sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Capítulo 90


Daniela acordou no momento em que o seu ombro embateu no chão de madeira. O sofá não era o local mais confortável nem o mais aconselhável para as suas costas, que nunca foram exactamente as melhores, se bem que era preferível aguentar as dores do dia seguinte e noites em claro do que admitir toda aquela confusão à família. Só Deus sabia a reacção que a sua mãe iria ter. E a última coisa que a rapariga queria era desencadear o Apocalipse. Mais do que isso, Susana não precisava de ter todos os media e mais alguns a divulgar o seu casamento falhado. No que dependesse da morena, se sacrificar o seu descanso impediria uma tragédia, então que fosse, por si e pela loura.

Amaldiçoando a sua sorte, decidiu levantar-se, afinal já era de manhã e de nada servia aproveitar aquele tempo extra, mais valia que se aprontasse. Para chegar à casa de banho tinha que passar pelo quarto que em tempos partilhara com a outra. Só não esperara que esta tivesse deixado a porta aberta o suficiente para que a conseguisse ver a vestir-se. Sentindo a face ruborizar, nem a própria sabia porquê, Daniela afastou o olhar, indo a passo rápido para a casa de banho. Regulando a temperatura da água do duche para que esta corresse mais fria, esforçou-se para retirar a imagem da loura a secar o corpo molhado com a toalha. Uns minutos mais tarde, já se sentia menos perturbada.

Uma vez na cozinha, a sua falta de à-vontade voltou, juntamente com a visão da outra sentada à mesa com a sua taça de Chocappic. Ao avistá-la, Susana sorriu abertamente. Ao menos alguém que tivesse dormido em condições. A loura apontou para as torradas que fizera e para o café, sempre feliz, mostrando-o com o seu sorriso, “Bom dia! Fiz-te o pequeno-almoço”

“Obrigada”, limitou-se a rapariga a responder, séria, embora o gesto a tivesse sensibilizado, coisa que não podia mostrar. Puxando a cadeira para se sentar, fez o seu melhor para manter a expressão de neutralidade, como se Susana não estivesse ali, coisa que se complicara quando provara as torradas, constatando que estavam muito boas. Reflectindo acerca de tudo o que a esperava naquele dia de trabalho, a presença da loura não a voltou a incomodar. Era uma das vantagens, isto para não dizer a única, da exploração a que era sujeita.

“O tratamento tem corrido bem, não tenho tido muita necessidade…”, começou a outra, a eterna faladora, rompendo com o silêncio. No entanto, naquele momento, parecia constrangida, não era seu hábito partilhar grandes pormenores do seu vício e sempre que o fazia mostrava-se mais frágil e vulnerável, o que era o golpe incendiário no gelo da morena. Continuando, disse, “Em princípio mais dois meses e fico limpa”

“Fico feliz por ouvir isso”, respondeu Daniela, engolindo um bocado de torrada com tanta facilidade como se se tratasse de uma bola de ténis. Não podia mostrar nem simpatia nem grandes afectos, no máximo alguma empatia. Mas porque é que tinha que ser tão difícil?

“Aquilo até é engraçado, fora a parte dos medicamentos…”, disse Susana, sem deixar de fitar o fundo da taça onde outrora estiveram os cereais, “É interessante falar com pessoas que estejam a mesma situação…há lá um que está ali porque não quer ser um mau exemplo para o filho pequeno”

“É pena, de facto”, replicou a rapariga, satisfeita por ter terminado a refeição, sempre era menos tempo que passava ali naquele martírio. Não podia deixar de sentir felicidade, por muito que não o mostrasse, por saber que a loura estava a superar o vício e que seria menos um problema.

“Não ia gostar de um dia dar uma imagem de drogada inútil a um filho meu…”, divagou a loura, nem se atrevendo a encarar a morena. A hipótese de um dia ter filhos, naquele momento, parecia-lhe tão ténue, que não parecia sequer possível. Porém, sempre desejara uma família e tê-la-ia, quer fosse com Daniela, quer com outra, mesmo que não lhe afigurasse possível outra pessoa.
A rapariga nada disse. Ter filhos, naquela altura, nem era uma questão sobre a qual fosse considerar, o que era, simultaneamente, um alívio e uma pena. Por um lado, já se mostrara mais aberta à ideia. Por outro, tinha medo de os ter e não sabia se alguma vez seria boa mãe, já que tinha o instinto maternal de um tubarão. Levantando-se, afagou o ombro à outra como despedida. Esta colocou a mão sobre a sua, afectuosamente. Deixando arrastar a mão até que se separaram, a morena não pôde deixar de apreciar aquele pequeno momento partilhado por ambas. Porém, não teve senão que engolir a nostalgia.

Ao olhar para trás, ainda verificou que o mesmo estaria a sentir Susana, a julgar pela expressão desta, melancólica. Suspirando, baixou o olhar, seguindo-lhe o exemplo, a loura que, se dependesse de si, teria puxado Daniela para si, estava consciente que a situação era culpa sua e, dessa forma, não estava no direito de fazer o que quer que fosse. Não teve senão que deixá-la ir, sem se puder aproximar. E a rapariga tinha igual pena, ainda deitou um olhar por cima do ombro, mas a outra já tinha voltado a sua atenção para qualquer coisa do lado de fora da janela. Conformando-se, saiu de casa, para não pensar em nada que não no trabalho, onde aplicou toda a sua concentração e brio.

