sexta-feira, 11 de abril de 2014

Capítulo 16

Como o brocado popular que declarava que a noite era boa conselheira, ao que parecia, sempre tinha o seu quê de verdade, Tomás acordou na manhã seguinte tão motivado quanto o facto de serem sete da manhã o permitia. Realmente, agora que arrefecera e pudera revisitar mentalmente os acontecimentos do dia anterior com a clareza e a diligência que mereciam, podia reparar no quão triste fora o seu comportamento. A sério, o que é que lhe tinha passado pela cabeça? Que maneira de lidar com uma rejeição! Ele não era um maricas da laia de Afonso, por isso não se devia ter comportado como tal. E pensar que chegara mesmo a chorar, algo que, de modo algum, era característico do seu ser. Só de se lembrar desse seu momento menos glorioso, teve vontade de dar com a cabeça na parede. O que o impedia de o fazer era o facto de apenas Leonor ter testemunhado esse acontecimento, o que já era uma pessoa a mais do que o deixaria confortável.

Se os conselhos da sua irmã não o induzissem em erro outra vez, ainda ia a tempo de voltar a cair nas boas graças de Sara, portanto era isso mesmo que ia fazer, afinal, bem sabia do quanto precisava de obter a redenção, tanto aos seus próprios olhos, como aos da rapariga, para restaurar o seu orgulho ferido. Sempre que as palavras de Sara do dia anterior vinham à tona, era um golpe que sentia, mas, esforçando-se para superar esse pormenor, como repetia, mais para se convencer de que não tinha tido assim tanta importância, resolveu colocar mãos à obra. Cofiando os indícios de barba que lhe estavam a aparecer no queixo, chamou a si toda a sua masculinidade e, decidido a remediar a situação, levantou-se, mais ensonado e saudoso dos seus lençóis do que qualquer outra coisa.

Enquanto ia percorrendo a sua rotina habitual, sem prestar grande atenção ao que estava a fazer ou a quem estava por perto, foi ensaiando o seu discurso, para ter a certeza de que, quando chegasse a altura, se fazia entender. Pondo-se em frente ao espelho, tentou optar entre um casaco com capaz normal ou o seu casaco de cabedal que o fazia sentir-se um daqueles motards todos rufias. Uma parcela da sua confiança começaria no seu aspecto e, se Sara o achasse bem-parecido, já seria um bom avanço. O que é que o favorecia mais, um ar descontraído ou durão? Experimentando espetar o cabelo com gel, gostou tanto do resultado que se decidiu pelo ar de motard. Se aquilo não o fazia radiar testosterona, nada faria. De tão distraído que estava, não se apercebeu de que o seu discurso mudara de tom e passara de umas simples pazes para uma tentativa de sedução digna de uma telenovela, em voz alta.

Finalizando o seu discurso com um beijo no espelho, Tomás, que reconhecia ter-se excedido um bocadinho e resvalado para um teor demasiado meloso, o que não era muito másculo, o que não era, de forma alguma, o que queria deixar transparecer, respirou fundo. Satisfeito com a imagem que o espelho lhe devolvia e por ter tudo tão bem delimitado, saiu da casa de banho, dando-se de caras com Guida, roxa de tanto tentar conter o riso. A julgar pela tonalidade doentia que tinha na face, dir-se-ia que estava a fazer um esforço digno dos deuses para não ceder à vontade que tinha de rir. Quando não conseguiu aguentar, desmanchou-se a rir, dizendo, por entre risadas que lhe dificultavam a fala, bem como a respiração, “Então tens uma menina especial na tua vida, é? Ai que lindo”

Era, de certa forma, impressionante, quando Guida se lembrava dos tempos em que o filho andava a tentar incendiar o sofá e comparava essa pessoa com a que tinha à sua frente naquele momento. Admitia que aquela conversa acerca de os olhos da tal rapariga serem um “doce tom de chocolate” era hilariante e esperava que ele tivesse lucidez suficiente para guardar aqueles comentários para si, mas gostava de ver que ele parecia encaixar-se melhor nos padrões da normalidade. Talvez a vinda para Portugal tivesse feito maravilhas, mas, fosse como fosse, gostava do que via. Até aquele penteado ridículo tão característico dos miúdos da idade dele lhe parecia enternecedor, o que seria o último adjectivo que utilizaria para descrever Tomás. Não faria mal em ter-se contido no uso do perfume, que, só de respirar junto a ele, lhe dava vontade de espirrar. Podia não o mostrar, mas preocupava-se com o filho e até achava graça ver como ele crescia e os interesses mudavam.

Sabia que o facto de pensar assim era elucidativo do quão hipócrita ela era, mas ficava descansada por saber que ele não era contra-natura nem nada do género. Seria uma projecção da sua insegurança talvez? Não sabia. Por algum motivo a ideia de ter um filho homossexual ia contra a sua ideia de virilidade e, se Tomás fosse assim, ela levaria isso como uma humilhação. Já chegava a maneira de ser invulgar do rapaz e, mesmo isso, ela, Guida, folgava em saber que ele estava a fazer progressos nessa área. Admitia também que estava longe de ser uma mãe ideal mas não desejava nada mais do que o bem-estar de Tomás e o facto de ele estar a levar uma vida normal era um grande peso que tirava de cima, sobretudo quando se perguntava até que ponto a culpa não seria sua de o filho ter aquele comportamento. Porém, não podia alterar o passado, sobretudo quando não sabia, sequer, por onde começar a refazer os seus erros, o que não lhe dava outra alternativa senão conformar-se com o resultado das suas acções.

Ainda que não tivesse revelado a ninguém o que estava a pensar, tinha vindo a acalentar esperanças de que o filho a pudesse substituir, dali a alguns anos, na administração da empresa, já que Leonor, tanto quanto o seu instinto lhe dizia, não tinha o que era preciso. Tinha a filha em grande conta e estava consciente das capacidades dela, mas não achava que ela servisse para outra coisa que não para fazer contas e, se a colocasse à frente da empresa, esta iria falir numa questão de dias. Tomás, contudo, tinha qualquer coisa. Por algum motivo ela fazia questão de entrevistar pessoalmente quaisquer potenciais empregados e, até ao momento, nunca tinha avaliado mal o valor de nenhum, independentemente do que o currículo dissesse. Quanto ao rapaz, ainda não sabia o que era ao certo, mas já o tinha debaixo de olho e, como dizia a sua avó, “de pequenino é que se torce o pepino”. Só esperava que a sua intuição para reconhecer potencial não a estivesse a enganar, pois, já que pouco ou nada fizera pelo filho no passado, ao menos que lhe assegurasse o futuro.

Se o rapaz tivesse a capacidade de ler mentes, sem dúvida que apanharia a derradeira surpresa mas, enquanto tal possibilidade estivesse fora do seu alcance, teria de tirar conclusões pelo que conhecia da mãe. De qualquer maneira, Tomás já estava à espera de que Guida fosse gozar e não se sentia afectado por isso. Acordara determinado e não ia ser aquela troça que o ia demover. Não dando resposta à mãe, continuou como se não tivesse ouvido nada e foi para a cozinha tomar o pequeno-almoço. Com certeza que Sara, assim que o visse, voltava logo com a palavra atrás e nem lhe passaria pela cabeça que não o queria para nada. Só de se lembrar desse momento sentia o que descrevia como um murro no estômago. Tal como ignorou o gozo de Guida, fez por ignorar aquela recordação dolorosa. Se tudo corresse nos conformes, estariam bem num ápice.

Na cozinha, por muito que Leonor fitasse os flocos de aveia insípidos, estes não se iam transformar em cereais de chocolate adocicados, essa era a dura realidade que tinha que enfrentar. A aveia permanecia a aveia, Princess continuaria a cadela preguiçosa e dorminhoca que era e os pássaros não chilreariam até que fosse Primavera, portanto tudo seguia o seu corso normal. Era esse o seu entendimento e estava pronta para concluir que nada a admiraria naquele dia, até que viu Tomás, de queixo erguido, aparecer à mesa. Não sabia o que era, se era devido ao cabelo empastado em gel, se era o perfume que anunciava a sua chegada a um quilómetro de distância, mas tudo nele emanava confiança. Bem, parecia uma versão mais nova de Guida e com alguns pêlos na cara, o que era francamente desconcertante, mas havia que admitir que o irmão estava muito bem-parecido, tanto que comentou, “Damn bro! Estás um espectáculo hoje”

Já Marta, ao ver o filho tão bem arranjado que até parecia mais velho, o que normalmente já parecia mas era ainda mais notório naquele momento, sentia-se tão mãe babada que quase sentia as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos. Como o seu homenzinho estava crescido. Aquele look de, nem sabia bem o quê, mas que lhe parecia uma aspiração a motard, era tão querido que só lhe dava vontade de lhe apertar as bochechas. Por muito que lhe apetecesse correr a abraçá-lo, como o peluche que ele lhe lembrava naquele momento, sabia que era melhor não o deixar envergonhado, tanto que, clareando a garganta, se limitou a concordar com Leonor, “Sim, estás mesmo muito bonito”

“Thank you”, agradeceu Tomás, por entre colheradas de cereais. Assim que chegou ao fim da segunda tigela, teve de se deter para se interrogar se não jogaria mais a seu favor abater aquele tecido adiposo extra. Ponderando o quanto se teria de abster nas refeições, bem como o exercício que teria de despender, a bem da sua auto-estima, classificou a sua barriga como uma prova da sua masculinidade. Não havia homem que fosse que quisesse parecer uma Barbie. Não, não era que gostasse de ter uns músculos como os de Afonso, que ideia. Ele provavelmente passava horas no ginásio e a comer saladas, tudo para parecer o maricas que era enquanto ele, Tomás, estava acima dessas trivialidades. Repetia, não era que tivesse nutrido o mais pequeno vestígio de inveja ao ver uma fotografia de Afonso na praia, a enfeitar o ecrã de fundo do computador de Leonor.

