sábado, 17 de dezembro de 2011

Capítulo 81

Se Susana tivesse que metaforizar a sua vida naquele momento, fá-lo-ia através de uma rosa, cujo único espinho era aquele artigo nefasto que a acusava de ser agressora. Enquanto os media se mantivessem longe de si estaria bem e encontrava-se grata por ainda não ter sido bombardeada com questões a torto e a direito acerca da alegada agressão, mesmo que soubesse que seria apenas uma questão de tempo. Porém, adiá-lo-ia o mais que pudesse, desta forma teria um período de paz e sossego prolongado. Mas também, se houvesse grandes problemas, Daniela podia refutar tudo, o que era o pior que podia acontecer?
Relativamente ao resto, a loura não podia exigir mais nada. Com jeitinho e calminha, a rapariga já se começava a tornar mais flexível quanto à ideia de crianças, tanto quanto a outra conseguira observar quando fora buscar a morena a casa de Pedro e a vira a entreter os afilhados. Por muito que Daniela não quisesse admitir para não dar o braço a torcer, orgulhosa como era, Susana sabia que esta se tinha afeiçoado a Maria João, sobretudo, tanto mais que nem parecera demasiado enojada quando a bebé lhe vomitara em cima. Se se tratasse de outra criança qualquer, a rapariga teria decidido, naquele mesmo momento, laquear as trompas só para não se arriscar a ser mãe no futuro.
Satisfeita com os progressos, a loura investiu ainda mais na comemoração do primeiro ano de casamento de ambas, planeando ao pormenor para que tudo ficasse nos conformes. Na véspera, assim que a morena dera como terminado o dia de trabalho, a outra, não descurando um único aspecto do seu plano, pedira-lhe que preparasse umas “vestimentas a rigor” para o dia seguinte, palavras suas, ditas com aquele típico sorriso maroto, acompanhado por brilho no olhar e covinhas pronunciadas. Como é que Daniela havia de resistir? Pergunta retórica, a rapariga não estava minimamente interessada em resistir.
Prevendo os planos de Susana, a rapariga decidiu-se a, finalmente dar uso ao conjunto de lingerie que Guida lhe dera nos anos, acompanhado de um cartão que dizia: “Mais para a Susy que para ti, agora não tens desculpa para usares cuecas de avozinha”. Que insulto, mas também, o que esperar da namorada da amiga? Não aceitando a provocação sem resposta, a morena dera-lhe, nos anos dela, um conjunto de gilletes com a seguinte missiva: “Para a Marta conseguir lá chegar, o corta-relva estava fora das minhas posses”.
Assim, Daniela viu-se, logo pela manhã daquele dia, presenteada com um pequeno-almoço capaz de rebentar o estômago a um elefante e uma Susana particularmente melosa e alegre, se é que tal era possível. Mal se ergueu da cama, a loura atirou-se para cima de si, voltando a deitá-la, antes de a cobrir com abraços, beijinhos e saídas lamechas, “Coisa linda! Mais um aninho contigo a teu lado, bebé!”
“Piegas da gaja…”, rosnou a rapariga, embora não conseguisse manter a seriedade durante muito tempo, o certo era que ela própria também não cabia em si de feliz. Pondo os braços em torno do pescoço da outra, puxou-a mais para si, retribuindo. Quando a necessidade de respirar era demasiado para adiar, a morena volta-as, sentando-se por cima da cintura de Susana, “Toda acesa logo de manhã, não tens remédio”
“Detesto aquela semana do mês”, resmungou a loura, aborrecida por Daniela as fazer ficar no celibato sempre que o Benfica jogava em casa, “Por mim não me importava de ficar com a língua vermelha, tudo menos a abstinação!”
“Abstinação?!”, ultrajou-se a rapariga, que fingiu esganar a outra, na brincadeira, o que originou mais riso, “Abstinência! Ai que ursa!”
“Ou isso”, respondeu Susana, dando uma palmada no traseiro da morena, “Ursa mas tu gostas!”
“Guarda isso para logo à noite”, picou Daniela, baixando-se para beijar a loura, antes de se levantar, piscando-lhe o olho pelo caminho. Quando se encontrava a tomar o pequeno-almoço, pôde verificar que a outra se esmerara e, falando no diabo, ali estava ela, a caminhar para a cozinha ainda com a t-shirt com que dormira vestida e o cabelo caótico. Sentando-se ao lado da rapariga, não se fez rogada em ajudá-la com a refeição, mais que não fosse porque tinha feito bastante porque previa que todas as energias que conseguissem consumir fossem bem-vindas.
