domingo, 13 de maio de 2012

Capítulo 97


Já tinham passado cinco anos desde o funeral da sua avó e, no decorrer desse espaço de tempo, Susana nunca mais voltara à sepultura, nunca mais voltara, sequer, a aproximar-se do local, sob pena de todos os seus esforços por deixar por detrás das costas as recordações daquele evento negro irem por água abaixo, afinal, conseguira finalmente, remodelar o quarto antigo e fazer umas mudanças em casa. Depois desse feito, não quisera arriscar a que houvesse qualquer retrocesso. No entanto, à medida que a data se aproximava, algo a fazia sentir que levar algumas flores à campa talvez não fosse má ideia.

Falou com Daniela sobre o assunto e, após esta a ter encorajado, com o argumento de que seria, não só mais uma meta a superar, como também um bom gesto, deu consigo a mexer nervosamente no cinto do carro da rapariga, irrequieta durante o percurso de casa até ao cemitério. A morena não deixou de reparar na sua inquietação, acabando por lhe afagar a mão, “Quem sabe se depois não vais ficar feliz por teres feito isto”

“Espero que tenhas razão”, disse a outra, voltando a sua atenção para o ramo de flores que trouxera. Rosas brancas, as preferidas da sua avó, decerto que ela as apreciaria.

Quando Daniela parou o carro junto à entrada do cemitério, Susana não encontrara ainda a presença de espírito suficiente para sair deste e ir até à campa. Muitas palavras de reconforto vindas da rapariga depois e a loura acabou por se decidir a seguir com aquilo para a frente. Nem tampouco aguentaria a culpa se acabasse por dar meia volta e desistir, aquilo era algo que tinha que ser feito, por muito que lhe doesse. De ramo na mão, despediu-se da morena, recusando a oferta desta de esperar por ela. Sabia que ela estava consciente de que aquilo era algo demasiado pessoal para a acompanhar, nem contava que aquela fosse uma visita breve.

Saindo do carro, inspirou o ar que se fazia sentir naquela manhã de Verão. O aroma a flores pairava no ar e, apesar de gostar do cheiro, naquela situação apenas a fazia sentir-se enjoada. Ignorando, seguiu caminho. Só lá estivera uma vez, quando acompanhara a avó à campa do avô, mas isso havia sido ainda quando era adolescente. Porém, não lhe foi difícil encontrar o caminho para a sepultura, em menos de nada estava junto à lápide. Esta apresentava-se pouco cuidada e esquecida, pelo menos quando comparada com as outras, embelezadas com flores. Sentindo-se culpada por a ter deixado chegar àquele ponto, passou a mão pelo pó até conseguir ler a inscrição: “Adorada avó”

Passando a mão pelo cabelo, Susana sentiu-se pequena naquele cemitério vazio, desprovido de vivalma para além dela, sensação essa intensificada quando a brisa matinal que se fazia sentir, a arrepiou dos pés à cabeça. Afastando o seu desconforto, lembrou-se do motivo que a trazia ali. Talvez fosse a coisa mais cliché de se fazer, mas parecia-lhe, de qualquer forma, a mais acertada. Agachando-se junto à lápide, colocou delicadamente o ramo de flores sobre a pedra poeirenta e murmurou, “Hm…desculpe, nunca mais cá vim, mas não me esqueci de si…pensei muito em si, sabe?”

Tendo sido tão próxima da avó, o seu único ponto de apoio durante grande parte da sua vida, não lhe foi difícil imaginar a conversa, mesmo que não obtivesse resposta. Conhecia tão bem a avó e as recordações desta eram tão vívidas que quase conseguia ouvir a voz dela sussurrar-lhe, sempre ternurenta, “Não tem importância, minha filha, eu sei que tu já és uma mulher e tens a tua vida”

“Trouxe-lhe flores, sei que gostava de rosas brancas…eu prefiro as vermelhas mas as suas preferidas são estas”, continuou a loura, certa de que lhe via o sorriso, sempre presente, ou quando cuidava do seu jardim, ou quando era presenteada com flores. Sorrindo, por sua vez, levantou a manga da camisola, expondo o antebraço, “Espero que não se chateie, mas queria fazer-lhe uma homenagem e esta foi a única maneira que me ocorreu”

