quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Capítulo 82

Na esquadra, Daniela, sentada numa cadeira cujo muito uso era notório, suspirava de impaciência. O facto de estar ali, prestes a prestar declarações sobre os alegados “abusos que sofrera às mãos de Susana”, como as revistas tão dramaticamente afirmavam, era, na sua opinião, a cereja no topo do bolo de desgraças cujo fermento eram os órgãos de comunicação social. Daquela forma, o que poderia ser um assunto apenas entre ela e a loura, sem que houvesse necessidade de meter quem quer que fosse ao barulho, acabara por atingir dimensões desmesuradas. Só lhe faltava que aquela mesma ida à esquadra aparecesse na capa de outra revista de mexericos.
Cruzando e descruzando as pernas, aproveitou aquela espera para ponderar a única parte de toda aquela situação sobre a qual ainda tinha algum controlo. Apelando à memória e contando pelos dedos, enumerou todas as situações em que a outra se mostrara violenta, primeiro no Sumol, mais tarde quando a sua experiência com heroína não correra nos conformes, depois quando acabaram e Susana lhe torcera o braço e, por último, naquele dia, caso a rapariga não a tivesse segurado. Fora nestas ocasiões, a loura sempre fora muito cuidadosa, tinha era uma certa adoração por álcool e drogas ligeiras e a sua personalidade volátil não ajudava propriamente.
O que a preocupava era o facto de todas as promessas da outra de nunca mais lhe tornar a levantar um dedo que fosse se terem revelado infrutíferas. Assim, como era é que suposto estar casada com uma pessoa que, quando a conversa não lhe agradava, partia logo para a violência? Ela, Daniela, não estava disposta a ser o saco de boxe de ninguém e nada lhe garantia que um dia Susana não a aleijasse a sério. Porém, a última coisa que queria era sequer colocar a hipótese de desistir daquele casamento, depois de tudo porque já passaram. E mais, estava certa de que a loura não a queria mesmo magoar, apenas era propícia a precipitar-se quando ficava de cabeça quente.
O seu momento de introspecção teve que ser interrompido quando a assistente social a abordou, lendo o seu nome no formulário fixo numa prancheta, “Daniela Sousa?”
Levantando a cabeça, a rapariga semicerrou os olhos quando a luz daquela divisão incidiu directamente sobre si. À sua frente, encontrava-se uma mulher de meia-idade, gorducha e atarracada, com cabelos compridos e expressão de misericórdia exacerbada. Contendo o seu aborrecimento, respondeu, “A própria”
“Boa noite, o meu nome é Margarida Simões e estou aqui para falar consigo sobre uma queixa anónima de violência doméstica”, começou a assistente, numa voz enjoativamente doce, que provavelmente visava a deixar as vítimas mais aconchegadas. Só era pena que tivesse o efeito oposto na morena, fazendo-a considerar despejar a última refeição para dentro de um cesto de papéis na sua periferia.
“Gostaria, antes de mais nada, de saber de onde é que partiram essas acusações”, pediu Daniela. Antes de responder ao que quer que fosse, convinha estar a par do que as autoridades sabiam.
“A pessoa que nos fez a queixa diz já ter presenciado mais do que uma ocasião de violência, tendo sido a última esta tarde, quando a Sra. Marques a esbofeteou no carro”, esclareceu a assistente, na sua voz adocicada, “Mas não se preocupe, estou aqui para a ajudar”
“Para que conste, a Susana não me tocou”, esclareceu a rapariga, sequiosa por saber de quem teria partido a denúncia anónima. No entanto, a sua prioridade era resolver toda aquela situação. Qualquer problema que tivesse com a loura resolveria com ela, sem interferência de terceiros.
“Minha querida”, tentou Margarida, afagando a mão da morena com a sua, sapuda, “Não precisa de a defender, se ela lhe tocou merece pagar por isso”
O tratamento arrepiou Daniela, que teve que fazer a sua melhor poker face para esconder o seu desagrado. Aconchegando-se no blazer de Susana, continuou, “Agradeço a sua preocupação, mas as acusações são infundadas”
“E as marcas que tinha ainda há pouco tempo atrás?”, questionou a assistente, sem nunca descorar o sorriso condescendente.
A sua melhor aposta era ser honesta, sem floreados e a morena sabia-o. Pausando um pouco, explicou, “Não querendo parecer vulgar…gosto de sexo bruto e a Susana fez-me a vontade, é normal ter ficado com umas marcas”
A resposta valera a pena apenas pela expressão que assombrou a cara de Margarida, eliminando quaisquer vestígios de doçura. Margarida, ultrajada, tanto que os olhos se esbugalharam, abriu a sua pasta e colocou na mão de Daniela fotografias de cadáveres de raparigas na sua faixa etária, todos eles com hematomas e golpes profundos. Aí, todas as tentativas de manter uma expressão impávida foram por água abaixo. A rapariga levantou o olhar de uma fotografia particularmente gráfica e questionou, “O que é que pretende com isto?”