“É tudo pelas meninas?”, perguntou Marta, com um sorriso travesso, interrompendo a sua tirada interior. Não era outra coisa que não uma pergunta retórica, afinal, que outro motivo faria um miúdo de doze anos largar as calças de fato de treino, senão as hormonas a falarem mais alto. Porém, achava bem que ele largasse a Playstation e tivesse outros interesses, desde que jamais lhe aparecesse em casa com uma namorada grávida. E vê-lo tão coradinho só de ouvir a simples menção de raparigas tinha um teor de doçura que era qualquer coisa.

“Para as repelir, só se for”, disse Guida, aparecendo à porta com uma expressão enfastiada, já a ver que se ia atrasar por causa de Tomás. Era difícil mudar hábitos enraizados desde há muito tempo e, descarregar a sua frustração no filho era parte integrante da sua natureza. Batendo o pé no chão, impaciente, obrigou-o a despachar-se, sob pena de ir a pé para a escola, o que até lhe faria bem, como ela acrescentou, mordaz. Cumprindo a ordem de má vontade, o rapaz fez questão de o mostrar com uma cara de poucos amigos, ainda que, interiormente, não desejasse outra coisa que não chegar à escola para ver Sara.

Esperando até que Guida e Tomás fechassem a porta, Marta, incapaz de se conter, afinal a curiosidade atingira um ponto astronómico, perguntou a Leonor, “Sabes da existência de alguma moça que ele tenha debaixo de olho?”

“Não, não”, mentiu a rapariga, mais que não fosse porque o irmão nunca a perdoaria se ela comentasse o que quer que fosse. Mas tinha a noção de que ocultar a verdade não era um dos seus dotes, nunca fora, tanto que no jardim-de-infância descobriram que quem tinha comido os chocolates a uma moça tinha sido ela, embora o bigode de chocolate a tivesse denunciado, por isso era melhor começar a desviar a conversa, antes que fosse apanhada. De forma a distrair a mãe, permitiu-se a um momento de sinceridade que não seria capaz de ter com o rapaz e disse, em tom de confidência, “Aquele cabelo está ridículo, não te parece?”

“Ai cala-te, um dia, quando for mais velho e mais ajuizado, ele vai-se lembrar e pensar no que é que lhe tinha passado pela cabeça”, respondeu Marta, revirando os olhos. Mas, ao lembrar-se dos tempos em que, também ela, tivera aquela idade, acrescentou, “As cachopas da escolinha dele vão achá-lo um garanhão, por isso acho que vai ter o efeito pretendido, coisas da idade, até parece que no teu tempo não era assim”

“Verdade”, admitiu Leonor, dando graças por o decorrer do tempo lhe ter proporcionado a clarividência suficiente para olhar para trás, para os tempos em que um dos seus colegas resolvera tentar o look bad boy e ela achara o máximo, e aperceber-se que era caricata e que, na melhor das hipóteses, esse colega conseguira parecer um ouriço. No entanto, não esperava que as meninas da idade do irmão fossem chegar a essa conclusão. Ai não, já conseguia ouvir o som de muitos corações a partirem-se. Assim que lhe passou o momento nostálgico, riu-se e continuou com o seu dia, alegre e descansada.

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No momento em que saiu do carro e se apercebeu de que a inevitável conversa com Sara estava a poucos minutos de acontecer, Tomás, tão depressa como sentiu o assomo de confiança, perdeu-a. E se não conseguisse a reconciliação mesmo que empregasse os seus melhores esforços? Respirando fundo, lembrou-se que, primeiro convinha encontrar a rapariga, depois logo veria. Precisava primeiro de um bocadinho de feedback, afinal elogios de Marta e Leonor eram o mesmo que nada, pois elas achá-lo-iam um amor mesmo que lhe estivesse a escorrer pus do nariz. Olhando em volta, encontrou uma rapariga da sua turma, Margarida, ou lá como se chamava, e resolveu fazer uma experiência. Assim que ela olhou para ele, dirigiu-lhe o seu sorriso mais encantador, “Hey”

Se o facto de quase ter deixado cair os livros não fosse indicativo suficiente de que aprovava grandemente o novo visual do rapaz, a face corada deu-lhe toda a certeza de que precisava. Amparando-lhe os livros, sorriu-lhe mais uma vez, agora de modo mais presunçoso, antes de se afastar, deixando para trás uma rapariga embevecida. Do breve encontro com Margarida pode tirar duas conclusões, a primeira era que, oficialmente, o género feminino gostava dele e Sara só não seria mais uma se estivesse vesga e a segunda provara-lhe que não era preciso bíceps como os de Afonso para ser muito do agrado das raparigas. Com a confiança restabelecida, decidiu aproveitar os cinco minutos que lhe sobravam para encontrar Sara. Iria vê-la nas aulas mas, quanto mais cedo, melhor.

O plano, que lhe parecia à prova de bala quando não estava na proximidade de Sara, no momento em que a viu de relance junto ao cacifo, começou a fragmentar-se. Depois de toda a conversa que tivera consigo mesmo naquela manhã e da aprovação por parte de Margarida, não ser bem sucedido não era uma opção. Convencendo-se de que tudo iria correr às mil maravilhas, encolheu a barriga, empurrou o peito para fora e, encostando-se aos cacifos junto à rapariga, disse, cruzando os braços num gesto que tentou transparecer confiança mas que fora traído pela voz que o acompanhou, “O-olá”

Sara, cavando por baixo de um mar de livros, papéis e roupa de educação física que já estaria a criar cogumelos e outros fungos engraçados, retirou o livro que procurava. Estava constantemente a prometer que iria arrumar o cacifo mas não conseguia vencer a luta contra a preguiça. Ao ouvir alguém a cumprimentá-la, tirou a cabeça de dentro do cacifo e o odor a bolor deu lugar a Axe, algo que admitia agradar-lhe muito. Quando viu a pessoa a quem a voz pertencia, não conseguiu evitar deixar o seu sorriso esmorecer. Depois do que fora uma situação desconfortável sob todas as perspectivas como aquela do dia anterior, ver Tomás era a última coisa que desejava e, para azar o seu, ali estava ele, diante de si. No entanto, como se já não estivesse incomodada o suficiente, o facto de o rapaz estar diferente não lhe passou despercebido. Não havia como contornar o facto que a mudança tinha sido para melhor. O facto de saber em primeira mão que, por baixo daquele aspecto de rufia estava um rapaz sensível e querido, tornava-o ainda mais atraente. Reprimindo a vontade que tinha de lhe passar as mãos pelo cabelo, respondeu, num tom tão neutro quanto conseguiu, “Olá”

Já devia saber a priori que a maneira de ser da rapariga não se prestava a demonstrações descaradas de apreço para com o seu novo visual, mas não negava que lhe teria sabido bem ver que ela gostava da imagem que tinha diante de si. Nem que fosse um corar discreto ou um sorrisinho tímido, qualquer coisa seria suficiente para ele. O facto de a reacção de Sara não ter sido tão efusiva quanto a de Margarida desmoralizou Tomás que, não querendo admitir derrota sem gastar todos os cartuchos que tinha, voltou a respirar fundo, antes de desatar numa tirada demasiado rápida, de tal forma que até alguém com um domínio mais consistente da língua inglesa teria dificuldade em percebê-lo, “First things first, I’d like to apologize for the way I behaved yesterday”

“Ahm?”, perguntou a rapariga, a quem aquele balbuciar incompreensível soara, nem ela sabia ao quê. O facto de o rapaz estar, como diria a sua avó, um autêntico regalo para a vista, quando combinado com aqueles modos mais nervosos que eram, na sua opinião, demasiado enternecedores para que ela conseguisse ficar indiferente, acabou por lhe toldar o discernimento, tanto que teve de se recordar de que devia começar a ponderar sair dali assim que pudesse, porque daquela conversa não adviria coisa boa. Estava curiosa por saber o que é que ele pretendia, mas não lhe ocorria nada que não a deixasse embaraçada. Tinha que ceder ao seu lado menos racional e admitir, no entanto, que gostava mais de o ver de camisa, mas assim também não estava nada mal.

Fechando os olhos por um momentos antes de começar de novo, Tomás, que já estava a ver que a situação não estava a correr com a suavidade que ele tinha imaginado, tinha vontade de cortar os pulsos. Pensava que tinha tudo sob controlo e que não havia como correr mal e, no entanto, ali estava ele a gaguejar que nem parvo. Quando voltou a abrir os olhos e se deparou com a rapariga, à sua frente, com um ar profundamente enfastiado, tentou, “Right, ontem não me portei muito bem e queria pedir-te desculpa, acho que foi uma situação chata para os dois”

“Lá nisso tens razão”, respondeu Sara, revirando os olhos. O truque estava em não deixar que a sua paixoneta levasse a melhor sobre a sua racionalidade e, naquele momento, um puxão de orelhas só faria bem ao rapaz. Cada vez que se lembrava do coitado do Rui, o rapaz que teve a infelicidade de ser apanhado na frustração de Tomás, sentia a sua irritação a aumentar consideravelmente. No fundo, sabia que, também ela, tinha sido tudo menos cordial, na sua maneira de lidar com a situação, mas lá estava, era uma boa advogada de si própria no que dizia respeito às suas atitudes e uma melhor juiz das acções dos outros.

