sábado, 10 de setembro de 2011

Capítulo 56

Era precisamente por aquele motivo que Susana prometia a si mesma que para a próxima iria beber menos, promessa essa que nunca cumpria mas não deixava de a fazer. A junção do mal-estar que sentia no estômago com a dor de cabeça que se fazia sentir bem mais intensa que o mero “moer”, era mais que suficiente para que jurasse que a próxima seria dali a muito tempo. Ao tentar levar uma mãoe à cabeça para massajar as têmporas doridas, notou dois corpos aninhados em si, Guida e Marta, uma de cada lado.
“Ahm…Guida, que é que vocês estão aqui a fazer?”, questionou, ou pelo menos foi o que tentou dizer, embora na realidade tivesse soado a algo como, “Ahm…Gui, quéquecêstãoquifajer?”
“Quê?”, perguntou Guida, num tom resmungão. Não havia nada que odiasse mais do que ser acordada enquanto tentava recuperar algum sono perdido. Em bom rigor odiava ser acordada em qualquer altura, muito menos quando estava a sentir os efeitos de todo o álcool da noite anterior à força toda.
“O que é que estão a fazer?”, tentou a loura novamente, fazendo os possíveis para se fazer entender, apesar da sua ressaca. Devagar, foi distinguindo com mais nitidez os pormenores do sitio onde estava: o forro creme da tenda, o fecho de velcro da saída desta e, mais importante que tudo, o facto de ter dois corpos nus em cima de si, como veio ao mundo também. Este momento de epifania fez disparar um alarme na sua cabeça, algo não estava certo, só restava saber o quê. Mas por mais que se tentasse lembrar do que acontecera, só tinha um vazio negro na mente, não se lembrava de nada depois da fogueira.
“Suse…”, começou Guida, ainda a assentar todos os acontecimentos da noite anterior na cabeça. Talvez devido à sua nova fama e dinheiro, mas a amiga passara a ser vista, a seus olhos, numa nova luz, mais atraente, deixara de ser a “Susana pobretanas que contava todos os tostões só para conseguir comprar uma sandes”. Ou talvez devido ao facto de a loura ter tentado a sua sorte com ela quando estavam no sétimo ano, mas sem sucesso, não por falta de persistência, o que habituara Guida a tê-la sempre atrás de si como um cachorrinho, até que aparecera Daniela e divergira as atenções da outra…afinal dizem que o fruto proibido era o mais apetecido.
Não fora nada difícil, era incrível a quantidade de álcool que a loura conseguia consumir e, mais incrível era a facilidade com que era manipulada quando bebia. Quando esse facto era adicionado à permissão que Marta lhe dera para levar tudo aquilo avante, pois divertira-as a ambas, tornara-se tudo ridiculamente simples. E de uma coisa Guida tinha a certeza, não passara de fogo-de-vista. Naquele momento, a mulher na qual estava aninhada, voltara a ser aquela que um dia andara a tocar viola numa esquina para conseguir almoçar. Ao menos mostrara todos os truques que aprendera nas suas noites de promiscuidade. Isso e o peito desta dava um almofada muito cómoda…
Perante o olhar de pânico de Susana, Guida revirou os olhos, antes de responder, com o seu pouco ou inexistente tacto, “Olha, és boa como o caraças e ainda melhor na cama, mas ficas-te por aí, agora deixa-me dormir”
“Isso quer dizer que nós…mesmo…”, arriscou a loura, sentindo a cor do resto dissipar-se até ficar branca como o cal.
“Olha não, estivemos a fazer palavras cruzadas toda a noite”, rosnou a amiga, cuja paciência estava a esgotar a olhos vistos
“Não…não…e a Dani?!”, alarmou-se Susana, a um passo de entrar em pânico, “Não posso ter feito isso!”
