sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Capítulo 86

Bom Ano Gente!

Foi à semelhança daquela ocasião que Susana procurou passar os tempos seguintes, sempre mantendo a compostura e cortando na bebida e nas substâncias, tarefa que não se revelou nada fácil, a necessidade tornava-se cada vez mais intensa e chegava ao ponto de ser agonizante. O que a fazia ter algum autodomínio sobre si mesma era a vontade de se redimir e ser a melhor mulher possível para Daniela. Optou, também, por ir apenas às festas e eventos que fossem estritamente necessários, por obrigações de trabalho, passando antes esse tempo com a rapariga. Assim, os progressos já eram visíveis, ora ficavam por casa, ora faziam um programa a duas.
Contudo, havia, de facto, festas que não dispensavam a sua presença e aquela era uma delas. Na recta final do Verão, o objectivo era encerrar as férias e a estação mais querida de todos da melhor maneira e a comparecência da loura era imperativa. Após muita insistência sua, conseguiu que lhe dessem permissão para levar consigo a morena, sendo aquela a primeira vez que iam a um evento do género juntas. Desta forma, Daniela viu-se, para seu constrangimento, vestida a rigor, numa limusina. Numa limusina! Nunca antes tivera tantas saudades do seu modesto veículo. Alegre, a outra anunciou quando chegaram ao destino, apontando para fora da janela, para um bar, sem dúvida um tanto além da carteira da pessoa comum.
“Hoje está lindo”, comentou Susana, cheia de boas expectativas em relação àquela noite. Exceptuando as muitas perguntas inevitáveis a que teriam que responder, não havia motivos para que qualquer coisa corresse mal. Ao ver a expressão de receio na cara de Daniela, afagou-lhe a mão, a personalidade tímida e recatada da rapariga não era algo com que nunca tivesse lidado, “Vais gostar, não é preciso estares assim”
“Sim, mas…”, tentou a morena, mordendo o lábio inferior. Aglomerados de gente, ainda para mais que só conhecesse de ler em revistas ou ver nas novelas, decididamente que não a deixavam à vontade. O que é que ela, na sua humilde condição de cara-metade da uma das convidadas especiais, estava ali a fazer? Certo, a fazer companhia à dita convidada especial. O esforço da loura para resolver a situação complicada em que se encontravam até há pouco tempo atrás não seria, de maneira nenhuma, ignorado, tanto quanto dependesse de Daniela, que sorriu e disse, “Tenho a certeza que sim”
Agora tranquila, Susana exibiu o seu habitual sorriso que lhe evidenciava as covinhas, antes de levar a mão da rapariga aos lábios e a beijar. Quando saíram do veículo, a loura, sendo a primeira a sair, deu a mão para ajudar a morena a levantar-se. Ao ver toda uma multidão de gente a dispararem flashes, toda a coragem que Daniela sentira esvaiu-se, dando lugar a um nervosismo indiscreto. Porém, a outra não parecia sequer incomodada, não se coibindo de lhe colocar um braço sobre os ombros e de avançar até à entrada sempre bem-disposta. A rapariga já ia arriscar e suspirar de alívio, quando apareceu a entrevistadora habitual, dando às ancas e equilibrando-se nuns saltos de agulha provocantes.
“Boa noite, Susana!”, exclamou ela, saltitando de entusiasmo, o que fez com que o peito lhe saltasse também, o que incomodou Susana, que se lembrou dos pensamentos condenáveis que já tivera. Retribuiu o cumprimento e, chegando mais a morena para si, à sua frente, pôs-lhe os braços em torno da cintura, apoiando o queixo no ombro desta e aguardou as questões incómodas que se seguiriam.
“É hoje que vai finalmente dar a conhecer a sua mulher? Se é que o são, claro”, continuou a jornalista, que aparentava ter um ataque cardíaco se ficasse ainda mais excitada. A loura sabia que não podia adiar mais, as revistas já haviam especulado tudo e mais alguma coisa, assim, tinha mais a ganhar em admitir e aquela seria a melhor altura para o fazer. Podia ser que os boatos de maus tratos parassem e a sua imagem ficasse imaculada.
“Tentei manter a minha vida privada isso mesmo, privada, mas há coisas que vêm sempre ao de cima”, começou a outra, olhando para Daniela, dando-lhe a certeza, apenas com aquele olhar, de que tinha a situação sob controlo. Num registo alegre, pronunciou-se, “Já estamos casadas há mais de um ano e as coisas têm corrido bem, não temos razões de queixa, mas que eu era casada já vocês sabiam”
“Mas agora temos a confirmação”, respondeu a entrevistadora, de olhos reluzentes, como uma criança em dia de Natal. Aquele devia ser o seu dia de sorte e iria aproveitar a onda de confissões de Susana, “Os rumores de agressão não indicam que andem assim tão bem, gostaria de comentar o assunto?”
