Como
o brocado popular que declarava que a noite era boa conselheira, ao que
parecia, sempre tinha o seu quê de verdade, Tomás acordou na manhã seguinte tão
motivado quanto o facto de serem sete da manhã o permitia. Realmente, agora que
arrefecera e pudera revisitar mentalmente os acontecimentos do dia anterior com
a clareza e a diligência que mereciam, podia reparar no quão triste fora o seu
comportamento. A sério, o que é que lhe tinha passado pela cabeça? Que maneira
de lidar com uma rejeição! Ele não era um maricas da laia de Afonso, por isso não
se devia ter comportado como tal. E pensar que chegara mesmo a chorar, algo
que, de modo algum, era característico do seu ser. Só de se lembrar desse seu
momento menos glorioso, teve vontade de dar com a cabeça na parede. O que o
impedia de o fazer era o facto de apenas Leonor ter testemunhado esse acontecimento,
o que já era uma pessoa a mais do que o deixaria confortável.
Se
os conselhos da sua irmã não o induzissem em erro outra vez, ainda ia a tempo
de voltar a cair nas boas graças de Sara, portanto era isso mesmo que ia fazer,
afinal, bem sabia do quanto precisava de obter a redenção, tanto aos seus
próprios olhos, como aos da rapariga, para restaurar o seu orgulho ferido.
Sempre que as palavras de Sara do dia anterior vinham à tona, era um golpe que
sentia, mas, esforçando-se para superar esse pormenor, como repetia, mais para
se convencer de que não tinha tido assim tanta importância, resolveu colocar
mãos à obra. Cofiando os indícios de barba que lhe estavam a aparecer no
queixo, chamou a si toda a sua masculinidade e, decidido a remediar a situação,
levantou-se, mais ensonado e saudoso dos seus lençóis do que qualquer outra
coisa.
Enquanto
ia percorrendo a sua rotina habitual, sem prestar grande atenção ao que estava
a fazer ou a quem estava por perto, foi ensaiando o seu discurso, para ter a
certeza de que, quando chegasse a altura, se fazia entender. Pondo-se em frente
ao espelho, tentou optar entre um casaco com capaz normal ou o seu casaco de
cabedal que o fazia sentir-se um daqueles motards todos rufias. Uma parcela da
sua confiança começaria no seu aspecto e, se Sara o achasse bem-parecido, já
seria um bom avanço. O que é que o favorecia mais, um ar descontraído ou durão?
Experimentando espetar o cabelo com gel, gostou tanto do resultado que se
decidiu pelo ar de motard. Se aquilo não o fazia radiar testosterona, nada
faria. De tão distraído que estava, não se apercebeu de que o seu discurso
mudara de tom e passara de umas simples pazes para uma tentativa de sedução
digna de uma telenovela, em voz alta.
Finalizando
o seu discurso com um beijo no espelho, Tomás, que reconhecia ter-se excedido
um bocadinho e resvalado para um teor demasiado meloso, o que não era muito
másculo, o que não era, de forma alguma, o que queria deixar transparecer,
respirou fundo. Satisfeito com a imagem que o espelho lhe devolvia e por ter
tudo tão bem delimitado, saiu da casa de banho, dando-se de caras com Guida,
roxa de tanto tentar conter o riso. A julgar pela tonalidade doentia que tinha
na face, dir-se-ia que estava a fazer um esforço digno dos deuses para não ceder
à vontade que tinha de rir. Quando não conseguiu aguentar, desmanchou-se a rir,
dizendo, por entre risadas que lhe dificultavam a fala, bem como a respiração, “Então
tens uma menina especial na tua vida, é? Ai que lindo”
Era,
de certa forma, impressionante, quando Guida se lembrava dos tempos em que o
filho andava a tentar incendiar o sofá e comparava essa pessoa com a que tinha
à sua frente naquele momento. Admitia que aquela conversa acerca de os olhos da
tal rapariga serem um “doce tom de chocolate” era hilariante e esperava que ele
tivesse lucidez suficiente para guardar aqueles comentários para si, mas gostava
de ver que ele parecia encaixar-se melhor nos padrões da normalidade. Talvez a
vinda para Portugal tivesse feito maravilhas, mas, fosse como fosse, gostava do
que via. Até aquele penteado ridículo tão característico dos miúdos da idade
dele lhe parecia enternecedor, o que seria o último adjectivo que utilizaria
para descrever Tomás. Não faria mal em ter-se contido no uso do perfume, que,
só de respirar junto a ele, lhe dava vontade de espirrar. Podia não o mostrar,
mas preocupava-se com o filho e até achava graça ver como ele crescia e os
interesses mudavam.
Sabia
que o facto de pensar assim era elucidativo do quão hipócrita ela era, mas
ficava descansada por saber que ele não era contra-natura nem nada do género.
Seria uma projecção da sua insegurança talvez? Não sabia. Por algum motivo a
ideia de ter um filho homossexual ia contra a sua ideia de virilidade e, se
Tomás fosse assim, ela levaria isso como uma humilhação. Já chegava a maneira
de ser invulgar do rapaz e, mesmo isso, ela, Guida, folgava em saber que ele
estava a fazer progressos nessa área. Admitia também que estava longe de ser
uma mãe ideal mas não desejava nada mais do que o bem-estar de Tomás e o facto
de ele estar a levar uma vida normal era um grande peso que tirava de cima,
sobretudo quando se perguntava até que ponto a culpa não seria sua de o filho
ter aquele comportamento. Porém, não podia alterar o passado, sobretudo quando
não sabia, sequer, por onde começar a refazer os seus erros, o que não lhe dava
outra alternativa senão conformar-se com o resultado das suas acções.
