sábado, 22 de setembro de 2012

Capítulo 2


Em frente ao espelho, Afonso segurava, em cada mão, uma camisola. Experimentando, ora uma, ora outra, não se decidia. Todos os pormenores eram importantes e queria dar uma imagem melhor do que a que dera quando conhecera Leonor. Já fizera a barba e tomara banho mas não queria cometer o erro de ir mal vestido, não fosse parecer pouco atraente aos olhos dela. Incapaz de conseguir um resultado que lhe agradasse, chamou, desesperado, “Mãe!”

Pouco depois, Susana, batendo à porta, perguntou, “O que é?”

“Preciso da tua opinião”, disse o rapaz, de sobrolho franzido, sem nunca tirar os olhos do seu reflexo no espelho. E se o problema não estivesse na roupa mas sim nele? De facto podia trabalhar mais os músculos da zona abdominal e, mesmo tendo ido à praia várias vezes durante o Verão, ainda tinha uma tonalidade de pele demasiado clara. Angustiado, pegou nas camisolas e questionou, “Qual destas?”

Ponderando durante um instante, Susana abanou a cabeça, em sinal de reprovação, “Nem uma nem outra, leva antes a que compraste outro dia, mas com outros ténis”

“A ideia é favorecer-me o mais possível”, confessou ele, sentando-se na cama, desanimado. Se ao menos fosse mais como Rúben não teria que se preocupar com estes pormenores, por onde quer que passasse as raparigas adoravam-no. Já Afonso era sempre ignorado, pelo menos até saberem que era filho da Susana Marques, mas o fascínio desaparecia quando descobriam que não tocava viola, nem cantava de modo afinado nem que a vida dependesse disso.

“Não digas isso”, reconfortou a loura, sentando-se ao lado dele, “És perfeito como és e não é uma camisola azul ou uma branca que vai fazer diferença…a sério, não te preocupes com isso, a Leonor tem muita sorte por ter alguém como tu interessado nela”

“Dizes isso porque és minha mãe”, lamentou-se o rapaz, embora soubesse que Susana só o estava a tentar animar, “Mas obrigada na mesma”

“Mau”, repreendeu Susana, séria, “Como é que esperas que ela vá gostar de ti se nem tu gostas? Elas não gostam de choninhas inseguros que se sentam num canto a chuchar no dedo, olha que eu sei do que falo”

“Mas…”, insistiu ele, apenas para se calar quando a mãe o fulminou com o olhar. Agradecendo mais uma vez a ajuda, acabou de se despachar, não fosse o tempo começar a escassear-lhe. Prometendo não tomar uma atitude tão passiva durante aquela noite, saiu, esperando que tudo corresse pelo melhor.

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Fiel à sua palavra, Leonor, embora pouco entusiasmada e desejosa que o tempo passasse depressa, aguardava por Afonso à porta de casa, tal como combinado. Durante a espera, observou o seu reflexo na janela, ficando agradada com o que viu. Não era que tencionasse impressioná-lo, mas gostava de fazer boa figura, fosse qual fosse a ocasião. Observando ora o mostrador do relógio, ora a esquina da rua, a rapariga suspirou, exasperada. Se ele chegasse atrasado sempre justificaria a pouca vontade que ela tinha de sair com ele e lhe permitiria recusar convites daqueles no futuro. Porém, estava sem sorte. Às nove em ponto, como fora acordado, já avistava o rapaz a alguma distância. Previa um serão chato, com Afonso a orbitar à sua volta e incapaz de deixar que houvesse um momento de silêncio que fosse, sem descurar as incontornáveis tentativas de a impressionar.

Assim que ele se aproximou, ela, ao contrário do que se poderia esperar, acabou por se surpreender, embora nunca o fosse admitir. Se, quando foram apresentados, ele, com os seus caracóis escuros desalinhados e barba por fazer, o que lhe conferira um aspecto desleixado, a deixara pouco impressionada, agora, os mesmos caracóis, ainda molhados e a face suave, que lhe deixava as covinhas em evidência, obrigavam-na a mudar de opinião. Disfarçando com uma expressão estóica, Leonor deixou o olhar passar da cara para os ombros largos e para os braços bem definidos, cortesia de uma camisola sem mangas. Podia ser mais alto, afinal ela, se usasse saltos, ultrapassá-lo-ia em altura, mas, à parte disso, tinha que admitir que o rugby lhe havia feito muito bem.

Por uma centésima de segundo, temeu que o rapaz a tivesse apanhado a observá-lo, isso colocá-la-ia numa posição desconfortável. No entanto, estava tão segura da sua expressão neutra, que manteria mesmo que o mundo estivesse a desabar diante dos seus olhos, que tal seria impossível. O mesmo não se aplicava a Afonso que, com os olhos vidrados, a mirava da maneira mais enternecida. Não fazia mal, estava mais do que acostumada à atenção da população masculina e, se o rapaz tivesse a ideia de tentar algo, ela saberia como lidar com a situação. Dando um passo para ele, confiante, fez com que acordasse do seu torpor, “Boa noite”

“Ahm? Boa noite!”, respondeu ele, pestanejando, claramente embaraçado. Olhando, ora para a imagem de perfeição que se encontrava à sua frente, ora para a janela onde a imagem menos perfeita do irmão de Leonor lhe fazia um gesto obsceno, achou por bem porem-se a caminho, não fosse envergonhar-se mais, “Vamos?”

“Claro”, disse a rapariga, seguindo à sua frente, sem esperar por ele. Mordendo o lábio, tentou recalcar o facto de que, no fundo, até se sentira lisonjeada por ver o trabalho que o rapaz tivera para estar o mais apresentável possível para ela, ainda para mais a forma como ele a olhava, como se estivesse a ver Deus. Mais do que isso, não fosse ela ter constantemente indivíduos do sexo oposto a tentarem impressioná-la, o que a incomodava era saber que até gostara dos esforços do rapaz.

Acelerando o passo, Afonso não tardou a alcançá-la. Não perdendo qualquer desculpa que fosse para se aproximar dela, encheu-se de coragem, coragem essa que encontrou só Deus sabia onde e disse, de modo afável, “Ainda não te pude cumprimentar devidamente”

Assim que terminou a frase, aproximou a cara da de Leonor, para lhe dar dois beijinhos. Ela não teve outro remédio senão retribuir. Ao fazê-lo, não pôde deixar de reparar que ele tinha um cheiro agradável: alguma água-de-colónia, fresca mas nada enjoativa. Primeiro parecia demasiado agradada com o aspecto de Afonso, depois com o cheiro deste? Isso já parecia pouco característico da sua pessoa. Sustendo a respiração, voltou a criar alguma distância entre ambos. Sem o encarar, perguntou, num tom desinteressado, “Então ainda é muito longe?”

