quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Capítulo 84

Mais uma vaga de concertos, entrevistas, sessões fotográficas e todos os derivados da vida que Susana levava. Era completamente extenuante, mas não podia vir em melhor altura, na perspectiva da loura, assim, era da maneira que não tinha que lidar com os problemas que tinha com Daniela. Não era que as coisas estivessem caóticas, nada disso, mas notava uma certa reticência por parte da rapariga sempre que estava perto de si, parecia preocupada e assustada, como se a qualquer instante a outra a pudesse atacar. Face a este comportamento da morena, Susana não sabia como reagir para lhe assegurar que estava tudo bem, além de que tinha tido várias alterações de humor nos últimos tempos e, ora queria acarinhar Daniela, ora queria gritar-lhe.
Mal os primeiros raios de claridade lhe tocaram no rosto, a loura deu início ao dia preenchido que iria ter, levantou-se, aprontou-se, tomou o pequeno-almoço e acendeu um cigarro, antes de voltar ao quarto, onde ficou a observar a forma adormecida da rapariga. Tão cedo não estaria de pé, certamente, pensou a outra, levando o cigarro à boca. Nestas ocasiões, Susana costumava deixar um bilhete com uma frase meiga para a morena mas já não o fazia há tempos. Boa ideia. Pegando num resto de papel, ponderou no que havia de escrever. E pensar que antes lhe saía tão natural…Após algum tempo, desistiu e rabiscou, “Amo-te”. Encolhendo os ombros, deixou a missiva em cima da mesa-de-cabeceira e, olhando para Daniela uma última vez, deu-lhe um beijo na testa, antes de sair de casa.
Assim que chegou ao local combinado para uma entrevista com sessão de fotografias, nem teve tempo de pousar o capacete, tal foi a pressa com que o produtor a rebocou até à sala onde seria maquilhada, antes da entrevista, por entre “Já cá devia estar”/”Ai meu Deus, já estás atrasada”. Resmungando, a loura sentou-se e deixou que a senhora encarregue de a pôr apresentável fizesse como entendesse, por muito que detestasse todos aqueles cremes e pinturas.
“Credo, está tão pálida”, comentou a senhora, franzindo o sobrolho enquanto estudava o que haveria de fazer à cara da outra, “Estas olheiras vão-lhe até aos pés”
“Os últimos tempos têm sido complicados”, desabafou Susana, abatida, “Não sei como é que vou aguentar até ao fim do dia”
“Então?”, perguntou a empregada, fazendo o seu melhor por dar um tom mais saudável e resplandecente à face da outra.
“As coisas com a minha mulher não andam bem, mal paro em casa, não durmo em condições, não tenho tido tempo para mim nestes últimos tempos”, contou a loura, amargamente, “O pior é que não sei como resolver as coisas lá em casa nem tenho tempo para o fazer”
“Pense positivo, o dinheiro ajuda muito…eu trocava consigo, tenho três bocas para alimentar em casa”, replicou a senhora, escovando-lhe o cabelo, “Já não lhe falta muito para voltar a ter paz, coragem”
Agradecendo à empregada por a ter tentado moralizar, Susana seguiu até à varanda, onde estava a entrevistadora já sua conhecida, só era pena que daquela vez estivesse demasiado rabugenta para sequer lhe conseguir apreciar as pernas. Pelo menos podia desfrutar do sol tórrido do Verão, enquanto bebia um sumo de laranja fresco. Assim que a viu, a entrevistadora não perdeu tempo a apertar-lhe a mão, bem-disposta, “Bom dia, Susana, como está?”
“Vou andando, obrigada”, respondeu a loura, sentando-se na cadeira em frente à da repórter, acomodando-se, “E você?”
“Muito bem”, replicou a entrevistadora, antes de cruzar as pernas, deixando a saia subir-lhe pelas pernas. Daquela vez a outra não pôde ficar indiferente, mas não se podia censurar, andava carente e a repórter era digna de se ver. Voltando a olhar para cima, Susana escutou a primeira questão, “Quais as expectativas para os festivais de Verão?”
A loura respondeu àquela pergunta e às que se seguiram, afinal não eram nada que já não previsse e não seria nem a primeira nem a última vez que lhas faziam. Durante todo esse tempo, a entrevistadora não parou de tomar notas, dando ocasionalmente um bom plano do seu decote à outra, que não perdia uma oportunidade para o apreciar. Abstraindo-se da entrevista, Susana deu consigo a ponderar se conseguiria seduzir a repórter. Mesmo que não jogasse para a sua equipa, dificilmente iria perder a oportunidade, nem que fosse só para dizer que tinha estado com a Susana Marques.
“Então diga-me”, continuou a entrevistadora, sorridente, “Como tem conseguido conciliar a sua agenda com a sua vida pessoal?”
Nesse momento, um sentimento de vergonha abateu-se sobre a loura. Como é que tinha tido coragem de considerar trair Daniela? Incomodada e pouco à vontade, acabou por dizer, em voz baixa, “Não é fácil e é certo que acabo por passar menos tempo em casa do que gostaria, mas espero que corra tudo pelo melhor”
Parecendo satisfeita com a resposta, a repórter insistiu, “A sua relação com a sua mulher não acaba por sofrer?”
