terça-feira, 29 de novembro de 2011

Capítulo 77

Daniela profundamente adormecida, apenas com a cara de fora dos lençóis consistia na visão mais enternecedora, na opinião de Susana. E estava sorridente, provavelmente o sonho seria agradável, “É bom que esteja a sonhar comigo”, pensou a loura. Por muito adorável que a respiração leve da rapariga fosse, era altura de acordar, tendo em conta que já lhe andara a prometer aquele dia havia alguns anos, sim, anos, não se tratava de uma hipérbole. O único contratempo que se colocava era a possibilidade de a morena aproveitar a promessa para negociar a probabilidade, impossibilidade na perspectiva de Susana, de trazer a piton lá para casa, “São três metros de cobra nojenta, se ela quisesse antes…um filho, por exemplo, ainda se compreendia, mas nãaao”
Arrepiando-se com a ideia de um réptil rastejante a arrastar-se pela casa, a loura preferiu afastar esses pensamentos e acordar Daniela. Ganhando balanço, atirou-se para cima da rapariga, “Acorda coisa boa!”
“Ai! Que susto!”, gritou a morena, acordando sobressaltada com os sessenta quilos da outra em cima de si. Atirando-a de cima de si, deu-lhe com a almofada várias vezes, “É assim que me acordas, monte de merda?!”
“Adoro quando me dás tau tau”, brincou Susana, habituada ao mau humor matinal da rapariga, “Já está tudo no carro e é hoje e não espero nem mais um dia”
“Ai não!”, assustou-se Daniela, horrorizada, o seu role de desculpas estava a começar a esgotar, “Hoje não dá…é que…dói-me o…o…cabelo?”
“Pois…”, resmungou a loura, revirando os olhos, “O pequeno-almoço está na mesa e as coisas estão no carro, despacha-te”
Antes que a rapariga tivesse tempo de se pronunciar, a outra acrescentou, “O caralho da cobra não vem cá para casa”
Enquanto Susana se afastava, a morena amaldiçoou a sua sorte. Era Março, estava um frio insuportável e Daniela tinha medo de ondas, vistas as coisas, a última coisa que lhe apetecia era abandonar o conforto dos lençóis para acompanhar a loura numa das suas sessões de bodyboard. Reformulando, dita sessão envolvia ela, Daniela Sousa a friorenta, verdadeiramente vestir o fato e enfrentar o briol e as ondas. Lá porque a loura não tinha sido atirada à parte funda da piscina, indo ao fundo, quando tinha três anos, não queria dizer que a rapariga tivesse tido a mesma sorte. Se ao menos tivesse a piton, o seu animal de estimação de sonho que nunca pudera ter, para a consolar, mas não, a outra tinha uma opinião muito formada a esse respeito, “Um filho ainda te faço, anacondas nem penses”
E foi assim que a morena se viu a tiritar de frio agarrada ao volante do carro, ao lado de Susana, que só faltava dançar no banco. Ao chegarem à praia, a loura reparou no ar miserável de Daniela, “Olha mor…”
“Hm?”, murmurou a rapariga, franzindo o sobrolho ao ver o mar agitado, pelo menos estava um dia de sol e não tempestuoso, nem tudo podia ser mau.
“Não tens que fazer nada que não queiras”, respondeu a outra, com uma expressão um pouco cabisbaixa. Gostava tanto de bodyboard que tinha pena que a morena não partilhasse do mesmo gosto. Desde o início do namoro que lhe tinha pedido para só experimentar, mas sem sucesso.
“A sério?”, perguntou Daniela, ficando subitamente mais bem-disposta, tanto que os olhos brilhavam, “Não tenho mesmo?”
“Estava a brincar”, replicou Susana, sorrindo, subitamente, de orelha a orelha, apanhando bem a morena, “Tens sim”
“Ai”, exclamou a rapariga, deitando fumo. Pronto, o que ela não tinha que fazer só para fazer a vontade à outra…
Pegando na antiga prancha da loura e numa das mochilas, caminhou pelo areal, ligeiramente, mas muito ligeiramente, contagiada pela alegria da outra, que já tinha uma toalha estendida na areia e se começava a despir, rejubilante, “Vais ver que vai ser giro!”
O ligeiro bom humor da morena rapidamente se dissipou, ao ouvir as ondas baterem na areia, então era assim o seu fim…
“Despe-te!”, mandou-lhe Susana, que já estava dentro do fato, ansiosa por ir para a água.
Daniela retirou uma mão do bolso, avaliando a temperatura, apenas para se arrepender. Com vontade de chorar, saiu do aconchego do seu casaco, tirando a roupa a passo de lesma. Só de bikini, esticou um braço a tremer para a outra, que lhe entregou o fato. Pelo menos tivera a simpatia de usar ela o fato antigo, com vários rasgões por onde iria entrar água, e de lhe emprestar o novo. Uma vez lá dentro, quase com calor de tanto esforço que fizera, a morena pegou na prancha e começou a caminhar para a água, quanto mais depressa despachasse aquilo, mais depressa iria para o conforto do duche.
“Então os pés de pato?”, advertiu a loura, atirando-lhe com umas barbatanas curtas, “E aquecer? Isto não é assim!”
Rosnando, a rapariga imitou os exercícios de aquecimento que Susana fazia, só aquilo já a estava a cansar. Quando a loura achou que estavam prontas, anunciou, muito alegremente, que estava na altura de irem para o mar. Sentindo o nervosismo borbulhar-lhe no estômago, Daniela tentou não tropeçar enquanto se dirigia para o mar, “Eu não quero morrer aqui”
“Prometo que não te vais parar a far away”, garantiu a outra, pondo o braço à volta da cintura da morena, antes de lhe dar um beijo na testa.
Quando Susana as encaminhou para dentro de água, o nervosismo da rapariga aumentou. Ao tomar o primeiro contacto com o mar, Daniela, agarrou a mão da loura, que se limitou a sorrir e a dar-lhe algumas instruções. Quando já tinha água pela cintura e não sentia as mãos de tão frias que estavam, a morena içou o corpo para cima da prancha, imitando todo o procedimento da outra, que se encontrava no seu elemento natural e já estaria a apanhar as primeiras ondas, caso não tivesse que tomar conta da rapariga, “Estás-te a aguentar?”
“Estou”, respondeu Daniela, lutando para se manter ao lado de Susana, embora se cansasse mais depressa e fosse tão atabalhoada que olhar para uma e depois para outra, parecia burlesco. Passado algum tempo, que pareceu décadas à rapariga, esta acabou por suspirar, depois de recuperar a distância perdida quando uma onda a atirou para trás, “Desculpa Susana”
“Porquê?”, questionou a loura.
“Só te estou a empatar”, disse a morena, sentindo o peso da consciência sobre si. Se Susana não tivesse que verificar se ela ainda não se afogara constantemente, nem perdesse tanto tempo a dar-lhe indicações, o mais certo seria estar a desfrutar muito mais daquela manhã.
“Não mesmo”, replicou a outra, “Só queria que fizemos as duas algo que fosse importante para mim e isto com insistência ia lá, acho eu”
Daniela estremeceu só a ouvir a palavra insistência, no entanto, talvez fosse bom conseguirem fazer algo juntas, uma vez que eram tão diferentes. As tentativas de Susana de lhe ensinar a tocar guitarra revelaram-se infrutíferas, afinal não era que lhe saísse talento musical pelos ouvidos e, com o seu jeito, ainda conseguiu partir uma corda da guitarra da outra. As suas sessões de cinema clássico mudo também não foram do interesse da loura, que acabara por adormecer e por se babar no seu ombro. Desta forma, a rapariga ignorou o cansaço que sentia e aguentou ali, junto a Susana.