Ainda
que não tivesse revelado a ninguém o que estava a pensar, tinha vindo a
acalentar esperanças de que o filho a pudesse substituir, dali a alguns anos,
na administração da empresa, já que Leonor, tanto quanto o seu instinto lhe
dizia, não tinha o que era preciso. Tinha a filha em grande conta e estava consciente
das capacidades dela, mas não achava que ela servisse para outra coisa que não
para fazer contas e, se a colocasse à frente da empresa, esta iria falir numa
questão de dias. Tomás, contudo, tinha qualquer coisa. Por algum motivo ela
fazia questão de entrevistar pessoalmente quaisquer potenciais empregados e,
até ao momento, nunca tinha avaliado mal o valor de nenhum, independentemente
do que o currículo dissesse. Quanto ao rapaz, ainda não sabia o que era ao
certo, mas já o tinha debaixo de olho e, como dizia a sua avó, “de pequenino é
que se torce o pepino”. Só esperava que a sua intuição para reconhecer
potencial não a estivesse a enganar, pois, já que pouco ou nada fizera pelo
filho no passado, ao menos que lhe assegurasse o futuro.
Se
o rapaz tivesse a capacidade de ler mentes, sem dúvida que apanharia a
derradeira surpresa mas, enquanto tal possibilidade estivesse fora do seu
alcance, teria de tirar conclusões pelo que conhecia da mãe. De qualquer
maneira, Tomás já estava à espera de que Guida fosse gozar e não se sentia
afectado por isso. Acordara determinado e não ia ser aquela troça que o ia
demover. Não dando resposta à mãe, continuou como se não tivesse ouvido nada e
foi para a cozinha tomar o pequeno-almoço. Com certeza que Sara, assim que o
visse, voltava logo com a palavra atrás e nem lhe passaria pela cabeça que não
o queria para nada. Só de se lembrar desse momento sentia o que descrevia como
um murro no estômago. Tal como ignorou o gozo de Guida, fez por ignorar aquela
recordação dolorosa. Se tudo corresse nos conformes, estariam bem num ápice.
Na
cozinha, por muito que Leonor fitasse os flocos de aveia insípidos, estes não
se iam transformar em cereais de chocolate adocicados, essa era a dura
realidade que tinha que enfrentar. A aveia permanecia a aveia, Princess
continuaria a cadela preguiçosa e dorminhoca que era e os pássaros não
chilreariam até que fosse Primavera, portanto tudo seguia o seu corso normal.
Era esse o seu entendimento e estava pronta para concluir que nada a admiraria
naquele dia, até que viu Tomás, de queixo erguido, aparecer à mesa. Não sabia o
que era, se era devido ao cabelo empastado em gel, se era o perfume que anunciava
a sua chegada a um quilómetro de distância, mas tudo nele emanava confiança.
Bem, parecia uma versão mais nova de Guida e com alguns pêlos na cara, o que
era francamente desconcertante, mas havia que admitir que o irmão estava muito bem-parecido,
tanto que comentou, “Damn bro! Estás um espectáculo hoje”
Já
Marta, ao ver o filho tão bem arranjado que até parecia mais velho, o que
normalmente já parecia mas era ainda mais notório naquele momento, sentia-se
tão mãe babada que quase sentia as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos. Como o seu
homenzinho estava crescido. Aquele look de, nem sabia bem o quê, mas que lhe
parecia uma aspiração a motard, era tão querido que só lhe dava vontade de lhe
apertar as bochechas. Por muito que lhe apetecesse correr a abraçá-lo, como o
peluche que ele lhe lembrava naquele momento, sabia que era melhor não o deixar
envergonhado, tanto que, clareando a garganta, se limitou a concordar com
Leonor, “Sim, estás mesmo muito bonito”
“Thank
you”, agradeceu Tomás, por entre colheradas de cereais. Assim que chegou ao fim
da segunda tigela, teve de se deter para se interrogar se não jogaria mais a
seu favor abater aquele tecido adiposo extra. Ponderando o quanto se teria de
abster nas refeições, bem como o exercício que teria de despender, a bem da sua
auto-estima, classificou a sua barriga como uma prova da sua masculinidade. Não
havia homem que fosse que quisesse parecer uma Barbie. Não, não era que
gostasse de ter uns músculos como os de Afonso, que ideia. Ele provavelmente
passava horas no ginásio e a comer saladas, tudo para parecer o maricas que era
enquanto ele, Tomás, estava acima dessas trivialidades. Repetia, não era que
tivesse nutrido o mais pequeno vestígio de inveja ao ver uma fotografia de
Afonso na praia, a enfeitar o ecrã de fundo do computador de Leonor.
“É
tudo pelas meninas?”, perguntou Marta, com um sorriso travesso, interrompendo a
sua tirada interior. Não era outra coisa que não uma pergunta retórica, afinal,
que outro motivo faria um miúdo de doze anos largar as calças de fato de
treino, senão as hormonas a falarem mais alto. Porém, achava bem que ele
largasse a Playstation e tivesse outros interesses, desde que jamais lhe
aparecesse em casa com uma namorada grávida. E vê-lo tão coradinho só de ouvir
a simples menção de raparigas tinha um teor de doçura que era qualquer coisa.