O rapaz, felicíssimo por ter sido ela a iniciar conversa, respondeu, entusiasmado, embora a última coisa que quisesse fosse aborrecê-la, “Não, dez minutos a pé, mais ou menos…hm, não faz mal, pois não?”

“Claro que não”, disse a rapariga, encolhendo os ombros. Enquanto a ligeira aragem que se fazia sentir não se tornasse mais fria, estar ao relento sem um casaco não a transtornaria.

Durante o resto do caminho que os separava da casa de Leonor até ao local das festas, Afonso, desejoso de conhecer melhor Leonor, foi fazendo perguntas, todas elas sobre tópicos seguros, como para que escola ia, o que queria seguir, se estava a gostar de Portugal. Muito para seu deleite, ela ia para a mesma escola que ele, o que significava que a iria ver muitas vezes. E, se a rapariga já era, a seu ver, um sonho tornado realidade, ainda mais forte a sua opinião se tornou, quando descobriu que ela era boa aluna e iria seguir algo no ramo das engenharias. Afonso, por sua vez, revelou que ainda estava a trabalhar no seu sonho, que era conseguir viver do rugby, apesar de tencionar seguir para a faculdade, para qualquer coisa relacionada com ciências sociais. Quanto à readaptação da rapariga ao país, esta não comentara muito, apenas que estava satisfeita pela mudança.

Ao chegarem ao local das festas, comprovaram que estas tinham uma adesão maior do que o esperado. Todas as diversões, fossem elas carrinhos de choque, fossem carrosséis, fossem rifas, fossem os concertos, ou, apenas bancas de comida, encontravam-se lotadas. Apontando para uma banca que vendia bebidas, o rapaz, o eterno tímido paranóico, implorando aos céus que ela não pensasse que ele a queria embebedar para a violar e deixar numa valeta, ofereceu, “Queres tomar alguma coisa?”

“Hm…”, matutou Leonor, que já sentia os efeitos de uma caminhada numa noite abafada. Já que Afonso ia buscar qualquer coisa para ele, aproveitou, estendendo-lhe uma moeda, “Só uma Coca-Cola, se faz favor”
Recusando, o rapaz disse, feliz por poder fazer um gesto simpático por ela, “Esta é por minha conta”

Dirigindo-se ao balcão, fez os pedidos, não se abstendo de observar, embevecido, a rapariga, que parecia distraída ao ver umas pessoas atirarem uma bola a uma pirâmide de latas, para ganharem um peluche. Fazendo uma nota mental de passar por aquela banca, nem reparou quando pisou alguém que estava a seu lado. Quando esse alguém, com cara de poucos amigos, se virou, viu que se tratava de Rúben, o seu melhor amigo. Este, por sua vez, pareceu esquecer as intenções que tinha de esmurrar quem o pisara e ostentava um sorriso enorme, “’Tão, meu puto, mé quié?”

Afonso adorava Rúben. Já o conhecia desde a primária e eram inseparáveis desde então, passavam imenso tempo um com o outro e até jogavam rugby na mesma equipa. Apesar de o considerar o seu amigo mais próximo, este era a última pessoa que gostaria de encontrar enquanto estivesse com Leonor. Ao contrário de Afonso, o amigo era extremamente bem-sucedido com o sexo oposto e, como tal, era a mais exacta definição de “putanheiro”. Em parte, invejava-o pela sorte que tinha, fosse por saber a conversa toda, fosse por ser mais alto que ele, coisa que, Afonso admitia, ser bastante patética, mas não conseguia evitar. Não apreciava, contudo, a moral duvidosa de Rúben e, conhecendo-o como conhecia, já teria reparado na rapariga e encontrar-se-ia a instantes de meter conversa. Tentando distraí-lo, disse, “Então a Joana não está contigo?”

“Onde é que ela já vai”, replicou Rúben, rindo ao lembrar-se da pobre coitada que, tal como tantas outras, já tinha sido usada e abusada. Ao tirar os olhos de Afonso, reparou que este estava com uma rapariga, rapariga essa que imediatamente classificou como “avião”. Cessando o riso alarve, abordou-a, com o seu sorriso característico, capaz de derreter qualquer uma, “Olá, menina, sou o Rúben, amigo deste aqui”

Infelizmente para Rúben, Leonor não era qualquer uma e, se ele pensava que ela não lhe tirara a pinta a quilómetros de distância, estava redondamente enganado. Escondendo a repulsa que ele, e todos os da laia dele, lhe causavam, agarrou, de modo pouco ou nada discreto, a mão de Afonso, certa de que isso o desencorajaria, “Olá, sou a Leonor”

Rúben olhou, ora para o rapaz, que tão estupefacto que estava que nem tentou disfarçar o quão corado ficou, ora para a rapariga, que lhe segurava a mão, sorridente. Para que não restasse margem para dúvidas, agarrou-se completamente ao braço de Afonso, sorrindo como se não estivesse consciente das intenções de Rúben. Percebendo a mensagem, Rúben achou por bem retirar-se, por enquanto pelo menos. Noutra altura voltaria a tentar pois adorava desafios e Leonor constituía um. Com um sorriso amarelo, despediu-se, “Vou andando, depois diz qualquer coisa”

À medida que a figura de Rúben se dissipava no meio da multidão, tanto Leonor, como Afonso, respiraram de alívio. Fraquejando pela segunda vez naquela noite, a rapariga, ainda com o pretexto de exorcizar Rúben do pé de ambos, manteve a mão na do rapaz, que não se pronunciou esse tempo todo. Depois das covinhas e dos braços, podia juntar as mãos à lista de pormenores que gostava nele, grandes e calejadas, provavelmente do desporto que praticava. Passando o polegar pelas costas da mão de Afonso uma última vez, Leonor largou-o, por fim. Com um ar desiludido, o rapaz encarou-a, como se perguntasse porque é que o tinha feito, embora não tivesse dito nada.