“A Dani também não ficou só a olhar para ti”, interveio Marta, tão incomodada quanto a namorada por todo aquele questionário quando nenhuma desejava outra coisa que não dormir, “Não sei é onde é que ela está”
“Ai...e agora?”, gemeu a outra, deitando as mãos à cabeça, para protesto das raparigas que se viram sem almofada. Aquilo não podia estar a acontecer, como é que era possível, de um momento para o outro, a sua vida dar uma volta de cento e oitenta graus? Estava tudo a correr tão bem finalmente, tinha vida profissional estável e bem sucedida, tinha os pais consigo, um grupo de amigos a quem poderia confiar qualquer coisa e uma namorada com quem partilhava uma relação duradoura e que se mantivera a seu lado nos piores e melhores momentos, a última coisa que queria era pô-la em risco.
Mesmo sem plano de acção definido, vestiu-se o mais apressadamente que conseguiu, ao mesmo tempo que sentia a bílis a subir-lhe à garganta, consequência de tudo o que ingerira na noite passada juntamente com a carga emocional que sentia naquele momento. Saiu da tenda e inspirou o ar ameno matinal, na esperança de que se fosse sentir melhor, mas a sorte não estava do seu lado e acabou por regurgitar, tendo apenas tempo para o fazer para um canto mais ou menos discreto, não havia motivos para degradar ainda mais a sua imagem.
Compôs-se e avançou, num passo hesitante, para o local da fogueira da noite passada, do qual só restavam cinzas. Muito para seu terror, Daniela já lá se encontrava, encostada ao ombro de Pedro e, conhecendo a atitude protectora do rapaz em relação à morena, tentar aproximar-se seria tão seguro como tirar um osso a um rottweiller. Fazendo das tripas coração, procurou a melhor maneira de abordar a situação, esperando apenas não fazer pior, “Bom dia…”
Enquanto Pedro se limitou a emitir um ruído gutural, a rapariga retribuiu o cumprimento com um aceno quase imperceptível. Susana sabia que naquele momento Daniela não estaria nada disposta a ter uma conversa, mas tinha que tentar, “Dani…”
Com um suspiro arrasado, a rapariga limitou-se a murmurar, repousando a cana do nariz entre os dedos, “Não tenho nada para te dizer”
“Por fazer não faças isto”, implorou a loura, sentindo o pânico a irromper-lhe no peito, agora mais angustiante que nunca, “Peço-te tantas desc…”
“Agora não é altura, falo contigo mais tarde”, replicou a morena, cortando o que quer que a outra pudesse dizer. Não queria levantar ondas e estragar o resto do dia aos demais.
Susana soltou, por sua vez, um suspiro desesperado, enquanto caminhava de um lado para o outro e passava a mão no cabelo, deixando-o revolto. Conhecendo a namorada, ou ex-namorada, naquele momento não sabia mas não queria pôr essa hipótese, sufocava só de pensar nisso, esta seria demasiado orgulhosa para lhe perdoar aquela. E daí, se ela traíra, Daniela tinha-o feito também, estavam quites, certo? Foi o seu raciocínio, sentindo a raiva crescer. Sim, a situação iria resolver-se, a morena não podia levantar-lhe o dedo. Sentou-se na extremidade oposta à da rapariga, não levantando a cabeça do chão, enquanto ruía as unhas, o seu tique nervoso.
Os restantes saíram das tendas, ao mesmo tempo que Susana acabara com as unhas e passava para as cutículas. O ambiente pesado que nem chumbo não passou despercebido aos recém-chegados, que não se coibiram de perguntar. Incapaz de lidar com mais gente metida ao barulho, a loura assegurou-os de que tudo estava bem, mesmo que não tivesse deixado ninguém mais descansado, mas sabiam que era melhor não insistir, ela diria quando achasse propício.