“Para
as repelir, só se for”, disse Guida, aparecendo à porta com uma expressão
enfastiada, já a ver que se ia atrasar por causa de Tomás. Era difícil mudar
hábitos enraizados desde há muito tempo e, descarregar a sua frustração no
filho era parte integrante da sua natureza. Batendo o pé no chão, impaciente,
obrigou-o a despachar-se, sob pena de ir a pé para a escola, o que até lhe
faria bem, como ela acrescentou, mordaz. Cumprindo a ordem de má vontade, o
rapaz fez questão de o mostrar com uma cara de poucos amigos, ainda que,
interiormente, não desejasse outra coisa que não chegar à escola para ver Sara.
Esperando
até que Guida e Tomás fechassem a porta, Marta, incapaz de se conter, afinal a
curiosidade atingira um ponto astronómico, perguntou a Leonor, “Sabes da
existência de alguma moça que ele tenha debaixo de olho?”
“Não,
não”, mentiu a rapariga, mais que não fosse porque o irmão nunca a perdoaria se
ela comentasse o que quer que fosse. Mas tinha a noção de que ocultar a verdade
não era um dos seus dotes, nunca fora, tanto que no jardim-de-infância
descobriram que quem tinha comido os chocolates a uma moça tinha sido ela,
embora o bigode de chocolate a tivesse denunciado, por isso era melhor começar
a desviar a conversa, antes que fosse apanhada. De forma a distrair a mãe,
permitiu-se a um momento de sinceridade que não seria capaz de ter com o rapaz
e disse, em tom de confidência, “Aquele cabelo está ridículo, não te parece?”
“Ai
cala-te, um dia, quando for mais velho e mais ajuizado, ele vai-se lembrar e
pensar no que é que lhe tinha passado pela cabeça”, respondeu Marta, revirando
os olhos. Mas, ao lembrar-se dos tempos em que, também ela, tivera aquela
idade, acrescentou, “As cachopas da escolinha dele vão achá-lo um garanhão, por
isso acho que vai ter o efeito pretendido, coisas da idade, até parece que no
teu tempo não era assim”
“Verdade”,
admitiu Leonor, dando graças por o decorrer do tempo lhe ter proporcionado a
clarividência suficiente para olhar para trás, para os tempos em que um dos
seus colegas resolvera tentar o look bad boy e ela achara o máximo, e
aperceber-se que era caricata e que, na melhor das hipóteses, esse colega
conseguira parecer um ouriço. No entanto, não esperava que as meninas da idade
do irmão fossem chegar a essa conclusão. Ai não, já conseguia ouvir o som de
muitos corações a partirem-se. Assim que lhe passou o momento nostálgico, riu-se
e continuou com o seu dia, alegre e descansada.
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No
momento em que saiu do carro e se apercebeu de que a inevitável conversa com
Sara estava a poucos minutos de acontecer, Tomás, tão depressa como sentiu o
assomo de confiança, perdeu-a. E se não conseguisse a reconciliação mesmo que
empregasse os seus melhores esforços? Respirando fundo, lembrou-se que, primeiro
convinha encontrar a rapariga, depois logo veria. Precisava primeiro de um
bocadinho de feedback, afinal elogios de Marta e Leonor eram o mesmo que nada,
pois elas achá-lo-iam um amor mesmo que lhe estivesse a escorrer pus do nariz.
Olhando em volta, encontrou uma rapariga da sua turma, Margarida, ou lá como se
chamava, e resolveu fazer uma experiência. Assim que ela olhou para ele, dirigiu-lhe
o seu sorriso mais encantador, “Hey”
Se
o facto de quase ter deixado cair os livros não fosse indicativo suficiente de
que aprovava grandemente o novo visual do rapaz, a face corada deu-lhe toda a
certeza de que precisava. Amparando-lhe os livros, sorriu-lhe mais uma vez,
agora de modo mais presunçoso, antes de se afastar, deixando para trás uma
rapariga embevecida. Do breve encontro com Margarida pode tirar duas
conclusões, a primeira era que, oficialmente, o género feminino gostava dele e
Sara só não seria mais uma se estivesse vesga e a segunda provara-lhe que não
era preciso bíceps como os de Afonso para ser muito do agrado das raparigas.
Com a confiança restabelecida, decidiu aproveitar os cinco minutos que lhe
sobravam para encontrar Sara. Iria vê-la nas aulas mas, quanto mais cedo,
melhor.