Quando a loura achou que chegava para uma primeira vez, disse à morena para aproveitar a onda particularmente grande que vinha na direcção delas. Enquanto a outra aproveitara a onda para dar uma volta 360, Daniela, limitou-se a deixar que esta a impulsionasse para o areal, gostando da sensação que adviera da velocidade que ganhara, “Wow…”
“Agora estavas a gostar”, regozijou-se Susana, sem caber em si de contente por ver a rapariga partilhar, ainda que pouca, a mesma emoção que ela sentia cada vez que estava no mar.
“Admito que agora foi engraçado”, respondeu a morena, apesar de não gostar de dar o braço a torcer. Ao ver o sorriso divertido da outra, acrescentou, “Mas foi só agora!”
“Claro, claro”, brincou a loura, pondo as mãos na cintura de Daniela, puxando-a para si, dando-lhe um beijo.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Capítulo 76

Que melhor maneira de iniciar o novo ano do que deparando-se, logo pela manhã, com uma nova revista colocada no local de destaque, por entre os jornais desportivos, nas bancas? Na opinião de Daniela, seria complicado encontrar melhor forma de estampar um sorriso no rosto do que deparando-se com o título gritante, “Confirma-se: CASADA”, por cima de uma foto de ambas que aparentava ter sido tirada no caminho desde o carro até ao restaurante. Nos últimos tempos a especulação havia sido tão grande que seria apenas uma questão de tempo até que obtivessem a confirmação.
Ainda assim, a rapariga não conseguiu conter a sua curiosidade no que dizia respeito ao conteúdo daquele artigo. Pondo um par de moedas em cima do balcão, comprou um exemplar, que folheou até às páginas em questão. O certo era que já se tinha vindo a mentalizar que mais dia, menos dia, iria ser do conhecimento público, tanto mais que se sentia quase indiferente, divertida até, com o chorrilho que iria encontrar. Não estava assim tão mau até, as fotos tinham ficado muito bem, gostou especialmente do seu cabelo naquela em que estava ao colo de Susana, tinham conseguido apanhar os seus reflexos vermelhos. Noutra, não pôde deixar de notar que a loura tinha ficado com o peito bastante enfatizado, tanto que murmurou, “Quem pode, pode e a Dani pode”
Rindo, leu todo aquele artigo, que no fundo não era nada que já não esperasse, pelo menos até chegar a uma certa parte, “Uma fonte, conhecida da mulher de Susana, partilhou connosco alguns pormenores: Realmente não sei como é que a Marques alguma vez olhou para ela, nem se digna a chegar a horas ao trabalho, é antipática e pouco profissional, de conduta duvidosa. Se não visse a Marques visitá-la ao escritório, não acreditava”. Ao menos Ana podia ter-se dado ao trabalho de não tornar tão óbvia a sua identidade, talvez nem se importasse com esconder-se. Revirando os olhos, a morena sussurrou, “Pouco profissional…faço mais que ela em metade do tempo e ainda não parti nenhuma cadeira”
O mais provável era que Susana já tivesse visto, mas Daniela não deitou fora a revista, pelo sim, pelo não, teria papel higiénico. Assim que chegasse ao escritório, Ana teria os seus dias contados. Até teria simplesmente ignorado, caso a outra não tivesse posto em causa o seu profissionalismo, correndo o risco de a prejudicar. Mas também não queria levantar ondas no seu local de trabalho. Teve uma ideia, podia parecer infantil, digna de uma criança de doze anos, mas havia que ser subtil e rápida e, ainda havia de se rir. Passou por uma farmácia local e adquiriu duas caixas do que seria o seu parceiro no crime, uma para diversão sua, outra porque era um pormenor necessário para difamar Ana. Olho por olho.
“Olhe que isso é muito forte, tome pouco!”, advertiu a farmacêutica, alarmada.
“Não se preocupe”, assegurou a rapariga, sorridente.
O Plano “Arrebenta ca Popota” estava em marcha. Para tornar tudo mais credível, amachucou um pouco a caixa e tirou alguns comprimidos para lhe dar um aspecto usado. Depois, retirou o outro medicamento da embalagem, colocando os comprimidos no bolso, prontos a serem usados. Livrou-se das provas incriminatórias a uma distância segura do local de trabalho, afinal o seguro morreu de velho. Colocando uma cara indiferente, para as aparências, entrou no escritório, passando pelo espaço de Ana, deparando-se, para seu horror, com esta debruçada sobre a mesa, procurando algo que caíra ao chão e proporcionando uma vista demasiado generosa do “Hambúrguer”, como Susana lhe chamava.
Esperando que não saísse de lá morcegos, a morena olhou em busca do que procurava, a caneca de chá, chá esse que mais aparentava ser petróleo, que a colega tinha sempre em cima da mesa, na esperança que aquilo a emagrecesse. Ali estava, fumegante. Levando a mão ao bolso, Daniela despejou todos os comprimidos lá para dentro, sorrindo, “Vais ver como emagreces”
Indo para o seu espaço, ligou o computador, constatando que o seu trabalho estava, muito até, adiantado, “Pouco profissional o cu dela…”. Assim que estava tudo operacional, acedeu ao facebook de Ana, guardando algumas fotos sugestivas, uma vez que a colega adorava posar com os glúteos em destaque. Assim que tinha o material ao seu dispor, acedeu a um “site de encontros”, todo ele tresandava a homens de quarenta anos com fetiche por hentai e que ainda viviam na cave da mãe com uma boneca insuflável debaixo da cama. Criou uma conta para Ana, pondo na informação, “Gosta por trás forte e feio”
Eliminando o histórico e as fotos, uniu as pontas dos dedos, na sua melhor personificação do Mr.Burns, “Eeeexcelent”
“Agora esperamos”, disse, para si, fazendo já a contagem decrescente. A farmacêutica tinha-a avisado de que apenas um comprimido seria suficiente para uma pessoa de tamanho médio, mas a colega fazia pelo menos duas e a rapariga servira-se da caixa inteira, mesmo que o seu desagrado pela outra não chegasse a ponto de a querer numa maca a caminho do hospital. Uns minutos mais tarde, aparece Ana a correr pelos corredores, a caminho da casa de banho, mais cor-de-rosa que nunca, suada, mal se contendo a tempo de pôr o seu traseiro colossal na pobre sanita. O som emanado pela colega era algo semelhante a uma égua com o cio sob o efeito de hormonas. Bem que a farmacêutica tinha dito que os laxantes eram fortes.
Servindo-se da confusão gerada por Ana, Daniela passou pelo espaço desta, deixando a caixa que dizia “Para o tratamento de fungos vaginais”, num local visível mas não óbvio demais. Para dar a facada incendiária na colega, abriu a página que tinha criado para esta, no computador dela. Sentando-se na sua cadeira, recomeçou a trabalhar, mesmo a tempo de ver Ana, que parecia envelhecida, regressar, ofegante, com uma mancha de suor debaixo das axilas, “Ai…parece que pari um filho”
Contendo o riso, a morena, voltou a sua atenção para o trabalho, orgulhosa de si mesma. A sua atenção foi dispersada no momento em que o telemóvel dera sinal de si, avisando-a de que iria ter boleia de Susana para casa. Dirigindo toda a sua concentração para o computador, foi novamente interrompida, agora por um colega que tivera a ideia de utilizar a casa de banho, “Aaaaaii!”, ao mesmo tempo que a água acastanhada corria pelo corredor abaixo com dejectos flutuantes, como o caudal de um rio.
