quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Capítulo 72

“Beep, beep, beep”
O som que Daniela mais gostaria de evitar fez-se ouvir, ecoando pelas quatro paredes do quarto. Com um resmungo gutural, esticou o braço para desligar o despertador, afinal não queria acordar Susana antes do tempo. Esta havia trabalhado tanto ultimamente que não havia necessidade de a incomodar quando todo o descanso que esta conseguisse obter era pouco. Por seu lado, a rapariga não podia dizer o mesmo, tinha um horário fixo, mas naquele diz precisava de ir mais cedo para tentar adiantar algum trabalho que já se vinha a acumular.
Levantou a cabeça do ombro da loura, satisfeita por não a ter acordado e rastejou até ao duche, nunca fazendo muito barulho. Uma vez mais desperta, cortesia da água quente, voltou para o quarto, satisfeita por verificar que o único indício de que a outra estava viva era a sua respiração e o consequente mover do tórax, “Eu sabia que ela ressonava”. Sorrindo, enternecida, vestiu-se e dirigiu-se à cozinha, onde preparou tanto o seu pequeno-almoço como o de Susana. Este último deixou no quarto, na mesa-de-cabeceira junto à outra, para que o visse assim que acordasse. Antes de ir embora, debruçou-se sobre Susana e deu-lhe um beijo rápido, ao qual esta respondeu, nunca chegando a acordar, “Eu pedi de laranja, fáchavor”
Rindo, a morena saiu de casa, só então sentindo a preocupação que a atormentara desde que lera o nefasto artigo daquela revista. O ter que passar uma hora encafuada em transportes públicos por baixo da axila de alguém, consequência de uma avaria no motor do carro, não contribuiu para que descontraísse. Parte de si fazia figas para que os colegas não descobrissem, mas a outra parte sabia que tal coisa seria difícil. Foi fazendo das tripas coração que chegou ao escritório, incerta do que a esperaria mal colocasse o pé no interior. Suspirou, para se controlar, até que entrou, deparando-se com o local praticamente abandonado, “Que alívio”. Dirigiu-se ao seu local de trabalho concreto, onde encontrou um exemplar da revista, sobre a sua mesa, “Era abusar da sorte, ok”
Pondo a maldita revista no cesto do lixo a seu lado, sentou-se, dando início a mais um dia de trabalho. Estava tão compenetrada na tarefa em mãos que nem ouviu um par de passos dirigirem-se à sua pessoa, sendo apenas perturbada quando sentiu uma respiração quente no seu pescoço e uma voz cortante, “Então Daniela…conta lá, o que é que A Susana Marques viu na tua triste figura?”
A rapariga virou-se, tão depressa que nem distinguiu imediatamente quem era a pessoa de quem partiu aquele comentário. Quando viu Ana, a sua colega de reputação duvidosa e língua afiada, quaisquer surpresas que pudesse ter tido dissiparam-se. Revirou os olhos e continuou o que estava a fazer, antes de ser interrompida. Chateada com o desprezo, Ana voltou a tentar, na sua voz demasiado aguda para os ouvidos da morena, “O tu teres casado com a piolhosa ainda é compreensível, deves querer um caixão forrado a ouro para quando caíres morta, agora ela podia arranjar bem melhor que tu”
Fechando os olhos enquanto suspirava, Daniela mordeu a língua. Aquele ser escolhera um mau dia para a provocar, mas se continuasse, teria que reagir. Para se moralizar pensou, “Se aguentaste a Mariana e as suas boquinhas irritantes, esta é canja”. Encolhendo os ombros, voltou a debruçar-se sobre o que estava a fazer, como se não tivesse ouvido nada, felizmente para si distraía-se com facilidade, tanto mais que só voltou a levantar a cabeça quando a monstruosa traseira de Ana aterrou sobre a sua mesa, proporcionando-lhe um plano demasiado generoso das suas coxas de dinossauro. Olhou para cima, para os olhos estrábicos da colega e revirou os seus, “Por amor de Deus”
“Isso digo eu”, continuou Ana. Se naquele momento uma língua bifurcada tivesse saído da boca desta, a rapariga não se teria admirado. Os comentários prosseguiram, “Ela tem reputação de não ser nada esquisita, o que explica porque é que quis alguma coisa contigo”
Prestes a abrir um golpe no lábio, a morena bufou de raiva. Não queria mesmo descer ao nível da outra, mas se esta continuasse assim não responderia por si.
“Diz lá, a que é que sabem os chatos da Susana?”
E o limite da sua paciência fora ultrapassado. Olhou para cima, com um trejeito enjoado e replicou, “Olha lá, mas tu importas-te de tirar essa peida celulosa de cima das minhas coisas?”