“São isso mesmo, rumores”, replicou a loura, implorando mentalmente à morena para que interviesse a seu favor, uma vez que o seu testemunho iria ser muito mais credível, “Eu amo a minha mulher”
O entusiasmo da jornalista apenas poderia ser equiparado ao de um cavaleiro que tivesse encontrado o Santo Grahl. Como se tivesse lido os pensamentos da outra, Daniela achou por bem manifestar-se, afinal não havia ocasião mais propícia para colocar um ponto final naquela questão da violência doméstica. Sorrindo de volta para Susana, declarou, “Não passou mesmo de um mal-entendido, ela não me bateu e não podíamos estar melhor, eu amo-a”
“Declarações no seu melhor!”, guinchou a entrevistadora, com o peito em vias de se catapultar para fora do top. Depois de mais algumas perguntas, todas elas sobre a relação de ambas, perguntas essas que conseguiram responder em conjunto, causando boa impressão, apenas ficou satisfeita quando aceitaram que lhes tirassem fotografias, que serviriam para ilustrar o artigo que escreveria, o que, na melhor das esperanças tanto da loura, como da rapariga, iria pôr termo àquele assunto infeliz.
“Estive muito mal?”, inquiriu a morena, encostando a cabeça no ombro da outra, pouco confiante nos seus dotes sociais. Na sua perspectiva, o que dissera soara muito inseguro e transparecera falta de à vontade, o que a enervava, uma vez que a última coisa que queria era embaraçar Susana. Só a possibilidade de tal acontecer causava-lhe um mal-estar imenso.
“Estiveste bem, não te preocupes”, assegurou a loura, encaminhando-as para dentro do bar. Uma espreitadela rápida ao interior permitia constatar que o exterior não era apenas fachada. Construído a partir de uma moradia megalómana antiga, a decoração consistia numa mistura de elementos antigos como esculturas, e estilo moderno, com candeeiros de cariz futurista. Em suma, o local era, mais do que interessante, limitado às elites mais abastadas. Daniela suspirou pelos bares de aspecto duvidoso, reservados aos comuns mortais, que costumava frequentar.
Escolhendo um lugar recatado num canto mais calmo para se sentarem, a rapariga, que nem se achava digna de se sentar naquelas cadeiras, perguntou, corada, “És mesmo paga para vir aqui?”
“Recebo mais por estar aqui do que tu num mês inteiro”, esclareceu a outra, sorrindo. Não era sua intenção gabar-se, mas não podia estar mais realizada consigo própria por estar onde estava. De criança com apenas o suficiente para se alimentar e uma camisola nova no Natal e nos anos, a vedeta principal dos últimos anos, com mais projecção e a mais querida por entre o público. O dinheiro deixara de ser problema e agora vivia a vida que muitos dariam a alma por ter.
“É bom saber que me matei a estudar durante anos para depois ser explorada a torto e a direito e apareces tu com a mania que sabes cantar e ficas rica”, provocou a morena, revirando os olhos numa expressão exagerada. Como a divertiam aquelas situações de cumplicidade com a outra, “O mundo está perdido!”
“Oh, oh”, resmungou Susana, fazendo cócegas a Daniela, que se contorceu a rir, esquecendo-se, as duas, de onde estavam. A brincadeira valeu-lhes serem, novamente, o foco das atenções, sendo abordadas por um grupo de pessoas. Uma a uma, a loura foi dando conversa, posando para fotos, rindo, tudo para deixar os fãs felizes, afinal devia-lhes isso. Durante o desenrolar da cena, a rapariga recostou-se na cadeira e limitou-se a observar como os olhos daquele grupo de pessoas brilhavam só por poderem interagir com a outra.
Já a entediar-se, a morena deambulou um pouco mentalmente. Não sabia como é que Susana tinha tanta paciência, ela própria já se teria fartado. E daí a loura sempre fora faladora e simpática, Daniela era reservada e de poucas palavras. A voz de um rapaz, dirigida a si, fê-la voltar a dar atenção ao que se passava à sua volta, “Que sorte a tua, quem me dera a mim”
“Oi?”, perguntou a rapariga, baralhada. De onde é que aquela criatura tinha aparecido e de que é que estava a falar?