Enquanto a empregada acudia à crise, de esfregona em punho e coragem bem no coração, Ana já dera pelo comprimido de combate ao fungo vaginal e pelo site duvidoso, “Sousa!!”
Chapinhando por entre os obstáculos de desperdício orgânico, a colega, demasiado enraivecida para deixar que algo tão insignificante como o embaraço se intrometesse. Abriu a porta de par em par, agarrou Daniela pelo colarinho da camisa e gritou, “Oh minha puta!”
Avistando o seu “superior” principal, a morena, desejosa de preservar a sua imagem de profissional séria e competente, soube imediatamente que postura adoptar. Arrancando a mão gordurosa e, decididamente, infectada de germes, a rapariga, no seu ar mais sério, replicou, “A doutora importa-se?”
“Não me tomes por parva, eu sei muito bem que andaste envolvida nisto!”, guinchou Ana, escarlate de raiva. Já ia para desfazer Daniela, quando o advogado mais velho as separa, repreendendo a outra, “Mas a doutora pensa que isto é uma casa de ciganos?! O que é que se passa aqui?”
“Também gostava de saber, eu estava a tratar do que me tinha pedido quando a minha colega entra por aqui assim”, respondeu a rapariga, vitimizando-se, apontando para as marcas vermelhas que a colega lhe deixara no pescoço.
“Vais levar nessa cara!”, gritou Ana, empurrando o advogado, que se enfureceu, também.
Voltando a separar Ana da morena, o “superior”, acabou por declarar, “Assim não dá para trabalhar!”
Assim se viu Daniela, juntamente com toda a população do escritório em peso, despachados umas boas horas mais cedo. Ligou para Susana, dizendo-lhe para vir assim que estivesse disponível e esta, tendo tido o dia de folga, em pouco tempo estava ali. Nem era para tirar o capacete, não fosse a rapariga tê-la abraçado, quase a fazendo desequilibrar-se da mota. Toda aquela demonstração de afectos surpreendeu a loura, ciente do artigo nefasto publicado naquele dia. No mínimo esperava que a morena lhe pedisse para não aparecer nos próximos meses por ali, não que se desfizesse em abraços, sorridente.
“Estou a ver que o dia correu bem”, brincou a outra, assim que tirou o capacete.
Aproveitando o facto de Ana estar nas imediações e a olhar naquela direcção, Daniela beijou Susana, passando o braço por trás desta, fazendo um gesto obsceno com o dedo para a colega.
“Correu às mil maravilhas”

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Capítulo 75

O Ano Novo não podia vir em melhor altura para todos, ainda que por diferentes motivos: por um lado, Pedro iria aproveitar a ocasião para apresentar, finalmente, Cláudia, afinal que ocasião mais propícia para o fazer, sob o pretexto de estarem todos reunidos? Por outro Rodrigo tinha algo planeado que apenas contara a Susana e esta não havia partilhado com ninguém, nem mesmo com Daniela, que também não insistira. Desejando que tudo corresse na perfeição, Rodrigo sugeriu que jantassem num restaurante simpático, razoavelmente pouco frequentado, e que depois passassem o resto da festividade numa marina das proximidades. O programa foi facilmente acolhido por todos, que nada mais desejavam que um serão tranquilo e sem grandes contratempos.
Foi assim que a rapariga se viu, juntamente com a loura, loura essa muito entusiasmada, guiando por entre as ruas estreitas da localidade, cuja arquitectura nada mudara ao longo do século, desde a típica calçada portuguesa às paredes caiadas de branco, até encontrar um espaço onde estacionar. Ao ver a outra assobiar ao ritmo de uma música que passava na rádio, a morena não se conseguiu conter, “Há alguma coisa que eu deva saber?”
“Não, quando chegar à altura vais saber”, replicou Susana, espreguiçando-se, antes de reparar que estavam num beco bastante discreto. Olhou para um lado e não viu ninguém, olhou para o outro e também não viu vivalma. Sorrindo de maneira travessa, “E se déssemos a última queca do ano já aqui no banco de trás?”
“Sim Susana, até porque já nem estamos vinte minutos atrasadas nem nada”, respondeu Daniela, aproveitando o momento de vulnerabilidade da loura para lhe fazer cócegas debaixo dos braços.
“Importa-se de estar quieta, Sra. Marques?”, brincou a outra, mal conseguindo respirar de tanto rir. Se todos os seus esforços para que a morena parasse foram em vão, então aquele era o seu último recurso.
“Sra. Marques?”, ultrajou-se a rapariga, pondo as mãos nas ancas, abismada, “Sra. Marques?!”
“Podias ter ficado com o meu apelido, era fofo”, respondeu Susana, com um sorriso de orelha a orelha, o que só serviu para indignar ainda mais a morena, que lhe agarrou o piercing da sobrancelha, “Au! Au, au, au, au, au! Eu calo-me!”
Largando a loura, Daniela abraçou-a, apenas porque podia. Quando já se encontravam fora do carro, a outra dobrou o braço, de modo a poder tomar o da morena no seu, sem nunca se aperceberem de um flash que as apanhou. Uma vez à entrada do restaurante, depararam-se com Tiago, Rodrigo, Guida, Marta, Pedro e uma mulher desconhecida que afagava a própria barriga, um tanto proeminente, gesto que não escapou a Susana, que franziu o sobrolho. Pedro, correu a abraçar a rapariga, com tanto entusiasmo que a conseguiu mesmo colocar por cima do ombro, “O prometido é devido, querida!”
Ao ver a calçada demasiado perto de si para o seu gosto, Daniela deu com os punhos nas costas do rapaz, que lá acabou por pôr no chão. Apesar do cabelo fora do lugar e da face ruborizada, a rapariga, compondo-se tanto quanto possível, aproximou-se de Cláudia, sorrindo, “Boa noite, muito prazer”
“Boa noite, deves ser a Daniela”, retribuiu ela, sorrindo. Parecia ser bastante afável, a julgar pelo seu sorriso dócil e voz terna, “O Pedro já me falou muito de ti”
“Imagino”, replicou a morena, ligeiramente constrangida, tal como ficava sempre que alguém era mais querido do que aquilo a que estava habituada, “É pena que tenha levado este tempo todo para nos apresentar”
“Oh ele tem estado tão ocupado”, disse Cláudia, afagando a barriga carinhosamente, “Entre o trabalho e os nossos dois meninos, o Pedrocas não tem muito tempo, coitado”
“Dois?!”, sussurrou Daniela, num sussurro quase inaudível. Pelo canto do olho viu a loura arregalar o olhar e pôr-se em sentido, tipo cão que fareja comida. Voltando a encarar a namorada de Pedro tentou mandar-lhe uma mensagem telepática, “Por favor não digas isso muito alto, por favor, por favor, por favor”
“O Pedro não te contou?”, exclamou Cláudia, visivelmente admirada por a rapariga ainda não estar a par da boa nova, “Vamos ter gémeos, um menino e uma menina”
Ao ouvir a palavra gémeos, Susana começou a salivar, que nem o Cão de Pavlov. Aproximando-se, foi a primeira a congratular a futura mãe, com os olhos vidrados e um sorriso embevecido, ligeiramente corada, “Oh parabéns!”
