passar quando estava a desfrutar tanto, estava enganada como nunca antes se enganara na vida. Não querendo deixar passar a oportunidade para retribuir, disse, “Ai sim? Só se fores tu a sentares-te no meu colo”

“Hm, isso agora”, respondeu Leonor, sugestivamente, aproveitando para se aproximar dele. Por ela tudo bem, dois podiam jogar aquele jogo e ela não estava disposta deixá-lo ganhar. O facto de ele ter engolido em seco, nervoso, foi mais do que suficiente para que a rapariga visse que não teria muito trabalho. Com o objectivo de o deixar incapaz de reagir, murmurou-lhe ao ouvido, “Desces-me a chaminé e dás-me uma prenda, hm?”

“Ho, ho, ho…”, gaguejou Afonso, com ar de quem tinha acabado de ser atingido por um comboio. Se fosse necessário não se incomodaria nada em se vestir de Pai Natal ou de Rena, se fosse preciso, e dar a Leonor uma prenda que nunca mais fosse esquecer.

“Não querias mais nada”, disse a rapariga, vitoriosa ao testemunhar, em primeira mão, a frustração patente na cara do rapaz, dando-lhe um estalo leve, em tom de gozo, na perna.

Afonso, à semelhança daquele glorioso dia em que Leonor o encostara a uma parede, viu todas as suas expectativas tórridas a estilhaçarem-se defronte dos seus olhos. Olhando para a rapariga como um cachorro olharia para o dono que o faz dormir fora de casa, apenas para ela lhe acenar negativamente com a cabeça, acabou por ter as suas suspeitas confirmadas. Talvez noutro dia fosse ter sorte.

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Vendo Afonso seguir Leonor com a expressão mais embevecida, Sara pensou que, se não se tratasse do seu irmão e, portanto, um tanto constrangedor de se imaginar quando o tema era raparigas, teria achado tão doce que poria um elefante em coma diabético. De tão desnorteado que ia, o rapaz acabou por tropeçar numa pedra da calçada, evitando cair por pouco, e Sara, bem como Leonor, aparentemente, não conseguiram esconder o riso. Ainda a rir, Sara encarou Tomás, no momento em que este revirava os olhos. O rapaz não precisou de se manifestar mais para lhe garantir que nutria tanta simpatia por Afonso como Afonso por ele.

Quando reparou em Sara, Tomás apressou-se a rearranjar a sua expressão facial e a propor, “Hm…não queres entrar?”

“Vamos”, aceitou a rapariga, seguindo-o até à sala. Não considerava a sua casa pequena, pelo contrário, era até, na sua opinião, bastante espaçosa, sobretudo quando se lembrava da pequena casa que Susana fazia questão de manter, mas nada que se comparasse àquela, pelo que já conhecia do sítio. Nunca pediria a Tomás que lhe fizesse uma visita guiada pela casa mas era seguro afirmar que aquela família estava mesmo muito bem remunerada. A distância desde a entrada até à sala, toda ela impecavelmente decorada apenas serviu para sustentar a ilação tirada supra. Na sala deparou-se com os livros e cadernos do rapaz já empilhados, o que a fez pensar que ele estava decidido a levantar a nota, o que, por seu turno, a fazia pensar que talvez não fosse um serão desperdiçado quando ela podia estar a ver televisão ou a brincar com Mocas.

Como não puderam estudar juntos as vezes necessárias para colmatar as fragilidades que ambos sentiam, tiveram que recorrer a trocas de informações clandestinas durante os testes, mais que não fosse para se aguentarem naquele trimestre sem terem uma negativa redonda na pauta. Como aquele sistema apenas dera frutos porque tiveram sorte, acharam por bem começarem a juntar-se com mais frequência e, ei-los ali na sala de Tomás para fazerem isso mesmo. Porém, havia que admitir que as peripécias passadas para enganar os professores durante os testes e as poucas ocasiões em que se juntaram para fazer os trabalhos de casa acabaram por torná-los mais próximos, embora continuasse a haver o ocasional silêncio entre ambos, quando nenhum sabia ao certo o que dizer.

