sábado, 7 de janeiro de 2012

Capítulo 87

Susana acordou do que lhe pareceu um sono profundo e longo. Doía-lhe a cabeça e sentia-se como se tivesse sido arrastada por uma falésia. Gemendo de desconforto, tentou virar-se na cama mas algo lhe parecia diferente. Abriu os olhos preguiçosamente e levou uns instantes a situar-se. Em vez do pequeno quarto onde dormia mais Daniela, deu com um espaço mais amplo, todo ele branco e desprovido de qualquer aconchego. Atordoada, ergueu-se da cama, tentando perceber onde estava. Ainda devia ser cedo, o sol brilhava por entre uma fresta da cortina e essa pequena fonte de luz permitia-lhe ver o sítio onde se encontrava. Um hospital.
Esta constatação não a acalmou, antes pelo contrário. Não sabia como ali tinha ido parar e para piorar a situação os acontecimentos da noite anterior não eram mais do que fragmentos na sua memória…luzes, pessoas, uma sala enevoada…agora estava num quarto de hospital. Tentando sossegar, olhou para o colo, onde repousara os braços. Num deles estava uma agulha, ligada a algo num suporte junto a si. Ao seu lado, viu um amontoado de cabelo escuro, pertencente à rapariga que adormecera sentada numa cadeira à beira da cama e apoiara a cabeça nesta.
“Dani…”, tentou a loura, não dando importância às dores que sentia, que a puxavam de novo para a cama. Provavelmente a morena saberia dizer-lhe o que tinha acontecido, “Dani acorda”
“Hm…”, sussurrou Daniela. Doía-lhe as costas da posição em que adormecera e não se sentia de maneira nenhuma repousada, quando muito, à agonia da noite anterior agora juntava uma coluna dorida. Porém, mais do que o cansaço físico, sentia-se tão emocionalmente estafada que chegava a ponto de estar apática. Ou preferia estar…
“Puque é que eu ‘tou aqui?”, perguntou a outra, ainda sem dominar por completo a função da fala. Toda a força que lhe restava era usada para se manter erguida na cama, sem ceder e tombar.
A rapariga ainda envergava a bata que lhe cederam no hospital para colocar por cima da t-shirt larga que usara para dormir, uma vez que adormecera ali ao lado de Susana, não tinha tido oportunidade para ir a casa pôr-se mais apresentável. Esfregando os olhos, não arranjou forças para lhe responder, nem tampouco sabia por onde começar. Em bom rigor, nem sabia como se sentia. Desapontada? Sim. Magoada? Sim. Enganada? Sim. Aliviada por saber que a loura estava, tanto quanto possível, bem? Duplo sim. De certa forma, a chegada da médica permitiu-lhe não ter que dar uma resposta à outra, pelo menos naquele momento.
“Estou a ver que já acordou”, disse a médica, abrindo as cortinas de par em par, o que fez com que os olhos sensíveis de Susana se queixassem, obrigando-a a tapar a cara com o braço. Não ligando, a médica consultou a sua prancheta, prosseguindo, “Boas e más notícias, quais é que quer primeiro?”
“Não sei…as más”, resmungou a loura, cuja disposição piorava. Já não chegava não saber porque é que acordara num hospital, ainda lhe faziam perguntas daquele género sem a elucidarem sequer.
“Pior que consumir heroína é não saber dosear”, explicou a médica, abanando a cabeça, “Se se vai injectar, ao menos tenha juízo nas quantidades, olhe que podia ter ido desta para melhor se não tivesse sido socorrida a tempo”
Levantando a cara do braço, a outra olhou, ora para a médica, ora para a morena. Antes de o fazer esperava uma expressão de reprovação por parte desta, no entanto deparou-se com tristeza, nada mais que isso. Naquele momento, a sequência de acontecimentos tornou-se mais concreta…naquela sala enevoada, um grupo de pessoas, proporem-lhe consumir…nem conseguiu encarar mais Daniela, preferia que esta lhe batesse, que gritasse, tudo menos que fitasse o chão com um olhar magoado.
“Pelo menos a situação está sob controlo e amanhã já pode ir para casa”, continuou a médica, enquanto verificava os fios que ligavam Susana a uma série de aparelhos, “Preferimos que passe cá a noite para a mantermos sob observação”
Certificando-se que estava tudo nos conformes, saiu do quarto, deixando a loura e a rapariga na companhia uma da outra. Não sabendo o que dizer, a outra preferiu que fosse a morena a manifestar-se. O certo foi que algum tempo depois, Daniela acabou por falar, numa voz que transparecia toda a sua desilusão, “Acho que vou embora, amanhã passo por cá”
A dor com que dissera aquilo tocou tanto a outra que não conseguiu formular o que quer que fosse. Apenas quando viu a morena levantar-se para sair é que disse, assustada, “Desculpa!”