“Cláudia! Queria ser eu a contar!”, intrometeu-se Pedro, fazendo beicinho. Porém, quando a namorada lhe afagou a barba, antes de lhe dar um beijo rápido, conseguiu, desta forma, consolá-lo. O rapaz colocou-se por trás dela, abraçando-a. A felicidade de ambos transcendia com cada pequeno gesto.
O olhar mortificado da morena, perante todo o entusiasmo demonstrado pela outra passou despercebido ao grupo, que partilhava da mesma alegria, menos Guida que afagou o cabelo de Daniela, suspirando, “O que te vale é que a Susy não tem pila, senão andava a espetar agulhas nos preservativos, não é?”
“Não me fala de outra coisa…”, resmungou a rapariga, que em condições normais teria ficado incomodada com a proximidade de Guida.
“Eu compreendo…também não quero chavalada”, desabafou a outra, torcendo o nariz. Voltou a observar o resto do grupo, em torno de Cláudia, e estremeceu, “O trabalho que eu tenho para manter este corpo iria todo por água abaixo”
“Ela já largou as indirectas subtis, agora pergunta-me, sabendo que eu não quero, para quando é que estou a pensar meter Susaninhas no mundo!”, lamentou-se Daniela, fazendo beicinho, ao imaginar um miúdo louro a correr pela casa e a fazer barulho. Observou a outra pelo canto do olho e comentou, “E sim, eu no teu lugar também não ia querer estragar o corpo…”
“Chateia-te a ti, chateia-me a mim…”, queixou-se Guida, fazendo uma imitação satírica da voz de Susana, “Oh Guida, a Daniela não quer meter os meus bebés no mundo! Ela é má!”
“E se fôssemos entrando?”, propôs Rodrigo, em voz alta, fazendo o grupo voltar a lembrar-se de que ainda não tinham jantado.
Mais uma vez a sugestão foi bem acolhida, mais que não fosse porque a temperatura em finais de Dezembro não era a mais agradável e o restaurante rústico parecia um mimo. Já dentro do estabelecimento, Susana voltou a juntar-se à rapariga, repousando o braço sobre os ombros desta, que picou, “Alguém se esqueceu do desodorizante, não é, Susana?”
“S-Susana…Marques?”, gaguejou Cláudia, com os olhos muito abertos.
“A própria”, esclareceu a loura, antes de se voltar para a morena e perguntar, “Esqueci não! Não cheiro, pois não?”
“B-bem me parecia que não me era estranha…”, continuou a futura mãe, visivelmente envergonhada, olhando para o chão, “Oh Pedro, porque é que nunca me contaste?”
“Eu contei”, disse Pedro, enquanto puxava a cadeira para a namorada se sentar, “Lembras-te de te ter dito que a Daniela era casada com uma piolhosa com a mania que canta?”
“Não sejas assim”, replicou Cláudia, sentando-se, ainda constrangida.
Franzindo o sobrolho perante a amostra de cavalheirismo do rapaz, Susana achou que só lhe ficaria bem fazer o mesmo à rapariga. Assim, puxou-lhe a cadeira, sem avisar e calculando mal a distância, o que resultou numa queda particularmente dolorosa para a morena, “UPS…”
“Mas tu…qual é a tua ideia?!”, rosnou Daniela, temendo pelo estado do seu cóccix. O riso da multidão à mesa não melhorava a situação, sobretudo de Guida, que gritou, “És tão estúpida, Susy!”
“Desculpa…”, disse a loura, baixando o olhar, incomodada. Tão boas intenções depois era aquilo que acontecia. Esticando a mão, ajudou a rapariga a levantar-se, “Magoaste-te muito?”
“Não faz mal”, garantiu a morena, sorrindo, enquanto afagava o braço à outra, que permaneceu em silêncio o resto do jantar, embaraçada. Ao chegarem à sobremesa e nem ai nem ui vir da loura já começava a preocupar Daniela, “O que é que se passa?”
“Só faço asneira”, lamentou-se Susana, raspando o dedo na jarra com flores que enfeitava a mesa, tristonha.
“Ainda estás a pensar naquilo da cadeira?”, consolou a rapariga, dando mão à outra, afagando-lhe as costas da mão com o polegar. Ao reparar que a loura não parecia reagir ao que dizia, acrescentou, “Má altura do mês?”
“Sim…”, respondeu Susana, com voz de quem ia começar a chorar a qualquer momento. Naquelas alturas tendia a ficar extremamente sensível.
“Não acredito que tu querias mesmo pinar há bocado nesse estado!”, indignou-se a morena, torcendo o nariz, “A nossa regra de ouro é nada de sexo quando o Benfica joga em casa!”
“A tua regra”, replicou a loura, colocando ênfase no possessivo, “Eu não me importo nem quando és tu”
Daniela ia a responder, manifestando o seu horror perante a ideia de enfrentar a “maré vermelha”, como lhe chamava, quando a voz de Pedro as interrompeu, “Calem-se, fufas, o Rodrigo quer falar”
Fazendo silêncio, deram a palavra a Rodrigo, que apanhara parte da conversa e ganhara uma tonalidade esverdeada. Clareando a garganta, tentou retirar a mente de pensamentos que tivessem a ver com úteros em decomposição e virou-se para Tiago, “Queria aproveitar a ocasião para te dizer algo que já ando para dizer há algum tempo…”
“Sei que não tenho o melhor historial e que isso te deixa inseguro…”, continuou, “Mas acredita que seria incapaz de me ver com alguém que não contigo”
Perante o olhar estupefacto de Tiago, Rodrigo fez uma pausa, para deixar o rapaz digerir a informação. Ao lado, ouviu Susana murmurar, “Eu devia ter dito uma coisa assim…”
Respirando fundo, prosseguiu, sorrindo, com um brilho no olhar, “Tiago, aceitas casar comigo?”
Tiago quedou-se boquiaberto, gaguejando qualquer coisa antes de conseguir, finalmente, responder, “Sim!”. Como se fosse um boneco de mola, Rodrigo atirou-se ao namorado, seguindo-se uma troca de saliva que só não arrepiou os restantes porque estavam demasiado enternecidos com a situação. Virando-se para Guida, a loura, cujas alterações de humor acabaram por estabilizar, disse, “Só faltas tu!”
Rindo-se, Guida levantou o copo de champanhe, propondo, “E se fizéssemos um brinde?”
Toda a gente levantou os copos, brindando, primeiro aos futuros pais, depois aos noivos. A felicidade de ambos os casais era impossível de deixar quem quer que fosse indiferente. Uma vez fora do restaurante, junto ao cais, enquanto aguardavam pela meia-noite, Susana, puxou Daniela para o seu colo e, encostando a cara ao ouvido desta, murmurou, “Desculpa se te estou a pressionar com isto dos filhos…”
“Eu compreendo, sei o quanto os queres”, respondeu a rapariga, encostando a cara à da loura, roçando, “Não digo que não os possamos vir a ter um dia, é provável que sim, mas por enquanto é cedo”
A outra acenou em sinal de aprovação com a cabeça, antes de se inclinar para beijar a morena, puxando-a mais para si, antes de ser interrompida por Guida, que lhes abriu uma garrafa de champanhe em cima, “Feliz Ano Novo!!”

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Capítulo 74

Chegou o Natal e, com ele, o derradeiro teste à integração de Susana na família. Fiel à sua palavra, a mãe de Daniela fazia esforços visíveis para conter os comentários mais desagradáveis, bem como para tratar a loura tal como a trataria se esta tivesse genitais diferentes. Claro que havia pequenas grandes coisas que não aprovava mas que tinha que ignorar por não lhe dizerem respeito, como, por exemplo, aquele dia em que fora fazer uma visita à filha e fora recebida por uma Susana de olhos quase fechados que a levara para a sala onde se encontrava, em cima da mesa, um bongo e um saco de erva. Para cúmulo do seu horror, a loura rematara, com toda a seriedade, “É servida, sogrinha?”
