quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Capítulo 48

“Depois de uma tempestade vem sempre uma bonança”. Foi o que valeu tanto a uma como à outra. Daniela, por um lado, implorara pelo perdão da mãe mil vezes e, felizmente para si, esta esquecera-se pouco tempo depois. Os únicos contratempos encontrados foram os comentários pouco agradáveis dos colegas e a revolta da família. Aos primeiros, fez ouvidos de mercador, até porque também recebera algum apoio positivo por parte dos que tinham uma mente mais aberta, que lhe deram os parabéns pela coragem e lhe lembraram da sorte que tinha. Quanto aos segundos, teve menos sorte, pois a avó não levara a notícia a bem e estava a tentar impingir à mãe a ideia de meterem a rapariga num psicólogo.
Felizmente para Daniela, o pai apoiava-a, considerando aquilo a menor das suas preocupações. Desde que não descurasse nos estudos e se mantivesse no “bom caminho”, podia estar com quem quisesse, afinal era a vida dela. A mãe é que não era tão liberal, o incidente da revista trouxera abaixo todo o progresso que a loura conseguira. Tanto que já passara algum tempo desde a última vez que esta fora lá a casa. E a avó a meter carneirinhos na cabeça da mãe fora decisivo para a situação. Até porque a senhora esqueceria o assunto passando uns tempos, caso a idosa não tivesse levantado tantas ondas.
Susana, por outro lado, não podia estar melhor. Isto é, poder até podia, custava-lhe conter-se em público, se bem que o que perdia em público compensava em privado. Porém, havia valido a pena. Em três meses, facturara o suficiente para remodelar a casa e, resumindo, adquirir tudo quanto o seu estado monetário anterior não lhe permitira ter. Ainda assim, quem observasse a antiga Susana e a nova, não notaria diferença, ainda apresentava o mesmo aspecto hippy e a simplicidade honesta que tanto a caracterizava, sem nunca deixar que o sucesso lhe subisse à cabeça.
A loura iria tocar na Ala Magna, um local um pouco mais prestigioso que os anteriores, afinal era sempre a progredir. Cumpriu com a sua rotina habitual de pré-concerto, afinou a viola, reviu as músicas que iria tocar e a ordem porque as iria tocar. A de Daniela seria a última, mais que não fosse porque a rapariga iria assistir naquele dia. Um toque na porta interrompeu-a no momento em que estava a acabar de se vestir. Ajeitou a camisola e avisou que podiam entrar, pensando tratar-se da morena.
Um homem alto e entroncado entrou, seguido de uma mulher esguia que devia estar na mesma faixa etária. Ambos deviam ser de meia-idade e ambos lhe diziam algo embora não soubesse o quê. Quando se aproximaram, Susana notou especialmente os olhos azuis e o sorriso com covinhas do homem e o cabelo louro da mulher.
“Desculpem?”, perguntou, baralhada com o porquê de estarem ali aquelas pessoas.
“Boa noite, filha”, saudou o homem, com um sorriso rasgado que lhe acentuava as covinhas.
“Como?”, inquiriu a loura, incerta do que acabara de ouvir. Decerto que não podia estar a escutar bem…
“Boa noite, Susana”, reformulou, desta vez, a senhora, aproximando-se dela para lhe afagar o braço, “Estás tão bonita”
“Somos teus pais”, disse o suposto pai, pondo-se ao lado da mulher, “Lembras-te?”
Susana ficou sem reacção durante um período de tempo que não soube definir. Ia-lhe surgindo imagens paradas na sua mente, numa estava às cavalitas de alguém alto que lhe segurava as mãos para não se desequilibrar, noutra estava apenas no colo de alguém cujos cabelos louros caíam para a sua cara e faziam cócegas. Eram todas memórias que sempre a faziam sorrir e sentir-se aconchegada. Opondo-se a estas, estava o episódio em que um certo dia acordara e não os encontrava por parte alguma, correra a casa toda mas sem resultados, até se dirigir à avó, a chorar e a perguntar pelos pais.
Num extremo estava um passeio pela praia no qual a mãe lhe dava uma mão e o pai a outra e a ajudavam a saltar umas rochas. No outro estavam as inúmeras cartas que lhes escrevera e que nunca foram respondidas. Via a namorada a queixar-se da mãe e do pai que a pressionavam na faculdade e não conseguia evitar invejá-la, pelo menos era a menina de ouro da família. Invejava Guida, sempre que esta tinha um jantar de família ou ia em família de férias para fora. Só tivera os avós, mesmo estando-lhes muito grata, não eram os pais. Porque é que ela não tinha tido direito a uma família também?
Não sabia o que dizer, nem o que sentir. Sempre os quisera encontrar novamente, mas sentia-se magoada por a terem abandonado. Mais que magoada, sentia que não valia o suficiente para eles se a deixaram com os avós. Não soube como nem porquê, mas a única coisa que pôde fazer foi envolvê-los num abraço, com a garganta apertada, até deixar finalmente cair as lágrimas que sempre contivera. Com a cara enterrada nos cabelos da mãe, sentiu-a esfregar-lhe as costas, enquanto o pai lhe afagava o braço.
“Porque é que me deixaram?”, perguntou, uns instantes depois, quando cessara de soluçar, ficando ainda no abraço da mãe.