“Hm…I’m sorry”, repetiu o rapaz, baixando os olhos, numa expressão tão abatida e tão pouco característica dele que foi necessário à rapariga empregar toda a sua força de vontade para não o abraçar e lhe garantir que estava tudo bem. Era inacreditável como, numa questão de cinco minutos, viu toda a sua confiança ruir até ficar, naquele momento, reduzida a cinzas. Numa tentativa de tentar salvar a situação, pediu, “Vamos esquecer o que se passou e continuar amigos?”

Verdade fosse dita, a maneira de ser de Sara que, apesar de tudo, só desejava estar bem com tudo e todos, fez com que a sua primeira reacção fosse perdoar Tomás. Em situações normais, pelo menos, teria sido esse o desenrolar dos acontecimentos, mas o sucedido enervara-a tanto que só tinha vontade de prolongar o sofrimento do rapaz, tanto que, qualquer vontade que tivesse sentido de o consolar, desapareceu tão depressa como se fez sentir. Esteve prestes a responder-lhe mal, quando se lembrou de uma maneira mais útil de empregar aquela situação. Se a conversa dele do dia anterior tivesse sido mesmo genuína, então ele não recusaria o que ela lhe estava prestes a propor. Sorrindo, perguntou, “É isso que queres?”

Definitivamente que Tomás não estava à espera daquela facilidade. Pronto, não tivera que atravessar um rio infestado de piranhas, mas, de qualquer forma, parecia-lhe irónico que só precisasse de pedir desculpa, quando, na sua cabeça, imaginara toda uma história do arco-da-velha. A rapariga não lhe fizera juras de amor eternas como ele gostaria, mas, se tudo o que poderia ter dela era amizade e se isso fosse a única maneira de a ter na sua vida, então aceitava, o que, vistas bem as coisas, já era muito bom. Certo e sabido era que, no fundo, queria mais, mas depois de tudo o que se tinha passado no outro dia, a mera ideia de nem ficarem amigos o aterrorizava. Sorrindo, respondeu, “Sim”

“Então vais pedir desculpa ao Rui”, disse Sara, adoptando uma expressão austera. Se a sua vontade era desculpar Tomás, assim, sem mais nem menos, apenas porque não conseguia ficar mal com ele durante muito tempo, porque, enfim, preferia nem pensar nisso, ao menos que desse para aproveitar alguma coisa. Decerto que a sua consciência, já de si suficientemente maltratada por a ver sucumbir ao rapaz com tanta facilidade, agradecia, bem como Rui. Ao ver Tomás pestanejar, confuso, esclareceu, “Sabes, aquele rapaz que tu empurraste ontem”

“Já nem me lembrava disso, who cares?”, queixou-se o rapaz, visivelmente aborrecido. Como se a culpa de Rui estar a impedir a sua passagem fosse sua. Ele tinha-se levantado depois, não tinha? Quer dizer, ele, Tomás, não tinha ficado para assistir, mas não podia ter sido assim tão mau. Ao ver que, para a rapariga, o pedido de desculpas não era negociável, afinal a forma como ela o fulminou com o olhar não deixava margem para quaisquer ambiguidades, lá mudou de ideias, contrariado. Mas não o fazia por outro motivo que não cair nas boas graças de Sara, “Whatever you want”

“Maravilha”, respondeu a rapariga que, entretanto, já conseguira encontrar Rui junto ao seu cacifo, por entre a avalanche de miúdos borbulhentos. Pegando na mão de Tomás, arrastou o seu volume enorme por entre a multidão, satisfeita. Talvez por ver o rapaz a aproximar-se com cara de poucos amigos, Rui, que estava a guardar a calculadora dentro da mochila, olhou em volta e, estava prestes a correr dali para fora tão depressa quanto as suas pernas escanzeladas lhe permitiam, quando Sara, sempre com o habitual sorriso que ostentava desde que ele a conhecia, o cumprimentou, “Olá Rui”

“Olá”, respondeu ele, olhando, a medo, na direcção de Tomás, que o fitava como se estivesse a ver algo desagradável na beira da estrada. Fosse pelo seu ar arrogante e hostil, fosse pelo seu tamanho, Rui não podia negar que o rapaz o apavorava mas, ainda assim, Sara, que lhe dava pelo ombro, parecia tê-lo domado, tanto que ele olhava para Rui como se fosse indigno de estar na presença dele e baixava a bolinha cada vez que a rapariga se voltava para ele.

“Aqui o Tomás tem uma coisa para te dizer, não tens Tomás?”, disse Sara, dirigindo um sorriso ao rapaz, sorriso esse que de amistoso não tinha nada, pelo contrário, era muito autoritário. Esperava que Tomás, imprevisível como era, não tivesse um dos seus súbitos acessos de raiva e começasse a fazer algo violento que lhe pudesse arranjar sarilhos. Se os acontecimentos do dia anterior não tivessem tido lugar, a rapariga juraria a pés juntos que ele se ia comportar como devia ser. No entanto, foram aqueles mesmos acontecimentos que os colocaram naquela situação, por isso já nem dizia nada, preferindo optar por esperar para ver o que ia suceder.

Tomás, que nem podia acreditar que tinha dado o braço a torcer ao ponto de se ver diante de Rui prestes a pedir-lhe desculpas, emitiu um grunhido incompreensível. Estava habituado a que, de uma maneira, ou de outra, conseguisse sempre levar a sua avante, não a que ficasse ele numa posição de submissão. Isso era algo que não podia acontecer e, se prevalecesse a sua vontade, não aconteceria. Onde é que já se tinha visto, ele a pedir perdão a alguém como Rui? Se tivesse sido outra pessoa que não Sara a colocá-lo naquela situação francamente desagradável, essa pessoa lamentá-lo-ia mil vezes. Porém, tratava-se da rapariga e, por muito que ele desesperasse por ter sempre o controlo de toda e qualquer situação, isso nem lhe parecia assim tão importante quando se tratava da aprovação de Sara.

“Tomás, estamos à espera”, incentivou a rapariga, com uma expressão séria. Ao vê-lo de punhos cerrados e a espumar de raiva, quase que esteve para desistir antes que acontecesse alguma coisa mas decidiu dar uma oportunidade ao rapaz, afinal ainda acreditava que, apesar do seu temperamento, ele não a deixaria ficar mal. Rui também parecia prestes a fugir antes que os seus ossos fossem sofrer as consequências, mas ficou porque Sara lhe pediu.

“Desculpa”, pediu, por fim, Tomás, dirigindo-se a Rui. Parecia que o preço a pagar para ficar bem com a rapariga era ferir o seu orgulho, o que, depois de muito matutar, era sacrifício que estava disposto a fazer. O sorriso que Sara lhe dirigiu serviu para o assegurar que, realmente, tinha valido a pena.

Rui, por sua vez, ficou sem saber o que dizer. Se lhe dissessem que a besta que o tinha empurrado no dia anterior se ia dignar a agir como uma pessoa decente, não acreditaria. De facto, tinha acontecido, ele presenciara-o e ainda não acreditava. Não sabia o que é que Sara lhe tinha feito mas, fosse o que fosse, tinha dado resultado. Não querendo abusar da sorte, respondeu que não fazia mal e, aproveitando o som do toque como desculpa para não ter de continuar na presença de Tomás, foi para a sua sala, ainda a tentar digerir a informação.

Permitindo-se a suspirar de alívio, a rapariga, que, por um momento, viu a vida a andar para trás, disse, com toda a sinceridade, ao mesmo tempo que recuperava a cor na face, “Obrigada por teres feito isto”

“Por tua causa”, salientou o rapaz, com um travo amargo na boca. Fazia questão de deixar bem claro que só tinha tomado aquela atitude porque Sara lhe tinha pedido, não porque sentisse qualquer ponta de remorso por algo que já nem se lembrava que tinha feito, o que bem demonstrava a importância que ele tinha dado ao assunto. João, o seu saco de pancada predilecto, pelo menos, era discreto quanto às nódoas negras que ia coleccionando, fosse por vergonha, fosse por medo, o que permitia a Tomás sair impune. Agora que tinha feito a coisa certa aos olhos de Sara, estava, na sua opinião, na altura de ser recompensado e até já tinha uma ideia, mas teria que esperar porque já estavam atrasados para a aula. Se dependesse dele até poderiam não ir, mas a rapariga era certinha.

E foi assim que se sujeitou a uma aula extremamente aborrecida que demorou, na sua perspectiva, um milénio a passar, mas sempre deu para arrochar um bocadinho. Já Sara, de tão bem que se sentia com a sua boa acção, até encarou a aula com um novo alento. Conseguira, não só, não deixar que a sua panca por Tomás lhe corrompesse o discernimento, mas também reverter a situação e voltá-la a favor de Rui. Gostava de acreditar que o rapaz tinha aprendido uma lição e que o pedido de desculpas era genuíno, mas, conhecendo-o como conhecia, ele só tinha compactuado com ela para que não o chateasse mais. Era, contudo, um começo e, por isso, bem que se podia dar por muito sortuda, afinal a situação podia ter corrido muito mal.

Quando terminou a aula, muito para satisfação de Tomás, que vira a sua sesta interrompida por um berro estridente da professora, o que o deixara irritado, o rapaz aproveitou, não fosse alguém frustrar-lhe os planos antes que ele tivesse sequer tempo de os dizer, e propôs a Sara, sempre com o seu melhor sorriso, “Queres vir almoçar comigo?”

“Pode ser”, respondeu a rapariga, demorando o seu tempo, como se estivesse a contemplar a proposta. No fundo, não estava certa de que lhe apetecia passar uma hora na companhia de Tomás, só a ideia deixava-a desconcertada, por algum motivo, mas não queria parecer mal-educada e, por isso, concordou. Também não queria dar a ideia de que o perdoava assim com tanta facilidade, daí nem sequer lhe ter dirigido um sorriso.