“A Susana é linda…”, respondeu o rapaz, suspirando, “A sério, toda a gente a quer e só tu é que tens, que sorte mesmo”
Não sabendo ao certo o que dizer, a morena riu de modo constrangido. Causava-lhe imensa confusão pensar na outra como “A Susana Marques”, para si, continuava a ser a mesma Susana que um dia conhecera num bar a mil anos-luz daquele no que dizia respeito a luxo. Não passava da mesma pessoa com quem partilhara momentos que não trocaria por nada daquele mundo e outros menos bons, mas não tinha importância, eram momentos delas. Calmamente, respondeu, “Foi mesmo sorte minha, não a trocava nem por nada”
A última parte fora ouvida pelo resto do grupo, incluindo a loura, que a puxou para si, carinhosamente. Ainda enterrada no pescoço de Daniela, murmurou, para que só ela ouvisse, “Sorte tive eu”. Afagando o cabelo à outra, a rapariga não contou com a dentada que esta lhe deu no pescoço. Afastando-se, numa expressão de indignação fingida, deu um estalo ao de leve na cara de Susana, na brincadeira, muito para diversão do grupo, que achou por bem ir-se embora e deixá-las sossegadas.
“Até te estás a conseguir soltar um bocado, não custa nada, vês?”, replicou a loura, ainda abraçada à morena. Daniela anuiu e recostou-se na outra, afagando-lhe a mão que pendia do seu ombro. Eram momentos daqueles que a faziam esquecer quaisquer problemas que tivessem, sobretudo porque o esforço de ambas para os superar se tinha revelado frutífero.
Nos próximos tempos, ora permaneceram na companhia uma da outra, ora dançaram um pouco, com a rapariga a fazer das tripas coração para não fazer figura de ursa, com os seus péssimos dotes e Susana a guiá-la o melhor que conseguia. No final, não só a morena acabara por se divertir, como aguentara bastante tempo sem parecer um orangotango a ter espasmos. Logicamente que, de vez em quando, apareciam fãs ou repórteres, mas nada que a perturbasse. Qualquer coisa e a loura estava lá, não havia nada a temer.
Quando se cansaram, voltaram a sentar-se, antes de a outra voltar a ser a ser abordada, desta vez por pessoas que Daniela recordava vagamente das novelas em horário nobre. Disseram qualquer coisa a Susana que a rapariga não conseguiu entender, mas a loura pareceu entusiasmada. Voltando-se para a morena, disse, “Não te importas que eu vá só ali com eles num instante?”
“À vontade”, concordou Daniela, soltando-lhe a mão. Depois de trocar um beijo rápido com a rapariga, a outra seguiu o grupo até a uma sala nas traseiras, tão toldada pelo fumo que seria necessário faróis de nevoeiro para se orientar lá dentro. Sentando-se num dos sofás, começou a sentir, pela primeira vez desde que concordara em juntar-se ao grupo, culpa. Tanto tempo sem dar no cavalo e agora estava prestes a fazê-lo outra vez. E a rapariga estava mesmo ali, noutra sala, o que é que ela iria dizer se viesse a saber? Mas tinha tanta vontade…e o resto do grupo, notando a sua hesitação, incentivaram-na. Só por uma vez não iria fazer mal, pois não?
Momentos depois, abandonou a sala, mal se aguentando nos pés, a sensação de euforia era tanta que não dava pelo chão debaixo de si, se calhar até podia estar a pairar no ar, tudo era possível. Outra vez com a morena, conseguiu manter-se consciente o suficiente para perceber que a sua prioridade era esconder o que andara a fazer. Sentando-se ao lado desta, puxou-a para o seu colo, procedendo a distraí-la com afectividade, mas sem sucesso, Daniela obrigou-a a afastar-se, parecendo apreensiva, “Tu estás bem?”
A outra respondeu, sentindo a língua a enrolar-se na boca e o pensamento a perder o fio à meada, “Hm…sim, ‘tava com saudades, não tem mal”
A rapariga arrepiou-se. Não sabia o que se tinha passado naqueles minutos, mas não conseguia afastar a sensação de que não fora nada de bom. Não desejando prolongar aquele mau pressentimento, consultou o relógio. Já podiam ir embora sem causar má impressão. Pegando na mão de Susana, sentiu-a letárgica, o que lhe confirmou que o estado da outra não era o melhor. Tendo que arrastar, praticamente, peso morto da loura até ao carro, a morena ignorou a garra que lhe agarrava as entranhas. Implorando ao motorista que as levasse a casa o quanto antes, foi verificando o estado da loura. Já não dizia coisa com coisa, balbuciando frases absurdas e tentando agarrar qualquer coisa no ar, qualquer coisa que apenas existia na imaginação dela.