“Desculpa?”, indignou-se ela, disparando um jacto de saliva que aterrou em cheio sobre a mão da rapariga.
Daniela olhou para aquela pequena amostra de ADN a reluzir nas costas da sua mão. Repugnada, limpou-se à camisola da colega, não fosse a saliva ser corrosiva. Pelo caminho conseguira ver as estrias das ancas de Ana, o que não a ajudava muito. A expressão de ultraje da outra ainda a irritara mais, a ponto de descair um pouco, “Vá Popota, vai lá dar a pussy na tua esquina”
“Ah, esqueci-me, ninguém se aproxima desse buraco negro”, rematou a morena, que só a mera proximidade da colega era um factor de risco para a propagação de alguma doença indesejável.
A rapariga não gostaria de ter descido tão baixo, mas era humana e o seu autocontrolo só ia até certo ponto. Mas valera a pena, Ana resolvera ir embora, fazendo estremecer toda a divisão quando saltara para o chão. Voltando ao trabalho, Daniela sentiu-se muito grata por os advogados mais velhos verem tudo quanto era revista cor-de-rosa tão evitável quanto um monte de desperdício nuclear, portanto destes não ouviria nada que não fossem críticas ou instruções relacionadas com o que lhe mandavam fazer. Mais seis horas e estaria despachada, até lá o tempo arrastar-se-ia.
Ouviu o telemóvel vibrar sobre a mesa, o que resultou numa oportunidade para interromper o que estava a fazer ainda que fosse por um par de segundos. No visor lia-se, “Susana <3”:
“Desculpa! Só acordei agora e nem te pude dizer nada! Queres boleia mais tarde?”
Entre passar uma hora exposta a todo o tipo de odores que o corpo humano pudesse produzir ou uma hora, pronto, um quarto de hora, tendo em conta a condução de Susana, a contornar carros na auto-estrada, a escolha não era fácil. E arriscar-se a que Ana a visse na companhia da loura? Axilas e enxofre, seria:
“Não é preciso, obrigada :) ”
E assim voltou a mergulhar em códigos e burocracia. Só faltavam quarenta anos até à reforma, não custava nada. Nem os olhares fulminantes disparados pelos globos oculares descalibrados de Ana a iam incomodar, “Bitch please”
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Daniela espreguiçou-se demoradamente na cadeira, satisfeita com o dia produtivo que tivera. Estava na altura do seu repouso bem merecido. Arrumou a secretária e foi embora, mas não tão depressa que a massa amorfa de Ana não a tivesse conseguido alcançar, “Agora estamos saidinhas da casca, estamos?”
“Tira o vibrador do cu”, resmungou a rapariga, não detendo a marcha. Porém, uma mão de dedos que aparentavam ser insufláveis agarrou-lhe o braço, obrigando-a a virar-se.
“Tu não falas comigo assim, minha puta”, guinchou Ana, por entre duas fileiras de dentes amarelos. O mais provável seria seguir-se uma troca de estalos, ou de dedos nos olhos, tendo em conta que a morena não jogava limpo, se o volume flácido da colega não tivesse sido empurrado, até se desequilibrar e cair estatelada no chão.
“Tens algum problema, tu?”, rosnou Susana, olhando para baixo, para Ana.
“Vamos embora, não se passa nada”, assegurou Daniela, obrigando a loura a afastar-se, apesar da resistência desta.
“Su…su…”, gaguejou a colega, não podendo acreditar que os rumores eram verídicos. Rapidamente a sua tonalidade pálida ganhou um tom avermelhado, “Isto não fica assim!”
“Caralho, mas tu não te calas?!”, ameaçou a loura, contorcendo-se no aperto da rapariga, que se servia de todas as suas forças para a manter sob controlo.
“Já chega, Susana!”, gritou-lhe a morena.
Finalmente Susana parara, mas não sem mandar um último olhar de irritação a Ana. Quando já estavam ambas junto à mota, longe do alcance da colega, Daniela repreendeu, “Eu tinha dito que não queria boleia”
“Sim, mas eu tinha tempo e não queria que andasses sozinha a esta hora…”, justificou-se a loura, um pouco cabisbaixa, dando as mãos à rapariga.
A morena, não fez senão suspirar e deitar a cabeça no ombro da outra, “Como é que eu consigo ficar chateada quando tu és assim?”
“Fácil, não consegues”, respondeu Susana, novamente sorridente, como se o sucedido nunca tivesse tomado lugar. Pegou nos capacetes e deu um a Daniela, perdida de riso, de novo bem-humorada.

1 comentário:

  1. Gostei muitoooooo. E tenho que admitir que se tivesse sido eu, teria controlado menos aquela vontade de amassar as bochechas da Ana uma contra a outra.
    Mas claro, gostei da atitude de superioridade delas :)
    Quero mais !
    Uma viajante dos blogues :) *

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