“Óptimo!”, disse o rapaz. A falta de entusiasmo de Sara era tão tangível que ele temeu que ela das duas uma, ou lhe dizia que não, ou lhe dava uma desculpa esfarrapada, para não aceitar, de tal forma que, quando ela, por fim, lá concordou, ele teve que se conter para não lhe dar um abraço enorme ali mesmo. Tinha estado confiante de que tudo iria correr bem mas sabia que a rapariga não era Cláudia e, como tal, não estaria muito receptiva a demonstrações afectivas, o que cimentou a sua decisão de conter a enorme vontade que tinha de lhe dar uma abraço.

“Hm, acho que também te devia pedir desculpa”, começou Sara, que não foi capaz, sequer, de encarar Tomás. Sabia que fixar o olhar num prego ferrugento que saía da mesa e ameaçava apanhar-lhe uma peça de roupa quando menos esperasse não era uma atitude muito digna, mas era o que conseguia naquele momento. Inclusive, estava consciente de que, não obstante a sua cobardice, se o rapaz se tinha dignado a tomar a atitude correcta, ela devia fazer o mesmo, ou os remorsos que não a tinham deixado dormir na noite passada iriam fazer das suas outra vez. Respirando fundo, continuou, “Eu não queria ter dito aquilo ontem, estava chateada e acabei por descarregar na Cláudia e tu ouviste, desculpa”

“Oh…”, disse o rapaz, sem saber bem o que lhe responder. Uma parte de si, aquela mais optimista, teve vontade de fazer uma dança feliz em cima da mesa enquanto anunciava aos quatro ventos que, afinal, a rapariga queria saber dele. A outra parte ainda estava a recuperar do golpe que tinha levado ao ouvir aquelas palavras e não se permitia a esquecer. De forma atabalhoada, deu umas pancadinhas ao de leve na cabeça da rapariga, como se esta fosse uma criança que se tinha portado mal. Tinha sido uma resposta perfeitamente idiota, estava ciente disso, mas ligar o botão do charme com Sara era mais difícil do que com Cláudia.

Em condições menos tensas, a rapariga ter-se-ia rido, mas, assim, tudo o que conseguiu foi contar-se para não se encolher. Felizmente, a chegada da professora que, noutras circunstâncias, não teria sido bem-vinda, poupou-a a mais constrangimentos. Servindo-se de uma folha em branco do caderno, foi rabiscando uma figura abstracta, para se entreter. Não era que não gostasse da escola, nem das aulas, apenas tinha dificuldade em concentrar-se se não estivesse a fazer outra coisa ao mesmo tempo e assim, enquanto estava a desenhar, apanhava tudo o que era dito na aula. Olhando de vez em quando para o rapaz, na sua visão periférica, não pôde deixar de reparar no phone que ele tinha colocado entretanto no ouvido, escondido por entre o cabelo, o que a divertiu imenso.

No final da aula, já tinha terminado o esboço de uma figura que parecia um unicórnio com asas de morcego, o que a arrepiou um bocado e a fez decidir que aquele desenho não iria ver a luz do dia. Ao sentir a respiração de alguém na sua cara, quase saltou um metro na cadeira, com o susto, o que fez com que Tomás se risse, antes de apontar para a sua obra e dizer, “So cool”

“Ficou mesmo estranho, não olhes”, disse Sara, que já tinha arrancado a folha do caderno. Quando iam a sair da sala, atirou a folha amachucada para o caixote do lixo, continuando a andar para a porta do pavilhão, quando reparou que o rapaz não estava consigo, tendo aparecido, pouco depois, com um sorriso que a fez revirar os olhos.

“Então onde é que queres almoçar?”, perguntou Tomás, enquanto fazia contas ao seu orçamento. Estava absolutamente decidido em oferecer o almoço à rapariga e não havia nada que ela lhe pudesse dizer para o demover, mas estava limitado porque Guida nunca lhe dera uma mesada muito generosa. Se não estivesse obrigado a contar as moedinhas todas, teria levado Sara a um dos cafés que ficavam perto da escola, mas como não tinha como financiar essa ideia, sugeriu, embaraçado, “A cantina parece-te bem?”
“Parece-me muito bem”, respondeu a rapariga, que não suportaria a ideia de ficar isolada de tudo e todos na companhia do rapaz, não porque temesse que ele lhe fosse cortar um dedo com o garfo e com a faca, desta vez, mas porque a simples presença dele a estava a deixar incomodada. Na fila, quando chegou a vez deles de comprar a senha, Tomás, ao vê-la tentar pagar a sua refeição, entregou ele o dinheiro, o que a fez dizer, ultrajada, “O que é que foi isso?”

“Lunch’s on me, today”, disse o rapaz, como se fosse a ideia mais clara do mundo. E, com aquele gesto, não poderia comprar doces durante aquela semana, o que o aborreceria, se não se estivesse a sentir muito bem consigo mesmo. Ao ver que Sara ainda não tinha parado com a sua tirada ridícula e inútil de que ele não lhe devia ter pago o almoço e que ela podia perfeitamente tê-lo feito, respondeu, “Agora estamos quites, não me pagaste há não sei quanto tempo o almoço, uma vez?”

“Não me lembrava”, admitiu a rapariga, que, entretanto, já tinha esgotado todos os argumentos e se tinha mentalizado de que ele não iria aceitar um não. Assim que lhes serviram o almoço, uma sopa de caldo verde que, mais uma vez, coincidira com o dia de cortar a relva na escola, o que constituía um padrão em que Sara já tinha reparado e que nada servia para a sossegar, e uma pasta não identificada com um arroz insípido, encontraram uma mesa vazia.

Contrariando as expectativas da rapariga de que aquele seria um almoço longo e desagradável, a conversa até fluiu muito bem, não tendo havido silêncios que não os necessários para irem comendo. Quem os visse não diria que, nos últimos tempos, tinham tido uma relação tumultuosa. Entre escutar a história que ele lhe estava a contar sobre uma peripécia que tinha havido na sua antiga escola e, mais uma vez, ceder ao seu lado “Cláudia”, como ela lhe chamava, a rapariga, que já tinha esquecido o facto de ele não lhe ter dado oportunidade para pagar o almoço, ia pensando, grata por ele não ter poderes de telepatia, no quanto adorava os olhos dele. Cláudia passara o intervalo a falar no novo penteado dele, mas, para Sara, ele parecia-lhe bem de qualquer maneira. Sentindo uma certa pena, pensou no quão diferentes podiam ter sido as coisas se as circunstâncias fossem outras.

Estava Tomás a meio do relato de um miúdo na sua antiga escola que tinha sido hasteado pelas cuecas num poste, radiante pelo facto de, o desconforto inicial ter passado quase de imediato e por poderem estar ali bem, quando reparou na rapariga a observá-lo intensamente. Perdendo o fio à meada, deu consigo a retribuir o olhar. Como ele gostava da pele morena de ar macio dela e da cor dos olhos dela, nem demasiado claros, nem demasiado escuros, e do nariz, que era tão querido, o que era um desabafo mental idiota e, por isso, ele ficava muito feliz por ela não lhe conseguir ler a mente. Ao ver que ela continuava a olhar, perguntou, rindo, “What?”

Sara, que lhe pareceu tão distraída, nem se dignou a responder, tendo continuado, a olhar para ele, sorrindo de vez em quando, como se se tratasse de uma piada que só ela conhecia. Numa tentativa de matar dois coelhos de uma só cajadada, o rapaz tocou-lhe ao de leve na mão, para a acordar e para satisfazer a vontade que sentia de ter algum contacto físico com a rapariga. Quando o fez, ela, apanhada de surpresa, apressou-se a tirar a mão, como se tivesse acabado de tocar em fogo, e disse, “Hm? Ah! Desculpa, estava distraída, hm, o que é que estavas a dizer, ele ficou lá preso até as cuecas rasgarem?”

Quando Tomás, arrependido de se ter atrevido a tocar em Sara, quando, ao que parecia, as coisas não estavam bem ao ponto de ele se poder dar a esse luxo, ia a pedir desculpa pela sua indiscrição, Cláudia apareceu, sentou-se na cadeira ao lado dele, sem fazer cerimónia e agarrou-se ao pescoço dele, ignorando a rapariga, “Tomás! Não te encontrava em lado nenhum, ontem desapareceste e eu fiquei preocupada contigo, passou-se alguma coisa, querido?”

O rapaz nem conseguia acreditar na pontaria de Cláudia para aparecer no momento mais inconveniente. Como se não bastasse a reacção que a rapariga tinha tido quando ele, num momento mais corajoso e mal calculado, se tinha atrevido um bocadinho, ela tinha que se alapar a ele daquela maneira. Se Sara não estivesse ali, então Cláudia seria mais do que bem-vinda, mas ter de ver a rapariga, com cara de quem só queria uma brecha onde se enfiar, na pior altura possível, era insuportável. Seria possível que Cláudia não tivesse percebido a ideia no Ano Novo? De qualquer forma, se a situação com Sara estava irreparavelmente danificada, então dar-lhe-ia jeito ter Cláudia como plano B. No entanto ele não queria desistir assim. Que complicação.

“Vou com o João beber café lá fora”, disse a rapariga, ao avistar o amigo lá fora. Não era uma desculpa, já não era a primeira nem segunda vez, talvez fosse a quinquagésima, que ela ia com João tomar café fora da escola, pois ele era a única pessoa que partilhava o gosto dela. Ao ver que Cláudia a tinha despachado com um gesto idêntico ao de quem enxota um bicho de estimação, achou por bem ir embora, afinal a sua presença não era querida naquele momento.