“Marques, entras em palco agora”, chamou-a o patrão, sem lhe dar tempo para ouvir a resposta dos pais.
Relutantemente, afastou-se dos pais, mas não sem que a mãe lhe beijasse a face e o pai a abraçasse, como se a encorajasse, tal como sempre imaginara que faria. Dirigiu-se ao palco, ainda com um sorriso nos lábios e deu inicio à actuação. Foi das suas melhores. Quando acabou o público tinha-lhe feito uma ovação de pé, ao rubro. Agradeceu e abandonou o palco, voltando para o camarote para junto dos pais.
“Estiveste muito bem”, felicitou-a a mãe, que lhe pôs as mãos na face e lhe beijou a testa. Eram ambas da mesma altura, agora que a loura observava bem.
O pai não perdeu tempo a juntar-se a elas, afagou a cabeça da filha e colocou um braço em volta dos ombros da mulher. Quem os visse de fora diria que se tratava de um bom exemplo da família perfeita: dois pais orgulhosos a felicitarem a filha. Talvez por ser este o pensamento que nublava a mente da loura, esta não pôde deixar de sentir que era um sonho tornado realidade. Deixou-se ficar na companhia dos pais, aproveitando-a com sofreguidão, até ouvir um toque na porta. Soltou-se do abraço da mãe e avisou que quem quer que estivesse a bater à porta podia entrar.
Daniela abriu porta, não perdendo tempo a lançar-se ao pescoço de Susana, beijando-a. Quando a loura cessou o beijo, a rapariga reparou nas duas pessoas que observavam o desenrolar dos acontecimentos com uma expressão de estupefacção semelhante em ambas as caras. A outra colocou um braço em volta da cintura da morena e, com um sorriso enorme, apresentou-a aos pais, “É a Daniela, a minha namorada, Daniela, são os meus pais”
A única pessoa a permanecer exactamente como estava antes de aquela frase ter sido proferida, foi a própria Susana. O esgar de náusea que atravessou as feições tanto do pai como da mãe não passou despercebido a Daniela. Tivesse sido por um milésimo de segundo ou não, tinha estado lá. A rapariga, por sua vez, também pouco fez para disfarçar o seu desagrado. Fosse paranóia ou apenas desconfiança, a presença daquelas duas pessoas e a rapidez com quem esconderam o desagrado não podia ser bom sinal. Apenas a loura continuou sorridente e feliz.
Mais que não fosse por motivos de cortesia ou para não magoar a outra, a morena cumprimentou educadamente os pais da namorada, sempre com um sorriso e com uma voz mais “doce”, venenosamente doce do que o habitual. O certo era que o mesmo tom encharcava a voz tanto do pai como da mãe, como se fizessem um esforço herculeano. E Susana permanecia, falando alegremente, sempre abstraída do cinismo por parte de todas as outras pessoas no camarim.
“Já se faz tarde”, despediu-se o pai, dando a mão à mãe, “Temos que ir andando mas damos notícias, não te preocupes, linda”
Trocaram contactos e só então os pais foram embora, despedindo-se da filha, calorosamente. Esta parecia rejubilante de alegria, a ponto de ter levantado a namorada no ar e de a ter rodopiado, até caírem para um pequeno sofá.
“Calma Suse…”, pediu Daniela, retirando a cara da loura do seu pescoço, tanto para evitar marcas suspeitas como para puder falar melhor com ela. Assim que conseguiu a atenção da outra, que se apoiou nos cotovelos para evitar esmagar a rapariga, prosseguiu, “O que é que os teus pais estão aqui a fazer?”
“Não pude falar muito com eles…”, admitiu Susana, eufórica e irrequieta, “Gostaram de me ouvir tocar!”
“Não achas um pouco estranho terem vindo do nada?”, questionou a morena, a quem a chegada súbita das duas pessoas parecia no mínimo curiosa.
“Qual é o problema?”, respondeu a loura, a quem a atitude céptica da namorada não parecia justificada, “Desde que cá estejam depois deste tempo todo…”
“Não dizem nada durante anos…”, explicou Daniela, “Isto é capaz de trazer água no bico, não achas?”
“São meus pais...”, replicou a outra, levantando-se de cima da namorada, incomodada agora pela atitude desconfiada da rapariga, “Não me iam fazer nada, ‘Tás parva?”
“Só estava a dizer para teres cautela”, interpôs a morena, a quem não apetecia nada discutir com a loura, até porque já sabia que esta podia ser demasiado teimosa e cega para o seu próprio bem.
“Sabes…nunca tive uma família como tu e a Guida”, confessou Susana, subitamente melancólica, “Apesar de amar os meus avós como uns pais, não os substituíam e as poucas memórias que tenho deles são as mais felizes que tenho”
“Suse…”, reconfortou Daniela, aproximando-se da outra para lhe afagar o cabelo, daquela maneira que sabia que ela adorava e que sempre a conseguiu aconchegar. Nem sabia o que lhe dizer para a consolar por palavras, por muito que achasse que a namorada merecia ter tido uma família convencional, a chegada dos pais não lhe inspirava confiança.
Ficaram ambas no mesmo lugar até que a rapariga deu a mão à loura e a fez levantar-se. A actuação havia terminado há algum tempo e não fazia sentido continuarem ali. Dirigiram-se para o carro e, posteriormente, para casa da outra.