Desejosa de evitar um prolongamento daquele momento constrangedor, a rapariga, apontando para a banca que estivera a ver antes, propôs, “Não queres passar por ali?”

“Claro, anda”, aceitou ele, que entretanto se contentara com a sorte que tivera. Por sua vontade, não teria largado, mas um minuto de proximidade era uma conquista enorme quando ela pouco mais que respostas monossilábicas lhe dava. Satisfeito com o progresso, serviu-se do pretexto de que não convinha que se separassem no meio de tanta gente e encaminhou-a para a banca com uma mão colocada na cintura, ao de leve. Porém, foi com grande pena sua que ela lhe retirou a mão, “Desculpa…”

Não ligando, Leonor dirigiu-se à banca, onde entregou umas moedas ao dono, uma figura peluda, obesa e bonacheirona, que lhe passou para a mão uma bola. Quando ela ia a atirar, Afonso, que não perdia o mais pequeno movimento da rapariga e, ao vê-la prestes a fazer um mau lançamento, não se conteve, não fossem os anos de rugby que tinha, “Espera!”

“O que foi?”, inquiriu ela, de sobrolho franzido, pouco satisfeita por ter sido interrompida.

Pondo-se por detrás dela, o rapaz segurou-lhe o braço e explicou, acompanhando-lhe o movimento, “Se atirasses como ias fazer não acertavas, tenta antes assim”

Fazendo-a lançar a bola, num movimento fluido, foi com um sorriso rasgado que ele viu a pirâmide de latas de refrigerantes ir abaixo. A rapariga, por sua vez, encontrava-se dividida em relação ao que havia de sentir: se, por um lado, se sentia humilhada por ter precisado de ser corrigida, por outro, mesmo que não gostasse de dar o braço e torcer, lá teria que admitir que o gesto a enterneceu, no fundo. Os sentimentos negativos foram arrasados quando Afonso lhe passou para as mãos o prémio, um panda de peluche felpudo. Peluches eram e sempre seriam algo a que não resistia, fosse para agarrar, fosse por decoração. Ainda a afagar a pelagem macia do boneco, disse, “Obrigada mas devia ser teu, se não fosses tu não tinha acertado”

“Oh, não tem mal, podes ficar com ele”, assegurou o rapaz, consolado por saber que a fraca iluminação dos candeeiros da rua escondia o rubor que já ostentava nas bochechas sardentas, consequência do sol do Verão. Desta forma podia dizer que Leonor tinha uma prenda oferecida por ele.

Agradecendo, desta vez com toda a sinceridade em vez de pura cortesia, a rapariga, trazendo o peluche no colo, propôs que continuassem a ver as bancas, proposta essa que Afonso aceitou. Passando por grupos que tentavam a sua sorte a rebentar balões com uma pressão de ar, bancadas com churros e pão com chouriço, e carrosséis, Leonor reparou que o rapaz não tomava a iniciativa para se deter nalguma banca, algo que não a espantava, tendo em conta que tudo nele indicava alguém passivo e tímido. Não querendo que ele se abstivesse de se divertir por sua causa, perguntou, “Não queres comer nada nem dar uma volta nos carinhos de choque?”

Por sua vontade, o rapaz estaria nos carrinhos de choque a atirar os miúdos com excesso de bazófia para fora da pista, caso não estivesse a acompanhar a rapariga. Assim, sob pena de lhe proporcionar uns cinco minutos desconfortáveis, escolheu antes outros planos, “Hm, apetece-te dar uma volta no carrossel?”

“Pode ser”, respondeu ela, a quem a ideia não parecia má, sobretudo se fosse o carrossel maior e não aquele em que as crianças andavam em carrinhos feitos a partir de personagens de desenhos animados populares.

Conseguindo uma ficha, sentaram-se numa espécie de chávena. Contendo a sua vontade de colocar o braço por cima dos ombros de Leonor, Afonso deixou as mãos sobre o colo. Enquanto o carrossel não andava, aproveitou para fazer um balanço daquela noite, até ao momento: muito lentamente, a passo de caracol moribundo, conseguia conquistar a confiança da rapariga, a ponto de ela o deixar aproximar-se, mas daí a ir para além disso ia uma grande distância e, de qualquer das maneiras, ainda era muito cedo para pensar nisso. Sim, conseguir a amizade dela era mais que suficiente e, dali para a frente, estaria com ela normalmente, sem se preocupar se conseguia algo mais ou não. Descansado com a sua epifania, relaxou um pouco e disse, “Segura-te”

Apanhada de surpresa, Leonor não teve tempo de deitar a mão à barra metálica que rodeava a chávena e, quando o carrossel arrancou, foi atirada para cima do rapaz que, apesar de tudo, sorriu quando ela aterrou no seu colo. Se ele corou até à raiz dos cabelos, ela revirou os olhos e voltou para o banco. Acidental ou não, era proximidade a mais para o seu gosto. Agarrada à barra, não voltou a ser projectada durante o resto da volta, que valeu uns bons risos por parte de ambos. A boa disposição dos dois não passou despercebida a uma terceira pessoa, que torcia o nariz ao longe. Ao emborcar a quinta caipirinha, Rúben achou que havia chegado altura de descarregar a frustração que sentira antes. Indo para junto de Afonso e Leonor, pediu ao rapaz, “Posso dar-te uma palavrinha a sós?”

Aceitando, mesmo que para isso tivesse que ignorar o mau pressentimento que tinha, Afonso seguiu o amigo até a um canto que não estivesse a abarrotar de gente. Trocando um olhar com a rapariga, assegurou-a de que não demoraria muito. Uma vez a sós, Rúben, sem cerimónias, perguntou, “Quem é ela?”

“É filha de umas amigas das minhas mães”, elucidou o rapaz, cujo hálito a álcool de Rúben lhe dava a entender que, caso o irritasse, a noite ainda iria acabar mal. Sob a influência do que quer que fosse, ele ficava fora de si.

“Tu e ela…andam?”, inquiriu o amigo, com um tom de incredulidade a dar lugar a um de troça, enfatizado pela risadinha ocasional.