O percurso pareceu longo, muito mais do que dera a entender na ida. Entretanto a morena segurou a outra, não fosse ela magoar-se. Felizmente para si, não ofereceu resistência, ficando apenas inerte no aperto de Daniela, como se lhe tivessem sugado a energia, “Ahm…ani…”
Chegando a casa, a rapariga carregou com Susana até à cama, despindo-a antes de a deitar. Não sabia o que se passava, nem tampouco o que fazer, mas a loura parecia mais calma, como se já tivesse adormecido, o que a tranquilizou um pouco. Teria tomado qualquer coisa? Ter-lhe-iam posto algo na bebida? No dia seguinte dir-lhe-ia, esperou a morena, que se deitou também, ainda a sentir os tímpanos em sofrimento da música do bar. Minutos mais tarde, mas que lhe pareceram uma eternidade, estava, também a dormir.
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“Ahm…hm…”, gemeu Susana, fazendo com que Daniela acordasse. Esta olhou para o relógio na mesa-de-cabeceira, constatando que ainda era de madrugada. Seria possível que a loura já estivesse acordada?
Olhando para ela, gelou até à mais ínfima gota de sangue. Contorcendo-se como se estivesse em grande sofrimento, suando em bica, a outra parecia possuída, “Ahm…ai…”
A rapariga quedou-se sem reacção por uns momentos. Mas o que é que se estava a passar? Chamando a si toda a presença de espírito que conseguiu, tocou na pele a ferver de Susana, tentando acordá-la, “O que é que tens?”
Não conseguiu nenhuma resposta, apenas mais espasmos e queixumes. O que quer que estivesse a acontecer era algo para o qual nada a preparara, sentia o coração a galopar-lhe do peito, ou será que estava parado? Já nem sabia. Pegando no telemóvel, ligou para o número de emergência, sem saber como se explicar ao certo. Apesar da voz abafada, conseguiu fazer-se ouvir, por cima dos gemidos de Susana, que subiram de tom. Apenas pousou o aparelho e voltou para junto da loura quando soube que acabaria por chegar ajuda. Sentindo-se impotente, acomodou a outra o melhor que conseguiu, afastando-lhe madeixas de cabelo encharcado da testa.
O que sucedeu a seguir foi tão rápido que ela, no seu estado de choque, não conseguiu registar. Só se recordava de ver os paramédicos chegarem, de estarem na ambulância a tomarem o pulso à outra e a fazerem-lhe a ela, Daniela, perguntas para as quais não tinha resposta, o que em nada contribuiu para que se sentisse mais útil naquele caos. Quando deu por si, estava sentada numa cadeira incómoda numa sala de espera fria, até que chegou uma médica, trazendo os resultados das análises de Susana.
“A situação está estável, mas preciso que colabore tanto quanto possível”, pediu ela, aparentando uma calma tão fria que desconcertou ainda mais a rapariga. Se se conseguiu manter calma foi porque não desejava nada mais do que ajudar no que quer que conseguisse. Impassível, a médica questionou, “Sabe dizer-me se ela tem algum passado com drogas?”
“Tanto quanto sei consome regularmente drogas leves e experimentou com pesadas há já bastante tempo”, respondeu a morena, passando a mão pelos cabelos, esforçando-se para não perder a cabeça.
“As análises acusaram heroína”, disse a médica, não esperando resposta concreta.
Foi então que Daniela teve que se voltar a sentar, não fosse, ela própria, perder os sentidos. Mais forte que a desilusão que sentiu era a vontade de ver Susana bem.

1 comentário:

  1. Não consigo mesmo imaginar a Daniela numa festa destas. Não que seja irreal, porque não é, mas é sempre estranho. Logo ela que "sofre" de uma certa timidez e gosta muito da sua privacidade. Acho que foi importante ela ter feito isso pela Susana. Foi um esforço da parte dela, tal como a Susana andava a fazer.
    Aquela jornalista parece a tentação em pessoa. Ainda bem que a Susana já se anda a controlar.
    E, quando à última parte do capítulo, devo dizer que desaprovo a atitude da Susana. Estava a levar tudo tão bem. Estavam ambas a fazer esforços para que as coisas melhorassem, e ela foi voltar a errar.
    No lugar da Daniela, não sei se reagiria tão bem.
    Uma viajante dos blogues :) *

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