Vendo Sara olhar em todas as direcções, Tomás, sem esquecer as regras de boa educação, indicou-lhe uma cadeira. A rapariga agradeceu e, ao puxar a cadeira, um volume enorme, que antes estava escondido debaixo da mesa, deu sinal de vida, frenético e assustado. Quando identificou, por fim, de que se tratava, Sara fitou o que era, sem margem para incertezas, o bulldog mais obeso que alguma vez vira. A julgar pela envergadura e pela dificuldade em mexer-se, era seguro afirmar que o cão devia pesar mais do que ela. Ainda assim, com os seus olhos brilhantes, pêlo lustroso e figura atarracada, podia ser considerado fofinho. Quebrando o momento partilhado pela rapariga e pelo animal de estimação, o rapaz esclareceu, com um encolher de ombros desinteressado, “É a Princess, a cadela da minha irmã e a mais feia que alguma vez viste, não é?”

“Não digas isso, ela é tão querida”, replicou Sara, ainda encantada com os olhos grandes e ternurentos do animal. Adorava animais, fossem eles répteis, pássaros ou mamíferos, mas cães teriam sempre um espaço reservado no seu coração. Claro que Mocas era insubstituível, isso era certo, mas nunca se coibiria de mimar outros cães, por isso, quando não aguentou mais, pediu, deixando transparecer o seu entusiasmo, “Posso fazer-lhe uma festinha?”

“Go ahead”, concordou Tomás, permitindo-se a exteriorizar um queixume, algo que lhe era pouco característico, já que costumava guardar para si o que quer que o atormentasse, “Eu queria o dobermann, que era muito mais badass que essa, mas como fazem sempre as vontades à Leonor e foi love at first sight entre ela e essa cadela…”

Não era que ressentisse a irmã, pelo contrário, não imaginava a sua vida sem ela e adorava-a a sério. No entanto, um miminho de vez em quando também lhe sabia bem e, se de Marta não tinha razões de queixa, Guida recebia-o sempre com sete pedras na mão. Em boa verdade, nem sabia porque é que se importava, já devia estar habituado, Se desconhecia o motivo, por outro lado, sabia a priori que se a situação perdurava havia 12 anos, então não iria mudar naquele momento, portanto mais valia resignar-se e aceitar, estóico, a sua sorte. Se Leonor era a menina de ouro da família, ele era o renegado. Pelo menos, agora que pensava no assunto, via porque é que a irmã engraçara com Afonso, se gostava daquela cadela amorfa e aborrecida, pensou ele, mordaz. A sua corrente de pensamentos negativa foi interrompida por uma visão que, até ele tinha que considerar enternecedora, que era composta por Princess de barriga para o ar com Sara a mimoseá-la.

“Desculpa, não resisti”, pediu a rapariga, quando sentiu que já estava a dedicar demasiada atenção à cadela e, por momentos, a esquecer-se do motivo que a levara ali. À mesa, embora ainda tivesse a cabeça de Princess a deixar uma poça de baba em cima do seu pé, tirou os livros para fora e, depois de definirem por onde iam começar, acordaram que o português de Tomás carecia de prioridade absoluta. Enquanto iam despachando a pilha interminável de trabalhos de casa que a professora os incumbira de fazer durante as férias, ia explicando ao rapaz o funcionamento dos diversos tempos verbais, coisa que o baralhava muito devido às diferenças entre o português e o inglês.

Não era por falta de esforço da parte dele, apenas tinha um longo caminho a percorrer, mas os progressos eram lentos. Sara, encontrando uma paciência que nem sabia de onde aparecera, explicou uma, outra e outra vez, até que Tomás começou a compreender. Verdadeiramente falando, esperara que ele desistisse depois da segunda tentativa e não quisesse saber mais do assunto, mas a persistência dele surpreendeu-a. Ver a expressão de orgulho consigo mesmo do rapaz acabou por alastrar a sensação também à rapariga, não só porque o seu trabalho dera frutos, mas também porque acabou por se sentir feliz por ele. Se ainda não sentisse um certo receio ocasional de Tomás, afinal o susto da faca e as tendências instáveis dele não eram algo que conseguisse esquecer facilmente, tê-lo ia abraçado. Mesmo assim, não dispensou felicitá-lo, “Boa Tomás!”