Infelizmente para a minoria, Rodrigo e Tiago, que tinham passado uma boa noite, já era altura de levantarem o acampamento e irem embora. A tarefa foi feita em silêncio, pois todo o ambiente de constrangimento acabou por contaminar a disposição de todos. Uma vez feita, colocou-se outro problema: Susana tinha vindo no carro com Daniela e esta não a queria ver nem pintada. A solução foi ir no carro com Rodrigo, enquanto Tiago ia com a rapariga e Pedro. Assim que se sentou no banco, a loura pôde verificar que o amigo estava diferente, parecia emitir um brilho e ia a trautear uma música que estava a passar no rádio. Apesar do ar de enterro da outra, Rodrigo não se conseguiu conter mais, “Aii, tu nem sabes!”
“Não sei o quê?”, perguntou Susana, pouco entusiasmada e sem tirar o olhar dos próprios pés.
“Eu e o Tiago finalmente fizemos amor!”, contou o amigo, num tom completamente enternecido. A loura estranhou a expressão utilizada pelo amigo para se referir ao acto, o namorado devia ser mesmo especial, caso contrário diria “dei uma queca”.
“Isso é óptimo”, respondeu a outra, sorrindo pela primeira vez naquele dia, ainda que sem muita energia, pouco mais que um esgar.
“O coitadinho ainda sofreu um bocado mas, na parte que me toca não me queixo, foi tão especial”, continuou Rodrigo, nas nuvens, “Isso e virgens são tão apertados…”
Ao ouvir aquele comentário final, Susana acabou mesmo por se rir, o amigo seria sempre o mesmo perverso.
“Agora conta lá…o que é que aconteceu para vires com essa cara?”, perguntou ele, embora percebesse que o que quer que se tivesse passado fora demasiado sério para poder brincar com o assunto.
A loura suspirou, enfastiada. Não lhe apetecia mesmo tocar no assunto, mas talvez Rodrigo lhe fosse dar algum conselho que a ajudasse a resolver a situação, “Bebi demais, fodi com a Guida em frente à Dani, a Dani comeu a Marta…fiquei fodida com isto tudo e não sei o que é que vou fazer”
Rodrigo foi tão apanhado de surpresa que o carro fez um S, antes que ele conseguisse voltar a mantê-lo sob controlo. Assim que se refez do susto, arriscou, “Eish…mas não estão quites agora? Tipo encornaram-se mutuamente”
“Na minha opinião estamos, mas ela está com cara de quem me quer ver morta!”, gritou Susana, “Isto podia não ter acontecido se eu não tivesse apanhado uma cadela daquelas”
“Pois podia…”, concordou Rodrigo, mas rapidamente decidiu que bater no ceguinho não era necessário naquele momento, “Eu acho que ela não tem razão para te censurar, mas imagina que tu é que começaste e ela se quis vingar…”
“Então vingou-se e podemos esquecer este assunto”, teimou a loura.
“Não Susana, nesse caso quem fez merda foste tu”, repreendeu o amigo, de sobrolho franzido, “Mas aguentaste dois anos com a mesma pessoa, não sei como conseguiste, se bem que já estava a prever uma destas”
“Epa, ‘tá bem, podes dizer à vontade que eu era uma pega”, rosnou a outra, já a ficar saturada, felizmente que não faltava muito para chegar a casa, “Mas eu tenho uma óptima relação com a Daniela e não queria mesmo ter feito isto”
“Olha, faz assim”, aconselhou Rodrigo, puxando pela cabeça para formular o melhor plano de acção possível, “Primeiro fala com ela e ouve o que tem a dizer, se mesmo assim ela te quiser mandar ir com os porcos, não implores pelo perdão dela, dá-lhe tempo e espera que ela acalme”
“Obrigada, é isso que vou fazer”, disse Susana, já a avistar o portão de casa. Agradeceu a boleia e saiu do carro. Respondendo ao desejo de boa sorte de Rodrigo com, “Não preciso de sorte, preciso de um milagre”
Engolindo em seco, olhou para o lado, apenas para verificar que, a seu lado, estava, nada mais, nada menos, que Daniela, com a cara marcada pelas olheiras do que deveria ter sido uma noite em claro preenchida por choro. Num tom frágil, a loura convidou-a a entrar, segurando o portão para que esta pudesse passar e fazendo o mesmo à porta. Uma vez na privacidade de quatro paredes, Susana tentou abordar o assunto da melhor maneira que se lembrou, “Peço-te tantas, mas tantas desculpas…”
“Ok, mais alguma coisa ou posso ir?”, replicou a rapariga, num tom seco.