“Todas estas raparigas julgavam que a última reconciliação era a valer, que as desculpas do namorado eram sinceras e que não voltariam a ser agredidas. Todas elas acabaram dentro de um saco de plástico na morgue”, disse a assistente, elevando o tom de voz, “Mas consigo não tem que ser assim, basta ser sincera. Não duvido que a Sra. Marques consiga ser muito simpática e persuasiva, mas não deixe que chegue a este ponto!”
Juntando o gesto à palavra, pegou numa foto e quase a espetou na cara da morena, que a afastou, agoniada, “Disse e repito, não tenho problemas com a Susana e ela não me bateu, tudo não passou de um mal entendido”
“Por amor de Deus, ela é conhecida por ter um temperamento horrível”, bradou Margarida, já desesperada, “Ela é uma drogadinha! Acredito que o dinheiro lhe saiba muito bem e que ela seja o seu troféu, mas se não fizer nada o mais certo é um dia vir a arrepender-se e, quando esse dia chegar, vai ser tarde demais!”
“Ela não é o meu troféu, estou com ela muito antes de ela ter o estatuto que tem, desde que era Dj, passando pelos tempos em que tocava na rua a troco de esmola”, respondeu Daniela, seriamente incomodada com as acusações, “Não estou com ela pelo dinheiro, é assim tão difícil aceitar que gosto mesmo dela?”
“Vai ver, quando estiver azul e preta vai desejar voltar a este momento e refazer o erro que está prestes a cometer”, concluiu Margarida, esgotada e já sem saber o que mais dizer para incutir o seu ponto de vista à rapariga, “Pode sair se quiser, mas não se esqueça do que lhe disse”
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Foi de mão encostada ao vidro da janela e um mal-estar interior que Susana viu Daniela ser escoltada do carro para o interior da esquadra, por uma agente. Deixando a mão escorregar, a loura deixou que o arrependimento e frustração assentassem em toda a sua plenitude sobre si. Quando julgara que conseguiria cumprir a sua promessa de não voltar a perder a cabeça e a partir para a violência, acontecia aquilo. E tudo fora desencadeado por uma coisa tão pequena, como a falta de jeito da rapariga para dançar…se ela, Susana se irritara com uma simples cabeçada acidental a ponto de despoletar toda aquela discussão, o que faria se fosse algo grave.
Não queria, nem por sombras, pôr fim ao casamento porque não conseguia ter auto-controlo suficiente para resolver as suas diferenças através de uma conversa como gente civilizada. Porém, o que é que lhe garantia que da próxima vez não fazia ainda pior? Esforçara-se tanto para não explodir simplesmente e levar tudo à frente cada vez que não concordava com algo ou dito algo a irritava, mas parecia que teria que tentar ainda mais, mais para o bem da morena, que por outra coisa qualquer, já que por si não o conseguia fazer. Talvez o uso recente de substâncias mais pesadas, facto que a rapariga ignorava, tivesse contribuído para aquela instabilidade, mas não o fazia muitas vezes nem queria arranjar desculpas para as suas falhas.
A voz do agente que a trouxera parecia distante, embora a convicção e rispidez com que este bradara tivesse sido suficiente para a fazer largar os seus pensamentos e voltar à realidade, por muito que esta não lhe agradasse, “Importa-se de fazer o favor de me acompanhar?”
“Ahm?”, disse a outra, arrastando a voz, “Ah…sim, claro”
“Ao menos está mais calma”, comentou o agente, acompanhando-a até a uma sala, cuja única mobília era umas gavetas metálicas, uma mesa e duas cadeiras, “Se não se importa, gostaria de ter uma conversa consigo, nada de especial, esperemos”
O ambiente pesado, juntamente com a decoração, se é que tal se podia chamar, da sala, tão impessoal, provocavam em Susana um sentimento ainda maior de desprotecção e receio. Perguntava-se se Daniela estaria numa sala igual a passar pela mesma situação, o que estaria a dizer e, no pior dos cenários, se teria admitido que a loura já lhe tinha, realmente, batido. Gaguejando, a outra só não tremia dos pés à cabeça porque se sentia demasiado esgotada física e emocionalmente para tal, “A D-Daniela…ela está onde?”
“Isso agora não interessa para nada”, replicou o agente, também ele ansioso por dar aquele turno por encerrado, tanto mais que não perdeu tempo a ir directo ao assunto, “Recebemos uma denúncia anónima de violência doméstica e, de acordo com a qual, a Susana, em mais do que uma ocasião, agrediu a sua mulher…”
“Isso não é verdade, pensei que já lhe tinha dito isso!”, interrompeu Susana, exasperada. Não levantara muito o tom de voz, até porque nem conseguia. Não sabia o quanto a rapariga contara, mas achou por bem fechar-se em copas, afinal mais valia prevenir do que remediar.