Cláudia ainda podia ter sentido um laivo de culpa por ter tratado uma amiga que lhe era muito querida daquela maneira, mas se ela lhe tinha dado permissão no dia anterior para que ficasse com o rapaz, ela ia aproveitar antes que ela mudasse de ideias. Com o seu entusiasmo, às tantas deu por si no colo de Tomás, que ficou a olhar para o lugar onde Sara tinha estado, com um ar abalado. Se a rapariga não estava interessada no rapaz, Cláudia suspeitava que o inverso não correspondesse, mas tinha esperança de o fazer mudar de ideias.

Tomás, por pouco, não tinha apanhado o trejeito de algo que lhe pareceu ciúmes na expressão de Sara e não lhe pareceu que fosse só imaginação sua. A verdade era que só lá estivera durante uma fracção de segundo, mas fora o suficiente para que ele tivesse dado por isso. Ora, ciúmes, ou ele muito se enganava, significava que ele não era só mais um amigo para a rapariga ou, pelo menos, que ela se tinha afeiçoado um bocadinho a ele, o que já era bom, afinal, às tantas, até tinha medo de ousar ter esperança de que a situação pudesse evoluir. Tinha que admitir que, contudo, ter Cláudia ali, tão disponível e fácil, era uma alternativa tentadora, tanto que, ao longo daquela tarde, lhe foi dando umas investidas, só para se certificar que ela se mantinha interessada. No entanto, antes que pudesse acontecer alguma coisa para além de umas brincadeiras inocentes, ele retraía-se, quando a culpa se tornava impossível de ignorar.


Ao chegar a casa, quando se viu na privacidade do seu quarto, tirou do bolso, pela primeira vez desde que o tinha lá colocado, o desenho amarfanhado de Sara. Parecia-lhe tão perfeito que não conseguia imaginar porque é que ela o tinha deitado fora, mas isso era irrelevante, o que lhe importava mesmo era o facto de ter sido a rapariga a desenhá-lo. Alisando os vincos antes de o colocar num placard de cortiça que tinha junto à sua secretária, ficou a observá-lo. Era uma espécie de recordação de Sara que ele tinha na sua posse e isso era algo que ele acarinhava.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Capítulo 15

Tinham, entretanto, decorrido largas horas desde que Tomás e os seus dilemas que, ninguém a não ser o próprio, os entendia, lhe tinham estragado o que prometia ter sido uma tarde saída dos seus melhores sonhos e Afonso ainda não tinha esquecido o ressentimento que sentia para com o rapaz. Primeiro ele lia demasiados livros do Nicholas Sparks e fazia uma declaração de amor à sua irmã, de todas as pessoas. Depois fazia birra e deixava a sua namorada preocupada, conseguindo fazer com que ela tivesse que acudir à crise em vez de trocar miminhos com ele, Afonso, sequioso pela atenção de Leonor. Era humano e as hormonas não lhe davam tréguas! De qualquer forma não ajudava ter a namorada mais linda do planeta! Era também querida, atenciosa, inteligente, tinha uma pele tão macia, a sério, parecia que Deus, o próprio, a tinha feito e ele, na sua condição de mero mortal, sempre que encontrava um novo pormenor nela, não conseguia evitar ficar maravilhado.

Bem, voltando ao quanto Tomás o desagradava, uma vez que estava visto que, sempre que se lembrava de Leonor, não conseguia manter a concentração: Ele era pior que aquele bocado de pastilha elástica que se cola à sola do sapato e agarra tudo quanto é desagradável, apenas para, no fim do dia, se ver uma bola de matéria repelente agarrada ao sapato. Se Leonor era a encarnação da perfeição, Tomás devia ter sido feito com os restos defeituosos. Só de pensar que, se ele tivesse levado a sua avante, teria feito à sua irmã o que ele fazia à dele, sentia a necessidade de tomar banho. Contudo, sentia que tinha sido feita justiça quando Sara lhe tinha dado uma tampa, o que, vistas bem as coisas, era ridículo da sua parte, afinal, onde é que já se vira sentir-se tão vulnerável às provocações de um miúdo de doze anos?

Tinha esperança que, o que quer que apoquentasse aquela alminha, tivesse passado para que ele pudesse ter a tal tarde com Leonor. A ideia de a ver na escola fez com que passasse por todas as partes da sua rotina matinal tipo Speedy Gonzalez, tendo que quase forçar o pequeno-almoço pela garganta de Sara, para que se despachasse. Já encontrara carcaças de animais na beira da estrada com mais energia do que ela, o que o deixava exasperado, mas nada que não fosse compensado pelo seu entusiasmo. Até o autocarro barulhento, sempre com uma concentração de cheiros que iam desde virilha suada a perfume de dona de casa, se tornava tolerável quando sabia que iria ver Leonor.

Quando o autocarro chegou à paragem que ficava a poucos metros da escola, Afonso mal teve tempo de assentar um pé no solo e encher os pulmões de ar puro, sem que o Rúben prendesse com uma chave de braços por cima da cabeça, embalada por um grunhido animalesco que soava a “mô puto”. Contacto físico era a sua maneira de mostrar felicidade, chegando ao ponto de, na opinião modesta de Afonso, parecer homo-erótico, se bem que isso era um pensamento em que ele preferia não insistir, sobretudo porque os genitais do amigo estavam em contacto com os seus glúteos, glúteos esses a que Rodrigo chamara de “coisa mais linda”. Conseguindo descolar Rúben, senão ainda corria o risco de não sair dali virgem, Afonso perguntou, “Pára com isso, foda-se! O que é que te deixou assim?”

Dando provas de que não tinha esquecido as noções básicas de decência após sair do jardim-de-infância e que ainda tinha um pouco de pudor, o amigo esperou até que tivessem um bocadinho de privacidade para dar a boa nova. Quase a salivar, Rúben, em voz baixa, disse, “Tás a ver a Soraia? Aquela ruiva que conheci na festa do Lima? Nem tens noção, a gaja faz tudo!”

Levando em consideração o facto de passarem tantas raparigas por Rúben como traseiros por sanitas de casas de banho públicas, chegava a ser difícil manter-se a par do seu historial. Afonso bem que sabia, até porque as raparigas, depois de serem descartadas pelo amigo, gostavam de se ir lamentar para junto dele e, se acabava a consolá-las, ficava-se por aí, o que, em tempos, o frustrava como se não houvesse amanhã mas, agora, não evitava olhar para trás e sentir-se em eterna gratidão para com o destino por lhe ter dado Leonor em vez dos restos de Rúben. Se conseguisse silenciar a vozinha que lhe dizia que, se não estava com alguma das rejeitadas do amigo, estava com os restos de um desconhecido qualquer, seria bom. Como não queria que essa conclusão o perturbasse, voltou a sua atenção para Rúben, “Hm, ainda bem”

Entretanto apareceram David, Paulo e Gonçalo, todos eles amigos próximos de Rúben mas não tanto de Afonso, que considerava ter mais conhecidos que amigos e que só falava com aqueles porque estavam sempre com o seu melhor amigo. Independentemente do género dos seus interlocutores, tendia a ficar inibido se os conhecesse há pouco tempo. Uma vez que se acabaram por envolver com a conversa de Rúben acerca da sua nova conquista, o que estava a deixar Afonso pouco à vontade, este acabou por ficar um tanto esquecido. A bem da sua paciência, Leonor apareceu passados uns minutos. Conseguia continuar a sentir nervosismo cada vez que a via, mesmo depois de todo aquele tempo, mas isso não o impediu de a puxar para si pela mão e de a beijar, algo por que ansiava desde que acordara.

“Quem te viu e quem te vê”, brincou a rapariga, referindo-se à forma como o rapaz agia junto de si. Antes era tão tímido, chegando mesmo a não a conseguir encarar sem corar e começar a suar. Agora não fazia cerimónia em recebê-la com um cumprimento daqueles. Mas ela gostava, afinal se ele estivesse à beira de ter um ataque cardíaco cada vez que ela estava a menos de um metro dele, então ele estaria numa arca frigorífica com uma etiqueta em torno do dedo do pé desde que conseguiram trocar um beijo pela primeira vez. E ver que, de vez em quando, ele conseguia assumir o controlo, era extremamente sexy.

“Estás-te a queixar, é?”, disse Afonso, colocando-lhe os braços à volta da cintura, com o intuito de a puxar mais para junto de si. Se ele tivesse voto na matéria, ela nunca mais usaria nada que não sapatos rasos, caso contrário, como é que ele se podia dar ao luxo de lhe conseguir dar um beijo na testa sem ter que passar pela humilhação de ter que se colocar em bicos de pés? E foi o que fez, já que queria mesmo aproveitar essa circunstância e convinha apressar-se, afinal não faltava muito para ter que ir para a aula da Dona Adelaide e as partículas de saliva que saltariam na sua direcção quando ela falava precisariam de um alvo onde acertar. Bem, não queria estragar o momento com Leonor a pensar na sua professora.

“Não, de todo”, respondeu a rapariga, puxando-o para si pelo colarinho da camisola, antes de o beijar. Decidindo aproveitar a boleia de Adriana para a sala de aula, despediu-se de Afonso, sempre sem ligar à presença de Rúben e dos amigos deste. Conseguia sentir o olhar deles colado ao seu traseiro enquanto andava e não era uma situação que lhe agradasse. Se era aquele o tipo de pessoas com quem o namorado se dava, o que é que lhe garantia que ele não era como eles e só estava a fazer melhor trabalho a ocultá-lo? Era aquela constante desconfiança que a deixava um tanto de pé atrás em relação a Afonso mas o que podia ela fazer?