“Não, conhecemo-nos há pouco tempo e nem nos podemos considerar amigos”, respondeu Afonso, saturado com o interrogatório. Sabia que convinha evitar a todo o custo que Rúben, de temperamento instável com tendência para ser violento, se se irritasse, mas a troça dele já começava a ser demais para que ele não lhe desse, pelo menos, uma resposta torta. Antes que ele próprio atirasse fósforos para a gasolina, disse, “Tenho que ir andando”

“Claro, achas mesmo que uma gaja daquelas alguma vez queria alguma coisa contigo?”, provocou Rúben, com um ar desdenhoso. E com isto conseguira atingir Afonso num ponto sensível.

Respirando fundo, Afonso, tentando conter a vontade que tinha de lhe responder no mesmo registo, contornou a questão, “Não sei mas deixa-a em paz, se acontecer alguma coisa quem se fode sou eu”

“Então não estás interessado nela?”, perguntou o amigo, com um olhar céptico. Pela maneira como o rapaz se comportava junto a Leonor, não acreditava nisso, conhecia-o bem demais para tal. Ou mais, qualquer pessoa, mesmo que não o conhecesse, diria que não estava pouco interessado.

Abrindo e fechando a boca sem conseguir emitir um som que fosse, Afonso não sabia o que dizer. Não queria provocar Rúben mas também não o queria atrás da rapariga com o pretexto de que não sabia da paixoneta de Afonso. Decidindo que conseguia aguentar uma boca ou duas, respondeu, “ Estou…quer dizer, acho-lhe piada”

Rebentando em risos, Rúben nem conseguia formular uma frase sem colocar as mãos na barriga, dobrado sobre si mesmo. Mal recuperou, disse, apenas, “Keep dreaming”

Caso não soubesse que toda aquela bazófia era o álcool a falar, o rapaz teria levado a peito aqueles comentários. Sendo as circunstâncias como eram, a única maneira de agir era despedir-se e sair dali enquanto a oportunidade se proporcionava. Deixando Rúben, voltou para junto da rapariga, ainda com as palavras do amigo a ecoarem-lhe na cabeça. Por muito que quisesse dar o desconto, acabou por se sentir magoado. Reparando na expressão cabisbaixa de Afonso, a rapariga perguntou, “Está tudo bem?”

“Sim, sim”, respondeu Afonso, fazendo por se abstrair. Pensando bem, era ele que estava ali com Leonor e o amigo levara uma tampa, só isso serviu para se animar. Voltando a atenção para a rapariga, viu que esta estava toda arrepiada e não tinha um casaco para vestir, “Tens frio?”

“Aguento”, replicou ela, passando as mãos pelos braços, numa tentativa desesperada de se aquecer. Naquele momento arrependia-se de não ter trazido um casaco.

“Oh toma lá”, insistiu o rapaz, passando-lhe a camisola que trouxera e que não chegara a vestir. A verdade era que, também ele, estava com frio mas de bom grado lhe emprestava a camisola e se sujeitava à aragem gélida da noite.

Mesmo que Leonor tivesse recusado, com o pretexto de que depois quem iria ter frio era ele, o vento, agora mais forte, fê-la mudar de ideias e aceitar. Vestindo a camisola, que lhe chegava até meio das coxas, logo se sentiu muito mais aconchegada. Se calhar a persistência do rapaz e a sensação de protecção que este lhe proporcionava afectava-a, se fosse verdadeiramente honesta consigo própria. O facto de ele ser comedido e seguro, nunca insistindo demasiado e incapaz de passar ao ataque, era um bónus.

Depois da confusão com Rúben, Afonso achou melhor voltarem, ainda que desejasse ter mais tempo na companhia de Leonor. A ideia foi bem acolhida por parte da rapariga, a quem a festa já estava a aborrecer. Apertando mais a camisola contra si, fez-se ao caminho, acompanhada pelo rapaz. A pele de galinha nos braços dele saltou à vista a Leonor, que não evitou sentir-se tocada pelo gesto. Pronto, afectava-a, era inegável. Ao chegarem a sua casa, a rapariga despiu a camisola e disse, entregando-lha, “Obrigada pela camisola e pela noite”

“O prazer foi todo meu”, respondeu ele, incapaz de a encarar. A noite havia corrido bem, não havia mal em dar a indirecta de que adoraria que se encontrassem outra vez num futuro próximo, “Hm…depois diz qualquer coisa, se quiseres, claro, senão…vemo-nos na escola”

Com a vista a deambular, ora para Afonso, corado, ora para o peluche que tinha nos braços, a rapariga concordou, com um sorriso, “Claro que sim”

Antes que o rapaz pudesse prolongar a conversa, ou, sequer, responder, Tomás apareceu por detrás da irmã, com o seu sorriso sinistro, “Continuas aqui? Vá, vá, vai-te lá embora”

“Tomás, não devias estar deitado? Vai tu embora”, respondeu Leonor, repreendendo-o. Voltando-se para Afonso, despediu-se, hesitantemente, “Então acho que vou andando…adeus e depois falamos”

Aproximando-se do rapaz para se despedir, coisa que teve pena de fazer, visto até estar a gostar da companhia dele, beijou-lhe as bochechas, tão coradas que rivalizavam o tom de um semáforo. Assim que lhe retribuiu, Afonso teve de ouvir outra boca do irmão, qualquer coisa que soou a “daqui não levas nada”, antes de dar mesmo a noite como terminada. Depois de passado esse momento, continuou até casa, feliz.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Capítulo 1


Susana, assim que tomou conhecimento do regresso de Guida e Marta a terras luso, propôs-se a organizar um jantar para que pudessem pôr a conversa em dia. E de facto havia muito para falar, não tivessem passado doze anos desde que as amigas haviam ido para os Estados Unidos. Tanto quanto sabia, se a melhor amiga já era abastada antes de ter expandido o negócio da família, mais ficara ainda. Marta conseguira fazer uma carreira respeitável no futebol, não fosse a modalidade ser mais popular no sector feminino na América do que em Portugal. Enquanto preparava a comida, com a ajuda de Afonso, que se interessava por cozinha e não perdia uma oportunidade para aprender, ia-o pondo a par do que devia esperar.

“Então têm uma filha pouco mais nova que eu e um filho da idade da Sara?”, perguntou ele, mais para ter a certeza que não lhe escapava nada. Não se lembrava muito claramente da tal rapariga com quem, segundo lhe contaram, costumava brincar.