O
plano, que lhe parecia à prova de bala quando não estava na proximidade de
Sara, no momento em que a viu de relance junto ao cacifo, começou a
fragmentar-se. Depois de toda a conversa que tivera consigo mesmo naquela manhã
e da aprovação por parte de Margarida, não ser bem sucedido não era uma opção. Convencendo-se
de que tudo iria correr às mil maravilhas, encolheu a barriga, empurrou o peito
para fora e, encostando-se aos cacifos junto à rapariga, disse, cruzando os
braços num gesto que tentou transparecer confiança mas que fora traído pela voz
que o acompanhou, “O-olá”
Sara,
cavando por baixo de um mar de livros, papéis e roupa de educação física que já
estaria a criar cogumelos e outros fungos engraçados, retirou o livro que
procurava. Estava constantemente a prometer que iria arrumar o cacifo mas não
conseguia vencer a luta contra a preguiça. Ao ouvir alguém a cumprimentá-la,
tirou a cabeça de dentro do cacifo e o odor a bolor deu lugar a Axe, algo que
admitia agradar-lhe muito. Quando viu a pessoa a quem a voz pertencia, não
conseguiu evitar deixar o seu sorriso esmorecer. Depois do que fora uma
situação desconfortável sob todas as perspectivas como aquela do dia anterior,
ver Tomás era a última coisa que desejava e, para azar o seu, ali estava ele,
diante de si. No entanto, como se já não estivesse incomodada o suficiente, o
facto de o rapaz estar diferente não lhe passou despercebido. Não havia como
contornar o facto que a mudança tinha sido para melhor. O facto de saber em
primeira mão que, por baixo daquele aspecto de rufia estava um rapaz sensível e
querido, tornava-o ainda mais atraente. Reprimindo a vontade que tinha de lhe
passar as mãos pelo cabelo, respondeu, num tom tão neutro quanto conseguiu,
“Olá”
Já
devia saber a priori que a maneira de ser da rapariga não se prestava a
demonstrações descaradas de apreço para com o seu novo visual, mas não negava
que lhe teria sabido bem ver que ela gostava da imagem que tinha diante de si. Nem
que fosse um corar discreto ou um sorrisinho tímido, qualquer coisa seria
suficiente para ele. O facto de a reacção de Sara não ter sido tão efusiva
quanto a de Margarida desmoralizou Tomás que, não querendo admitir derrota sem
gastar todos os cartuchos que tinha, voltou a respirar fundo, antes de desatar
numa tirada demasiado rápida, de tal forma que até alguém com um domínio mais consistente
da língua inglesa teria dificuldade em percebê-lo, “First things first, I’d
like to apologize for the way I behaved yesterday”
“Ahm?”,
perguntou a rapariga, a quem aquele balbuciar incompreensível soara, nem ela sabia
ao quê. O facto de o rapaz estar, como diria a sua avó, um autêntico regalo
para a vista, quando combinado com aqueles modos mais nervosos que eram, na sua
opinião, demasiado enternecedores para que ela conseguisse ficar indiferente,
acabou por lhe toldar o discernimento, tanto que teve de se recordar de que
devia começar a ponderar sair dali assim que pudesse, porque daquela conversa
não adviria coisa boa. Estava curiosa por saber o que é que ele pretendia, mas
não lhe ocorria nada que não a deixasse embaraçada. Tinha que ceder ao seu lado
menos racional e admitir, no entanto, que gostava mais de o ver de camisa, mas
assim também não estava nada mal.
Fechando
os olhos por um momentos antes de começar de novo, Tomás, que já estava a ver
que a situação não estava a correr com a suavidade que ele tinha imaginado,
tinha vontade de cortar os pulsos. Pensava que tinha tudo sob controlo e que
não havia como correr mal e, no entanto, ali estava ele a gaguejar que nem
parvo. Quando voltou a abrir os olhos e se deparou com a rapariga, à sua frente,
com um ar profundamente enfastiado, tentou, “Right, ontem não me portei muito
bem e queria pedir-te desculpa, acho que foi uma situação chata para os dois”
“Lá
nisso tens razão”, respondeu Sara, revirando os olhos. O truque estava em não
deixar que a sua paixoneta levasse a melhor sobre a sua racionalidade e,
naquele momento, um puxão de orelhas só faria bem ao rapaz. Cada vez que se
lembrava do coitado do Rui, o rapaz que teve a infelicidade de ser apanhado na
frustração de Tomás, sentia a sua irritação a aumentar consideravelmente. No
fundo, sabia que, também ela, tinha sido tudo menos cordial, na sua maneira de
lidar com a situação, mas lá estava, era uma boa advogada de si própria no que
dizia respeito às suas atitudes e uma melhor juiz das acções dos outros.
“Hm…I’m
sorry”, repetiu o rapaz, baixando os olhos, numa expressão tão abatida e tão
pouco característica dele que foi necessário à rapariga empregar toda a sua
força de vontade para não o abraçar e lhe garantir que estava tudo bem. Era
inacreditável como, numa questão de cinco minutos, viu toda a sua confiança
ruir até ficar, naquele momento, reduzida a cinzas. Numa tentativa de tentar
salvar a situação, pediu, “Vamos esquecer o que se passou e continuar amigos?”
Verdade
fosse dita, a maneira de ser de Sara que, apesar de tudo, só desejava estar bem
com tudo e todos, fez com que a sua primeira reacção fosse perdoar Tomás. Em
situações normais, pelo menos, teria sido esse o desenrolar dos acontecimentos,
mas o sucedido enervara-a tanto que só tinha vontade de prolongar o sofrimento
do rapaz, tanto que, qualquer vontade que tivesse sentido de o consolar,
desapareceu tão depressa como se fez sentir. Esteve prestes a responder-lhe
mal, quando se lembrou de uma maneira mais útil de empregar aquela situação. Se
a conversa dele do dia anterior tivesse sido mesmo genuína, então ele não
recusaria o que ela lhe estava prestes a propor. Sorrindo, perguntou, “É isso
que queres?”