Ainda com a memória desse incidente presente, Susana certificou-se que ia o mais composta possível para o jantar de Véspera de Natal em casa dos pais de Daniela. Mais do que substituir as suas calças largas e rasgadas por umas justas e impecáveis, levou, também, umas prendas, de modo a causar a melhor impressão que conseguisse. Penteada e perfumada, apareceu, com o braço sobre os ombros da rapariga, ambas sorridentes, à porta de casa da senhora. A mãe da morena parecia aprovar a indumentária da outra, pois não torceu o nariz.
“Boa tarde”, saudou Susana, feliz, enquanto dava dois beijinhos à senhora, “Está boa, sogrinha?”
“Sim e tu, norinha?”, respondeu a mãe de Daniela, à letra. Meses a aguentar o tratamento irritante da loura já a faziam ganhar algum calo.
Na parte que lhe tocava, Daniela não podia estar mais grata pelo esforço da parte de ambas para, mais do que se tolerarem mutuamente, se dessem até bastante bem. Já sabia que o seu pai desde sempre que gostara muito da loura, na sua simplicidade descomplicada. No entanto, apesar de tudo, nada a fizera prever que a mãe e a senhora viessem a ultrapassar as suas diferenças. E o resultado estava diante dos seus olhos, Susana e a sua mãe, a falarem alegremente sobre o que seria o jantar e a loura a oferecer-se para dar uma ajuda no que fosse necessário.
Deixando-as na cozinha, a morena dirigiu-se ao seu quarto, feliz por verificar que os seus pais o deixaram tal como se encontrava quando ainda lá vivia. Desde a sua televisão, passando por alguma da sua roupa, até chegar à decoração que se mantivera desde os seus tempos de criança, estava tudo igual. Segundo o seu pai, era para o caso de algum dia se chatear com a “mula”. Desconhecendo o termo, a rapariga perguntou porque é que lhe chamava “mula”, ao qual o seu progenitor respondeu, “Porque também a montas”. Só o seu pai para lhe ir contar uma dessas…
Rindo ao lembrar-se desse momento, a rapariga deambulou pelo quarto, absorta de tudo, até que o som de passos a fez assentar de novo os pés na Terra. Antes que tivesse tempo de se voltar, Susana colocou os braços em torno da sua cintura, desviando-lhe algum cabelo para que pudesse chegar-lhe ao pescoço. Entre beijos e dentadas, disse, “Estão entretidos lá em baixo…hm…”
Daniela virou-se para a loura, beijando-a à medida que esta a encostava à parede. Enquanto sentia as mãos da loura acariciarem-lhe cintura, removeu-lhe a camisola, antes de a fazer morder-lhe o pescoço. Mal se viu livre da sua camisola, sentiu a outra descer-lhe, mordendo cada centímetro de pele que encontrava. De olhos fechados, agarrou tufos de cabelo louro, enquanto Susana, de cócoras, fazia a sua arte, “Hm Susy…”
Puxando mais a cara da loura para si, a rapariga, que se esforçou por fazer o menor ruído possível, não conseguiu evitar soltar um gemido um pouco alto, o que fez com que a outra levantasse a cabeça, parando o que estava a fazer, replicando, “Nada de gemidos, nem Susana és uma deusa, nem nada”
Voltando a puxar Susana, a morena, que estando tão perto não ia permitir que a loura parasse, rosnou, “Não te disse para parares!”
A outra não precisou de muitos mais esforços, pouco depois já a rapariga se tinha que segurar à parede, evitando cair para cima da loura, afogueada. Susana, sorrindo, presunçosa, puxou Daniela para baixo, dizendo, “E retribuir?”
Em vez de se limitar a inverter posições com a outra, a morena levantou-se a empurrou a loura até à cama, fazendo-a deitar-se de costas. Estava já Susana a agarrar uma macheia de cabelo seu, quando a voz da sua mãe se fez ouvir, “Daniela! Vem falar à avó!”
“Nem penses em deixar-me pendurada”, replicou a loura, agarrando a rapariga com ambas as mãos, obrigando-a a acabar o que começara, o que também não levou muito tempo. Uns minutos mais tarde estavam já a vestir-se, indo para baixo, como se não se tivesse passado nada.
“A avó está na sala”, disse a senhora, embora tivesse observado tanto Daniela como Susana dos pés à cabeça e não tivesse gostado do que viu, “Dani, o que é isso aí?”
“O quê?”, questionou a rapariga, dirigindo-se ao espelho mais próximo, seguida pela loura. Assim que viu o seu reflexo, um chupão enorme, enfatizado pela sua pele clara, parecia olhar de volta para si. Se a morena tinha os cabelos num desalinho, a outra não estava diferente e a sua camisola vestida ao contrário não ajudava, “Desculpa, mãe!”
“Não tem mal…mas componham-se, se faz favor”, implorou a senhora, corada.
Fizeram como lhes foi dito e foram cumprimentar a avó, cada vez mais senil, da rapariga. A família já sabia da existência de Susana, porém, uma coisa era ter ouvido falar, outra era ver em pessoa. Assim sendo, Daniela, de mão dada com a loura, com o seu sorriso mais gentil, apresentou, “Boa noite avó, esta é que é a Susana, a minha mulher”
A anciã, com quase um século de vida, ajeitou os seus óculos fundo de garrafa e pigarreou, “A tua quê? A tua empada? Oh Dalila, não brinques comigo que eu não tenho a tua idade!”
“Daniela, avó”, corrigiu a rapariga, sempre paciente, “É a minha m-u-l-h-e-r, mulher”
A idosa fez ouvidos de mercador à morena, de tão vidrada que ficou nas rastas de Susana. Ignorando a expressão perplexa desta, a avó, com o auxílio da bengala, levantou-se do sofá e, ajeitando os óculos fundo de garrafa, tomou uma das rastas nas mãos, “Mas porque é que ela tem cachos de banana…”. Com uma força impressionante para alguém daquela idade, puxou a dita rasta e puxou…”Aaaah!”
“Oh, afinal era cabelo…quem havia de dizer”, concluiu a avó, no seu momento de epifania, observando a rasta nas suas mãos, sem dar a menor importância a Susana, que continuava agarrada à cabeça, cheia de dores.
“Desculpa, desculpa, desculpa”, implorou Daniela, agarrando o braço da loura e retirando-a do alcance da idosa, que se quedou a brincar com a rasta, toda contente, “Ela já não sabe o que faz”
A outra limitou-se a gemer, desconsolada. Desde esse momento que as coisas só melhoraram, à medida que era apresentada ao resto da família. A outra avó não parecia ter entendido bem, porém não se manifestou. Em suma, parecia ser aceite, não fora banhada em simpatias, mas, tampouco a receberam com sete pedras na mão, mais que isso não pedia. Depois das apresentações, seguiu-se a sua altura preferida do dia, o jantar. E parecia haver imensa comida, o que a fez esquecer a rasta morta, rasta essa que continuava na mão da matriarca, que continuava a brincar com ela à mesa.
“Oh mãe, largue isso, deve ter piolhos”, advertiu o pai,               que nunca fora fã do penteado da nora, em bom rigor, sempre o achara propício ao surgimento de um império de parasitas, parasitas esses que queria bem longe da sua casa.
