segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Capítulo 71

Conseguir conciliar a sua agenda preenchida com o casamento era algo que Susana conseguira fazer sem grandes contratempos: aproveitava sempre o mais possível as manhãs, as noites e os fins-de-semana para os passar com Daniela. Conseguir encaixar um tempo para os amigos é que era mais complicado, mas nada que não se resolvesse. Até porque Guida, fosse-se lá saber como, arranjava sempre forma de raptar a loura, por muito ocupada que esta se encontrasse, bastava-lhe aparecer no estúdio e puxá-la por um braço. Os seus modos irreverentes faziam o resto, ninguém se atrevia a dizer-lhe não, Daniela que o dissesse, cada vez que a amiga da loura estava lá em casa, a rapariga reduzia-se à sua insignificância, de tão intimidada que ficava.
Felizmente para os tímpanos de Susana, Rodrigo era mais sossegado. Em vez de disparar pelo estúdio ou por casa da loura dentro, bradando profanidades a torto e a direito que fariam um trolha parecer um monge, perguntara de antemão de podia ir almoçar com a loura, uma vez que tinha algo importante para lhe falar. Não sabendo mesmo o que poderia ser, Susana aceitou, esperando que não se passasse nada, mais que não fosse porque o amigo não lhe adiantara pormenores, o que de nada contribuiu para a tranquilizar. O certo foi que conseguiu incluir um almoço com Rodrigo entre as maratonas que iria fazer no estúdio naquele dia.
“Até logo, amor”, despediu-se Susana, beijando Daniela intensamente. Uma pisadela desta, precisamente no momento em que a outra se começara a deixar levar, mesmo com o salto, em cheio no seu dedo do pé, obrigou a loura a separar-se, “Ahh! Essa doeu mesmo!”
“Amor não, minha ursa”, rosnou a rapariga, em tom de brincadeira. Torturar um pouquinho a outra era algo que, por muitas vezes que o fizesse, nunca deixaria de ter a sua quota-parte de engraçado.
“Ai se eu te pego!”, provocou Susana, que apalpou os glúteos da rapariga, à mão cheia, o que lhe valeu um caldo da morena, sem demoras. Teve, ainda, tempo para lhe roubar outro beijo, antes de se de fazer à vida, deixando para trás uma Daniela que abanava a cabeça, em gesto de reprovação fingida, por entre risos, bem-disposta. Quando a rapariga já ia a dar meia volta e a voltar para dentro de casa, a loura inverteu o sentido de marcha, gritando, “Amo-te!!”
A morena voltou-se, de novo, a tempo de ver a outra fazer um coração com as mãos, ao qual Daniela respondeu movendo a língua para dentro e para fora, entre dois dedos abertos, até que não conseguiu manter a seriedade mais tempo e se desmanchou a rir, tal como Susana. Como é que seria possível não adorar aquele ser? Enquanto a rapariga voltou de vez para dentro de casa, a fim de se aprontar, a loura arrancou em direcção ao estúdio, sorridente.
Pouco ou nada demorou até que o som da mota da outra se fosse dissipando. A morena deitou uma olhadela ao relógio, constatando que o tempo escasseava. Aprontou-se e pegou nas chaves do carro, ia a ligar o motor quando ouviu o telemóvel assinalar uma mensagem recebida:
“Ly <3”
Era incrível como até aqueles pequenos gestos a faziam sentir as clássicas “borboletas no estômago”, tendo em conta o tempo que já passara com Susana. Seria de esperar já se ter habituado mas parecia que não, a outra arranjava sempre maneira de a fazer sentir os joelhos fraquejarem. Sorrindo, com a face ligeiramente enrubescida, encontrou motivação para seguir para a frente com um dia de trabalho que se adivinhava cansativo e entediante. Não demorou muito a chegar ao seu destino, visto que não se deparou com grandes contratempos, fora um condutor exaltado ou outro, tudo decorreu normalmente.
Ao entrar no escritório, as primeiras pessoas com quem se deparou foram os colegas, também eles estagiários. Sempre comunicativos e extrovertidos, muito ao contrário de si, cumprimentaram-na, transbordando simpatia, à qual apenas conseguiu responder, “Hm…sim, olá”, apenas para se repreender mentalmente. Não era que fosse snob ou antipática, pelo contrário, mas os seus dotes sociais deixavam um pouco a desejar e dava sempre a entender a ideia errada. A má sensação que sentia foi agravada pelos comentários que conseguira ouvir, à medida que se afastava, “Ela é tão antipática…não consigo mesmo gostar dela”
“Desculpem…”, pensou Daniela, cabisbaixa. Podia, muito de vez em quando, alinhar nas brincadeiras e conversas dos colegas, mas não conseguia sair da sua concha na presença deles, por muito que isso a frustrasse. Só lhe restava concentrar-se nas tarefas em mão e esperar que o dia chegasse ao fim.