Daniela parou onde estava, virando-se para encarar Susana. Esta, aproveitando aquela oportunidade, continuou, de uma só vez, “Sei que não chega, mas não sei o que mais dizer…não tem perdão o que fiz, mas é o mínimo que posso fazer”
Suspirando, a rapariga subitamente pareceu muito mais velha, pálida e cansada, com olheiras e o cabelo despenteado. Como se só a falar lhe fosse como uma maratona, murmurou, quase sem se conseguir fazer ouvir, “Já começam a ser vezes a mais…”
“Primeiro bates-me, pedes desculpa, eu aceito e voltas a fazê-lo”, disse a morena, quase a perder o fôlego, “Fazes o que fizeste no bar há uns anos, pedes desculpa, eu aceito, para variar, ainda há pouco tempo te perguntei se não andavas a tomar nada e tu disseste que não”
À medida que Daniela falava, a loura ia tomando consciência das consequências daquela noite. As coisas com a rapariga ainda estavam instáveis, apesar dos progressos que ambas fizeram. O sucedido não só deitara por terra todos os esforços que as duas fizeram, como minavam as hipóteses de recuperação. Pedir uma nova oportunidade parecia-lhe impossível, isto para não falar de ser quase um desrespeito à morena. Considerando tudo isto, a outra, que não queria, de forma alguma, desistir do que tinham, ia a desfazer-se em desculpas de novo, quando Daniela disse, “Só quero saber porque é que tens que ser sempre assim, nunca aproveitas as segundas e terceiras oportunidades…o problema é meu e não teu, só assim”
“Não! Tu não tens problema nenhum”, replicou logo Susana. Gostaria de ter podido levantar-se e tocar na rapariga, qualquer coisa, mas os fios que a ligavam às máquinas impossibilitavam-lhe isso. Limitada à cama, continuou, desesperada, “Eu é que não me consigo controlar, nunca consegui, não queria deixar as coisas chegar a este ponto”
“Podias ter sido honesta logo no início”, respondeu a morena, encostando-se à parede, “Ao menos podes dizer-me, sinceramente, há quanto tempo andas nisto?”
Apanhada. Ou dizia a verdade e arriscava-se a eliminar todas e quaisquer hipóteses de manter o casamento, ou mentia e esperava que Daniela nunca viesse a saber. Dividida, acabou por decidir que lhe devia a verdade. A medo, confessou, “Depois da minha avó morrer deixei de consumir, só voltei no ano seguinte, quando tinha dinheiro para isso”
Pelo menos a parede suportara parte do peso da rapariga, que se deixou descair até ficar sentada no chão. Perguntara à loura por diversas vezes se nunca mais consumira e esta sempre lhe dissera que não, agora descobria que lhe mentira todas aquelas vezes. O facto de a outra lhe ter mentido ainda era pior do que o que andara a fazer.
“Mas era muito pouco, só de vez em quando, quando ia sair”, disse Susana, na esperança de melhorar a sua situação, “Agora com todo o trabalho que tinha é que o passei a fazer mais vezes, se não o fizesse não aguentava…”
“Chega!”, disse a morena, enterrando a cara nas mãos, “Não és capaz de manter uma promessa, se não o fazes por mim, ao menos fá-lo por ti e não arruínes a tua vida”
“E agora?”, perguntou a loura, com o coração acelerado. Não queria ouvir a resposta, já a sabia de antemão, mesmo que parte de si se quisesse manter agarrada à esperança de que toda aquela situação pudesse ser resolvida e que as coisas fossem como o eram há uns meses atrás.
“Não sei…”, admitiu Daniela, levantando-se, “Vês mesmo futuro no nosso casamento depois de tudo isto?”
“Eu vou para uma clínica, eu faço tudo o que tu quiseres, mas por favor não!”, gritou a outra, ao sentir todo o seu mundo ruir e ela sem saber o que fazer.
“Não é a melhor altura para pensarmos nisso…”, disse a rapariga, tomando a alternativa cobarde. Podia ter resolvido, naquele momento, toda a situação mas não fora capaz de a enfrentar. Antes de deixar Susana, abraçou-a, sendo precisa toda a sua presença de espírito para se separar. Tinha muito em que pensar e para isso precisava de estar sozinha.

1 comentário:

  1. Está um capítulo "pesado". Pesado, no sentido que mostra muito bem a tensão que se fazia sentir naquele quarto. A hipótese da tomada de decisões que podem mudar tudo aquilo que elas vieram a construir até agora, a desilusão, a dor, a mágoa. O desespero, principalmente.
    Mostraste tudo isto muito bem. E acho que foi um capítulo importante, antes de partires para mais algum avanço na história.
    Tal como sempre te disse, estás de parabéns, uma vez mais.
    Uma viajante dos blogues :) *

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