37 comentários:

  1. Era para ter posto este ontem à noite, mas acabei por deixar para hoje. E mais uma reviravolta!

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  2. Eles não são os pais dela , aposto ! :c
    Ou então são, mas estão apenas interessados no seu dinheiro ...
    Isto cheira-me a "gato". ( Momento Daniela , mas mais cómico.)
    Quero mais!
    Uma viajante dos blogues :) *

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  3. Depois deste capítulo não podes dizer que a Susana não é um coração mole! Coitadinha...
    Se fosse com a Daniela tinham sido corridos à pedrada :C

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  4. ( Tu não comentaste a minha "oposta" o que significa que uma das minhas hipóteses é verdade *.* )
    Pois é. Ela viu um amor que nunca teve , o amor dos pais. E agarrou-se a isso sem pensar. Se fosse a Daniela ainda lhes dava um chuto. :o

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  5. (Isso vais ter que esperar para ver ora essa)
    Não davas não, afinal onde é que está esse coração "para lá de derretido"? *.*

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  6. Eu espero. Mas tenho quase quase quase a certeza ! :c
    Eu estava a dizer se tivesse sido no caso da Daniela. Não disse se eu fosse ela.
    Eu sou coração derretido , não há volta a dar :x

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  7. (Eu podia satisfazer-te a curiosidade e postar já o próximo maaaaaas, só amanhã) :P
    Dizes isso como se fosse uma coisa má :S

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  8. És mesmo má :c
    Mas eu espero! Amanhã lá venho eu toda satisfeita ler o próximo. :)
    Depende do ponto de vista ...

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  9. Claro que esperas, que alternativa tens tu senão esperar :p
    Então porquê?

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  10. Isso sei eu -.-
    Nem por ser uma leitora assídua :c
    Porque isso pode fazer de nós uma pessoa mais vulnerável.

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  11. Eu podia ser uma fofa e dar biscoitinho sob a forma de um capítulo novo, mas assim era-te fácil demais :c
    Talvez, mas por outro lado torna mais fácil empatizar com os outros, estou certa?

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  12. Eu espero :c
    Sim. Sou muito "não gosto de discussões com ninguém e faço tudo para ver um sorriso nas pessoas. Nem que não as conheça :)

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  13. Isso é óptimo, se toda a gente fosse assim o mundo era um lugar melhor!
    Gostas de finais felizes?

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  14. Tomo isso como um elogio.
    Gosto, bastante. :)

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  15. Vai ser final feliz ? Dá-me ao menos o gosto de saber isso :c

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  16. Há duas versões, uma clichê e outra menos clichê. Acho que descobres bem qual é qual.