Definitivamente
que Tomás não estava à espera daquela facilidade. Pronto, não tivera que
atravessar um rio infestado de piranhas, mas, de qualquer forma, parecia-lhe
irónico que só precisasse de pedir desculpa, quando, na sua cabeça, imaginara
toda uma história do arco-da-velha. A rapariga não lhe fizera juras de amor
eternas como ele gostaria, mas, se tudo o que poderia ter dela era amizade e se
isso fosse a única maneira de a ter na sua vida, então aceitava, o que, vistas bem
as coisas, já era muito bom. Certo e sabido era que, no fundo, queria mais, mas
depois de tudo o que se tinha passado no outro dia, a mera ideia de nem ficarem
amigos o aterrorizava. Sorrindo, respondeu, “Sim”
“Então
vais pedir desculpa ao Rui”, disse Sara, adoptando uma expressão austera. Se a
sua vontade era desculpar Tomás, assim, sem mais nem menos, apenas porque não
conseguia ficar mal com ele durante muito tempo, porque, enfim, preferia nem
pensar nisso, ao menos que desse para aproveitar alguma coisa. Decerto que a
sua consciência, já de si suficientemente maltratada por a ver sucumbir ao
rapaz com tanta facilidade, agradecia, bem como Rui. Ao ver Tomás pestanejar,
confuso, esclareceu, “Sabes, aquele rapaz que tu empurraste ontem”
“Já
nem me lembrava disso, who cares?”, queixou-se o rapaz, visivelmente
aborrecido. Como se a culpa de Rui estar a impedir a sua passagem fosse sua.
Ele tinha-se levantado depois, não tinha? Quer dizer, ele, Tomás, não tinha
ficado para assistir, mas não podia ter sido assim tão mau. Ao ver que, para a
rapariga, o pedido de desculpas não era negociável, afinal a forma como ela o
fulminou com o olhar não deixava margem para quaisquer ambiguidades, lá mudou
de ideias, contrariado. Mas não o fazia por outro motivo que não cair nas boas
graças de Sara, “Whatever you want”
“Maravilha”,
respondeu a rapariga que, entretanto, já conseguira encontrar Rui junto ao seu
cacifo, por entre a avalanche de miúdos borbulhentos. Pegando na mão de Tomás,
arrastou o seu volume enorme por entre a multidão, satisfeita. Talvez por ver o
rapaz a aproximar-se com cara de poucos amigos, Rui, que estava a guardar a
calculadora dentro da mochila, olhou em volta e, estava prestes a correr dali
para fora tão depressa quanto as suas pernas escanzeladas lhe permitiam, quando
Sara, sempre com o habitual sorriso que ostentava desde que ele a conhecia, o
cumprimentou, “Olá Rui”
“Olá”,
respondeu ele, olhando, a medo, na direcção de Tomás, que o fitava como se
estivesse a ver algo desagradável na beira da estrada. Fosse pelo seu ar
arrogante e hostil, fosse pelo seu tamanho, Rui não podia negar que o rapaz o
apavorava mas, ainda assim, Sara, que lhe dava pelo ombro, parecia tê-lo
domado, tanto que ele olhava para Rui como se fosse indigno de estar na
presença dele e baixava a bolinha cada vez que a rapariga se voltava para ele.
“Aqui
o Tomás tem uma coisa para te dizer, não tens Tomás?”, disse Sara, dirigindo um
sorriso ao rapaz, sorriso esse que de amistoso não tinha nada, pelo contrário,
era muito autoritário. Esperava que Tomás, imprevisível como era, não tivesse
um dos seus súbitos acessos de raiva e começasse a fazer algo violento que lhe
pudesse arranjar sarilhos. Se os acontecimentos do dia anterior não tivessem
tido lugar, a rapariga juraria a pés juntos que ele se ia comportar como devia
ser. No entanto, foram aqueles mesmos acontecimentos que os colocaram naquela
situação, por isso já nem dizia nada, preferindo optar por esperar para ver o
que ia suceder.
Tomás,
que nem podia acreditar que tinha dado o braço a torcer ao ponto de se ver
diante de Rui prestes a pedir-lhe desculpas, emitiu um grunhido
incompreensível. Estava habituado a que, de uma maneira, ou de outra,
conseguisse sempre levar a sua avante, não a que ficasse ele numa posição de
submissão. Isso era algo que não podia acontecer e, se prevalecesse a sua
vontade, não aconteceria. Onde é que já se tinha visto, ele a pedir perdão a
alguém como Rui? Se tivesse sido outra pessoa que não Sara a colocá-lo naquela
situação francamente desagradável, essa pessoa lamentá-lo-ia mil vezes. Porém,
tratava-se da rapariga e, por muito que ele desesperasse por ter sempre o controlo
de toda e qualquer situação, isso nem lhe parecia assim tão importante quando
se tratava da aprovação de Sara.
“Tomás,
estamos à espera”, incentivou a rapariga, com uma expressão séria. Ao vê-lo de
punhos cerrados e a espumar de raiva, quase que esteve para desistir antes que
acontecesse alguma coisa mas decidiu dar uma oportunidade ao rapaz, afinal
ainda acreditava que, apesar do seu temperamento, ele não a deixaria ficar mal.
Rui também parecia prestes a fugir antes que os seus ossos fossem sofrer as
consequências, mas ficou porque Sara lhe pediu.
