Já tinham passado cinco anos
desde o funeral da sua avó e, no decorrer desse espaço de tempo, Susana nunca
mais voltara à sepultura, nunca mais voltara, sequer, a aproximar-se do local,
sob pena de todos os seus esforços por deixar por detrás das costas as
recordações daquele evento negro irem por água abaixo, afinal, conseguira
finalmente, remodelar o quarto antigo e fazer umas mudanças em casa. Depois
desse feito, não quisera arriscar a que houvesse qualquer retrocesso. No
entanto, à medida que a data se aproximava, algo a fazia sentir que levar
algumas flores à campa talvez não fosse má ideia.
Falou com Daniela sobre o
assunto e, após esta a ter encorajado, com o argumento de que seria, não só
mais uma meta a superar, como também um bom gesto, deu consigo a mexer
nervosamente no cinto do carro da rapariga, irrequieta durante o percurso de
casa até ao cemitério. A morena não deixou de reparar na sua inquietação,
acabando por lhe afagar a mão, “Quem sabe se depois não vais ficar feliz por teres
feito isto”
“Espero que tenhas razão”,
disse a outra, voltando a sua atenção para o ramo de flores que trouxera. Rosas
brancas, as preferidas da sua avó, decerto que ela as apreciaria.
Quando Daniela parou o carro
junto à entrada do cemitério, Susana não encontrara ainda a presença de
espírito suficiente para sair deste e ir até à campa. Muitas palavras de
reconforto vindas da rapariga depois e a loura acabou por se decidir a seguir
com aquilo para a frente. Nem tampouco aguentaria a culpa se acabasse por dar
meia volta e desistir, aquilo era algo que tinha que ser feito, por muito que
lhe doesse. De ramo na mão, despediu-se da morena, recusando a oferta desta de
esperar por ela. Sabia que ela estava consciente de que aquilo era algo
demasiado pessoal para a acompanhar, nem contava que aquela fosse uma visita
breve.
Saindo do carro, inspirou o ar
que se fazia sentir naquela manhã de Verão. O aroma a flores pairava no ar e,
apesar de gostar do cheiro, naquela situação apenas a fazia sentir-se enjoada.
Ignorando, seguiu caminho. Só lá estivera uma vez, quando acompanhara a avó à
campa do avô, mas isso havia sido ainda quando era adolescente. Porém, não lhe
foi difícil encontrar o caminho para a sepultura, em menos de nada estava junto
à lápide. Esta apresentava-se pouco cuidada e esquecida, pelo menos quando
comparada com as outras, embelezadas com flores. Sentindo-se culpada por a ter
deixado chegar àquele ponto, passou a mão pelo pó até conseguir ler a
inscrição: “Adorada avó”
Passando a mão pelo cabelo, Susana
sentiu-se pequena naquele cemitério vazio, desprovido de vivalma para além
dela, sensação essa intensificada quando a brisa matinal que se fazia sentir, a
arrepiou dos pés à cabeça. Afastando o seu desconforto, lembrou-se do motivo
que a trazia ali. Talvez fosse a coisa mais cliché de se fazer, mas
parecia-lhe, de qualquer forma, a mais acertada. Agachando-se junto à lápide,
colocou delicadamente o ramo de flores sobre a pedra poeirenta e murmurou,
“Hm…desculpe, nunca mais cá vim, mas não me esqueci de si…pensei muito em si,
sabe?”