Quando acabou de comer foram-se aprontando para saírem. A morena já ia a deitar a mão a um par de calças desbotadas, caso não tivesse sido impedida por Susana, de nariz torcido e expressão desagradada, “Leva antes aquele vestido amarelo clarinho que eu gosto”
“Fazes-me levar vestido quando tu levas calças”, replicou Daniela, vasculhando por entre a roupa. Dada a ocasião faria a vontade à outra.
“São as justas, não as azeiteiras!”, respondeu a loura, lutando para se meter dentro das calças, coladas à pele. Mal as conseguiu vestir, bufou de alívio, antes de se voltar para a morena, “Até levo blazer!”
“Ai coisa mais linda”, zombou a rapariga, mesmo que achasse que as sandálias baixas, as calças justas, a camisa branca e o blazer preto ficassem bem em Susana, “Porque é que eu nunca te vi de vestido?”
“Além de ser incómodo e nada prático…”, começou a loura, recalcando a memória constrangedora de quando Guida a fizera usar uma saia com saltos altos, na qual só dera meia dúzia de passos antes de cair redonda, “…o ventinho nos genitais faz impressão”
“Os teus é que precisam de apanhar ar”, comentou Daniela, com uma expressão repugnada fingida. A outra fulminou-a com o olhar, antes de ir em passos largos para a casa de banho para se acabar de arranjar. Pelo caminho, a morena ainda a ouviu reclamar, “Só me aleijas, tu só me aleijas”
Divertida, a rapariga foi ter com a loura, que se encontrava a lavar os dentes, e atirou-se a ela num abraço, enternecida, “Gostanti!”
Susana afugentou-a, com o sobrolho franzido, com uma sobrancelha tão exageradamente erguida que Daniela apenas conseguiu fazer o seu beicinho, a muito custo. Mesmo assim, a loura foi afectada, tanto que puxou a rapariga para si e a beijou. Quando a morena se conseguiu soltar, virou-se para o lavatório, onde cuspiu pasta de dentes, com uma expressão aborrecida, “A sério, Susana…”
A outra limitou-se a mostrar as covinhas e a continuar o que estava a fazer antes de Daniela ter chegado. A rapariga revirou os olhos e, também ela, se arranjou e se preparou para sair para onde quer que Susana tivesse planeado. Fora um percalço ou outro que envolveu a mão da outra a passear na perna da morena, chegaram rapidamente a um restaurante à beira-mar escolhido pela loura. Mal colocou o pé fora do carro, Susana inspirou fundo, saboreando plenamente aquele aroma a maresia. Ao reparar na expressão risonha de Daniela, a loura compôs o blazer e pôs o braço de modo a tomar o da rapariga no seu, coisa que ela prontamente aceitou.
No restaurante, decorado com um tanque de lagostas na entrada e temas navais, escolheram uma mesa junto à janela, um tanto afastada do resto dos clientes. A outra puxou a cadeira para que a morena se pudesse sentar sem que, desta vez, se estatelasse no chão. Assim que Daniela se encontrava instalada, Susana suspirou de alívio por estar a conseguir contornar todos os possíveis “fails” que estivessem prestes a acontecer. Felizmente para ambas, o almoço decorreu sem contratempos, em bastante privacidade, acrescente-se, a outra não fora abordada por algum fã exaltado.
Quando terminou o prato principal, a rapariga pediu um gelado, que deu a provar à loura, levando-lhe a colher à boca, como se o fizesse a uma criança, gesto que não passou despercebido pela outra, que comentou, “Andas a treinar para o nosso filho?”
A morena tocou-lhe com a colher no nariz, deixando-lhe uma marca amarela de gelado de caramelo, antes de lhe deitar a língua de fora. Susana limpou o gelado da ponta do nariz e olhou, primeiro para a direita, depois para a esquerda, certificando-se que ninguém estava a ver, depois levou o dedo com que limpara o nariz, à boca, apesar do ar de reprovação de Daniela, ao qual respondeu, “Ahm? Não se desperdiça nada!”
Recostando-se na cadeira, a loura observou o pequeno palco onde alguns músicos tocavam, no outro extremo do restaurante, onde também se juntavam alguns casais para dançar. Entusiasmada, levantou-se da cadeira e esticou a mão para a rapariga, que deitou um olhar a quem dançava e depois à outra, horrorizada, “Eu não danço!”
“Por favor!”, implorou Susana, fazendo beicinho. Sabia que a morena era, muito provavelmente, a pessoa mais descoordenada à face da Terra, incapaz de seguir o ritmo de uma música, quer a cantar, quer a dançar, mas nunca tinha conseguido convencê-la a dançar com ela.
Daniela rosnou-lhe, antes de voltar a atenção para o mar do lado de fora da janela, esperando que a loura acabasse por esquecer aquela ideia. Ela, Daniela Sousa cujo esquema de dança se assemelhava a um tropa a marchar…
“Mh…vá lá…mh!”, insistiu a outra, ainda com o braço esticado, “Só uma!”