“Não tem não!”, queixou-se Susana, ultrajada. Ela, que tomava banho diariamente…
As suas atenções depressa foram distraídas, quando Daniela lhe colocou uma dose de bacalhau com natas, ainda fumegante, no prato, “Pronto, afoga as mágoas na comida”
A loura agradeceu dando um beijo na bochecha da rapariga, que ficou enternecida. Torturada por ter de esperar que todos estivessem servidos, a outra pousou uma mão sobre a perna da morena, deixando-a deslizar…o suficiente para que Daniela entornasse o copo por onde estava a tentar beber e lhe desse um estalo na mão, por baixo da mesa, “A sério, Susana?”
Susana sorriu, de orelha a orelha, antes de voltar a dar um beijo na face da morena, que a empurrava, em tom de brincadeira. Os restantes ocupantes da mesa estavam demasiado concentrados na refeição para se preocuparem com elas, mas não evitaram trocar um sorriso entre si. Enchendo o garfo ao máximo e empanturrando a boca ao limite, a loura descurou completamente as maneiras, quando estava com fome não havia nada que se colocasse no seu caminho ou a fizesse inibir-se, tanto mais que a rapariga revirou os olhos e gozou, “Não queres uma pá?”
“Ão, ‘ou ‘em achim”, respondeu a outra, empurrando todo o entulho que tinha na boca com metade do conteúdo de uma mini, que tão graciosamente bebeu. Ao menos dignara-se a despejar a cerveja para um copo em vez de a beber directamente da garrafa, como teria feito em condições habituais. A seu ver sabia melhor assim. Terminou o jantar em tempo recorde, mesmo havendo repetido e foi, juntamente com Daniela, buscar as sobremesas à cozinha, a pedido da mãe da rapariga.
Uma vez longe dos convidados, Susana deixou escapar um sonoro arroto que tinha estado a aguentar desde que acabara de comer, satisfeita. Olhou para a rapariga que abanava a cabeça em tom de desaprovação, “Que é?”
A morena não respondeu, limitando-se a torcer o nariz, antes de soltar o maior arroto que a loura alguma vez ouvira, ofuscando o seu, “Isto é um arroto”
“Fiquei molhada…”, disse a outra, boquiaberta, observando a rapariga a abandonar a cozinha, levando consigo a torta de laranja.
Voltando para a mesa, Susana provou os bolos, como se lhe fosse custar muito, de qualquer maneira. Vendo as horas, constatou que faltava pouco para a meia-noite, portanto pediu as chaves do carro a Daniela, para ir buscar as prendas. Trazendo o saco, colocou-o por baixo da árvore, sem que ninguém visse e voltou para junto da morena, em frente à lareira. Se dependesse de si, preferiria que a rapariga estivesse no seu colo, mas seria preferível deixar as demonstrações de afecto para mais tarde. Assim, ficou ao lado desta, colocando-lhe o braço por cima dos ombros.
No momento em que Susana ia a aproximar-se para um beijo, Daniela olhou para as horas e disse, “Meia-noite, prendas!”. Ao ver o ar desconsolado da loura, voltou atrás apenas para lhe dar um beijo rápido e voltou para baixo da árvore, agarrando o primeiro embrulho com o seu nome. Era da tia Alberta, abrindo, um par de cuecas “saco do pão”, tão grandes que poderia atirar-se da janela com elas que iria aterrar bem, foi-lhe parar à mão. Sorrindo, exibiu-as à outra, que abanou a cabeça, horrorizada, “Não tenhas ideias tristes!”
Pegando noutro embrulho, este da sua avó não senil, visto que a outra já lhe dera um Pai Natal de chocolate, rasgou-o. Diversos fios dentais, ora com renda, ora transparentes, ora de cetim, caíram-lhe no colo. De olhos arregalados, Susana disse, “Me gusta!”
Continuando a vasculhar prendas, encontrou uma caixa pequena que dizia “Norinha”. Rindo, atirou-a à outra que, ao ver o que estava escrito, riu também. Ao abrir, viu um grinder, decorado com a imagem de uma mulher em trajos menores, coisa que já estava para comprar desde há algum tempo, tendo em conta que desfazer erva com as mãos era chato e pouco eficaz, “Oh obrigada, sogrinha!”
“Não deixes a Danyzinha fumar, por amor de Deus!”, pediu a senhora, com um olhar austero. Na verdade a prenda tinha sido uma sugestão da morena.
Passando uma prenda, tanto de Daniela, como de Susana, para os pais da rapariga, disseram, “É de ambas!”. Para a mãe era uma mala nova, mesmo ao gosto dela e, para o pai um cachimbo novo. Escusado seria dizer que foram distribuídos abraços com fartura. Vendo bem as coisas, aquele fora um serão bem agradável, a prova que tanto Susana como a família de Daniela tiveram eu ultrapassar fora superada com nota máxima. Quando ambas já se encontravam no carro a caminho de casa, a rapariga perguntou, “Sentiste-te bem?”
“Melhor do que estava à espera, a sério”, replicou a loura, sorridente, afagando a mão da rapariga que repousava sobre a manete das mudanças, “A tua prenda está em casa”
Ignorando os “não te devias ter dado ao trabalho” da morena, a outra vendou-a, assim que chegaram a casa. Quando Daniela deu por si, estava algemada à cama. Lambeu os lábios e disse, “Fui uma boa menina este ano, não me queres descer a chaminé?”
“Ho, ho, ho”, respondeu Susana, provocantemente.

sábado, 12 de novembro de 2011

Capítulo 73

O súbito desaparecimento de Pedro não era algo que Daniela estranhasse, afinal este havia arranjado, recentemente, uma nova namorada. Tanto quanto a rapariga sabia, talvez fosse desta que assentava, porém, dado o passado deste, essa hipótese seria melindrosa. E daí se Susana o conseguira, porque motivo havia o amigo de não conseguir? Só havia uma maneira de saber que era esperar para ver e era precisamente isso que a rapariga tencionava fazer. Claro que quando recebeu um convite de Pedro para irem jantar a um restaurante japonês do seu agrado, ainda que dispensável para a morena, esta nem pensou duas vezes em aceitar, decerto que o amigo teria novidades para lhe contar.
Mal estacionou no parque do restaurante, avistou Pedro, sentado na borda do canteiro à sua espera. No entanto este estava diferente. Desde as suas calças de marca, ou não fosse este o aficionado por moda, e acessórios impecáveis, não havia nada fora do comum. Mas parecia estar a emitir um brilho, uma espécie de uma aura…fosse o que fosse o rapaz, quer dizer, o homem, tendo em conta a diferença de idades entre ele e Daniela, estava radiante. Assim que avistou a morena, saltou, todo ele transbordando euforia, agarrou a rapariga, como se fosse uma boneca de trapos e rodopiou-a no ar, “Boa noite, coisa mais boa!”
“Aii…LARGA-ME!”, protestou Daniela, esperneando em vão, “Páraaa!”
Quando Pedro a pôs no chão, a rapariga apenas não caiu, completamente atarantada, porque o amigo a agarrou. Ao recompor-se, a morena não conseguiu conter mais a sua curiosidade insatisfeita, “É agora que me vais dizer porque é que pareces um palhaço feliz?”