Se tivesse aparecido em casa com uma tatuagem, a avó, por sua vontade, ter-lha-ia arrancado à dentada e era com grande pena de Susana que nunca chegaria a ouvir a reprimenda. Conseguia vê-la abanar a cabeça em sinal de reprovação, “Ai Susana…agora isso não sai”

“Nem eu queria avó, fi-la de alma e coração”, disse a loura, sorrindo. Respirando fundo, declarou, “Não imagina o quanto as coisas mudaram nestes anos”

“Ganho a vida a cantar, veja lá…quem diria que a única coisa que os meus pais me deixaram, a viola, um dia viria a dar jeito”, disse a outra, rindo, bem-disposta, “E por falar neles, um santo dia lembraram-se de aparecer e tirar-me dinheiro…mas como a avó dizia, cá se fazem, cá se pagam e agora estão presos”

Tal como nos tempos em que a avó a congratulara por tirar uma nota satisfatória, esta estaria muito feliz por ela, por tudo o que conseguira e por onde estava, ao mesmo tempo que decepcionada com o filho, o eterno arruaceiro. Chegara-lhe a confidenciar que a única alegria que o pai da loura lhe concedera fora ter-lhe dado uma neta que compensasse tudo o que ele não fora.

“O Bruno, a Carolina e o Duarte estão bem”, continuou Susana, consciente de que a avó, tendo em conta o facto de os pais se encontrarem presos, estaria preocupada com os netos, “Não é preciso preocupar-se, eu mando-lhes dinheiro de vez em quando…eles precisam mais do que eu”

“De resto estão todos bem”, relatou a loura, entusiasmada, agora que se aproximavam temas mais alegres, “O Tiago e a Guida vão casar daqui a uns dias, acredita? Não um com o outro, credo, mas vão casar! E quer saber a melhor parte?”

Fazendo uma pausa, mais para criar suspense que outra coisa qualquer, continuou, quase com a voz a falhar de satisfação, “Eu também casei! As coisas com a Dani correram bem e tenho a certeza que encontrei a mulher da minha vida, mas isso já a avó sabia…estamos a pensar em ter filhos em breve, acho que a avó ficaria orgulhosa”

“Que bom! Desejo-vos tudo de bom!”, diria a avó enquanto a abraçaria. O estilo de vida da neta nunca fora problema, isso Susana sabia perfeitamente, o seu desejo sempre fora a felicidade desta e, vê-la tão feliz trar-lhe-ia a maior satisfação. No fim do relato, depois de ter falado de todas as coisas, boas e más, que aconteceram ao longo daqueles anos, tal como a avó gostaria de estar a par, levantou-se e constatou que tinha as pernas entorpecidas. Perguntou-se quanto tempo teria passado, nem dera por ele passar. Ao verificar o relógio, decidiu ligar a Daniela, já se fazia tarde e tinham combinado ir almoçar a casa dos pais desta. Feliz por ter visitado a sepultura da avó, despediu-se e foi embora. Apenas lamentou não o ter feito há mais tempo, sem dúvida que se sentia melhor.

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Se alguma vez algum saber popular se revelara verdadeiro, seria, “Dar tempo ao tempo”. Acaso assim não fosse, Susana continuaria a ser a pedra no sapato da mãe de Daniela. E pensar que esta começara por declarar guerra à loura. Agora era ela quem tomava a iniciativa e convidava a outra a ir almoçar lá a casa, o seu santuário impenetrável, convite esse que Susana aceitara entusiasticamente. Foi assim que se viu a caminho da casa dos sogros, onde se adivinhava uma refeição de fazer crescer água na boca. Já para Daniela, a progressiva aceitação da loura na família era tudo quanto pedia, nem mais, nem menos, mas se os seus progenitores e restantes parentes mais chegados se afeiçoaram a ela, não se queixava, ora essa.

Tocando à campainha, afinal aquela já não era a sua casa e, como tal não ficava bem entrar lá como se ainda fosse, a rapariga aguardou, enquanto a outra metia a mão dentro do portão para mimar a cadela, que saltava eufórica. Não muito mais tarde, o pai abriu-lhes a porta, saudando-as com o seu característico sorriso afável, “Olá!”