“Até admira não te recordares, eras todo apanhadinho por ela”, gracejou a loura, enquanto fritava as omeletas, tentando não deixar queimar nenhuma, uma vez que sabia bem demais o quão esquisita Guida era com a comida, ou não fossem as cenas que ela fazia nos restaurantes quando a comida não estava no ponto, “Uma vez fomos ao jardim zoológico e tu assustaste-te com uma cobra mas não querias dar parte fraca ao pé dela, portanto contiveste a choradeira”

Embaraçado, Afonso resmungou e foi ter com Daniela e Sara, que estavam na sala a pôr a mesa. Sentando-se no sofá, ouviu uma parte da conversa, “O rapaz, Tomás, salvo erro, nasceu pouco antes de irem para os Estados Unidos e é só uns meses mais novo que tu e, segundo a Marta me disse, é um rapaz especial, o que quer que isso signifique”

O diálogo foi interrompido pelo som da campainha. Pedindo ao filho que acabasse de pôr a mesa, a morena correu a abrir a porta. Só tivera tempo de a puxar um pouco, quando Guida, sem fazer cerimónia, a abriu, quase lhe dando com ela, caso não Daniela tivesse saltado para trás a tempo. Dando um soco no braço da morena, na brincadeira, embora com mais força do que esta gostaria, Guida, cumprimentou, “Boa noite para ti também! Continuas a mesma pussyzinha”

“Eu ia falar-te mas tu adiantaste-te, boa noite”, replicou Daniela, erguendo uma sobrancelha. Olhando para Guida com olhos de ver, apercebera-se bem de que nem mesmo ela era imune aos efeitos da idade, embora não tivesse engordado nem nada do género, a muito custo, provavelmente. Se bem a conhecia, naquele momento estava a ressacar de um bom prato gorduroso.

Recebendo outro soco no braço, para que um não ficasse com inveja do outro, a morena voltou-se para Marta, “Au!”

“Prazer em ver-te, também”, gozou Marta, enquanto Daniela esfregava o braço. A sorte grande saíra a alguém quando fora para os EUA e esse alguém era Marta. Sempre gostara de futebol e tivera jeito para a modalidade, apenas não tivesse tido a oportunidade no país. Depois de uns bons anos a jogar, achara por bem reformar-se enquanto estava a fazer boa figura, uma vez que ninguém gosta que recordem a sua fase decadente. Sempre disposta a picar, Marta perguntou, “Agora usas óculos, é?”

“Passo o dia em frente ao computador e de nariz enfiado em livros”, justificou-se Daniela, “É só para ler e não quero arriscar a usar lentes, que horror”

Pondo os óculos no cimo da cabeça a segurar o cabelo, virou as costas a Marta, numa indignação fingida. Atrás delas estava uma rapariga e um rapaz, cada um mais sério que o outro. Tratando-se de Guida e Marta não era com grande surpresa que a morena constatou que eram ambos muito bem-parecidos. Em bom rigor já se perguntara se os seus seriam as coisinhas perfeitas que ela via ou era só por serem bons miúdos e os seus filhos. Voltando para a sala, chamou Afonso e Sara para que fossem falar aos convidados.

Afonso, seguindo atrás da irmã, dirigiu-se para a porta sem grande entusiasmo. Sendo tímido como era, não gostava de sair da sua zona de conforto para conhecer pessoas novas, mas ainda tinha que ser bem-educado. Cumprimentou tanto Guida como Marta com tanta simpatia quanto conseguiu, apesar de ambas a intimidarem um pouco, de tal forma que mal as encarou, preferindo olhar para trás delas. Em bom momento o fez, pois uma figura, que antes estava encostada à parede, avançou para si, para lhe falar. E foi então que Afonso sentiu tirarem-lhe o chão debaixo dos pés. Era a rapariga do outro dia.

À medida que esta caminhava para si, o rapaz observou-lhe a silhueta elegante, acentuada pela roupa justa ao corpo, passando pela cintura pequena, pelo peito avantajado, até se deter na cara. Olhando-a nos olhos, viu que não havia margem para dúvidas, era definitivamente a que vira no outro dia. Então já se conheceram havia muito tempo, o que explicava a sensação de dejá vu. Quando deu por si, ela dizia-lhe, com um ar pouco impressionado, “Sou a Leonor, muito prazer”

“Olá L-Leonor…sou o A-Afonso…”, gaguejou ele, aborrecido consigo próprio por estar a mostrar uma faceta muito pouco favorecedora aos olhos dela. Tentando disfarçar, procurou, a todo o custo, visto que as borboletas que sentia no estômago lhe dificultavam a tarefa, puxar conversa, “Já nos conhecíamos, não te lembras?”

“Sinceramente não”, respondeu Leonor, sem esboçar o mais pequeno sorriso.

“Outro dia vi-te quando estavas a montar a cavalo”, insistiu Afonso, cuja confiança passara de nula para atingir valores negativos, depois de ver as suas tentativas de estabelecer um diálogo caírem por terra. Ela também não estava a facilitar, embora ele já estivesse a maldizer o momento em que acalentara esperanças de que ela fosse, pelo menos, amistosa, quanto mais que morresse de amores por ele à primeira vista.

“Não reparei, desculpa”, disse ela, dirigindo-lhe um olhar gélido que imediatamente o calou e tornou o seu sorriso, numa expressão de cachorrinho abandonado que quase a comoveu. Palavra-chave: quase.

Quanto a Sara, não sabia se havia de fugir, se esconder-se a um canto e esperar pelo melhor. Ao olhar para o rapaz altíssimo para a idade, não exactamente em tão boa forma como a irmã, já com vestígios de que não tardaria muito até que tivesse barba, não conseguia evitar sentir-se intimidada. Porém, a intimidação deu lugar a medo quando ele, após a perfurar com um olhar de morte, sorriu o sorriso mais sinistro que podia imaginar. E pensar que aqueles olhos verdes eram lindos à primeira vista…

Tomás abandonara o sorriso maquiavélico ao ouvir a conversa de Afonso. Esperou que a irmã virasse costas para, num tom desdenhoso, dizer ao rapaz, com um sotaque um pouco carregado, “E está-se a ver que tu querias era que ela te montasse a ti”

Afonso foi de tal forma apanhado de surpresa pela audácia do miúdo que nem se conseguiu pronunciar. Não deixava de ser verdade, contudo. Sara, nesse momento, entendeu o que Marta quis dizer quando a ouvira murmurar a Tomás, “Por favor não nos envergonhes muito”. Fosse outra pessoa qualquer, já lhe teria dado um pontapé nas zonas baixas por se meter com o irmão, mas Tomás fazia-a estremecer da cabeça aos pés. Procurando escapar, dirigiu-se para a sala, onde estavam as convidadas, arrepiada por o ver a ir atrás de si.
Felizmente que Susana resolvera, nesse momento, chamá-la para a mesa. Pondo-lhe o braço em torno dos ombros, puxou-a para si e perguntou, “Estás-te a dar bem com o Tomás?”