Tendo sido tão próxima da avó,
o seu único ponto de apoio durante grande parte da sua vida, não lhe foi
difícil imaginar a conversa, mesmo que não obtivesse resposta. Conhecia tão bem
a avó e as recordações desta eram tão vívidas que quase conseguia ouvir a voz
dela sussurrar-lhe, sempre ternurenta, “Não tem importância, minha filha, eu
sei que tu já és uma mulher e tens a tua vida”
“Trouxe-lhe flores, sei que
gostava de rosas brancas…eu prefiro as vermelhas mas as suas preferidas são
estas”, continuou a loura, certa de que lhe via o sorriso, sempre presente, ou
quando cuidava do seu jardim, ou quando era presenteada com flores. Sorrindo,
por sua vez, levantou a manga da camisola, expondo o antebraço, “Espero que não
se chateie, mas queria fazer-lhe uma homenagem e esta foi a única maneira que
me ocorreu”
Se tivesse aparecido em casa
com uma tatuagem, a avó, por sua vontade, ter-lha-ia arrancado à dentada e era
com grande pena de Susana que nunca chegaria a ouvir a reprimenda. Conseguia
vê-la abanar a cabeça em sinal de reprovação, “Ai Susana…agora isso não sai”
“Nem eu queria avó, fi-la de
alma e coração”, disse a loura, sorrindo. Respirando fundo, declarou, “Não
imagina o quanto as coisas mudaram nestes anos”
“Ganho a vida a cantar, veja
lá…quem diria que a única coisa que os meus pais me deixaram, a viola, um dia
viria a dar jeito”, disse a outra, rindo, bem-disposta, “E por falar neles, um
santo dia lembraram-se de aparecer e tirar-me dinheiro…mas como a avó dizia, cá
se fazem, cá se pagam e agora estão presos”
Tal como nos tempos em que a
avó a congratulara por tirar uma nota satisfatória, esta estaria muito feliz
por ela, por tudo o que conseguira e por onde estava, ao mesmo tempo que
decepcionada com o filho, o eterno arruaceiro. Chegara-lhe a confidenciar que a
única alegria que o pai da loura lhe concedera fora ter-lhe dado uma neta que
compensasse tudo o que ele não fora.
“O Bruno, a Carolina e o
Duarte estão bem”, continuou Susana, consciente de que a avó, tendo em conta o
facto de os pais se encontrarem presos, estaria preocupada com os netos, “Não é
preciso preocupar-se, eu mando-lhes dinheiro de vez em quando…eles precisam
mais do que eu”
“De resto estão todos bem”,
relatou a loura, entusiasmada, agora que se aproximavam temas mais alegres, “O
Tiago e a Guida vão casar daqui a uns dias, acredita? Não um com o outro,
credo, mas vão casar! E quer saber a melhor parte?”
Fazendo uma pausa, mais para
criar suspense que outra coisa qualquer, continuou, quase com a voz a falhar de
satisfação, “Eu também casei! As coisas com a Dani correram bem e tenho a
certeza que encontrei a mulher da minha vida, mas isso já a avó sabia…estamos a
pensar em ter filhos em breve, acho que a avó ficaria orgulhosa”
“Que bom! Desejo-vos tudo de
bom!”, diria a avó enquanto a abraçaria. O estilo de vida da neta nunca fora
problema, isso Susana sabia perfeitamente, o seu desejo sempre fora a
felicidade desta e, vê-la tão feliz trar-lhe-ia a maior satisfação. No fim do
relato, depois de ter falado de todas as coisas, boas e más, que aconteceram ao
longo daqueles anos, tal como a avó gostaria de estar a par, levantou-se e
constatou que tinha as pernas entorpecidas. Perguntou-se quanto tempo teria
passado, nem dera por ele passar. Ao verificar o relógio, decidiu ligar a
Daniela, já se fazia tarde e tinham combinado ir almoçar a casa dos pais desta.
Feliz por ter visitado a sepultura da avó, despediu-se e foi embora. Apenas
lamentou não o ter feito há mais tempo, sem dúvida que se sentia melhor.
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Se alguma vez algum saber popular
se revelara verdadeiro, seria, “Dar tempo ao tempo”. Acaso assim não fosse,
Susana continuaria a ser a pedra no sapato da mãe de Daniela. E pensar que esta
começara por declarar guerra à loura. Agora era ela quem tomava a iniciativa e
convidava a outra a ir almoçar lá a casa, o seu santuário impenetrável, convite
esse que Susana aceitara entusiasticamente. Foi assim que se viu a caminho da
casa dos sogros, onde se adivinhava uma refeição de fazer crescer água na boca.