“…e esta acusação, além de estar alicerçada em testemunhas oculares, ainda é suportada pelo seu comportamento instável”, continuou o agente, como se não tivesse sido interrompido. Subitamente, pondo um ar austero, acrescentou, “Tal como agora”
A loura abriu a boca, presumivelmente, para se voltar a manifestar, mas, ao ser trespassada pelo olhar severo do polícia, voltou a fechá-la, optando antes por deixar que ele prosseguisse, coisa que fez passados alguns instantes, “Ainda esta tarde teve uma discussão feia com a Sra. Sousa, certo?”
“Sim, isso é verdade, mas…”, começou a outra, num tom apressado, mal pronunciando todas as palavras.
“E, no decorrer dessa discussão esbofeteou a sua mulher, certo?”, interrompeu o agente, cortando o discurso incoerente e atabalhoado de Susana.
“Sim…quer dizer, não!”, corrigiu a loura, nervosa, “É assim, eu enervei-me…mas não lhe bati, nem sequer lhe toquei, não pode dizer isso”
“Até pode ser verdade o que está a dizer, mas os factos não abonam muito a seu favor”, disse o polícia, enquanto anotava qualquer coisa, “Uma testemunha anónima afirma ter estado presente em mais do que uma situação de violência sua”
Aí, a outra ponderou antes de falar. Que se lembrasse, em todas as situações em que tivesse batido em Daniela, ambas haviam estado sozinhas e em privado, era impossível alguém ter visto, com excepção daquela vez no carro. Havia ali qualquer coisa que não batia certo, “É impossível, quando tenho um ponto de vista diferente do da Daniela, resolvo-o com ela e não meto mais ninguém dentro do assunto”
“Isso já não sei e não tem nada a ver com o que lhe estou a falar”, respondeu o agente, “Só lhe estou a dizer que está em má posição, tem uma alegada testemunha e fotos suas a sair de um hospital mais a Sra. Sousa. Tem mais a ganhar se admitir em vez de me tentar enganar”
“Fotos…hospital, ah! Isso foi um mal-entendido”, esclareceu Susana, mais confiante, tanto que acabara por divagar, num registo mais alegre, “Nós tínhamos ido ao hospital porque um amigo nosso tinha sido pai nesse dia e nós fomos ver os miúdos, mesmo giros, por acaso”
“Não me tente enrolar que eu não me distraio facilmente”, rosnou o polícia, eliminando a boa disposição da loura, “E as marcas? Se calhar foram os miúdos, não?”
“Eles são traquinas, mas são a coisinha mais querida…”, voltou a divagar a outra. Ao ver a impaciência do outro, corrigiu-se, embora por breves instantes, “Ah, desculpe…as marcas foi porque…ela gosta à bruta, sabe como é, e eu pronto, não ia dizer que não, não acha?”
“Pronto, já percebi, não me dê pormenores”, apressou-se o agente a dizer, corado e constrangido, não fosse Susana voltar a divagar, “Por hoje, pode ir, mas vamos estar de olho em si e, ao menor deslize vai cantar para trás das grades”
Sentindo retirar um peso titânico de cima, a loura desejou boa noite ao polícia que nem se atreveu a olhá-la nos olhos e abandonou a sala, deparando-se com Daniela encostada à parede e ar de aborrecimento. Seria possível que estivesse com mais medo de a enfrentar do que ao polícia pouco agradável? Abrandando o passo, dirigiu-se à morena, “Hm…vamos?”
“Hm, hm”, anuiu a rapariga, agarrando-se ao braço da outra, gesto que surpreendeu Susana, mas esta nada disse e, antes que dissesse, a morena acrescentou, “O que quer que tenhas a dizer, dizes amanhã, não estou com grande cabeça para isso”
Atendendo ao pedido de Daniela, a loura não voltou a falar durante todo o percurso até casa. A situação não podia estar assim tão má, se a rapariga não a fez dormir no sofá e até se aninhou nela nessa noite.

1 comentário:

  1. Por um lado, tudo. Por outro, nada.
    Por um lado não deste grandes avanços na história, foi apenas o questionário na esquadra. (Atenção que isto não é algo mau, simplesmente um facto.)
    Por outro lado, gostei da descrição do capítulo. Achei-a pormenorizada e importante. Mostraste o ponto de vista de cada uma. Aquilo que cada uma sentia e pensava, individualmente. Gostei bastante.
    E, por fim, devias levar uma coça por teres acabado o capítulo neste momento! Eu queria ver o desenrolar das coisas!
    Uma viajante dos blogues :) *

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