“Andas com uma gaja daquelas?”, perguntou David, ainda a apanhar os estilhaços do seu queixo que, entretanto, tinha caído ao chão quando avistara a rapariga. De Rúben, que tinha um batalhão de raparigas, cada uma mais jeitosa do que a outra, disposta a fazer de tudo pela sua atenção atrás dele, ainda esperava tal proeza, mas Afonso? Ele não conseguia falar com uma rapariga nem que a sua vida dependesse disso! Ok, ele era filho de uma famosa e ele, David, tinha que admitir que admirava muito o talento dele para jogar rugby, mas mesmo assim. Não era que desse alguma coisa por aquilo, mas ela acabaria por lhe pôr os patins em breve e, quem sabe, podia ser que ele tivesse sorte.

“Boas…”, comentou Gonçalo, com um sorriso sugestivo, fazendo um certo gesto com as mãos em frente do peito. Estava só a dizer o que era bem verdade, a seu ver Afonso devia sentir-se orgulhoso em vez de ficar todo envergonhado. Se ele tivesse uma namorada assim iria exibi-la como se não houvesse amanhã! Isso claro, depois de fazer o test-drive ao veículo, mas estava certo de que, quando pusesse a primeira, até iria fazer peões.

“Assim que te fartares dela, dá-ma”, disse Paulo, sorrindo de modo idêntico. Leonor parecera-lhe tão atraente que, se ele estivesse no lugar do Afonso só parava quando já tivesse uma queimadura indiana nas zonas baixas.

“Sim, ela é jeitosa mas não é vossa”, disse Rúben tentando deitar água na fervura. Normalmente ter-se-ia juntado aos amigos, mais que não fosse porque tinha piada ver Afonso prestes a rebentar, mas, apesar de saber que devia ter em consideração os interesses do seu melhor amigo, havia coisas que falavam mais alto e o seu narcisismo era uma delas. Leonor tinha tido a ousadia de o mandar passear quando ele a conhecera no Verão e ele não era pessoa para dizer não a um desafio. Era a namorada do seu melhor amigo mas havia de lhe passar. Afonso acabaria a chorar agarrado aos lenços, como o rapaz sensível que era, mas acabaria por esquecer. A longo prazo, ele devia era ficar muito grato, Leonor era o estereótipo da “rapariga solta” e ia magoá-lo mais cedo do que tarde, enquanto ele, enfim, raparigas porquinhas eram as suas musas.

“Podiam parar?”, pediu Afonso, incapaz de se lembrar de uma resposta à altura. Adorava o facto de reconhecerem que a sua namorada era bonita mas estavam a faltar-lhe ao respeito e isso ele não tolerava. Preparando-se para se retirar dali antes que começassem a perguntar pela sua vida sexual inexistente, continuou, “Tenho que ir andando”

Agora que se tinha afastado e arrefecido a cabeça o suficiente, apercebeu-se da imagem mariquinhas que tinha acabado de dar. Não gostava de ser confrontado mas, ainda assim, devia ter-se lembrado de algo mais para dizer do que um “podiam parar?” e uma retirada estratégica cobarde. Às vezes, gostaria de ser mais como Rúben que, posto numa situação parecida, teria distribuído murros como uma testemunha de Jeová distribui panfletos. Ele também tinha caparro suficiente para fazer boa figura numa luta, mas sempre preferia ceder e evitar problemas. Como não podia voltar atrás no tempo e mostrar o quão “homem” conseguia ser, o que quer que isso quisesse dizer, ao menos sempre se sentia melhor por saber que Leonor não tinha estado lá para ver que ele não a defendera.

Como a sua auto-confiança não podia passar a sua existência a ser atirada abaixo, espezinhada e cuspida em cima, depois de hora e meia a sentir o cheiro a comida de gato proveniente da camisola da Dona Adelaide, veio a aula de educação física, aula essa que, quando o mapa da ocupação de instalações o permitia, fazia junto da turma de Leonor e, como, por coincidência, estavam no campo ao ar livre, o prato do dia era rugby, sempre pôde exibir-se um bocadinho. Se fosse danças de salão ou ginástica e a rapariga estivesse a ver, teria sido um dia negro, afinal parecia um pato a ter espasmos quando dançava. Claro que teve de aligeirar os seus modos quando estavam a jogar para não magoar ninguém, daí a sua maior vontade ser Leonor ir assistir a um jogo sério dele. Porque é que não podia ser tão másculo e confiante fora do campo como era lá dentro?

Quando ia a entrar para o balneário, depois do que lhe pareceu uma aula produtiva em que conseguira ensinar uma lição a Rúben, que, mais uma vez, estava mais preocupado em exibir os peitorais do que em limar as arestas da sua técnica rudimentar, Leonor deteve-o, agarrando-lhe a camisola, “Espera, tens planos para depois das aulas?”

“Não, porquê? Vais-me fazer um convite?”, perguntou o rapaz, implorando a todos os santos para que a sua camisola não estivesse demasiado suada e desagradável, pois não queria de forma alguma que a rapariga tivesse contacto com o seu suor viscoso. A não ser que as circunstâncias fossem outras, claro estava, aí quaisquer trocas de fluidos corporais eram bem-vindas.

“Hm, tenho a casa por minha conta, se quiseres aparecer por lá, podíamos ter uma tarde só para nós”, disse Leonor, sugestivamente, enquanto deixava a mão passear pelo peito de Afonso, sentindo-lhe a definição. Realmente, estava explicado o belíssimo desempenho dele no jogo da aula. No entanto, não havia rapariga que ela conhecesse que alguma vez tivesse olhado para o rapaz com olhos de ver, o que, por um lado, não tinha mal, era da maneira que não tinha concorrência, por outro, como era possível? Com os seus caracóis negros e olhos azuis, tinha um ar um tanto angelical, mas isso era só do pescoço para cima, tinha ombros largos e era bem constituído. Em suma, ele era atraente, pouco vistoso, mas ela não se importaria de descobrir o que é que aquela t-shirt escondia.

Engolindo em seco, o rapaz que, perante aquela atenção, se sentia inacreditavelmente bem, não conseguiu formular uma resposta, preferindo regozijar-se por aquele momento. Nunca esperou que acontecesse, mas ela fazia-o sentir-se desejado, algo que lhe parecia um conceito alienígena, já que, mesmo com Beatriz, estava mais habituado a sentir-se o ursinho de peluche que ela apertava quando queria conforto. Por muito que a diferença o tivesse apanhado de surpresa, era algo a que se via a habituar-se. E logo Leonor, de todas as raparigas! Como é que ele tivera tanta sorte? Levou tanto tempo a responder que a rapariga, vendo-o com o olhar vidrado e com um fio de saliva prestes a cair do canto da boca, o tentou fazer reagir, dando-lhe uma palmadinha de leve na face, “Afonso?”

“Quero, quero, quero!”, conseguiu Afonso, finalmente, responder, já a ruborizar. E daí talvez o problema não estivesse na falta de definição dos seus abdominais mas sim nos seus modos atadinhos. Inclusive, Leonor tinha acabado por retirar a mão. Não tinha importância, mais tarde teria oportunidade de ver que não eram só os peitorais que eram rijos. Depois de lhe passar o momento Rúben, deixou a rapariga ir à sua vida, mas não sem que antes a detivesse por mais um pouco só para um último beijinho. Se momentos céleres como aquele o faziam sentir-se nas nuvens, só de pensar em passar uma tarde inteira com Leonor, sentia-se no mais puro dos paraísos.

Ao sentir o cheiro a meias suadas no balneário lembrou-se que, se o seu plano não passava por intoxicar a rapariga com o odor das suas axilas, o melhor era tomar banho. Tendo como objectivo deixar-se tão imaculado que conseguiria ver-se reflectido na própria pele, estava a passar o gel de banho no corpo quando Rúben, tal como veio ao mundo, lhe deu uma palmada nos glúteos, “Coisa boa!”

“Mas não é para ti”, ripostou Afonso, que, em momentos daqueles, considerava se não faria melhor em voltar-se para os rapazes, já que parecia que eles gostavam muito do seu traseiro. Lembrando-se da cena nas férias em que Leonor lhe apalpara o pacote, constatou que também ela gostava, o que fez maravilhas para o animar. Não conseguindo guardar as boas notícias para si, disse, tendo a voz toldada por um misto de satisfação e embaraço, pois, apesar de parecer algo de parca relevância, não era que fosse a coisa mais mundana para ele, “Hoje vou a casa dela”

“O que ela quer, sei eu!”, exclamou Rúben, demasiado alto para que o rapaz não ficasse ainda mais envergonhado do que já estava. Ainda assim, parecia-lhe previsível, porque era mesmo o tipo de coisa que imaginava Leonor e todas as da sua laia a fazerem, não era preciso dar mais do que um mínimo de atenção que elas estariam a abrir as pernas num ápice. Ela não era propriamente menina que se apresentasse aos pais e que desse uma óptima dona de casa e mãe de filhos. Só queria que Afonso aproveitasse enquanto podia pois Leonor descartá-lo-ia mais cedo do que tarde. Claro que não lhe podia dizer isso, tanto que, preferindo distraí-lo, continuou, “A sério, ela não te quer lá para irem jogar às cartas”

“Ainda é cedo para isso, não achas?”, perguntou o rapaz, baixando a voz, uma vez que não se sentia à vontade o suficiente para ter aquela conversa ali, no chuveiro, rodeado de gente nua, alguns deles a bisbilhotar a conversa. Estava assente que não iria criar expectativas para aquela parte, o que quer que tivesse que acontecer, que acontecesse, mas o amigo, com aquela conversa, não estava a ajudá-lo a sentir-se mais calmo. Tudo o que ele desejava era passar uma tarde aprazível com a sua namorada sem ter sempre algo a intrometer-se entre eles. Se havia algo que não precisava era de pressão para fazer algo que, por muito que quisesse, não achava que fosse a altura certa para o fazer.