“Prefiro não me dar sequer, ele é, muito provavelmente, a pessoa mais arrepiante que já conheci”, respondeu ela, com os olhos escuros a saltar, ora para a loura, ora para Tomás, que estava, naquele momento, a ser repreendido a um canto por Guida.

“Aqui estamos de olho nele, não te preocupes”, sossegou-a Susana, achando melhor não lhe falar da ocasião em que, segundo Guida, ele mordera uns convidados. Ou aquela em que quase incendiara a casa.
Já Guida, agarrando a orelha do filho e torcendo-a o suficiente para que este percebesse o aviso, dizia-lhe, ao ouvido, “Ai de ti que faças alguma, agora vais-te portar como deve ser”

O certo foi que Tomás, depois de muito massajar a orelha, pareceu assentar, tanto que, se nunca descurar o sorriso duvidoso, puxou a cadeira para que Sara se sentasse. Esta, pedindo a todos os santos que ele não fosse retirar a cadeira quando ela ia para se sentar, ou algo bem pior, aceitou. Qual não foi o seu espanto quando ele, com a mais extrema delicadeza, a colocou diante da mesa, “Ora faça favor, menina”

Marta, que se mantivera calada e optara por deixar Guida colocar rédeas na situação, disse para Daniela, “Não perguntes que eu também não sei o que é que correu mal com ele, a irmã só nos dá alegrias”

Uma vez na mesa, Sara serviu-se apenas com a quantidade que não pareceria mal, tendo em conta o quanto gostava de comer, e serviu, também, Tomás, que agradeceu, simpático. Revirando os olhos, Sara pensou para si que ele devia ter medo de Guida. Por sua vez, Afonso, serviu Leonor, sendo o mais cavalheiro que conseguiu, embora não conseguisse mais do que um sorriso forçado por parte da rapariga. Sentado ao lado dela, não resistiu a observá-la pelo canto do olho durante todo o jantar. Era tão fria que o magoava, embora, ou ele muito se enganava, houvesse momentos em que quase podia jurar que a máscara lhe caía e ele podia ver alguns vestígios de doçura. Foi isso que lhe manteve a esperança e o fez prometer a si mesmo que não desistia até que ela lhe mostrasse essa faceta.

No fim do jantar, chegou a vez da sobremesa, o que para Afonso era tortura. Ao ver Susana colocar-lhe um bolo de chocolate à frente começou a salivar, até que a loura, com uma expressão de pena, lhe disse, “Desculpa, este tem açúcar”

Ao ver que o irmão não podia comer, Sara recusou uma fatia também. Não fazia mal, durante a noite assaltaria o frigorífico. Perante a solidariedade da irmã, Afonso afagou-lhe o cabelo, em tom de brincadeira, uma vez que era coisa que ela não gostava. Se Sara se abstivera de se encher de açúcares para não fazer o irmão sentir-se mal, Tomás certificou-se que comia uma fatia capaz de alimentar o país inteiro, sorrindo de modo cruel a Afonso. Leonor, a quem o gesto não escapou, cravou as unhas no braço do irmão, pedindo-lhe que não fizesse isso. Afonso sorriu para si ao ver que afinal ela tinha alguma compaixão.

Enquanto os convidados ficaram à mesa a conversar, o rapaz pediu licença e saiu da mesa. Uma vez em privacidade, picou o dedo para medir os níveis de açúcar. Ao ver que estavam um pouco altos, resmungou, levantando a camisola para injectar insulina. Assim que acabou, olhou para cima, a tempo de ver Leonor com um ar completamente enojado, virar as costas e sair dali. Triste, não conseguiu, mais uma vez, dizer o que quer que fosse. Daniela, que teve o desprazer de testemunhar o sucedido, disse à rapariga, com uma expressão que tendia algures entre o séria e a desaprovação, “Ele é diabético”

“Desculpe…não fazia ideia”, disse ela, visivelmente abalada, ao voltar a olhar para o rapaz, que arrumava as agulhas, abatido. E ela que só quisera ir à casa-de-banho…

“Não o queria mesmo ver triste”, disse Daniela, com um suspiro, “Se lhe pudesses dar uma palavrinha ele sentir-se-ia melhor, não é por mim, é por ele”

Ponderando o que a morena lhe dissera, Leonor decidira-se. Ao encontrar Afonso na varanda da sala, cabisbaixo, um pouco isolado de tudo e todos, aproximou-se dele. Não contando com ninguém, muito menos com ela, o rapaz assustou-se, mais ainda quando viu quem era. Olhando para todo o lado menos para ela, não encontrava mesmo maneira de escapar, até que ela o sossegou, dizendo, “Queria pedir-te desculpa por causa de aquilo de há pouco”

“É a reacção normal, ninguém gosta de ver alguém espetar agulhas”, replicou o rapaz, encolhendo os ombros. Não se dignava a ser minimamente simpática e ainda por cima parecia repugnada por ele? Não podia sentir-se mais desapontado.

“É que tenho um bocadinho fobia a agulhas e não estava à espera de ver aquilo”, desculpou-se Leonor, mordendo o lábio inferior, “Não foi mesmo por tua causa, nem nada que se pareça”

Sentindo que lhe tiravam o peso do mundo de cima dos ombros, Afonso sorriu, “Se te consola, a minha mãe, a Daniela, quando me diagnosticaram a diabetes, ia para me dar a injecção e desmaiou, teve que ser a Susana”

Num momento de espontaneidade, Leonor não conseguiu contar o riso, deixando esbater a sua expressão permanentemente fria. Porém, foi sol de pouca dura. Sentindo a situação a descarrilar para solo em que não se sentia confortável, a rapariga desviou a conversa, “Então…aquelas medalhas que estavam ali são tuas?”