“Calma, cada coisa a seu tempo”, replicou Pedro, sorrindo tanto que a cara parecia prestes a rasgar a qualquer momento, “Vamos comer primeiro”
Impaciente, Daniela resmungou, mas o seu estômago já se queixava, tão ruidosamente como uma avalanche, que nem ao rapaz passou despercebido. Se calhar estava a apanhar os hábitos de Susana…Porém, se a loura tinha a capacidade gástrica de uma larva, o mesmo não acontecia com a morena, cujo apetite esmoreceu ao ver sushi nos pratos dos restantes clientes. Já instalados, escolheram uma dose de sushi cada um. O que uma pessoa não tinha que fazer pelos amigos, pensou a rapariga, grunhindo à medida que sonhava com um caril de frango extra picante.
Assim que a empregada japonesa trajada a rigor se afastou com os pedidos de cada um, Pedro esticou as mãos sobre a mesa e pegou nas de Daniela, sempre a radiar felicidade, “Como é que conseguiste deixar a Susana em casa?”
“Tu pediste-me para vir sozinha e eu vim”, respondeu a morena, franzindo o sobrolho, se o rapaz achava que ela se ia esquecer, estava muito enganado, “De qualquer forma ela foi sair…mas não penses que me enganas, conta lá o que é que te está a deixar nesse estado”
Pedro riu-se, por entre dentes, o certo é que estava a adiar um pouco a bomba que tinha para contar pois queria dizê-la da melhor maneira, apenas não sabia como a contar de outra maneira, portanto disparou, “Eu…vou…ser…pai!”
Enquanto o ouvia falar, a rapariga estava a beber um pouco de água, água essa que com o susto conseguiu cuspir em cheio na cara do amigo, que de tão feliz que se encontrava nem se importou com o facto de estar a escorrer água e saliva. Por sua vez, Daniela batalhou com um violento ataque de tosse que se seguiu imediatamente, deixando-a roxa e às portas de umas asfixia. Apenas dez minutos e uma multidão assustada mais tarde, é que a rapariga acalmou o suficiente para dizer, “Tu o quê?”
“A Cláudia está grávida”, reformulou Pedro, enquanto limpava a cara a um guardanapo, sempre sem parar de rir.
“Oh meu Deus”, murmurou a morena. Só de pensar que aquela pessoa diante de si, a mesma com quem brincara ao Harry Potter e ajudara a copiar em muitos testes, ia ter um filho, era o suficiente para a abalar dos pés à cabeça.
“Não estás feliz?”, questionou ele, agradecendo à empregada pelo prato de comida que esta colocava diante deles.
“Estou muito, acredita que sim”, apressou-se Daniela a dizer, não fosse dar a ideia errada, “Mas parece tão assustador…ainda há me lembro de estarmos com as nossas lancheiras na primária…agora tu vais ser PAI!”
“Nem me digas nada, é mesmo estranho, mas ao mesmo tempo é maravilhoso”, regozijou-se Pedro, por entre dentadas no pedaço de sushi, “Sempre quis ser pai, só não estava à espera que fosse já”
“Ela está de quanto tempo?”, perguntou a rapariga, um tanto enjoada com o cheiro duvidoso do sushi, só esperava que aquele peixe não fosse a sua morte.
“Dois meses, em princípio nasce lá para Julho”, respondeu o amigo, enquanto enchia o copo com saqué a ambos, “Podemos fazer um brinde?”
“Claro, mas espera que eu acabe de comer, se beber com pouca comida no estômago já sabes que não me dou bem”, pediu a morena, engolindo pedaços enormes de peixe quase sem mastigar, para saborear o menos possível, “Acho-te uma piada, nem me apresentaste a Cláudia e agora dizes-me que vocês vão ter um filho”
“Tu estás sempre ocupada, ou com trabalho ou com a querida da Susaninha”, replicou o rapaz, revirando os olhos, “Mas fazemos assim, no Natal ou no Ano Novo fazemos qualquer coisa todos e assim já não vai haver desculpa”
“Boa ideia”, concordou Daniela, feliz por ver o sushi chegar ao fim, “Mas quando chegar à altura tu não fales em crianças em frente à Susana, peço-te por tudo”
“Porquê?”, interrogou Pedro, de olhos arregalados, “Ela não adora miúdos? Até vai todos os anos àqueles concertos para animar as crianças doentes!”
“Natais nos Hospitais e concertos de caridade, sim ela está sempre lá”, disse a rapariga, “Mas é mesmo por isso, ela adorava ter filhos, ainda outro dia se pôs a falar de possíveis nomes comigo, é a Sara e o Afonso”
“Eu adorava, mas adorava a sério, ver um bando de Danyzinhas a correr por aí”, derreteu-se o amigo com a ideia, “Imagina uma mini Dani lourinha, que coisa mais linda, o problema era se saía uma cabeça de vento, com os genes da Susana nunca se sabe…”
A morena limitou-se a torcer o nariz e a bater na mesa de madeira três vezes, antes de desviar o assunto, “Quem é que são os padrinhos do teu filho ou filha, do João Pedro e da Maria João?”
“O padrinho é o tio, o irmão da Cláudia”, respondeu ele, com a maior das naturalidades, “A madrinha és tu, nem te pergunto porque isso já está decidido, bem como os nomes das crianças, desde o nosso terceiro ano”
“Oh!”, enterneceu-se Daniela, voltando a agarrar as mãos de Pedro, “Não acredito que ainda te lembras disso!”
“Já que eu não pude ser o padrinho do teu casamento…”, negociou o rapaz, por entre risos, “…vou ser eu, também, o padrinho dos teus putos, aposto que a Susy está muito de acordo”
“Cala-te e não dês ideias à Susana”, apressou-se a morena a dizer, novamente indisposta, “Não íamos fazer um brinde?”
“Claro”, disse ele, pegando novamente na garrafa de saqué para voltar a encher o copo tanto à rapariga como a si próprio, “Ao meu João Pedro ou à minha Maria João”
Daniela pegou no seu copo e brindou, sorridente. Para sua irritação, Pedro voltou a bater com o seu no dela, proferindo, “E ao Afonso e à Sara também!”, antes de se desfazer em risos, perante a sua expressão enfastiada. No fundo, Daniela acabou por sorrir também.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Capítulo 72

“Beep, beep, beep”
O som que Daniela mais gostaria de evitar fez-se ouvir, ecoando pelas quatro paredes do quarto. Com um resmungo gutural, esticou o braço para desligar o despertador, afinal não queria acordar Susana antes do tempo. Esta havia trabalhado tanto ultimamente que não havia necessidade de a incomodar quando todo o descanso que esta conseguisse obter era pouco. Por seu lado, a rapariga não podia dizer o mesmo, tinha um horário fixo, mas naquele diz precisava de ir mais cedo para tentar adiantar algum trabalho que já se vinha a acumular.
Levantou a cabeça do ombro da loura, satisfeita por não a ter acordado e rastejou até ao duche, nunca fazendo muito barulho. Uma vez mais desperta, cortesia da água quente, voltou para o quarto, satisfeita por verificar que o único indício de que a outra estava viva era a sua respiração e o consequente mover do tórax, “Eu sabia que ela ressonava”. Sorrindo, enternecida, vestiu-se e dirigiu-se à cozinha, onde preparou tanto o seu pequeno-almoço como o de Susana. Este último deixou no quarto, na mesa-de-cabeceira junto à outra, para que o visse assim que acordasse. Antes de ir embora, debruçou-se sobre Susana e deu-lhe um beijo rápido, ao qual esta respondeu, nunca chegando a acordar, “Eu pedi de laranja, fáchavor”
Rindo, a morena saiu de casa, só então sentindo a preocupação que a atormentara desde que lera o nefasto artigo daquela revista. O ter que passar uma hora encafuada em transportes públicos por baixo da axila de alguém, consequência de uma avaria no motor do carro, não contribuiu para que descontraísse. Parte de si fazia figas para que os colegas não descobrissem, mas a outra parte sabia que tal coisa seria difícil. Foi fazendo das tripas coração que chegou ao escritório, incerta do que a esperaria mal colocasse o pé no interior. Suspirou, para se controlar, até que entrou, deparando-se com o local praticamente abandonado, “Que alívio”. Dirigiu-se ao seu local de trabalho concreto, onde encontrou um exemplar da revista, sobre a sua mesa, “Era abusar da sorte, ok”
Pondo a maldita revista no cesto do lixo a seu lado, sentou-se, dando início a mais um dia de trabalho. Estava tão compenetrada na tarefa em mãos que nem ouviu um par de passos dirigirem-se à sua pessoa, sendo apenas perturbada quando sentiu uma respiração quente no seu pescoço e uma voz cortante, “Então Daniela…conta lá, o que é que A Susana Marques viu na tua triste figura?”