“Não te vou responder a isso”, disse Rúben, abanando a cabeça. O rapaz conseguia ser tão inocente que, se não estivesse ali para o ouvir, duvidaria que alguém podia ser assim, mas até era por isso que gostava dele, não havia um pouco de maldade que fosse nele. A julgar pelo juízo de prognose que estava a fazer acerca do andar de Afonso, ou não esquecia a sua maneira de ser insegura e tímida e assumia uma postura mais proactiva, ou bem que podia dizer adeus a Leonor que, na sua breve estadia, o iria trair dia sim, dia não. Não que ele se queixasse, não duvidava que a rapariga lhe fosse cair no colo em breve, mas gostava que o seu amigo pudesse aproveitar um pouco.

Com pouca vontade de continuar ouvir Rúben, Afonso passou o cabelo por água e apressou-se a sair dali. Por muito que a conversa o tivesse incomodado, saber que teria a rapariga só para si, deixava-o feliz. Fosse como fosse, só sentia a insegurança a vir ao de cima quando Rúben falava das suas proezas e do seu entendimento dos mais profundos desejos femininos, nessas alturas era-lhe impossível evitar comparar-se ao amigo, que emanava confiança e com motivos para a ter. Quando estava com Leonor, a conversa de Rúben e dos outros não podia estar mais longe da sua cabeça, ainda que assim que se visse sozinho, se perguntasse se a rapariga não quereria que ele fosse mais como eles. Podia sempre falar com Adriana, talvez ela o elucidasse, mas a ideia de lhe falar de tal coisa enchia-o de vergonha.

De tão absorto que ficou nos seus pensamentos, nem deu pela aula passar, o que normalmente o teria incomodado porque gostava de seguir as aulas, sobretudo aquela, psicologia, por ser uma das áreas que já ponderara seguir, mas, naquele caso, tinha a matéria toda explicada no livro e perder as explicações do professor não tinha importância. Ao sair da sala, deparou-se com Leonor à sua espera, o que era uma mudança agradável, dado que, por circunstâncias em que ele não podia interferir, tais como os professores dela reterem a sua turma durante uma porção do intervalo por todos e mais alguns motivos, costumava ser ele a esperar por ela. Como ainda tinha o cabelo molhado, entendeu saudá-la sacudindo-lhe o cabelo junto à cara, de modo a salpicá-la.

“Pára!”, pediu Leonor, embora o riso a tivesse traído. Numa tentativa de o fazer parar, agarrou-lhe a cara e beijou-o. Com o susto, Afonso, não só não abanou mais a cabeça, como sentiu os joelhos enfraquecerem. Sim, definitivamente foi eficaz e ela sentia-se sempre divertida e enternecida quando surtia aquele efeito no rapaz. Não convinha era exagerar, se ele desmaiasse lá se iam os planos e ela estava à espera de uma tarde daquelas há algum tempo. Esperava que fosse apenas uma tarde simples, passada na companhia do namorado, sem ter de ceder a desejos mais carnais, como estava habituada. Era pedir muito que quisessem estar com ela se não estivesse como veio ao mundo?

“Ahm…desculpa, sinto-me sempre assim quando, ahm”, balbuciou Afonso, ciente de que coerência era algo de que, às vezes, não era capaz de ter quando tinha algum contacto mais íntimo com a rapariga. Ainda assim, não tinha dúvidas de que, com o hábito e, por sua vontade, muita insistência, conseguisse mudar. Tanto quanto via, a sua faceta mais insegura e acanhada não era atraente e gostava de poder mostrar a Leonor que era muito mais do que isso. No que foi uma tentativa algo frustrada de se redimir, disse, “Ahm, o que eu estava a tentar dizer era que, hm, és tão, nem sei, xuxu?”

Mesmo quando pensava que ele não podia ser mais adorável, arranjava maneira de redefinir a própria noção de “adorável”. Quer dizer, não sabia o significado daquela palavra e, em virtude do tempo que passara fora do país, havia neologismos que não conhecia, mas gostava de acreditar que se tratava de um elogio. Fosse como fosse, aqueles modos desajeitados, sobretudo quando eram evidenciados pelo rubor que era presença constante nas suas bochechas, jamais lhe seriam indiferentes. Mas, como não podia passar o resto do dia a conter os guinchinhos que reservava para aquelas ocasiões em que via algo tão enternecedor que a derretia até mais não, decidiu-se a agarrar o braço de Afonso e a levá-lo dali, para irem almoçar.

Agora que se deparava com o contraste, ao sentir o braço do rapaz, ficou indecisa entre levá-lo a ele, Afonso, para casa e fazer-lhe festinhas como faria a um cachorrinho, se levá-lo para casa e, bem, o resto seria história. Rindo com o dilema interior, não partilhou o que lhe ia na mente quando o rapaz lhe perguntou do que é que se estava a rir. Perante aquela incógnita, Afonso pareceu-lhe preocupado e, se ela bem o conhecia, naquela cabeça já estaria a imaginar mil e um cenários, cada um pior que o outro. Não o querendo ver transtornado, lançou-lhe os braços ao pescoço e, depois de o beijar, garantiu-lhe, “Está tudo bem”

Foi assim que o estado de espírito do rapaz deu uma volta de cento e oitenta graus para melhor. Como ela o conseguia fazer esquecer o que quer que ele estivesse a matutar, era mesmo algo de louvável. O facto de, uma quantidade generosa de almoços mais tarde, ela conseguir não ter uma crise nervosa quando ele expunha as agulhas para medir os níveis de glicemia, era um comprovativo de peso dos progressos que, ao longo de todo aquele tempo, tinham conseguido fazer e ele sentia-se extremamente comovido pela dedicação que ela tinha vindo a demonstrar, insistindo sempre para que o fizesse à frente dela. Assim, achou por bem dizer-lhe, “A sério, fico muito tocado por não me recambiares para a casa de banho para ir injectar insulina, sobretudo porque não gostas de agulhas”

“Até não me faz muita impressão”, mentiu Leonor, com sérias dúvidas se não teria manchado as calças. No fundo, sentia alguma pena do rapaz que já lhe dissera que gostava muito de bolos e massas mas que se tinha de privar de comidas com muito açúcar por causa da diabetes. Como lhe fora diagnosticada quando tinha oito anos, já não tocava em doces há tanto tempo que mal se lembrava de como sabiam, mas ela não conseguia evitar sentir compaixão para com ele. Parecia-lhe ingrato da sua parte que, não tendo nenhuma doença que não fosse a sua obsessão com a sua cintura, se abstivesse de ingerir calorias por um motivo tão superficial como a sua vaidade. Daí não conseguir ir a casa de Adriana, cuja mãe fazia o melhor bolo de bolacha que ela alguma vez tivera a oportunidade de saborear, não conseguia dizer que não, a sua disciplina não chegava para tal proeza.

O que Afonso não sabia era que, para não ter uma coisinha má, ela concentrara-se na zona abdominal bem definida dele. Podia não ter abdominais perfeitamente definidos como Ryan mas não estava nada mal a seu ver, aliás, se a distraía das agulhas era porque tinha o seu mérito. Talvez admitisse que estava um bocadinho frustrada, mas nada que a demovesse da sua intenção de se manter celibatária durante os próximos tempos. Para se recompor, canalizou a sua atenção para a sua salada, desejando, durante todo o almoço, de que a alface se transformasse numa bifana mal passada. Assim que terminou a sua refeição pouco satisfatória, prosseguiram com o plano.

Outro aspecto aparentemente pouco importante por que ela ficava muito sentida era o facto de Afonso fazer questão de lhe dar a mão sempre que a situação o permitia e nem era ela que tinha que tomar a iniciativa. O tratamento que, regra geral, recebia era ser exibida aos amigos quando o rapaz com que estava queria fazer boa figura, o que fazia com que aquela mudança lhe soubesse mesmo bem. De novo, teve de se abstrair dos pensamentos mais pessimistas que lhe vinham à mente cada vez que o rapaz tomava a liberdade de fazer um gesto fofo. Até lhe dava pena que o caminho desde o café onde tinham almoçado até sua casa não fosse maior, mas se houvesse mais oportunidades, dar-se-ia por muito contente.

Ao que tudo indicava, o momento tinha chegado, assim como todas as inseguranças de Afonso. Estavam com a casa à inteira disposição deles e ele não sabia o que é que ela esperava que ele fizesse. Relaxa Afonso, vais só passar uma tarde com Leonor a ver um filme, foi o cântico que ele repetiu para si. Quando ela o levou para a sala, pela mão, sentiu-se aliviado, por não irem para um quarto ou outra divisão mais propícia a que o clima aquecesse. Enquanto Leonor se dobrava para escolher um DVD, o rapaz não conseguiu evitar que o olhar lhe escapasse para os atributos dela. Não vai acontecer nada de especial, Afonso, mas, wow, que cu tão perfeito. Por muito que quisesse, não havia maneira de conseguir silenciar aquela vozinha que lhe aparecia como trilha sonora de fundo. Encostando-se a um móvel, foi obrigado a acordar quando ecoou:

“Now jump up on that dick and do a full split!”