“Foi um erro, eu estava com uma buba enorme…”, tentou a loura, embora a resposta anterior a tivesse desmoralizado, “Sabes que eu nunca o faria se estivesse sóbria!”
“Não, não sei”, respondeu a morena, cuja expressão neutra estava a dissipar-se, para mostrar uma de desdém, à medida que começava a levantar a voz, “Eras uma pega, como é que eu tenho a certeza que só me meteste os cornos desta vez?!”
Foi naquele momento que a outra percebeu que era melhor não insistir, a partir do momento em que Daniela perdia o autocontrolo, ia tudo à frente. Mas perdida por cem, perdida por mil, certo?
“Nunca te dei razões para duvidar e prefiro que não tragas isso à baila!”, bradou Susana, provocada, a começar a sentir a irritação a borbulhar-lhe no estômago,“E não podes falar, também comeste a Marta”
“Muito antes de eu me aproximar sequer da Marta tu já tinhas a cara entre as pernas da Guida!”, replicou a rapariga, usando o pouco que restava do auto-controlo para não socar a outra ali mesmo, “Não ia ficar ali a olhar para ti!”
“Também agiste mal, já te vingaste, estás contente?!”, grunhiu a loura, desferindo um murro na porta, só para não dar na morena.
“Imenso”, sussurrou Daniela, por entre dentes, consciente de que a outra iria ouvir na mesma e ainda bem que o ia.
A atitude temperamental e sarcástica da rapariga não era exactamente compatível com o temperamento volátil de Susana, que se esforçava para não fazer algo do qual se viesse a arrepender. Massajando as têmporas, perguntou ainda, “Como é que isto nos deixa?”
“Fácil, eu afasto-me e vou à minha vidinha”, rosnou a morena, com um sorriso insinuante que de humor não mostrava nada, “E tu já podes ir às putas, aposto que até me agradeces”
“Por favor…não”, implorou a loura, naquele momento o plano de Rodrigo que tencionava seguir já não tinha qualquer validade, agarrou o braço da rapariga e continuou,“Dá-me só mais uma oportunidade, não te peço mais nada”
“Deixa-me em paz!”, gritou Daniela, esforçando-se por retirar o braço do aperto da outra, mas esta tinha-a tão presa que já nem sentia a ponta dos dedos, “Não quero ter nada a ver com uma puta que ainda por cima só faz merda quando está bêbada…e daí até quando está sóbria!”
Foi a última gota. Susana empurrou a rapariga contra a parede, antes de lhe torcer o braço atrás das costas, aplicando quanta força conseguiu. A morena nada disse, naquele momento estava demasiado assustada para oferecer resistência. A loura continuou, enquanto lhe dizia ao ouvido, “Tinhas que voltar a falar nisso, não tinhas? Eu estava a controlar-me, mas não, tu não conseguias ficar calada e tinhas que me mandar isso à cara”
Quando a dor no braço começou a ficar insuportável, Daniela conseguiu finalmente reagir, pisando o pé de Susana com quanta força conseguiu. Resultou, a loura acabou por a soltar, o que foi suficiente para a rapariga lhe dar um golpe de ombro, o suficiente para a deitar ao chão. Antes de abandonar a casa, ainda conseguiu ver que o olhar de arrependimento na cara da outra, passara para um de desespero completo. Engolindo um soluço que quase a sufocou, Daniela afastou-se o mais depressa que conseguiu.

1 comentário:

  1. Bem, isto foi ... Duro.
    Não contava com a reacção final da Susana. No entanto, o desdém da Daniela já seria de esperar, apesar da mágoa que sentia.
    Eu agora quero ver como tudo isto vai andar daqui para a frente. Foi uma separação intensa.
    Uma viajante dos blogues :) *

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