“Nem sempre estamos como na lua-de-mel, mas nunca tivemos nenhum problema que não resolvêssemos e o tempo e a distância nunca constituiu um”, respondeu a outra, esboçando um sorriso.
Depois daquela resposta, a entrevistadora decidiu começar com a sessão de fotos. Pedindo a Susana ora para posar de uma maneira, ora de outra. O calor abafado que se fazia sentir, juntamente com os disparos e com as muitas exigências da repórter fomentavam a má disposição da loura. No entanto, conseguira convencê-la de que não se deixaria fotografar em trajes menores, ainda reservava esse privilégio para Daniela. Depois do que pareceu um milénio, já estava despachada. A suar e prestes a ter uma quebra de tensão, voltou para dentro, onde tomou um copo de água com açúcar e uma refeição forte, pensando que fazia valer o dinheiro que recebia até ao último cêntimo.
Assim que acabou de comer, o produtor voltou, ordenando-lhe que fosse andando para o carro, visto que ainda tinham que ir para o local do concerto daquela noite. Suspirando de impaciência, a última coisa que a outra queria era ir actuar para um festival, para um bando de adolescentes demasiado entupidos em droga para distinguirem a pessoa que estava a tocar. Durante o caminho, começou a sentir os primeiros sinais de cansaço, com os olhos a pesarem-lhe e o corpo dormente. Assim que chegou ao seu destino, pousou as coisas no camarote, se é que tal se podia chamar àquele espaço degradado e a cheirar a mofo, e sentou-se, esperando não adormecer. Para mal dos seus pecados, um grupo de repórteres entrou-lhe de rompante no quarto, num frenesim barulhento, “Estamos aqui com Susana Marques que tão gentilmente nos concedeu esta entrevista instantes antes de subir ao palco”
“Não me podem dar logo um tiro no pé?”, pensou Susana, ponderando partir o espelho e cortar os pulsos com ele, “Boa tarde”
“A tua presença é a mais requisitada e esperada da noite de hoje”, comentou o jornalista, transbordando entusiasmo, “Que tal te sentes?”
“Com vontade de te meter esse microfone pelo cu acima”, foi o que a loura teve vontade de dizer. Porém, o que lhe saiu pelos lábios sorridentes foi muito diferente, “Sabes, é fantástico ouvir isso, para mim é um privilégio poder actuar para um público tão excepcional como este”
Felizmente, a entrevista fora breve e, minutos depois, já estava entregue ao seu silêncio e paz, esgotada e sem disposição para tocar. Não podia actuar assim, ainda quinava para cima do público. Procurando a solução entre os seus pertences, tirou uma embalagem do que dizia ser comprimidos para a dor de cabeça. Oh se iria tirar mais do que as dores de cabeça. Tomando uma pastilha a mais do que costumava fazer, a outra esperou que esta corresse tão bem quanto as suas outras experiências com ecstasy. Dali a meia hora, já defronte para a multidão entusiasmada, quaisquer vestígios de mal-estar deram lugar a uma sensação de euforia e energia como há muito não sentia.
Durante hora e meia, tocou, cantou e falou com o público, levando-o ao rubro, numa maré de aplausos como raramente ouvia. A sua disposição anterior e a que sentia durante o concerto estavam a 180 graus uma da outra. Depois de, a pedido do público, ter repetido meia dúzia de músicas e improvisado outra, tocando mais meia hora do que o previsto, abandonou a ribalta, com grande pena da multidão. Uma vez no camarote de novo, o produtor, emanando tanto orgulho e satisfação que parecia brilhar e caminhar a uns centímetros do solo, veio felicitá-la, “Mas que concerto, oh Marques, o público está doido!”
“Imagino, imagino”, comentou Susana, ainda no mais perfeito estado de êxtase, tão perdida que as cores pareciam ter sons. Não queria ir para casa, estava tão em sintonia com tudo, tão feliz que seria um desperdício não aproveitar e divertir-se, afinal também tinha direito a fazê-lo e voltar para junto da rapariga, onde não iria fazer grande coisa, não constituía serão que lhe agradasse naquele momento.
Voltando para junto do público, agora como mais uma entre eles e não como cabeça de cartaz daquele dia, foi saudada como se se tratasse da chegada do Messias à Terra, pagando-lhe bebidas, que aceitou sem demoras e metendo-se com ela. A loura, agora juntando o álcool ao que tinha previamente tomado, sentia-se cada vez mais alucinada, mal se conseguindo manter de pé, quando resolvera dar a noite como terminada. Ao caminhar de volta para o camarote, via tudo a desfocar, até não reconhecer mais onde estava. Por obra de Deus, só podia, encontrou o quarto que procurava, onde se deixou abater no sofá, vendo o candeeiro por cima de si dar voltas e mais voltas, antes de perder os sentidos, ainda alegre.

1 comentário:

  1. Hum... Não gostei.
    Gostei do capítulo, da escrita, e da história. O que não gosto é que corra mal. Mas, claro, não pode ser tudo um mar de rosas.
    O meu "não gostei" refere-se somente ao facto de eu gostar de coisas mais felizes. Tu sabes disso.
    Quero ver o próximo. Por mim lia já 4 ou 5 seguidos.
    Quero mais.
    Uma viajante dos blogues :) *

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