Deixando a sua indecisão sobre que comédia romântica haveria de ser a melhor por um pouco, Leonor, visivelmente desconfortável, apressou-se a desligar o aparelho, que continuava a passar uma música que expelia profanidades como se não houvesse amanhã. Quando as descrições de posições sexuais cessaram, a rapariga disse, “É o ipod do Tomás, deve-se ter ligado quando te encostaste”

“É na boa”, assegurou Afonso, fazendo um esforço para esconder a sua indisposição. Não se admirava que aquele fosse o tipo de música que Tomás gostava, não esperava, sequer, algo diferente vindo dele. Só de pensar que aquele rebarbado fantasiava com a sua irmã enquanto ouvia pérolas musicais daquelas, fazia-lhe borbulhar o sangue. Se calhar até pensava em fazer-lhe o que aquela letra dizia! Sabia que Sara não queria nada com Tomás mas, por via das dúvidas, considerou arranjar um cinto de castidade e uma burca para a irmã e castrar o rapaz.

Assim que a rapariga lhe deu a mão e o levou para o sofá, todas e quaisquer ideias para se assegurar que Tomás jamais veria um centímetro de pele que fosse de Sara, se desvaneceram. Se lhe perguntassem havia alguns meses atrás qual seria o cenário mais improvável e perfeito que conseguia imaginar, estar com Leonor aninhada nele, enquanto viam um filme e tinham o som do vento lá fora como ruído de fundo, não andaria muito longe. No entanto, era como estavam. Só de pensar que tinha estado a ligar à conversa absurda de Rúben pasmava como é que tinha perdido tempo a preocupar-se com aquilo. Distribuindo a sua atenção, ora pelo filme, ora pela rapariga, pediu mentalmente a uma entidade que o ouvisse, que aquele momento durasse para sempre. Colocando um braço em torno da cintura de Leonor, aproximou-a mais de si.

Finalmente, depois de ter esperado mais tempo do que gostaria, a rapariga, ao que tudo levava a crer, conseguira ter a tarde que tanto queria. Parecia-lhe uma ideia algo intangível poder passar um bom bocado com um namorado, quer oficial, quer não, só na companhia um do outro, sem que o feliz contemplado esperasse que ela retribuísse de forma generosa. Depois de um bocado, já conseguira descontrair o suficiente para ver que Afonso não se iria esticar e que, tanto quanto pudesse ver, parecia gostar da sua companhia e que só isso lhe chagava. Havia a ocasional mão que lhe acariciava uma zona na cintura que ficara a descoberto quando a camisola se soltara das calças, mas até era bem-vinda.

Quando Leonor resolvera deitar a cabeça sobre o seu peito, Afonso viu que observá-la era mais interessante do que assistir ao filme. Desde o erguer do peito dela quando respirava, à mão que ela lhe colocara sobre a barriga e que ia deambulando por lá e que, sinceramente, lhe estava a fazer cócegas mas ele iria aguentar só para prolongar o momento, parecia-lhe um sonho. Dando-lhe um beijo na testa, foi o suficiente para que ela levantasse a cabeça. Por um momento, levou o seu tempo para contemplar o quão bonita ela lhe parecia. Fosse a cor de olhos exótica que sempre o fascinara, fossem as maçãs do rosto bem definidas, fosse todo o conjunto, não se cansava de olhar para ela, tanto que sussurrou, “És perfeita”

Desde que ostentasse aquela expressão da mais completa adoração, Afonso até poderia ter cantado o “Eu gosto de mamar nos peitos da cabritinha”, que Leonor ter-se-ia derretido na mesma. Entre uma enorme euforia e um nervoso miudinho no estômago que a própria nem soube explicar, visto não ser algo que sentisse muitas vezes, pôde considerar-se muito feliz naquele momento. Pondo-lhe uma mão na cara, afagou-lhe a face, antes de o beijar, ao de leve a início, até que, quando se permitiu a aligeirar o seu auto-controlo, deu por si no colo dele. Incorrendo contra todas as expectativas, quem se aventurara mais até havia sido ela e as marcas no pescoço do rapaz provavam-no. Ele, por seu turno, parecia acanhado, como se tivesse decidido que era crucial manter uma distância de segurança das partes da rapariga que tanto gostava de apreciar.

“Passa-se alguma coisa?”, perguntou Leonor. Por vezes esquecia-se que ele era tímido e que se intimidava com facilidade, por muito melhor que estivesse nesse departamento. Podia ser até que ela o tivesse constrangido, como estava mais habituada a ser agressiva, mas essa sua faceta era, invariavelmente, bem recebida. A possibilidade de ele não se sentir tão atraído por ela como pensava era de excluir, afinal ele já lhe dera motivos de peso para a fazer acreditar de que gostava e muito.

“Não!”, garantiu Afonso. Ter a rapariga ali, tão próxima dele e tão pouco inibida era demasiado para ele. Estava a adorar cada segundo, isso era certo, mas toda aquela situação era muito nova e, dada a posição em que estavam, ele tinha que se concentrar em imaginar uma velhinha a usar roupa interior reduzida, para que aquele momento não se tornasse embaraçoso para ambos. Assim que se apercebeu de que a imagem mental da Dona Adelaide em posições sugestivas não estava a ter o efeito pretendido, já era tarde demais. Em sua defesa, o que é que Leonor esperava, a montar nele e a fazer-lhe chupões?!

“Estou a ver”, disse a rapariga. A ideia de que ele não se sentia atraído por ela estava totalmente descartada. Mas não se sentia incomodada, antes pelo contrário, ficava lisonjeada. Encarando Afonso, viu-o absolutamente horrorizado, a ponto de ela poder dizer que nunca antes o vira tão envergonhado, o que, dada a maneira de ser dele, era de facto um feito. Ver o rapaz tão embaraçado, tanto que se sentia incapaz de a encarar era hilariante, sobretudo tendo em conta o quão caricata era a situação. Esforçando-se para que o riso não tomasse conta de si, Leonor, sentindo os cantos da boca a erguerem-se, disse, “Não faz mal, a sério, mas também não te vou ajudar com isso”

“Não! Isto é…ahm, não é que eu não queira, ou melhor…tenho a certeza de que seria muito bom!”, disse Afonso, passando as mãos pelo cabelo, que ficou semelhante a um ninho de andorinhas. Porque é que a sua natureza humana fora levar a melhor sobre a sua mente? Assim vira-se numa situação desconfortável! Tudo o que estava a conseguir era que a rapariga se fartasse de rir. Respirando fundo, retomou o que estava a tentar dizer, “Não te ia pedir uma coisa dessas”

“Eu sei, estava só a meter-me contigo”, assegurou Leonor, afectuosamente, antes de o voltar a beijar. Mesmo que a situação a fizesse rir a bandeiras despregadas, era ponto assente que o rapaz não ia ter direito a mais do que beijinhos e, a brincar, ela queria deixar isso bem definido. Talvez tivesse sido cruel da sua parte voltar para o colo de Afonso, mas pareceu-lhe que seria ainda mais constrangedor para ele se ela criasse uma distância de segurança entre os dois.

E assim continuaram. O embaraço advindo do único percalço que tinham tido durante toda a tarde há muito que passara para segundo plano e, tanto não deram pelo tempo passar, que a troca de carícias apenas teve fim quando Guida chegou a casa. Atirando com a mala e com as chaves do carro para cima do balcão, Guida, que nada mais queria do que sentar-se no sofá com uma cerveja na mão, viu essa ideia frustrada quando a primeira coisa que viu quando entrou na sala foi Leonor, o seu rebento, erguer a cabeça que repousava sobre o peito de Afonso, o filho da sua melhor amiga. Se a ocasião em que os apanhara demasiado próximos não lhe dera provas concretas de que se passava alguma coisa entre ambos, o facto de ela estar em cima dele sempre era menos susceptível de dúvidas.

“Olá, então não devias estar a caminho da Califórnia?”, perguntou Leonor, admirada. Parecia que afinal não ia ter a casa só para si. Ao consultar o relógio viu que já eram quase horas de jantar, o que indicava que não se podia queixar, pois pudera desfrutar de uma tarde na companhia do rapaz.

“Estava mau tempo e tiveram que cancelar os voos”, disse Guida, ainda a digerir aquela informação. Folgava, no entanto, em verificar que estavam os dois vestidos, caso contrário tudo aquilo seria ainda mais perturbante. Era certo que Susana, há muito tempo atrás, tinha feito umas previsões descabidas quando Afonso e Leonor ainda andavam a assoar-se às mangas das camisolas, mas ter de lhe dar razão era surreal. Podia jurar que o rapaz era mais apreciador de meninos, contudo. De qualquer maneira, podia ser pior, Leonor podia ter escolhido pior partido, aquele sempre era bem comportado e atinado.

“Bem, eu tenho que ir andando, ainda queria estudar um pouco”, disse Afonso, envergonhado. Por muito que quisesse continuar alapado à rapariga, Guida deixava-o intimidado ao ponto de ele só querer esconder-se. Talvez fosse a parecença com Tomás, talvez fosse o seu medo de que ela o estivesse a julgar por andar com a filha dela, mas sentia-se assustadiço ao pé dela. E se ela não o achasse bom o suficiente para namorar com Leonor? A mera possibilidade fazia-lhe o estômago fazer piruetas. Era mesmo a melhor opção escapar enquanto podia dali. O facto de não puder continuar a afagar o cabelo de Leonor também alicerçou a sua decisão.

“Eu levo-te à porta”, ofereceu a rapariga, dando-lhe a mão. Fazendo o que conseguiu para não tropeçar em nada, Afonso seguiu-a, ainda a sentir o olhar de Guida na sua nuca, o que não o estava a deixar mais reconfortado. Antes de o deixar ir-se embora, Leonor, disse, “Obrigada, a sério, gostei muito”


“Eu adorei”, respondeu o rapaz, puxando-a para um abraço. Definitivamente que podia dizer que tivera muita sorte.