“Desculpa”,
pediu, por fim, Tomás, dirigindo-se a Rui. Parecia que o preço a pagar para
ficar bem com a rapariga era ferir o seu orgulho, o que, depois de muito
matutar, era sacrifício que estava disposto a fazer. O sorriso que Sara lhe
dirigiu serviu para o assegurar que, realmente, tinha valido a pena.
Rui,
por sua vez, ficou sem saber o que dizer. Se lhe dissessem que a besta que o
tinha empurrado no dia anterior se ia dignar a agir como uma pessoa decente,
não acreditaria. De facto, tinha acontecido, ele presenciara-o e ainda não
acreditava. Não sabia o que é que Sara lhe tinha feito mas, fosse o que fosse,
tinha dado resultado. Não querendo abusar da sorte, respondeu que não fazia mal
e, aproveitando o som do toque como desculpa para não ter de continuar na
presença de Tomás, foi para a sua sala, ainda a tentar digerir a informação.
Permitindo-se
a suspirar de alívio, a rapariga, que, por um momento, viu a vida a andar para
trás, disse, com toda a sinceridade, ao mesmo tempo que recuperava a cor na
face, “Obrigada por teres feito isto”
“Por
tua causa”, salientou o rapaz, com um travo amargo na boca. Fazia questão de
deixar bem claro que só tinha tomado aquela atitude porque Sara lhe tinha
pedido, não porque sentisse qualquer ponta de remorso por algo que já nem se
lembrava que tinha feito, o que bem demonstrava a importância que ele tinha
dado ao assunto. João, o seu saco de pancada predilecto, pelo menos, era
discreto quanto às nódoas negras que ia coleccionando, fosse por vergonha,
fosse por medo, o que permitia a Tomás sair impune. Agora que tinha feito a
coisa certa aos olhos de Sara, estava, na sua opinião, na altura de ser
recompensado e até já tinha uma ideia, mas teria que esperar porque já estavam
atrasados para a aula. Se dependesse dele até poderiam não ir, mas a rapariga
era certinha.
E
foi assim que se sujeitou a uma aula extremamente aborrecida que demorou, na
sua perspectiva, um milénio a passar, mas sempre deu para arrochar um
bocadinho. Já Sara, de tão bem que se sentia com a sua boa acção, até encarou a
aula com um novo alento. Conseguira, não só, não deixar que a sua panca por
Tomás lhe corrompesse o discernimento, mas também reverter a situação e
voltá-la a favor de Rui. Gostava de acreditar que o rapaz tinha aprendido uma
lição e que o pedido de desculpas era genuíno, mas, conhecendo-o como conhecia,
ele só tinha compactuado com ela para que não o chateasse mais. Era, contudo,
um começo e, por isso, bem que se podia dar por muito sortuda, afinal a
situação podia ter corrido muito mal.
Quando
terminou a aula, muito para satisfação de Tomás, que vira a sua sesta
interrompida por um berro estridente da professora, o que o deixara irritado, o
rapaz aproveitou, não fosse alguém frustrar-lhe os planos antes que ele tivesse
sequer tempo de os dizer, e propôs a Sara, sempre com o seu melhor sorriso,
“Queres vir almoçar comigo?”
“Pode
ser”, respondeu a rapariga, demorando o seu tempo, como se estivesse a
contemplar a proposta. No fundo, não estava certa de que lhe apetecia passar
uma hora na companhia de Tomás, só a ideia deixava-a desconcertada, por algum
motivo, mas não queria parecer mal-educada e, por isso, concordou. Também não
queria dar a ideia de que o perdoava assim com tanta facilidade, daí nem sequer
lhe ter dirigido um sorriso.
“Óptimo!”,
disse o rapaz. A falta de entusiasmo de Sara era tão tangível que ele temeu que
ela das duas uma, ou lhe dizia que não, ou lhe dava uma desculpa esfarrapada,
para não aceitar, de tal forma que, quando ela, por fim, lá concordou, ele teve
que se conter para não lhe dar um abraço enorme ali mesmo. Tinha estado
confiante de que tudo iria correr bem mas sabia que a rapariga não era Cláudia
e, como tal, não estaria muito receptiva a demonstrações afectivas, o que
cimentou a sua decisão de conter a enorme vontade que tinha de lhe dar uma
abraço.
“Hm,
acho que também te devia pedir desculpa”, começou Sara, que não foi capaz,
sequer, de encarar Tomás. Sabia que fixar o olhar num prego ferrugento que saía
da mesa e ameaçava apanhar-lhe uma peça de roupa quando menos esperasse não era
uma atitude muito digna, mas era o que conseguia naquele momento. Inclusive,
estava consciente de que, não obstante a sua cobardice, se o rapaz se tinha
dignado a tomar a atitude correcta, ela devia fazer o mesmo, ou os remorsos que
não a tinham deixado dormir na noite passada iriam fazer das suas outra vez.