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O dia para Susana também se estava a revelar mais trabalhoso do que inicialmente previra. A ideia de inovar um pouco as suas músicas soava muito bem na teoria, mas na prática levantava algumas questões. Portanto, quando Rodrigo a avisou de que já se encontrava no café onde iriam almoçar, foi com grande alívio que viu a pausa por que tanto aguardava. Soube-lhe lindamente pôr a guitarra havaiana de lado e preparar-se para enterrar os dentes no primeiro prato que lhe servissem.
O amigo já se encontrava sentado numa mesa num canto, acenando-lhe entusiasticamente, visivelmente bem-disposto mas comedido, “Olá!”
“Olá, tudo bem?”, retribuiu Susana, enquanto massajava as têmporas, cansada.
“Dia difícil, hm?”, inquiriu Rodrigo, apoiando o queixo sobre a palma da mão.
“Nem queiras saber…”, respondeu a loura, suspirando. A sua atenção já estava a divergir para a ementa, porém, não se esqueceu do que a trouxera ali, “Mas conta lá, o que é que querias falar comigo?”
“Calma, primeiro preciso de te fazer umas perguntas”, começou o amigo, parecendo ansioso. Assim que a outra lhe deu luz verde para prosseguir, continuou, “Como é que te estás a dar com a vida de casada…tendo em conta que eras como eu?”
A conversa teve que ser interrompida, tendo em conta que o empregado chegou para anotar os pedidos. Uma vez feitos, o diálogo voltou a fluir a partir do ponto onde ficara:
“Como é que estou…”, indagou Susana, franzindo o sobrolho, antes de sorrir abertamente, “Não trocava por nada deste mundo, é tão bom acordar ao lado da pessoa de quem gostas a sério, não se compara a acordar sozinha ou com uma desconhecida qualquer ao lado…”
“Vocês são tão diferentes…”, deambulou Rodrigo, dando um golo na sua água, embora parecesse satisfeito com a resposta, “Não chocam muito?”
“Chocávamos…mas era no início do namoro”, esclareceu a loura, dando um trago no seu sumo, “Achas, muito antes de casarmos já tínhamos resolvido as nossas diferenças”
“E mais…conta-me mais, que tal é?”, disparou ele, impaciente.
“Acalma a pilinha”, disse a outra, revirando os olhos, “Afinal porquê tanta curiosidade?”
“Ahm…porque…”, tentou o amigo, ruborizado que nem uma cereja, já com a voz a fugir para um registo mais agudo. Perante o olhar inquisidor da loura, não teve outra alternativa senão abrir o jogo, “Eu…estava a pensar em…pedir o Tiago em…um dia destes, quem sabe”
“Oh!”, exclamou Susana, de olhos arregalados. O amigo era tão player quanto ela e assentar tinha-se vindo a mostrar uma tarefa difícil, daí que ouvi-lo fazer uma confissão daquelas era muito provavelmente a última coisa que esperava, “Mas isso é óptimo! Quando é que estás a pensar em fazer isso?”
“Ainda não decidi, não te entusiasmes tanto”, pediu Rodrigo, embaraçado. Felizmente para si, a comida chegou, o que roubou a total atenção da loura. Porém, o rapaz ainda não saciara a sua curiosidade, “Como é que é?”
“Hm…sexo diariamente e miminhos à mistura”, clarificou a outra, num discurso quase imperceptível, de tão cheia que tinha a boca. Fazendo um esforço herculeano, engoliu a enorme quantidade de comida com que se atulhara, antes de continuar, “Posso contar-te uma coisa?”
“Sim claro”, concordou o amigo, absorvendo cada palavra como se estivesse numa aula antes de um teste importante.
“Gostava de ter filhos”, confessou Susana, “Mas não me parece que a Daniela queira, o que não me admira, ela não gosta de crianças”
“Oh, mesmo o que o mundo precisa, mais louras burrinhas”, brincou ele, antes de replicar, com toda a seriedade, “Mas dá-lhe tempo, mais uns anos e vais ver que o relógio biológico dela não lhe dá a volta”
“Espero bem que sim…”, murmurou a outra, sorrindo, como se já estivesse a imaginar toda a cena na sua mente. Imagens suas com Daniela e uma criança morena, ora na praia, ora a fazerem um piquenique no parque, toldaram-lhe os pensamentos, fazendo com que o seu sorriso aumentasse e os olhos vidrassem.