----------------------------------------------------------------oOo-------------------------------------------------------

Após o que Daniela sentia ter sido um dia laboral bastante produtivo, até conseguira despachar o que andara a adiar semanas, foi com um sorriso de satisfação que arrumou as suas coisas e caminhou em direcção ao carro, nem o facto de este se encontrar estacionado demasiado longe para o seu gosto a aborreceu. Pelo caminho, ao contornar uma rua, uma voz muito conhecida fez-se soar, “Daniela!”

Pestanejando, confusa, virou-se na direcção em que lhe pareceu ouvir a pessoa em causa a chamá-la. Olhara na direcção errada, já que a voz se fez ouvir novamente, desta vez acompanhada por um riso, bem-disposto, embora trocista, “Deste lado! Tu não mudas, pois não?”

A rapariga revirou os olhos, antes de se voltar para Sofia, recostada na esplanada de um café, com um sorriso rasgado. Com ela estava o amigo comum de ambas, Jorge, que as apresentara, havia muitos anos atrás, devia ter a morena os seus quinze anos. Aproximando-se, Daniela pôde verificar, para mal dos seus pecados, que a pessoa de Sofia se mudara, então era para melhor. Se já quando se conheceram a rapariga a achara bonita, de uma maneira vulgar, agora não podia negar que os anos lhe fizeram bem. Desde a cintura minúscula ao peito, passando pelas suas muitas curvas, Sofia tinha uma figura invejável…e atraente, acrescente-se.

A observação causaram uma certa inveja na morena, cujos efeitos do trabalho a que se sujeitava e das noites de insónias não faziam daquela a sua melhor fase. Tal coisa não passara despercebida nem a Sofia nem a Jorge, que a fizeram sentar-se com eles, antes de o rapaz lhe socar o braço em tom de brincadeira, “Que cara é essa, pah?”

“A mulherzinha dela não lhe deve dar descanso, não se nota logo?”, gozou Sofia, dando-lhe uma palmada no outro braço, “Aqui a Dani casou-se, não disse nada a ninguém, ainda por cima com a Susana Marques!”

“Esta gaja tem uma sorte…”, comentou Jorge, abanando a cabeça, enfatizando o que a outra dissera.

“Ahm…pois, não é para todos”, respondeu Daniela, sorrindo, desconfortável. No que se fora meter, pelo menos de onde estava tinha uma boa vista do peito da outra.

“A gaja é boa pa xuxu, só precisas é de meter tampões nos ouvidos, aquilo a cantar não se pode ouvir”, comentou Sofia, torcendo o nariz, mostrando o seu desagrado pela música de Susana, “Desculpa Daniela”

“Aqui para nós, também não é bem o que mais gosto”, confessou a rapariga. Tivesse sido há coisa de dez anos atrás, teria dito que a música da loura era horrível, mas tratava-se da sua ex-mulher, claro que tinha um carinho especial pelo que esta fazia e sabia-lhe bem ouvi-la ao fim do dia. Mesmo tendo admitido que não era uma preferência sua, defendeu-a, “Mas não a julgues pelo que faz, ela toca muito bem viola e aprende qualquer coisa num instante, gosta é do que toca”

“Pronto, não falo mais na tua mulher”, proferiu a outra, levando as mãos ao ar, em sinal de derrota, “Continuas aquela alucinada que se atirou para a moche em Slayer?”

“Aquilo em Lamb of God é que foi e ainda sobrou para Metallica”, acrescentou o outro, regozijando-se ao relembrar aquele dia. Cartazes assim só apareciam umas vezes na vida e ficavam no coração, mesmo com o passar do tempo.

“Arrependi-me porque saí de lá a rastejar!”, esclareceu a morena, abanando a cabeça, “Sabes que um concerto valeu a pena quando depois não te consegues mexer o resto da semana”

“Verdade”, admitiram, tanto Sofia como Jorge, em uníssono. A outra, tão entusiasmada como se lhe tivessem acabado de anunciar que tinha ganho o euromilhões, convidou, “Um dia destes passas lá por casa e mostro-te umas músicas que até deliras, ainda tens o mesmo número?”

Anuindo, Daniela consultou o relógio e apressou-se a despedir-se, mas não foi embora enquanto a outra não a obrigou a prometer que apareceria lá por casa em breve.

1 comentário:

  1. Antes de fazer qualquer tipo de comentário ao capítulo, quero que saibas que eu merecia pelo menos uns quatro seguidos, só pelo tempo de espera.
    Ora bem... A primeira parte é exactamente aquilo que previra. Pouco contacto, poucas conversas, vontade de dizer tudo e mais alguma coisa mas a mágoa não deixa. E claro, existe sempre a saudade e a vontade de voltar atrás.
    Quanto à segunda parte, não sabia como é que ias enquadrar a Sofia nem como é que ias fazer para que estivessem juntas. Gostei. :)
    E, como é óbvio, é bom que te despaches a desenvolver. E a pôr aqui mais capítulos.
    Uma viajante dos blogues :)*

    ResponderEliminar