Felizmente para a morena, o pai nunca se opusera à relação delas, escolhendo sempre manter-se à margem, por considerar que não lhe cabia a ele opinar sobre as decisões da vida pessoal da filha. O único defeito que encontrava em Susana, tanto quanto Daniela conseguiu apurar, era, para além da música dela, na sua opinião, atroz, o alcance limitado da mente desta. No entanto, tratava bem a sua menina e, como tal, não podia pedir mais. Agora se a música dela deixasse de o perseguir sempre que ligava o rádio…

“Bom dia, sogro”, recebeu a loura, alegremente.

“Bom dia, Susana…”, respondeu o pai. A juntar à música e ao intelecto reduzido, eram aqueles cumprimentos que nunca deixariam de lhe fazer comichão. O que um pai não aturava pela filha. Lembrando-se da má experiência da outra com comida indiana, acrescentou, “Descanse que hoje só a minha comida e a da minha filha é que levaram picante, isso lembra-me…Daniela! Hoje temos aquele molho africano!”

“Óptimo!”, manifestou-se a rapariga, brilhando como uma lâmpada de 1000 watts, “Comprei lá para casa ashar indiano, que bomba!”

“Sim e agora dormes no sofá”, troçou Susana. Em boa verdade, vontade não lhe faltava, não se podia comer sem trepar paredes e enterrar a cabeça numa fonte.

“Mas tu és tão adorável que aguentas a minha comida sem fitas e ainda me deixas dormir na tua caminha”, replicou a morena, com olhinhos de Bambi, agarrando-se ao braço da loura.

“és tão…”, tentou a outra contra-atacar, interrompida por Daniela que a beijara.

Era a deixa do pai para sair dali, antes que corasse. Quando desapareceu da cena, a mãe da rapariga espreitou pela porta da cozinha, no exacto momento em que Susana mordera o pescoço à sua querida filha, já com as mãos um pouco baixas. Ao avistar a sogra, a loura afastou-se, com cara de quem tinha sido apanhada, “Estava com fome, bom dia sogrinha”

Escondendo a confusão que lhe fazia ver alguém, independentemente do género, tocar na sua filha, proferiu, “Bom dia norinha…eu mudava-lhe as fraldas, acredita que não querias ver isso, e aconchegava-lhe os lençóis…não faças isso à minha filhinha à minha frente”

“Eu aconchego, não se preocupe”, garantiu a outra, com um sorriso travesso, “Mudar a fralda não, mas que a faço ter de mudar de cuecas…”

Uma cotovelada no estômago por parte da morena impediu-a de continuar, muito para alívio da mãe. Abanando a cabeça, Daniela sussurrou, “ Estúpida”

“Adoro quando és má…au”, replicou Susana, arranjando fôlego para dar sinal de si, apesar das dores que sentia. Porém, ficou bastante mais satisfeita quando a rapariga pediu tréguas, tréguas essas que aceitou sem demora. Se já se encontrava satisfeita, mais satisfeita ficou quando a morena a acompanhou até à mesa pela mão, apenas para constatar que o almoço não era nada de exótico, vindo das Arábias ou Índias.

Durante todos aqueles anos que aproveitava todas e quaisquer oportunidades de convivência com os sogros, sempre fazendo tudo para não os deixar mal impressionados. Umas vezes conseguia, outras não. No entanto, era bem recebida na família e levavam uma coexistência pacífica e…amistosa? O certo era que estava orgulhosa.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Capítulo 96


Desculpaaaaaaaa!


Se o episódio em que Susana conhecera os pais de Daniela muito divertira Guida, a ponto de ainda a picar nos tempos que corriam, o mesmo não poderia sentir agora que era a sua vez de ser oficialmente apresentada aos pais de Marta. Não era que se sentisse pouco à vontade, muito menos constrangida, afinal tal palavra nunca figurara, não figurava, nem figuraria no seu dicionário, mas, se havia coisa que não queria, era causar má impressão. Sabia à partida que os pais da noiva estavam a par de tudo, como se Marta tivesse algum problema em dizer-lhes, apenas nunca a tinham conhecido. Agora isso estava prestes a mudar.

Recusando a oferta de Susana para a ajudar a vestir-se, só de imaginar como ficaria o resultado final ficava indisposta, decidiu-se por algo simples para os seus padrões, mas que não impedisse de impressionar. Uma saia que faria uma grande parte da população corar, embora se mantivesse discreta e um top numa tonalidade alegre serviria, os olhos arregalados da loura eram mais do que toda a confirmação que precisava. Uma vez vestida, maquilhada e pronta, observou o seu reflexo no espelho. Aprovada e prestes a sair de casa, confiante. De cabelos ao vento, no seu descapotável, a grande inveja de Daniela, dirigiu-se a casa de Marta. 