O entusiasmo que deixou transparecer apanhou o rapaz desprevenido, tanto que a face deste ganhou uma tonalidade avermelhada e, por um momento, ao contrário do que costumava suceder, não soube o que dizer, acabando por balbuciar, atabalhoadamente, “Obrigado”

Aproveitando a pausa para conferir as horas, Sara viu uma mensagem no telemóvel. Provavelmente seria Cláudia para a informar do ataque às lojas do centro comercial que fizera, algo que lhe desinteressava imensamente, mas, ainda assim, decidiu ver. Era de Afonso, o que a fez estranhar, pois não lhe ocorria mesmo por que motivo o irmão lhe teria enviado, não uma, mas duas mensagens do nada. Abrindo cada uma, revirou tanto os olhos que quase conseguia ver o próprio crânio:

“Se o cabrão tentar alguma cena avisa-me de imediato”

“Já sabes, se ele estiver a ser otário chuta-lhe os colhões que ele fica logo quieto”

“Está tudo bem?”, perguntou Tomás, a quem a expressão facial da rapariga não passara despercebida. A tarde estava, tanto quanto se podia aperceber, a ser produtiva e agradável, não queria, portanto, que Sara tivesse algum motivo para se sentir abatida. Teria feito alguma coisa para a incomodar sem dar por isso? Não estava mesmo a ver o que é que poderia ter feito, visto que até contivera a sua frustração quando não estava a entender o funcionamento de uns verbos quando, por sua vontade, teria desatado a cabecear uma parede.

“Está sim”, assegurou a rapariga, voltando a guardar o telemóvel. Afonso teria mais a ganhar se centrasse a sua atenção em Leonor e a deixasse em paz. A tarde estava a decorrer dentro dos conformes, tanto que quase se atrevia a dizer que começava a gostar da companhia do rapaz. Inicialmente só lhe dera dois dedos de conversa porque Leonor quase lhe pedira de joelhos e ela acedera, só para ver no que dava e, contra todas as expectativas, até ao momento tudo correra melhor do que o esperado. Foi assim que se decidiu, por fim, a fazer o convite que já lhe ocorrera antes. Pronto, também porque Cláudia lhe pediu, mas sobretudo porque achava que podia confiar em Tomás. Respirando fundo antes de começar, propôs, “Olha, no ano novo eu, a Cláudia, o João e mais umas pessoas vamos a casa da Rafaela, estava a pensar se não gostarias de vir? Vai ser giro”

“Ahm?”, perguntou o rapaz. Não era que não tivesse percebido, mas nunca antes havia sido convidado para o que quer que fosse e, agora que lhe parecia que lhe estavam a fazer um convite, queria certificar-se que ouvira bem. A sentir os batimentos cardíacos bem mais intensos do que o normal, pediu a Sara para repetir. Quando ela o fez, sentiu-se tão entusiasmado que parecia ter um balão dentro do peito. Mal podia esperar para contar a Leonor, ela iria ficar tão contente por ele. Perante o olhar ansioso da rapariga, respondeu, “I’d love to”

Sara, tão satisfeita quanto ele, se bem que mais expressiva, demonstrou-o, indo contra o que em condições normais teria feito tendo em conta a sua relutância em se aproximar muito do rapaz e, consequentemente, abusar da sua sorte, pondo os braços em torno do pescoço de Tomás, “Óptimo!”

Se o rapaz estava prestes a saltitar de contentamento, quando a rapariga o abraçou, quase deixou de respirar. Primeiro recebia um convite, depois uma rapariga que não Marta ou Leonor abraçava-o, tudo num espaço de dois minutos. Aqueles acontecimentos estariam realmente a ter lugar ou iria acordar e ver que afinal estava a sonhar? Sentia-se tão à nora que se deixou estar, inerte que nem borracha, enquanto a rapariga o abraçava. Quando se lembrou que seria boa ideia retribuir o abraço, pôs os braços à volta de cintura de Sara, ainda que um pouco a medo. Deveria mesmo retribuir ou afastá-la? Tinha algum medo de a repelir caso fizesse alguma coisa de errado e a situação era uma novidade por isso não sabia o que fazer ao certo. Optou por retribuir, também gostava de um pouco de carinho.