Já para Daniela, a progressiva aceitação da loura na família era tudo quanto
pedia, nem mais, nem menos, mas se os seus progenitores e restantes parentes
mais chegados se afeiçoaram a ela, não se queixava, ora essa.
Tocando à campainha, afinal
aquela já não era a sua casa e, como tal não ficava bem entrar lá como se ainda
fosse, a rapariga aguardou, enquanto a outra metia a mão dentro do portão para
mimar a cadela, que saltava eufórica. Não muito mais tarde, o pai abriu-lhes a
porta, saudando-as com o seu característico sorriso afável, “Olá!”
Felizmente para a morena, o
pai nunca se opusera à relação delas, escolhendo sempre manter-se à margem, por
considerar que não lhe cabia a ele opinar sobre as decisões da vida pessoal da
filha. O único defeito que encontrava em Susana, tanto quanto Daniela conseguiu
apurar, era, para além da música dela, na sua opinião, atroz, o alcance
limitado da mente desta. No entanto, tratava bem a sua menina e, como tal, não
podia pedir mais. Agora se a música dela deixasse de o perseguir sempre que
ligava o rádio…
“Bom dia, sogro”, recebeu a
loura, alegremente.
“Bom dia, Susana…”, respondeu
o pai. A juntar à música e ao intelecto reduzido, eram aqueles cumprimentos que
nunca deixariam de lhe fazer comichão. O que um pai não aturava pela filha.
Lembrando-se da má experiência da outra com comida indiana, acrescentou,
“Descanse que hoje só a minha comida e a da minha filha é que levaram picante,
isso lembra-me…Daniela! Hoje temos aquele molho africano!”
“Óptimo!”, manifestou-se a
rapariga, brilhando como uma lâmpada de 1000 watts, “Comprei lá para casa ashar
indiano, que bomba!”
“Sim e agora dormes no sofá”,
troçou Susana. Em boa verdade, vontade não lhe faltava, não se podia comer sem
trepar paredes e enterrar a cabeça numa fonte.
“Mas tu és tão adorável que
aguentas a minha comida sem fitas e ainda me deixas dormir na tua caminha”,
replicou a morena, com olhinhos de Bambi, agarrando-se ao braço da loura.
“és tão…”, tentou a outra
contra-atacar, interrompida por Daniela que a beijara.
Era a deixa do pai para sair
dali, antes que corasse. Quando desapareceu da cena, a mãe da rapariga
espreitou pela porta da cozinha, no exacto momento em que Susana mordera o
pescoço à sua querida filha, já com as mãos um pouco baixas. Ao avistar a
sogra, a loura afastou-se, com cara de quem tinha sido apanhada, “Estava com
fome, bom dia sogrinha”
Escondendo a confusão que lhe
fazia ver alguém, independentemente do género, tocar na sua filha, proferiu, “Bom
dia norinha…eu mudava-lhe as fraldas, acredita que não querias ver isso, e
aconchegava-lhe os lençóis…não faças isso à minha filhinha à minha frente”
“Eu aconchego, não se preocupe”,
garantiu a outra, com um sorriso travesso, “Mudar a fralda não, mas que a faço
ter de mudar de cuecas…”
Uma cotovelada no estômago por
parte da morena impediu-a de continuar, muito para alívio da mãe. Abanando a
cabeça, Daniela sussurrou, “ Estúpida”
“Adoro quando és má…au”,
replicou Susana, arranjando fôlego para dar sinal de si, apesar das dores que
sentia. Porém, ficou bastante mais satisfeita quando a rapariga pediu tréguas,
tréguas essas que aceitou sem demora. Se já se encontrava satisfeita, mais
satisfeita ficou quando a morena a acompanhou até à mesa pela mão, apenas para
constatar que o almoço não era nada de exótico, vindo das Arábias ou Índias.
Durante todos aqueles anos que
aproveitava todas e quaisquer oportunidades de convivência com os sogros,
sempre fazendo tudo para não os deixar mal impressionados. Umas vezes
conseguia, outras não. No entanto, era bem recebida na família e levavam uma
coexistência pacífica e…amistosa? O certo era que estava orgulhosa.