A rapariga virou-se, tão depressa que nem distinguiu imediatamente quem era a pessoa de quem partiu aquele comentário. Quando viu Ana, a sua colega de reputação duvidosa e língua afiada, quaisquer surpresas que pudesse ter tido dissiparam-se. Revirou os olhos e continuou o que estava a fazer, antes de ser interrompida. Chateada com o desprezo, Ana voltou a tentar, na sua voz demasiado aguda para os ouvidos da morena, “O tu teres casado com a piolhosa ainda é compreensível, deves querer um caixão forrado a ouro para quando caíres morta, agora ela podia arranjar bem melhor que tu”
Fechando os olhos enquanto suspirava, Daniela mordeu a língua. Aquele ser escolhera um mau dia para a provocar, mas se continuasse, teria que reagir. Para se moralizar pensou, “Se aguentaste a Mariana e as suas boquinhas irritantes, esta é canja”. Encolhendo os ombros, voltou a debruçar-se sobre o que estava a fazer, como se não tivesse ouvido nada, felizmente para si distraía-se com facilidade, tanto mais que só voltou a levantar a cabeça quando a monstruosa traseira de Ana aterrou sobre a sua mesa, proporcionando-lhe um plano demasiado generoso das suas coxas de dinossauro. Olhou para cima, para os olhos estrábicos da colega e revirou os seus, “Por amor de Deus”
“Isso digo eu”, continuou Ana. Se naquele momento uma língua bifurcada tivesse saído da boca desta, a rapariga não se teria admirado. Os comentários prosseguiram, “Ela tem reputação de não ser nada esquisita, o que explica porque é que quis alguma coisa contigo”
Prestes a abrir um golpe no lábio, a morena bufou de raiva. Não queria mesmo descer ao nível da outra, mas se esta continuasse assim não responderia por si.
“Diz lá, a que é que sabem os chatos da Susana?”
E o limite da sua paciência fora ultrapassado. Olhou para cima, com um trejeito enjoado e replicou, “Olha lá, mas tu importas-te de tirar essa peida celulosa de cima das minhas coisas?”
“Desculpa?”, indignou-se ela, disparando um jacto de saliva que aterrou em cheio sobre a mão da rapariga.
Daniela olhou para aquela pequena amostra de ADN a reluzir nas costas da sua mão. Repugnada, limpou-se à camisola da colega, não fosse a saliva ser corrosiva. Pelo caminho conseguira ver as estrias das ancas de Ana, o que não a ajudava muito. A expressão de ultraje da outra ainda a irritara mais, a ponto de descair um pouco, “Vá Popota, vai lá dar a pussy na tua esquina”
“Ah, esqueci-me, ninguém se aproxima desse buraco negro”, rematou a morena, que só a mera proximidade da colega era um factor de risco para a propagação de alguma doença indesejável.
A rapariga não gostaria de ter descido tão baixo, mas era humana e o seu autocontrolo só ia até certo ponto. Mas valera a pena, Ana resolvera ir embora, fazendo estremecer toda a divisão quando saltara para o chão. Voltando ao trabalho, Daniela sentiu-se muito grata por os advogados mais velhos verem tudo quanto era revista cor-de-rosa tão evitável quanto um monte de desperdício nuclear, portanto destes não ouviria nada que não fossem críticas ou instruções relacionadas com o que lhe mandavam fazer. Mais seis horas e estaria despachada, até lá o tempo arrastar-se-ia.
Ouviu o telemóvel vibrar sobre a mesa, o que resultou numa oportunidade para interromper o que estava a fazer ainda que fosse por um par de segundos. No visor lia-se, “Susana <3”:
“Desculpa! Só acordei agora e nem te pude dizer nada! Queres boleia mais tarde?”
Entre passar uma hora exposta a todo o tipo de odores que o corpo humano pudesse produzir ou uma hora, pronto, um quarto de hora, tendo em conta a condução de Susana, a contornar carros na auto-estrada, a escolha não era fácil. E arriscar-se a que Ana a visse na companhia da loura? Axilas e enxofre, seria:
“Não é preciso, obrigada :) ”
E assim voltou a mergulhar em códigos e burocracia. Só faltavam quarenta anos até à reforma, não custava nada. Nem os olhares fulminantes disparados pelos globos oculares descalibrados de Ana a iam incomodar, “Bitch please”
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Daniela espreguiçou-se demoradamente na cadeira, satisfeita com o dia produtivo que tivera. Estava na altura do seu repouso bem merecido. Arrumou a secretária e foi embora, mas não tão depressa que a massa amorfa de Ana não a tivesse conseguido alcançar, “Agora estamos saidinhas da casca, estamos?”
“Tira o vibrador do cu”, resmungou a rapariga, não detendo a marcha. Porém, uma mão de dedos que aparentavam ser insufláveis agarrou-lhe o braço, obrigando-a a virar-se.
“Tu não falas comigo assim, minha puta”, guinchou Ana, por entre duas fileiras de dentes amarelos. O mais provável seria seguir-se uma troca de estalos, ou de dedos nos olhos, tendo em conta que a morena não jogava limpo, se o volume flácido da colega não tivesse sido empurrado, até se desequilibrar e cair estatelada no chão.
“Tens algum problema, tu?”, rosnou Susana, olhando para baixo, para Ana.
“Vamos embora, não se passa nada”, assegurou Daniela, obrigando a loura a afastar-se, apesar da resistência desta.
“Su…su…”, gaguejou a colega, não podendo acreditar que os rumores eram verídicos. Rapidamente a sua tonalidade pálida ganhou um tom avermelhado, “Isto não fica assim!”
“Caralho, mas tu não te calas?!”, ameaçou a loura, contorcendo-se no aperto da rapariga, que se servia de todas as suas forças para a manter sob controlo.
“Já chega, Susana!”, gritou-lhe a morena.
Finalmente Susana parara, mas não sem mandar um último olhar de irritação a Ana. Quando já estavam ambas junto à mota, longe do alcance da colega, Daniela repreendeu, “Eu tinha dito que não queria boleia”
“Sim, mas eu tinha tempo e não queria que andasses sozinha a esta hora…”, justificou-se a loura, um pouco cabisbaixa, dando as mãos à rapariga.
A morena, não fez senão suspirar e deitar a cabeça no ombro da outra, “Como é que eu consigo ficar chateada quando tu és assim?”
“Fácil, não consegues”, respondeu Susana, novamente sorridente, como se o sucedido nunca tivesse tomado lugar. Pegou nos capacetes e deu um a Daniela, perdida de riso, de novo bem-humorada.