Respirando fundo, continuou, “Eu não queria ter dito aquilo ontem, estava
chateada e acabei por descarregar na Cláudia e tu ouviste, desculpa”
“Oh…”,
disse o rapaz, sem saber bem o que lhe responder. Uma parte de si, aquela mais
optimista, teve vontade de fazer uma dança feliz em cima da mesa enquanto
anunciava aos quatro ventos que, afinal, a rapariga queria saber dele. A outra
parte ainda estava a recuperar do golpe que tinha levado ao ouvir aquelas
palavras e não se permitia a esquecer. De forma atabalhoada, deu umas
pancadinhas ao de leve na cabeça da rapariga, como se esta fosse uma criança
que se tinha portado mal. Tinha sido uma resposta perfeitamente idiota, estava
ciente disso, mas ligar o botão do charme com Sara era mais difícil do que com
Cláudia.
Em
condições menos tensas, a rapariga ter-se-ia rido, mas, assim, tudo o que
conseguiu foi contar-se para não se encolher. Felizmente, a chegada da
professora que, noutras circunstâncias, não teria sido bem-vinda, poupou-a a
mais constrangimentos. Servindo-se de uma folha em branco do caderno, foi
rabiscando uma figura abstracta, para se entreter. Não era que não gostasse da
escola, nem das aulas, apenas tinha dificuldade em concentrar-se se não
estivesse a fazer outra coisa ao mesmo tempo e assim, enquanto estava a
desenhar, apanhava tudo o que era dito na aula. Olhando de vez em quando para o
rapaz, na sua visão periférica, não pôde deixar de reparar no phone que ele
tinha colocado entretanto no ouvido, escondido por entre o cabelo, o que a
divertiu imenso.
No
final da aula, já tinha terminado o esboço de uma figura que parecia um
unicórnio com asas de morcego, o que a arrepiou um bocado e a fez decidir que
aquele desenho não iria ver a luz do dia. Ao sentir a respiração de alguém na
sua cara, quase saltou um metro na cadeira, com o susto, o que fez com que
Tomás se risse, antes de apontar para a sua obra e dizer, “So cool”
“Ficou
mesmo estranho, não olhes”, disse Sara, que já tinha arrancado a folha do
caderno. Quando iam a sair da sala, atirou a folha amachucada para o caixote do
lixo, continuando a andar para a porta do pavilhão, quando reparou que o rapaz
não estava consigo, tendo aparecido, pouco depois, com um sorriso que a fez
revirar os olhos.
“Então
onde é que queres almoçar?”, perguntou Tomás, enquanto fazia contas ao seu
orçamento. Estava absolutamente decidido em oferecer o almoço à rapariga e não
havia nada que ela lhe pudesse dizer para o demover, mas estava limitado porque
Guida nunca lhe dera uma mesada muito generosa. Se não estivesse obrigado a
contar as moedinhas todas, teria levado Sara a um dos cafés que ficavam perto
da escola, mas como não tinha como financiar essa ideia, sugeriu, embaraçado,
“A cantina parece-te bem?”
“Parece-me
muito bem”, respondeu a rapariga, que não suportaria a ideia de ficar isolada
de tudo e todos na companhia do rapaz, não porque temesse que ele lhe fosse
cortar um dedo com o garfo e com a faca, desta vez, mas porque a simples
presença dele a estava a deixar incomodada. Na fila, quando chegou a vez deles
de comprar a senha, Tomás, ao vê-la tentar pagar a sua refeição, entregou ele o
dinheiro, o que a fez dizer, ultrajada, “O que é que foi isso?”
“Lunch’s
on me, today”, disse o rapaz, como se fosse a ideia mais clara do mundo. E, com
aquele gesto, não poderia comprar doces durante aquela semana, o que o
aborreceria, se não se estivesse a sentir muito bem consigo mesmo. Ao ver que
Sara ainda não tinha parado com a sua tirada ridícula e inútil de que ele não
lhe devia ter pago o almoço e que ela podia perfeitamente tê-lo feito,
respondeu, “Agora estamos quites, não me pagaste há não sei quanto tempo o
almoço, uma vez?”
“Não
me lembrava”, admitiu a rapariga, que, entretanto, já tinha esgotado todos os
argumentos e se tinha mentalizado de que ele não iria aceitar um não. Assim que
lhes serviram o almoço, uma sopa de caldo verde que, mais uma vez, coincidira
com o dia de cortar a relva na escola, o que constituía um padrão em que Sara
já tinha reparado e que nada servia para a sossegar, e uma pasta não
identificada com um arroz insípido, encontraram uma mesa vazia.
Contrariando
as expectativas da rapariga de que aquele seria um almoço longo e desagradável,
a conversa até fluiu muito bem, não tendo havido silêncios que não os
necessários para irem comendo. Quem os visse não diria que, nos últimos tempos,
tinham tido uma relação tumultuosa. Entre escutar a história que ele lhe estava
a contar sobre uma peripécia que tinha havido na sua antiga escola e, mais uma
vez, ceder ao seu lado “Cláudia”, como ela lhe chamava, a rapariga, que já
tinha esquecido o facto de ele não lhe ter dado oportunidade para pagar o
almoço, ia pensando, grata por ele não ter poderes de telepatia, no quanto
adorava os olhos dele. Cláudia passara o intervalo a falar no novo penteado
dele, mas, para Sara, ele parecia-lhe bem de qualquer maneira. Sentindo uma
certa pena, pensou no quão diferentes podiam ter sido as coisas se as circunstâncias
fossem outras.