Na parte que lhe dizia respeito, Sara pensou que, se Cláudia estivesse ali, daria tudo para estar no seu lugar. Rindo para si, imaginou como a amiga teria um ataque de ciúmes se a visse, até iria trepar paredes. Tinha que admitir, no entanto, que até que era agradável. Tomás, ao ser alto e gordinho, ainda que não tanto como João dizia, era bastante confortável. E senti-lo passar as mãos pelas suas costas arrepiava-a, mas de uma maneira boa. Pronto, já estava agarrada ao rapaz havia algum tempo, decerto que ele já estaria a sentir-se incomodado com a violação do seu espaço pessoal. Tentou retirar os braços do pescoço dele e afastar-se mas, ao sentir que ele não fez quaisquer tenções de os separar, optou por se manter como estava.

Tomás não soube quanto tempo estiveram abraçados, mas não negava de que estava a gostar e muito de cada segundo, não só porque uma demonstração de afecto era algo que não tinha muitas vezes, mas também porque Sara lhe trazia ao de cima uma faceta diferente. Por ela conseguia encontrar auto-controlo suficiente para não deixar o seu mau feitio levar a melhor, talvez por ser das poucas pessoas que lhe haviam dado uma oportunidade e, por isso, ele estava-lhe muito grato. Uma grande parte do que o motivava para não cometer deslizes começara por ser a confiança que a irmã depositava em si, mas agora, a juntar a isso, tinha também o voto de confiança de Sara. Certo, também a vontade de provar a Guida que não iria acabar num manicómio antes de completar catorze anos, mas sobretudo as expectativas de pessoas que não o rejeitaram quando ninguém as censuraria por o fazer.

Gostava, por outro lado, do facto de a rapariga ser descontraída, por oposição a Cláudia, mais barulhenta e irrequieta. Até ele, por muito socialmente inapto que fosse já se tinha apercebido de que Cláudia estava mais do que interessada nele, o que o lisonjeava a sério. Ainda assim, o peito razoável dela deixava-lhe o discernimento toldado, ou não fosse ele um rapaz cujas hormonas começavam a dar sinal de vida. Podia ser que um dia daqueles concretizasse o grande sonho de Cláudia. Mas eram só fantasias, quando realmente contava, não trocava aquele momento com Sara, dissesse o seu avô o que dissesse sobre peitos.

Demonstrando excelente timing, Princess, farta que Tomás canalizasse a atenção da rapariga para si, resolveu intervir, dando com o focinho na perna de Sara. A rapariga, soltando-se do rapaz, decidiu dar-lhe atenção, fazendo com que a cadela fosse bem sucedida com o seu plano. Bufando, Tomás revirou os olhos. Princess era mesmo desmancha-prazeres. Consultando as horas, viu que o tempo estava do seu lado e decidiu frustrar os planos de bulldog. Encarando Sara, propôs, “Daqui a duas horas começa um jogo que eu queria ver na televisão, podíamos ver o inglês num instante? Não quero perder o jogo”

“Sim claro, não te queria empatar”, respondeu a rapariga, dando uma última festinha na barriga proeminente da cadela, “É o jogo do Sporting com o Porto, não é?”

“Não ligo a soccer, acho que é uma seca”, admitiu Tomás, um tanto em voz baixa para que Marta não o ouvisse, se bem que ela não estava, de momento, em casa mas todo o cuidado era pouco, “A minha equipa, os LA Lakers, jogam com os San Antonio Spurs e eu queria mesmo ver”

Ao ver a expressão de Sara que tornava óbvio o facto de não saber do que é que ele estava a falar, o rapaz, levantando a camisola, exibiu a sua t-shirt com o emblema da equipa e esclareceu, “NBA”