“Susana, e não se torna maçudo?”, insistiu Rodrigo, sequioso por ver as suas dúvidas respondidas. A sua personalidade calma e controlada, muito ponderada, não lhe permitiam enveredar por aquela aventura sem antes de informar devidamente.
“Até agora não, estamos sempre a avacalhar e a fazer pequenos gestos fofinhos uma à outra, ainda outro dia eu caí redonda no sofá, de tão cansada que estava e ela trouxe-me um copo de leite e umas bolachas e ainda ficou a fazer-me festinhas enquanto eu não adormecia”, contou Susana, rejubilante, tanto que dava às pernas, “E como é óbvio, muito, muito sexo!”
“Ai que nojo!”, guinchou Rodrigo, enjoado com a ideia de sexo lésbico. Por aquela altura do campeonato, já deveria estar mais do que imune, com todas as descrições gráficas e detalhadas que a loura lhe dera, mas, por muito que se risse da peripécia desta, em que estava prestes a ter sexo com uma que conhecera numa noite, apenas para lhe remover as cuecas e se deparar com um odor…muito pouco agradável, posto em termos simpáticos, era um mundo que o arrepiava.
Não ficaram muito mais tempo, uma vez que a agenda de Susana não o permitia. Pagaram e fizeram-se ao caminho. Incapaz de dispensar um cigarro depois do almoço, a loura tira o maço, frustrando-se ao constatar que estava vazio. Propôs a Rodrigo que passassem por um quiosque nas imediações para que pudesse comprar tabaco, proposta essa que ele aceitou, mesmo não se contendo de dizer, “Mas agora é quase um maço por dia?!”
“Um maço por dois dias, se faz favor”, replicou a outra, revirando os olhos.
Ao chegarem ao dito quiosque, pediu à senhora idosa, sempre amorosa e prestável, a sua marca de selecção e, estando já familiarizada com a vendedora, sabia que esta ainda iria demorar a encontrar o maço. Sorrindo, percorreu as primeiras páginas das revistas e jornais expostos, até que uma lhe chamou à atenção. Numa revista conhecida por apregoar tudo quanto era rumores, estava uma foto sua e de Daniela, no restaurante onde jantaram havia uns dias atrás, dando um beijo. A imagem era acompanhada por um título estridente a amarelo que gritava aos quatro ventos, “CASADA?!”
Pestanejando para se certificar que os seus olhos não a estavam a enganar, Susana aproximou-se da revista. Quando mais olhava mais o título berrante mais este parecia estar a rir-se de si. Puxando um exemplar da revista com brusquidão, pediu à vendedora, pondo uma nota no balcão, “É para levar também, pode ficar com o troco”
Deixando para trás uma senhora que não cabia em si de contente, chamou Rodrigo para que visse aquilo, mais que não fosse para se certificar que estava a ver bem, “Olha-me só para isto…”
O amigo pegou na revista, folheando até encontrar a página do artigo em questão, o principal, que ocupava cerca de um quarto do conteúdo de toda a revista. Assim que passaram os olhos pelo início do artigo, todo este repleto de fotos que Susana nem se dera conta que tinham tirado, desde o momento da saída do escritório de Daniela, até ao jantar, ficaram mortificados, “…tem sido vista com a mesma mulher do escândalo de há dois anos…ambas usam um anel no anelar da mão esquerda…”. Continuaram a ler, até que se depararam com uma passagem que fez o almoço dar uma cambalhota no estômago da loura, “…finalmente foi possível apurar a identidade da mulher, Daniela Sousa, vinte e quatro anos, estagiária na firma de advogados…”.
Foi a última gota. Susana sabia o quanto Daniela iria ficar incomodada com toda aquela exposição e, talvez até, a fosse prejudicar. Não sabia se ela já havia visto a revista, mas era provável que não. Seria melhor dizer-lhe antes que soubesse por terceiros da pior maneira, mas ainda demoraria a vê-la até à hora de jantar e, arriscar a que conseguissem mais fotos junto à rapariga estava fora de questão. Não teve outra alternativa senão resignar-se a esperar.