Pelo que esta dissera, não havia nada que os pais não soubessem, apenas não aprovavam a relação e sempre a consideraram como estando destinada ao fracasso, tendo em conta o historial conturbado tanto de uma como de outra. A mãe aceitara bem, tanto quanto possível, embora o pai se tenha mostrado mais relutante. Porém, se a mãe de Daniela conseguira afeiçoar-se a Susana nos seus tempos de quase pedinte, então o pai de Marta estaria a fazer vénias a Guida. Já os pais de Guida pouco queriam saber, desde que a sua menina tratasse dos negócios de família podia fazer o que bem entendesse.

Ajeitando o cabelo pela última vez, o seu gesto nervoso, Guida tocou à campainha. Enquanto esperava que a recebessem, olhou à sua volta. Ao ver-se reflectida na janela, murmurou, satisfeita, “Comia-me a mim mesma, foda-se”

Instantes mais tarde, Marta abriu a porta, já com um ar enfastiado que rapidamente se transformou num sorriso ao ver a noiva. Depois de beijar Guida, disse, “Estás tão linda! Mas eles já me estão a encher a cabeça…”

Nada desmoralizada, Guida assegurou-a de que tudo iria correr bem e, juntando o gesto à palavra, entrou porta dentro, como se desde sempre lá tivesse vivido, seguida pela noiva, convicta que a missão estava no papo, “Onde é que estão os meus futuros sogros?”

“Estão nas traseiras…ai”, disse Marta, quase a roer as unhas. Era Guida, conseguia sempre sair-se bem, mesmo quando a situação faria os comuns mortais tremerem. E quando queria conseguia ser bastante doce, não havia quem lhe ficasse indiferente. Com os sogros não havia de ser diferente, era o que lhe dava ânimo.

Nas traseiras de casa, onde era o jardim, a família encontrava-se na periferia de uma churrasqueira, até aí, tudo normal. O aroma a carvão espalhado por uma brisa ligeira que se fazia sentir era intenso. Junto a uma mesa estava, quem Guida presumia que fosse, a irmã mais nova de Marta, Alexandra. Não aparentavam muitas semelhanças, embora não custasse acreditar que fossem irmãs. A expressão de admiração desta valeu o dia a Guida, “Mas…esta é que é a Guida?”

Os pais de Marta voltaram-se tão depressa que as febras, esquecidas, iniciaram o processo de carbonização. Duas expressões da mais profunda admiração juntaram-se à abismada de Alexandra, que entretanto ganhara um tom azul nada saudável. Não fazia mal, Guida estava habituada a fazer entradas em grande e a atenção sabia-lhe pela vida, “Muito bom dia”

Não obteve resposta, para além de três figuras petrificadas e um cheiro a carne que acabara de virar sola se sapato. Fazendo um esforço que lhe pareceu uma bola de basquete entalada na garganta, o pai de Marta falou, por fim, “B…bom…dia, é a Guida?”

“Fuck yeah, bitches!”, pensou Guida, deliciada com a atenção, se bem que o que verdadeiramente disse foi, “É sim, muito prazer”

Juntando o gesto à palavra, esticou a mão para apertar a do homem. O pai de Marta, o eterno macho, até se sentiu mal por apertar a mão a uma mulher tão feminina e delicada como Guida, apesar de ser quase tão alta como ele. Qual não foi o seu espanto quando todos os ossos da sua mão estalaram sob um aperto que envergonharia um taberneiro. Já com os olhos a lacrimejar, apenas a aguentar o choro não fosse a sua condição de homem estar em causa, replicou, “Igualmente…ai mãe”

Soltando a mão do homem, muito para alívio deste, voltou-se para a senhora. Sabia à partida que era quem mais apoiava a sua relação com Marta e, por isso, estava-lhe muito grata. Abordando a senhora com todo o tacto e simpatia, cumprimentou, com o seu melhor sorriso, “Bom dia, Margarida Vieira, muito prazer”

Marta não cabia em si de contente, sem dúvida que os seus progenitores tinham ficado bem impressionados. Só faltava o veredicto da sua irmã. Quando Guida se encontrava no metro quadrado de Alexandra, esta subitamente pareceu voltar à vida. Fosse o facto de as luzes da ribalta já não estarem voltadas para a sua pessoa, fosse o facto de Guida ser muito mais bem-parecida do que esperava, afinal previa uma camionista com pêlos nas axilas, não estava contente. Respirando fundo, disse, “Desculpa?!”