“Todas”, disse o rapaz, com os olhos a brilhar, vendo a sua oportunidade de impressionar Leonor, “Jogo rugby e tenho sido bem-sucedido, mesmo sendo diabético, até sou o capitão da equipa”

“Pois, eu compreendo”, respondeu a rapariga, satisfeita por a conversa ter voltado para tópicos inofensivos, mesmo que não desejasse propriamente mantê-la, fazendo-o somente porque não a podia evitar sem que não parecesse falta de educação,”Parabéns”

“Obrigado”, disse Afonso, embora tivesse uma pergunta a incomodá-lo havia algum tempo e o que mais desejava era ver a sua dúvida saciada, à falta de ocasião mais oportuna. Num momento de coragem, coragem essa que não fazia a menor ideia onde a tinha ido buscar, perguntou, “Porque é que pareces tão triste? Deixaste algum namorado nos Estados Unidos?”

Estava a correr tão bem e ele tinha que estragar tudo. Leonor, com uma expressão glaciar, respondeu, “Não e prefiro que não toques nesse assunto”

“Pronto, desculpa”, apressou-se o rapaz a pedir. Pelo menos a rapariga estava solteira, nem tudo estava perdido, certo? Ao ver Leonor voltar para dentro, Afonso decidiu que seria melhor sonhar mais baixo, uma vez que, naquela ocasião, pelo menos, mal conseguira estabelecer um diálogo com ela e a sua confiança estava mais em baixo do que nunca. Numa última tentativa, seguiu-a até à sala e perguntou, temendo a pior resposta, “Olha, vai haver agora umas festas populares e acaba por ser sempre engraçado, gostavas de vir comigo?”

Não era o melhor programa mas sempre tinha um pretexto para a convidar. Guida, ao ouvir aquilo, antes que a filha tivesse tempo de responder, disse, “Boa ideia, porque é que não vais?”

“Hm…pois”, murmurou Leonor, hesitante. Não gostava do programa nem tinha a mínima vontade de ir com algum que mal conhecia onde quer que fosse, sobretudo quando esse alguém, na sua opinião, era excessivamente persistente. Vendo a expressão esperançosa do rapaz, teve vontade de revirar os olhos. Não vendo como escapar, implorou mentalmente à mãe que a poupasse a isso.

“Vais ver que é interessante”, insistiu Guida, cimentando bem que não a ajudaria a filha a escapar a umas horas na companhia de Afonso, “Como não conheces ninguém é um bom ponto de partida”

“Ok”, respondeu Leonor, exasperada, mesmo que não o mostrasse. Afirmar que o sorriso do rapaz era rasgado seria o mesmo que afirmar que um Ferrari até andava razoavelmente depressa. Enojada, revirou os olhos ao ver o quão óbvio ele era. Reflectindo, chegou à conclusão que não podia correr muito mal, estava consciente das intenções dele e, mais ainda, do facto de ele não ter coragem para tentar algo.

“LARGA A FACA!”, gritou Sara, do canto da sala. À sua frente, Tomás empunhava a faca que usaram para cortar a carne. Correndo até ao irmão, Leonor conseguiu tirar-lhe a faca e agarrá-lo. Era o seu irmão, apesar da sua personalidade pouco vulgar. Não era que tivesse algum problema, era apenas a sua maneira de brincar e costumava assustar os demais.

“Às vezes faz isto, pensa que tem piada, não sei”, desabafou Marta a Daniela, que assistira a tudo pálida e horrorizada, “Mas não tem nenhum distúrbio, é só parvo”

Pedindo desculpa a todos pelo que aconteceu, Guida, Marta e Leonor, esta última ainda agarrada ao irmão, que ria a bandeiras despregadas, não viram outra alternativa que não dar a noite por terminada e ir para casa, onde Tomás não pudesse fazer estragos. Apesar da reviravolta que o serão levara, Afonso sentira que acabara de ganhar a lotaria, de tão feliz que se sentia. Se por baixo daquela aura de gelo estava alguém muito diferente, ele faria tudo o que estivesse ao seu alcance para o descobrir.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Prólogo


O final do Verão era, na opinião de muitos, uma das épocas do ano mais melancólicas. Embora o clima ameno que se fazia sentir convidasse a um passeio ao ar livre, a perspectiva de deixar a rotina estival para retornar às obrigações, fossem elas escola ou trabalho, conferiam àquela altura, um sabor agridoce. Não era, de forma alguma, motivo para deixar de se aproveitar os últimos dias de férias. Assim, por baixo da sombra das árvores, onde o chilrear dos pássaros e o pisar das ervas eram a única banda sonora, duas pessoas faziam exactamente isso, sem uma preocupação naquele momento.

“Afonso, despacha-te!”, gritou a irmã, a uma distância considerável à sua frente, incapaz de esperar muito tempo por ele. Entre ambos havia a diferença de cinco anos, ele com dezassete e ela com doze, embora não pudessem ser mais próximos do que eram. Exasperada, disse, “Não acredito que ainda aí vais”

Rindo perante a impaciência da irmã, Afonso puxou a trela do seu cão de idade considerável, impedindo-o de parar para cheirar tudo o que tivesse aspecto suspeito. Mais por respeito para com o seu companheiro de longa data do que por transbordar paciência, não apressou o passo, consciente de que Mocas, o rottweiller, já não tinha a energia de outros tempos. Acarinhando a cabeça possante do animal, que abanou a cauda, satisfeito, gritou, “Já vou, Sara!”

Ao alcançar a irmã, que entretanto se sentara numa árvore tombada, numa clareira, resolveu soltar Mocas, para que este andasse à sua vontade, com a devida supervisão. Enchia-os a ambos de pena ver o tão adorado animal de estimação perder a vivacidade que antes lhe era tão característica. Conversando sobre uma qualquer trivialidade, algo que faziam sempre, afinal mais do que irmãos eram amigos, sendo, Afonso, extremamente protector em relação a Sara e vice-versa, distraíram-se. Assim que se lembraram do cão, já ele se aventurava, mais à frente, num trilho longo contornado por árvores, até onde a viste alcançava. Correndo atrás dele, durante o que pareceu uma eternidade, foram dar a um centro de hipismo.