Estava
Tomás a meio do relato de um miúdo na sua antiga escola que tinha sido hasteado
pelas cuecas num poste, radiante pelo facto de, o desconforto inicial ter
passado quase de imediato e por poderem estar ali bem, quando reparou na rapariga
a observá-lo intensamente. Perdendo o fio à meada, deu consigo a retribuir o
olhar. Como ele gostava da pele morena de ar macio dela e da cor dos olhos
dela, nem demasiado claros, nem demasiado escuros, e do nariz, que era tão
querido, o que era um desabafo mental idiota e, por isso, ele ficava muito
feliz por ela não lhe conseguir ler a mente. Ao ver que ela continuava a olhar,
perguntou, rindo, “What?”
Sara,
que lhe pareceu tão distraída, nem se dignou a responder, tendo continuado, a
olhar para ele, sorrindo de vez em quando, como se se tratasse de uma piada que
só ela conhecia. Numa tentativa de matar dois coelhos de uma só cajadada, o
rapaz tocou-lhe ao de leve na mão, para a acordar e para satisfazer a vontade
que sentia de ter algum contacto físico com a rapariga. Quando o fez, ela,
apanhada de surpresa, apressou-se a tirar a mão, como se tivesse acabado de
tocar em fogo, e disse, “Hm? Ah! Desculpa, estava distraída, hm, o que é que
estavas a dizer, ele ficou lá preso até as cuecas rasgarem?”
Quando
Tomás, arrependido de se ter atrevido a tocar em Sara, quando, ao que parecia,
as coisas não estavam bem ao ponto de ele se poder dar a esse luxo, ia a pedir
desculpa pela sua indiscrição, Cláudia apareceu, sentou-se na cadeira ao lado
dele, sem fazer cerimónia e agarrou-se ao pescoço dele, ignorando a rapariga, “Tomás!
Não te encontrava em lado nenhum, ontem desapareceste e eu fiquei preocupada
contigo, passou-se alguma coisa, querido?”
O
rapaz nem conseguia acreditar na pontaria de Cláudia para aparecer no momento
mais inconveniente. Como se não bastasse a reacção que a rapariga tinha tido
quando ele, num momento mais corajoso e mal calculado, se tinha atrevido um
bocadinho, ela tinha que se alapar a ele daquela maneira. Se Sara não estivesse
ali, então Cláudia seria mais do que bem-vinda, mas ter de ver a rapariga, com
cara de quem só queria uma brecha onde se enfiar, na pior altura possível, era
insuportável. Seria possível que Cláudia não tivesse percebido a ideia no Ano
Novo? De qualquer forma, se a situação com Sara estava irreparavelmente
danificada, então dar-lhe-ia jeito ter Cláudia como plano B. No entanto ele não
queria desistir assim. Que complicação.
“Vou
com o João beber café lá fora”, disse a rapariga, ao avistar o amigo lá fora.
Não era uma desculpa, já não era a primeira nem segunda vez, talvez fosse a
quinquagésima, que ela ia com João tomar café fora da escola, pois ele era a
única pessoa que partilhava o gosto dela. Ao ver que Cláudia a tinha despachado
com um gesto idêntico ao de quem enxota um bicho de estimação, achou por bem ir
embora, afinal a sua presença não era querida naquele momento.
Cláudia
ainda podia ter sentido um laivo de culpa por ter tratado uma amiga que lhe era
muito querida daquela maneira, mas se ela lhe tinha dado permissão no dia
anterior para que ficasse com o rapaz, ela ia aproveitar antes que ela mudasse
de ideias. Com o seu entusiasmo, às tantas deu por si no colo de Tomás, que
ficou a olhar para o lugar onde Sara tinha estado, com um ar abalado. Se a rapariga
não estava interessada no rapaz, Cláudia suspeitava que o inverso não
correspondesse, mas tinha esperança de o fazer mudar de ideias.
Tomás,
por pouco, não tinha apanhado o trejeito de algo que lhe pareceu ciúmes na
expressão de Sara e não lhe pareceu que fosse só imaginação sua. A verdade era
que só lá estivera durante uma fracção de segundo, mas fora o suficiente para
que ele tivesse dado por isso. Ora, ciúmes, ou ele muito se enganava,
significava que ele não era só mais um amigo para a rapariga ou, pelo menos,
que ela se tinha afeiçoado um bocadinho a ele, o que já era bom, afinal, às
tantas, até tinha medo de ousar ter esperança de que a situação pudesse
evoluir. Tinha que admitir que, contudo, ter Cláudia ali, tão disponível e
fácil, era uma alternativa tentadora, tanto que, ao longo daquela tarde, lhe
foi dando umas investidas, só para se certificar que ela se mantinha
interessada. No entanto, antes que pudesse acontecer alguma coisa para além de
umas brincadeiras inocentes, ele retraía-se, quando a culpa se tornava
impossível de ignorar.
Ao
chegar a casa, quando se viu na privacidade do seu quarto, tirou do bolso, pela
primeira vez desde que o tinha lá colocado, o desenho amarfanhado de Sara.
Parecia-lhe tão perfeito que não conseguia imaginar porque é que ela o tinha
deitado fora, mas isso era irrelevante, o que lhe importava mesmo era o facto
de ter sido a rapariga a desenhá-lo. Alisando os vincos antes de o colocar num
placard de cortiça que tinha junto à sua secretária, ficou a observá-lo. Era uma
espécie de recordação de Sara que ele tinha na sua posse e isso era algo que
ele acarinhava.