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  17. Duas versões ? Como assim ?

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  18. Escrevi um final, mas também tenho o rascunho de outro porque não me senti em paz com o primeiro.

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  19. Hum ... Levanta o véu um pouquinho :c

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  20. Um menos clichê e mais ou menos original (pelo menos nunca vi terem a mesma ideia que eu tive) mas menos feliz, outro bem clichê da vida e feliz.

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  21. E estás inclinada para qual ?

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  22. Provavelmente a menos clichê como definitiva. Mas devo postar também a outra, como versão alternativa, só para dar aquela sensação agradável e feliz.

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  23. Isso não vale. Publicas apenas aquela que achas que deve ser o final. Acho que ao publicares as duas ias fazer com que a história perdesse um pouco o valor. Porque cada pessoa imaginaria o que queria, dependendo do final que "optassem" por ter em conta.
    ( Mas claro que depois tinhas que me mostrar a clichê! :c )

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  24. És capaz de ter razão, mas o final não feliz pode ser um pouco "balde de água fria" em tudo o que foi sendo construido ao longo da história (e daí talvez não).
    A clichê é tão lamechas e tão "doce" que deixaria um cavalo em coma diabético mas se quiseres eu mostro :)

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  25. É esse "e daí talvez não" que me leva a dizer que devias cingir-te a um final ... Não me acredito que fosses escrever algo disparatado e "caído do céu". :)
    Mas , como é óbvio , a história é tua e respeito qualquer que seja o rumo que ela tome.
    E quanto a esse "açúcar" eu gosto muitooooooo *-*

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  26. A parte do caído do céu é que não sei...ainda tenho que ver se o encaixo devidamente na história. MAS, quem o leu e estava muito mas muito céptica quanto a ele disse que foi das partes que mais gostou de ler.
    Compreendo, é um bom escape da realidade, não é? :)

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  27. ( Que inveja , já leram -.- )
    Isso eu acredito. Tu escreves mesmo muito bem :)
    O facto de adorar "lamechisses" , não é um escape , é mesmo a minha realidade. A minha maneira de ser. Claro que também não sou ao ponto de irritar (acho eu).

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  28. Obrigada :) claro que não espero fazer disto a minha vida, mas é bom nos tempos livres.
    És daquelas que só precisam de uma manta quentinha, uma lareira e um filme lamechas para serem felizes?

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  29. Até te conselho (para delicia minha, como é óbvio, ahah) a escreveres outra história! :)
    Tudo isso é um cenário bom e agradável. Mas para ser feliz é tudo isso , mais a companhia certa. :)

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  30. Se te dissesse que já comecei a escrever uma espécie de sequela para esta?
    Tens razão, a companhia ajuda muito (e no meu caso, um filme tipo Resident Evil ou Velocidade Furiosa, ahah)

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  31. Se me dissesses isso , eu ficava super contente !
    ( Como já disseste , estou contente , ahah )
    Oh , eu filmes lamechas , depende. Só mesmo alguns. Gosto de comédias e acção , principalmente. Resident Evil nunca vi nenhum. Ainda há dias deu e podia ter visto -.-
    Mas Velocidade Furiosa , gosto!

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  32. Não fiques, não acho que esteja a correr lá muito bem :S
    Quais, por exemplo?
    Nem sabes o que perdeste, desde os nove anos que vejo aquilo e nunca me farto!

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  33. Fico sim. Todo o ânimo ajuda :)
    O Diário da nossa paixão. Acho que é dos filmes mais lindos que já vi!
    Tenho que ver. Mas desde o primeiro, para entender!

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  34. Oh, não é que esteja diferente em termos de escrita, mas não é com a Susana/Daniela, não me identifico tão bem com esta.
    Nunca vi esse filme todo :$
    Não vale a pena, não é que sejam muito profundos e filosóficos, mal têm sequência.

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  35. Então isso só mostra que é um desafio maior. O facto de não te identificares tanto, leva-te a uma maior introspecção para poderes descobrir em ti a imaginação que precisas :)
    Esse filme é lindo! A força daquele amor é brutal.
    Então o próximo a dar , eu vejo !
    E eu acho que não me fico aqui por muitos mais comentários ... :x

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  36. A imaginação eu tenho, o problema é encontrar "aquilo" que esta tem e a outra já não tem.
    Sou um pouco céptica em relação ao amor, mas é sempre nice :)
    É pena, fui simpática e deixei uma "prenda"

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