No recinto, estava uma pessoa, uma rapariga, concretamente, de idade próxima da de Afonso. Ele, deitando a mão à coleira de Mocas antes que este tivesse oportunidade de saltar para dentro da pista, respirou de alívio, pelo menos livrara-se de complicações. Levantando a cabeça, encarou a rapariga e, quando o fez, paralisou. Alta, morena, de cabelo comprido apanhado num rabo-de-cavalo e bronzeada. No entanto, o que mais se destacava eram os olhos, num tom invulgar, âmbar. Resumindo, linda para a maioria, perfeita, na opinião de Afonso.

O que mais o surpreendeu foi a sensação de que ela lhe era familiar, sobretudo o olhar, parecia que já a vira algures, restava era saber quando e onde. Tão perdido estava que só voltou a acordar quando sentiu a irmã puxar-lhe o braço. Fora do seu torpor, constatou, com grande pena, que a rapariga já voltara as costas e se afastava. Desapontado, ficou a vê-la desaparecer, até que ele próprio se resolveu a ir embora.

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À entrada de casa, soltaram Mocas, que se deitou no alpendre e não deu mais sinal de si, tão esgotado que nem tentou entrar e ainda bem, uma vez que Daniela não tolerava pêlos à deriva que não estivessem no jardim. Sara dirigiu-se à sala, para perguntar pelo jantar, não fosse o ruído do seu estômago ser ouvido no Bangladesh, seguida por Afonso, que mal se pronunciara desde que se fora embora do centro hípico. No sofá, Susana, adormecida, tinha deitado a cabeça no colo de Daniela, que lhe afagava os cabelos. Ao ver os filhos, a morena levou um dedo aos lábios, pedindo-lhes que não fizessem barulho. Abanando a loura ao de leve, murmurou-lhe, “Anda, vamos jantar”

Podiam não ser a mais convencional das famílias, mas Afonso não a quereria de outra forma. A primeira e última pessoa a gozar acabara no hospital, ainda que ajudasse muito ele ser filho de quem era e praticar rugby de alta competição. Não que isso o tivesse livrado de levar com o cinto de cabedal de Daniela, que discordou com o seu método de actuação. De qualquer forma, ao comparar a sua família com a de Ruben, o seu melhor amigo, que era constantemente chutado entre um pai alcoólico e uma mãe demasiado distante, não podia deixar de sentir que tivera sorte. A sua opinião apenas foi reforçada quando Susana levantou a cabeça do colo de Daniela, despenteada e com um ar ensonado, e esta a abraçou.

Mecanicamente, sem pensar no que fazia, Afonso ajudou a pôr a mesa, nunca deixando de puxar pela memória, em busca de algo que lhe dissesse quem era a rapariga que vira ainda há umas horas. Sem chegar a nenhuma conclusão, picou as batatas com o garfo, desinteressadamente. Susana, por sua vez, não deixou de reparar na indisposição do filho, “O jantar não está bom?”

Olhando, ora para a expressão preocupada da mãe, ora para o prato cheio à sua frente, o rapaz decidiu-se a fazer um esforço por comer, respondendo com a boca cheia, “Está óptimo”

Susana preparou-se para insistir e tê-lo-ia feito, caso a morena não lhe tivesse beliscado a perna por baixo da mesa. Na sua opinião, se ele quisesse falar, iria fazê-lo e, conhecendo-o, não valia de nada aborrecê-lo com perguntas. Foi assim que Afonso acabou o jantar e saiu da mesa, apesar da expressão indiferente de Daniela, da preocupação da loura e da admiração da irmã.

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Mais tarde, após ter ponderado as suas opções, decidiu-se por falar com Susana, uma vez que Ruben não iria compreender, Sara estava a dormir e Daniela, apesar de ser a pessoa a quem recorria sempre que precisava de um conselho, temas como raparigas e afins passavam-lhe ao lado. Encontrando a loura na varanda a fumar um cigarro, perguntou, timidamente, “Hm mãe? Posso contar-te uma coisa?”

“Claro que podes”, anuiu Susana, apontando para a cadeira junto da sua, cadeira essa que o filho quase deitou abaixo, com os seus modos desajeitados e pouco graciosos, “Onde é que eu já vi esse jeitinho…”

“Opa…”, lamentou-se o rapaz, que admitia ser tão distraído como Daniela, embora a diferença entre um e outro fosse a pequena estatura dela, em comparação com a sua.
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“Diz lá o que é que ias dizer”, encorajou a loura, antes que Afonso tropeçasse e caísse da janela, de cabeça nas pedras da calçada, “Deve ser importante para mal teres tocado na comida”

“Quando fui mais a Sara passear o Mocas, fomos dar a um centro de hipismo que havia lá para aqueles lados”, começou ele, olhando para todo o lado menos directamente para a mãe, hábito que a irritava muito, afinal estava farta de lhe falar na importância do contacto visual, “Estava lá uma rapariga e, bem, era linda de morrer, nem tens noção”

O entusiasmo do rapaz era algo que sempre a comovia e ver os olhos azuis dele a brilharem, enterneceu-a. Bem sabia que Afonso não era bem sucedido com as meninas, apesar de ela, na sua muito pouco objectiva perspectiva de mãe, ser da opinião que ele fora muito abençoado no campo da genética. Mesmo assim, os modos tímidos e inseguros, sempre demasiado prestável, tanto que estava certa de que já muita gente se teria aproveitado dele, eram, a seu ver, repelente de raparigas. Acenando em sinal de que o estava a ouvir, encorajou-o a continuar.

“Não parece nada de especial dito assim mas ela era mesmo linda”, continuou ele, a quem o próprio discurso parecia ridículo, “Fiquei com a impressão de que já a tinha visto antes mas não faço ideia de quem seja”

Susana teve que morder a língua para não vocalizar a sua exasperação perante a inércia do filho, o que é que custava abordar uma rapariga? Se ele conseguisse ser menos como uma bolacha de água e sal qualquer menina ficaria lisonjeadíssima por um rapaz em forma e bem-parecido como ele mostrar interesse. Reconfortando-o, disse, “De certeza que é aqui da zona e a vais voltar a ver, não te preocupes”

“Espero que sim, achei-lhe piada”, admitiu Afonso, escondendo um rubor que lhe teimou em aparecer nas bochechas.

“Claro que sim e para a próxima não quero desculpas”, disse a loura, afagando os caracóis escuros do filho, coisa que o acalmava, tal como a ela, desde que era bebé.

Bem-disposto, o rapaz prometeu a si mesmo que iria passar a andar mais atento e, mal a oportunidade surgisse, tentaria abordar a tal rapariga.