“Pronto, está bem”, resmungou a rapariga, rangendo os dentes. Aceitou a mão de Susana, cujo sorriso radiante a enfurecia, naquele momento, ainda mais. Quando já estavam na pista, perguntou, “E agora o que é que eu faço?”
“Mete a mão esquerda no meu ombro e dá-me a direita”, disse a loura, pondo a sua mão esquerda na cintura da morena, “Agora fazes o que eu faço e o que eu depois disser…começa agora”
Daniela seguiu as indicações, amaldiçoando todos os momentos em que tivera que participar em danças latinas, ou em valsa, ou no que quer que fosse, simplesmente não era talhada para aquilo. Imitando os passos da outra, acabou por se deixar guiar, dando o seu melhor para não sair do esquema, nem para pisar Susana. A loura, por sua vez, era algo que lhe saía naturalmente, como cantar ou desenhar e puder fazê-lo com a rapariga, finalmente, tornava aquilo ainda melhor. Ocasionalmente aproximava-se do ouvido da morena e dizia, “Estás a ir bem”
Sentindo uma onda de confiança, Daniela descontraiu, muito para alegria da outra. Quando a música chegou ao fim, começou outra, num ritmo mais lento, uma balada. Agradada com o à-vontade da rapariga, Susana aproveitou para dançarem mais uma, puxando a morena para si, de modo a ficarem quase encostadas, “Põe os braços no meu pescoço…isso, agora dás passos curtos”
Pondo os braços na cintura de Daniela, a loura deu o primeiro passo, o que baralhou a rapariga durante um pouco até que apanhou o ritmo. Quando ambas se acomodaram, a outra acabou por encostar a testa à da rapariga, sorrindo. Naquele momento, os modos socialmente inadequados da morena, advindos de uma súbita onda de “borboletas no estômago”, emergiram, tanto que esta sorriu atabalhoadamente e disse, “Tens comida…aí entre os dentes”
Susana suspirou, revirando os olhos. Daniela fazia sempre questão de estragar um belo momento romântico. Tentando corrigir os danos, a rapariga aproximou-se para dar um beijo à loura, porém, acabou por dar uma cabeçada na testa desta, com tanta força que a fez desequilibrar-se e cair para trás. No chão, a outra gritou, exaltada, “Sempre a mesma merda, foda-se!”
“Desculpa…”, pediu a morena, embaraçada, esticando a mão para auxiliar a outra a levantar-se.
Resmungando qualquer coisa que soou a “Mónica, volta…estás perdoada”, Susana não aceitou a ajuda de Daniela, pondo-se de pé sozinha e dando-lhe um encontrão com o ombro quando passou por ela. Constrangida e magoada, a rapariga reprimiu-se a si própria pelos seus modos desastrados. Quando chegou ao pé da loura, a quem começava a surgir um hematoma na testa, esta apenas disse que iam embora e atirou com uma nota para cima da mesa, nem esperando pelo troco.
O caminho até ao carro foi preenchido por um silêncio constrangedor, situação que apenas mudou quando a outra bateu com a porta do veículo, o que fez com que a tristeza da morena desse lugar a irritação, “Não estragues o que não é teu”
Susana deitou a cabeça sobre as mãos, antes de suspirar, “Não era mesmo assim que contava que corresse o dia”
“Desculpa lá se sou desastrada”, disse Daniela, num tom propositadamente irónico, “Mas também tu tens os teus defeitos e eu calo-me e levo com eles”
“É diferente, tu pareces mesmo atrasada mental!”, atacou a loura, sentindo a raiva tomar conta de si, “Bicho do mato…”
“Deixa ver…ah sim, oh Dani, a capital dos Estados Unidos não é a Califórnia?”, troçou a rapariga, fazendo uma voz fininha e expressão imbecil, “Queres mais? Mas Dani! Um quilo de chumbo tem que pesar mais que um quilo de algodão! Não podem pesar o mesmo!...Sim, a atrasada mental sou eu”
“Retira o que disseste”, advertiu a outra, lançando-se à morena. Daniela não conseguiu registar o que aconteceu a seguir, quando abriu os olhos, viu que conseguira agarrar a mão de Susana, instantes antes de esta lhe acertar na cara.
A loura pareceu tão abismada quanto a rapariga. Afinal ia fazendo outra vez o que prometeu que não voltaria a fazer. Tremendo dos pés à cabeça, deixou cair o braço, ainda com a mão envolta na da morena, “Desculpa…”
“É melhor…ir-me embora uns tempos”, disse Daniela, sentindo o medo que havia algum tempo que a outra não lhe provocava.
“Não…eu…não queria, não sei em que é que estava a pensar…”, gaguejou Susana, agarrando a mão da rapariga, “Por favor não tenhas medo de mim!”