Pressentindo um mau agoiro, tanto Guida como Marta voltaram-se e encararam a irmã. Quando os seus olhares pousaram sobre Alexandra, esta parecia furiosa, embora visivelmente satisfeita por ter a atenção em si, “Não acho isto nada bem!”

Deixando a irmã falar, Marta nada disse, limitando-se a apertar a mão a Guida. Não tendo mais do que a sua necessidade de atenção em vez de argumentos, prosseguiu, com novo alento, “Olha-me só para esta! Não querias arranjar uma mais puta, não?”

Perplexa, Guida deu consigo num impasse, coisa a que não estava habituada. Não tolerava que lhe falassem assim e, fossem diferentes as circunstâncias, a pessoa que ousasse sequer pensar em referir-se a ela nesses termos estaria a descolar os dentes do asfalto. Mas estava tão determinada a causar boa impressão que forçou um sorriso que mais a fazia aparentar um tubarão maquilhado, “Oh não sejas assim”

“Calma amor, eu resolvo isto”, garantiu Marta, que já sentia a noiva a irritar-se e, quando esta se irritava, não era bonito. Dirigindo-se à sua irmã, repreendeu, “Já sei que tens dor de cotovelo, mas não falas assim com ela!”

“Dor de cotovelo? Desta perua?!”, grasnou Alexandra, de olhos arregalados. Tinha sido apanhada. As preferências da irmã não lhe causavam mais impressão do que o normal, mas quando esta lhe aparecia em casa com uma que a superava em beleza ou ostentação, aí é que começava a haver problema, “É que nem pensar!”

“Vai lá chorar para um canto, este casamento vai acontecer quer tu queiras, quer não”, disse Marta, calmamente.

Nesse momento foi a vez de os pais voltarem a dar sinal de si, como se lhes tivesse caído uma saca de cimento em cima, “Casamento?!”

“Sim, vamos casar”, esclareceu Marta, sem cerimónia. Não era de todo daquela maneira que tencionava dar a notícia mas enfim, agora que o dissera, não havia como voltar atrás.

Como se tivessem combinado, tanto Alexandra como os pais sustiveram a respiração. Depois de ter passado o que pareceu horas, o pai manifestou-se, vermelho como o cabelo da filha, “E só agora é que nos dizes, assim, dessa maneira?!”

Guida não se manifestou, optando por deixar Marta resolver a situação, afinal esta saberia melhor que ela como lidar com os progenitores. Entretanto o jornal “A Bola”, dobrado em cima da mesa junto a uma grade, chamara-lhe à atenção e, nesse momento fez-se luz. Decerto que agradar ao sogro não seria um problema. Depois de definir um plano, aguardou o desenrolar da discussão entre Marta e os pais, “Vocês nem precisam de vir, embora eu gostasse que estivessem comigo no grande dia”

Antes que o pai tivesse tempo de rebentar, a mão sossegou-o, fazendo-lhe festinhas no braço enquanto sussurrava, “Tem calma amorzinho, não digas nada de que te possas vir a arrepender mais tarde”

O marido pareceu guardar para si o que quer que quisesse dizer, mas não sem despejar pela garganta abaixo uma garrafa de cerveja bem fresquinha. Aquilo devia ser a bebida de Deus. Bebendo outra, mais bem-disposto ao ver os olhares sugestivos da mulher, disse, “Bah, faz o que quiseres, até lá, sirvam-se…ui!”

Enquanto o pai corria a acudir aos bifes reduzidos a carvão, Marta dirigiu um agradecimento telepático à mãe, que acenou em resposta, dando graças por o marido se distrair facilmente. O resto do dia foi aprazível para todos, Guida e o futuro sogro passaram a tarde numa acesa discussão de futebol à medida que a cerveja desaparecia, enquanto Marta e a mão falavam do casamento. Alexandra, por sua vez, retirou-se, a espumar de raiva. Porém, nem Marta, nem Guida lhe deram grande importância, não era que uma birra mesquinha causasse mossa na sua felicidade.