Despediu-se de Rodrigo, que se desfez em agradecimentos por ter podido ter alguém com quem partilhar as dúvidas que tinha e voltou para o estúdio. Ainda pensou em ligar para dar a notícia, mas achou melhor dizê-lo pessoalmente mais tarde, afinal era melhor não enervar Daniela, por enquanto iria focar toda a sua atenção em dominar na perfeição a guitarra havaiana, depois incorporá-la-ia na sua música, eventualmente. Felizmente para si, esta tarefa revelou-se mais consumidora do seu tempo e atenção do que previra a início, tanto mais que quando olhara para o relógio, já eram horas de parar e de ir para casa, onde a esperavam novas preocupações.
Uma vez na mota, foi pelo caminho mais longo, desta forma teria tempo para pensar na melhor maneira de abordar a rapariga. Ao chegar às proximidades de casa, viu o carro de Daniela estacionado à entrada, já se encontrava em casa. Abrindo o portão e a porta tentando fazer o menor ruído possível, a sua ideia era surpreender a rapariga, que devia estar a fazer o jantar, a julgar pelo cheiro a condimentos que pairava no ar. Vendo Daniela absorta, a temperar a salada, colocou-lhe os braços em torno da cintura, sussurrando-lhe ao ouvido, “Muitas saudades?”
“Algumas…”, respondeu a rapariga, voltando-se para beijar a loura. Parecia anormalmente carente e abatida, o que fez Susana sentir-se ainda pior por lhe ter que mostrar a revista. Apertando a morena contra-se, num abraço, a outra encostou a cabeça desta ao seu pescoço, antes de lhe perguntar, “Passou-se alguma coisa?”
Daniela apenas suspirou, chegando-se mais para a loura. A situação daquela manhã incomodara-a até ao fim do dia e nada conseguiu fazer para a solucionar. Porque é que não podia ser tão desenvolta e extrovertida quanto Susana? Podia desabafar um pouco com ela, realmente, mas falar de assuntos que devia primeiro resolver consigo própria não era algo que lhe apetecesse fazer. Assim, limitou-se a responder só, “Nada…dia cansativo só isso”
“Ainda bem…”, disse a loura, mais aliviada, “Olha…há uma coisa que devias ver”
E, sem se pronunciar mais, passou a revista, um tanto mais amachucada do que quando a comprara, para as mãos da rapariga. Enquanto esta folheava o artigo em questão, a outra pôde observar o olhar arregalado da morena percorrer todas as fases esperadas: irritado, enfastiado e, por fim, mortificado. Este último deveria corresponder ao momento em que vira o seu nome surgir. Após o que pareceu uma eternidade, Daniela deu sinal de si, “Tanto cuidado para manter a nossa vida em privado para acontecer isto…”
“Eu sei, mas também tínhamos que fazer a nossa vida sem nos estarmos sempre a preocupar…”, disse a outra, retirando a revista das mãos da morena, antes de lhe dar as mãos.
“Eu sei…estar com uma figura pública tem estes contratempos, mas não queria mesmo ter que lidar com esta exposição toda”, tentou a rapariga, mordendo o lábio inferior, até este se apresentar vermelho, “Como é que vai ser quando todos virem isto?”
“Podem mandar bocas mas opa, vão à merda”, consolou Susana, voltando a envolver a morena num abraço, “Só temos que nos preocupar com a nossa felicidade e se um monte de cabrões invejosos se meter…nós aguentamo-nos”
Daniela nada disse, apenas abraçou de volta Susana, não querendo nada mais do que desfrutar da sensação reconfortante que era o calor proveniente do corpo desta. Aproveitaria apenas o momento, mais tarde preocupar-se-ia com o que quer que os outros lhe pudessem atirar, sentia-se amparada.

1 comentário:

  1. Este capítulo tem tanta coisa distinta.
    Antes de mais ... "bradando profanidades a torto e a direito que fariam um trolha parecer um monge", parti-me a rir, ahah. A perfeita descrição da Guida.
    A hipótese de o Rodrigo casar, agrada-me. Há que dar um "fim" certo aos personagens. E apesar de este poder não ser o seu fim, será um passo importante. Não deixaste a personagem ao acaso e isso é bom. :)
    A Daniela já tinha passado por algo menos bom na parte da manhã, e depois toda aquela situação, creio que a deixou "de rastos". Sem paciência para ter contacto com o mundo, exceptuando Susana. Querer um refúgio. E, na minha opinião isso pode torna-la mais próxima ainda de Susana.
    Resumindo? Gostei muito! E acho que estás cada vez melhor na tua escrita.
    Uma viajante dos blogues :) *

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