Agora que a rapariga se encontrava mais elucidada, voltaram ao estudo, sendo que Tomás tinha agora a sua oportunidade de fazer boa figura e tencionava aproveitá-la para agradar. E concentrou todos os seus esforços nisso mesmo, no momento de ajudar Sara com o seu inglês, corrigindo sempre que necessária a sua pronúncia, o que não foram poucas vezes. No entanto, o sotaque da rapariga era tão cómico que teve que morder a língua para não se rir, mas a vontade era tanta que não aguentou. Sara, embaraçada, tanto que corou até à raiz dos cabelos, deu-lhe um estalo ao de leve no braço na brincadeira e disse, “Opa! Não te rias”

“I can’t help it, you’re just too funny”, disse o rapaz, já sem fazer um esforço para se conter. Antes que a rapariga conseguisse dar-lhe outro estalo ao de leve, agarrou-lhe a mão e, prendendo-lhe os braços por de trás das costas, puxou-a para si e disse, “E agora, hm?”

Sara bem que tentou de tudo para se soltar, mas Tomás tinha-a bem presa. Se havia uns meses atrás lhe dissessem que iria estar com o rapaz naquela situação, julgaria impossível, mais que não fosse porque estava completamente vulnerável e à mercê dele, mas não sentia qualquer receio, o que até a estava a admirar. Contra todas as expectativas, o toque de Tomás, quando a podia estar a magoar, até era bastante gentil e delicado. A chegada de Leonor a casa, bem-disposta, acabou por lhes pôr fim à brincadeira, “Hm, não estamos a interromper nada, pois não?”

Tomás, mais corado do que a irmã alguma vez o vira, o que incluía aquela vez em ele entrara sem avisar no quarto de Marta e Guida, soltou Sara, tão ruborizada quanto ele. Afonso, por sua vez, estava lívido. Primeiro, Leonor provocara-o e não lhe dera nada, agora ia, com a maior das boas vontades, buscar a irmã depois de uma tarde que ele rezava para que tivesse sido de estudo intensivo sem parar, e encontrava-a demasiado cúmplice de alguém que ele considerava ser menos desejável do que a lagarta que encontrara dentro da fruta uma vez. Sara, recuperando o fôlego, dirigiu-se para junto do irmão, que grunhiu qualquer coisa incompreensível e despediu-se de Tomás, “Até amanhã e pensa naquilo da passagem do ano”

“Até amanhã, Sara”, respondeu o rapaz, acompanhando-a até à porta. Se o seu avô lhe ensinara alguma coisa, seria, sem dúvida, como ser um cavalheiro. Pronto, para o seu avô o cavalheirismo seria só até a que a dama lhe garantisse acesso à cama, depois podia proceder como lhe aprouvesse, mas para ele, Tomás, tratar bem Sara depois de tudo o que ela fizera por ele era o mínimo.

“Vamos andando, obrigado pela tarde e até amanhã”, disse Afonso, sorrindo. A tarde fora agradável e, dissesse Leonor o que dissesse, se aquilo não tinha sido ciúmes, ele não sabia o que tinha sido e, só por isso e, claro, pelas compras, já ganhara o dia.
Quando se ia a voltar, a rapariga, segurando-o pela camisola, fê-lo encará-la. Cedendo à tentação que sentira a tarde toda, deu-lhe um beijo breve e leve nos lábios, “Estava cheia de vontade de fazer isto, não ligues”

Balbuciando qualquer coisa que nem o próprio compreendeu, Afonso, derretido como um gelado num dia de Verão, ainda tentou caminhar para a porta, mas as pernas recusaram obedecer-lhe e quase caiu. Teria dado um dedo só para repetir o beijo. E porque não? Ela torturara-o pela segunda vez. Cedendo ao seu capricho, beijou, de modo igual, Leonor, “Só queria mais um, agora sim vou embora”

Quando Afonso e Sara já não estavam nas proximidades, Leonor, agarrando-se ao pescoço de Tomás como se este fosse uma almofada, permitiu-se a um comportamento muito pouco característico vindo de si e, numa voz mais aguda do que o normal, desabafou, “Maninho, ele é tão, tão, ai!”


“I can only imagine, sis”, comentou o irmão, “Também tenho muito para contar e é muito bom”