“Se eu não te tivesse agarrado tinhas-me batido”, murmurou a morena, mais para si do que para a outra. Pela primeira vez desde que dissera o sim à loura estava a pensar se aquele casamento, concretizado no fogo do momento, teria sido a melhor decisão.
Enterrando as mãos no cabelo, Susana soltou um gemido angustiado, até que não conseguiu conter mais o choro. Com os rastos das lágrimas marcados nas faces, aproximou a cara de Daniela, “Bate-me”
“O quê?”, questionou a rapariga, surpreendida. A imagem da loura, banhada em lágrimas a tremer como varas verdes estava a perturbá-la seriamente.
“Dá-me um estalo…qualquer coisa”, pediu a outra, com um tom de voz esganiçado, muito diferente do seu habitual.
“Susana…”, tentou a morena, completamente impotente face ao ataque de histerismo de Susana. Nunca a tinha visto tão descontrolada e não sabia o que fazer. Muito a medo, abraçou a loura, deitando a cabeça desta sobre o seu peito, contendo os soluços desta, que não conseguia parar de chorar. Com calma, foi-lhe passando as mãos pelas costas e pelos cabelos, até que os pedidos de desculpa da outra cessaram e os espasmos acalmaram, “Já passou…calma Suse, pronto”
O tempo foi passando, até que Susana acabou mesmo por adormecer, já sem uma única reserva de energia. Quando Daniela deu por si, já estava a anoitecer e, ela própria, não tinha força para mexer um músculo que fosse. Fechou os olhos e adormeceu, também, junto à loura. Quem as visse teria, diante de si, a perfeita imagem de inocência e fragilidade.
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O som de algo ou alguém a bater no vidro da janela acordou-as a ambas. Era noite cerrada, estava tão escuro que tiveram dificuldades em identificar a figura do lado de fora do veículo. Abrindo a janela, Daniela foi abordada por um indivíduo fardado, que mostrou um distintivo, provando pertencer à PSP, “Vou ter de pedir que saiam do veículo e me acompanhem”
“Ahm?”, questionou Susana, levantando a cabeça do peito da rapariga.
“Recebemos uma queixa anónima de um caso de violência”, declarou o agente, “A Sra. Susana Marques tem que vir connosco”
“Eu não fiz nada a ninguém!”, gritou a loura, cujo estado de histeria ameaçou voltar, “Por favor…diz-lhes”
“É verdade, ela não bateu em ninguém”, esclareceu a morena, afagando o braço da outra, tentando acalmá-la.
“Como medida de prevenção ela tem que nos acompanhar”, repetiu o agente, num tom severo, “A bem ou a mal”
“É a minha mulher, eu não lhe ia bater!”, tentou Susana, apavorada, “Tem que acreditar em mim”
“Eu não tenho que acreditar em nada”, replicou o agente, com uma mão sobre as algemas, não fosse a loura fazer algo, “Só lhe estou a mandar vir comigo e a sua mulher que preste declarações à minha colega, agora como é que quer fazer isto?”
Afagando a face da outra, Daniela murmurou-lhe que seria melhor ir mas que iria correr tudo bem. Abraçando a rapariga antes de sair do carro, a outra seguiu o polícia até a um carro patrulha. Olhando para trás enquanto se afastavam, Susana nem conseguia acreditar no quão surreal toda aquela situação era. Só de pensar que ainda naquela manhã tinha as melhores expectativas em relação àquele dia, iriam almoçar, depois dariam um passeio à beira-mar e passariam a noite num hotel e seria a comemoração do primeiro ano de casadas perfeito. Ao olhar para trás uma última vez, ainda pôde ver um sorriso por parte da morena, tentando encorajá-la.

1 comentário:

  1. Uma das primeiras coisas que reparei foi que ligaste o capítulo do princípio ao fim. O espinho que referiste na vida da Susana logo no início, desenvolve-se no fim.
    Achei bem referires uma certa aproximação da Guida e da Daniela, de certo que isso satisfazia a Susana. E, como é óbvio, achei piada à parte das prendas. Ahah.
    Previa um pouco mais de compreensão por parte da Susana quanto ao erro da Daniela, apesar de já me teres dito porque é que aconteceu isto. E, claro, não achei bem o comentário da Susana sobre a Mónica.
    A discussão delas no carro foi bastante feia. E intensa. E veio despoletar imensos acontecimentos que não estava à espera. Conseguiste surpreender-me, trazendo desenvolvimentos à história que não os esperava.
    Agora quero ver como vais resolver tudo isto. Acredito bastante na tua escrita.
    Uma viajante dos blogues :) *
    PS: Merecias um "vai apanhar uvas", porque eu disse-te tudo o que achava à dois dias e agora foi mais difícil comentar!

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