quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Capítulo 68

A semana que se seguiu foi o que ambas consideraram a sua “Lua-de-Mel”. E, vendo bem as coisas, que mais é que podiam pedir? Praias paradisíacas, população hospitaleira, boa comida e, acima de tudo, tempo só de ambas e para ambas, num local completamente novo, livre dos olhares intrometidos de terceiros. Porém, ambas sabiam que quando voltassem, nada seria tão fácil como o fora durante as férias, a boa nova do casamento iria constituir um grande choque para todos os conhecidos mas, acharam por bem não mencionar o assunto, não fosse este causar agitação desnecessária, mesmo que ambas estivessem cientes que apenas estavam a adiar o inevitável.
Como todas as coisas boas, aquela semana passou depressa demais para o agrado de ambas, que se viram na viagem de regresso mais cedo do que gostariam. Apenas quando já deixavam para trás o solo havaiano e o arquipélago já desaparecia de vista é que Daniela se permitiu a, por fim, tocar no assunto que a andava a atormentar desde que acordara na manhã do dia seguinte ao casamento, “Olha Susana…”
Susana já sabia o que é que a rapariga lhe queria dizer, não era nada de transcendente. Procurando consolá-la o melhor possível, colocou um braço em torno dos ombros desta, recostando-a em si, embora nada tivesse dito.
“Vai ser um golpe duro…”, suspirou a morena, olhando para a outra, um tanto a medo, incerta de como se expressar.
“Que importa?”, replicou a outra, ostentando uma expressão séria, “Fizemos a nossa escolha, se os outros não gostarem que se fodam”
“Estou com um certo receio de contar à minha mãe”, admitiu Daniela, pressionando-se mais contra a loura, “Este tempo todo e vocês não se entendem nem por nada”
“Não é por não querer, ela é que põe defeitos em tudo o que faço”, resmungou Susana, revirando os olhos, “Mas não te preocupes, ainda vamos a tempo”
“Tu não estás preocupada?”, perguntou a morena.
“Sei que os meus amigos me apoiam, por isso não é por aí, se a minha avó fosse viva ficava feliz por mim, por isso não tenho ninguém a quem desapontar”, explicou a loura, “O que pode correr pior é a minha carreira, mas é um preço que eu posso pagar”
“A sério…tem cuidado com isso, não te quero a deitar tudo a perder por minha causa”, pediu a rapariga, sentindo-se, simultaneamente tocada, como culpada.
“Não me importo mesmo, não é que fosse a primeira vez que espetavam com a nossa cara numa revista”, disse a outra, dando um beijo na cabeça da morena, “Há coisas mais importantes que a minha carreira e o meu casamento é uma delas”
“Tem cuidado, só isso”, pediu Daniela, embora se tivesse aconchegado melhor sob o braço da outra, antes de a beijar. Se ia estar horas fechada num avião, ao menos que se certificasse que ia permanecer confortável e não havia melhor que o peito da loura. Fechou os olhos e tentou não imaginar nas possíveis reacções dos pais quando lhes contasse, mesmo que fosse uma tarefa difícil de se concretizar: cólera, tristeza, apatia…podia ser tudo menos felicidade. Arrepiada, comprimiu-se contra a outra, que se apressou a sossegá-la, como se adivinhasse os seus pensamentos.
“Ssh…”, murmurou Susana, encostando a cabeça à da morena, “Vai correr tudo bem…prometo”
A rapariga preferiu esquecer tudo aquilo, ainda que fosse só por aquele momento, não o queria estragar. Quando tivesse que ser voltaria a lidar com tudo aquilo, mas por enquanto descansaria. Estava a dormir o sono dos justos quando a voz da assistente de bordo a despertou, avisando os passageiros de que iriam aterrar em breve.
“Ai…e se não se lembram de pôr as rodas?”, lamentou-se a outra, abanando o ombro da morena, de modo nervoso e irrequieto.
“Só tu, Susana Isabel, só tu”, disse Daniela, rindo. Apesar dos seus melhores esforços, a loura estava num pranto, a observar através da janela a aproximação do solo. Só voltou a recuperar a cor quando o aparelho se encontrava imóvel sobre a pista de asfalto, “Como vês, vivemos para contar a história”
Susana nem lhe respondeu, de tão ocupada que estava a mentalizar-se que o avião não tinha explodido. Só se voltou a pronunciar quando sentiu a mão da morena apertar a sua, “Estás-me a espetar as unhas!”
A rapariga faz-lhe orelhas moucas, continuando, completamente nervosa. Ao longe já avistava a mãe, que lhe acenava, entusiasmada. Aí, a loura já não sentia nada do cotovelo para baixo. A distância entre elas e a senhora foi encurtada por esta, que não perdeu tempo a tomar a filha nos braços, eufórica, “Estás tão morena!”
“Ui, calma mãe…estás-me a aleijar”, conseguiu dizer Daniela, sem fôlego. Cada vez que expirava, ao abraço da mãe tornava-se mais forte, como uma piton.
A senhora não largou imediatamente, ainda queria compensar o tempo que passara longe do seu rebento. Susana, por sua vez, nada disse, ficando a ver o desenrolar daquela cena familiar. Quando a senhora soltou a rapariga, voltou-se para a loura, com um sorriso ligeiro, “Boa noite, Susana, gostou da viagem?”
“Adorei”, respondeu a outra, sorrindo honestamente, feliz, “Mas preferia que me tratasse por tu, sogrinha”
“Passo a tratá-la por tu se não me chamar sogrinha, temos negócio?”, propôs a senhora, divertida com a simplicidade alegre da loura, mesmo que nunca o fosse admitir.
“Ora essa, sogri…”, concordou Susana, detendo-se a tempo. Foi a vez de Daniela se rir, antes de afagar o braço da outra, carinhosamente. Uma breve troca de olhares com esta e a rapariga soube que a instigava para que desse a boa nova à mãe. Mas não o queria fazer ali, diante de toda aquela gente, preferia esperar por um local mais propício. Seguiu ao lado da mãe por entre as multidões que ocupavam o aeroporto, com a loura atrás, até se instalarem no carro. Por esta altura os olhares da outra tornavam-se incomodativos, de tão intensos que eram.
Uma vez com o veículo em andamento, a morena ousou falar, “Mãe?”
“Diz, Dani”, encorajou a senhora, transbordando alegria por tudo o que era poro, “Tens fome? Estás cansada?”
“Não…estou bem”, replicou Daniela, mordendo o lábio inferior, ao trocar um esgar com Susana, através do retrovisor, “Queria dizer-te que…”
“Que?”, encorajou a mãe, “Tu não me deixes preocupada!”
“Que…que…”, tartamudeou a rapariga, cujas mãos oscilavam no volante. Os olhos arregalados e os braços cruzados da loura indicavam que esta podia perder a paciência a qualquer momento, “QUE EU E A SUSANA CASÁMOS, PRONTO!”
O silêncio que se abateu dentro do habitáculo do veículo era de cortar à faca. Por um lado, a morena quase hiperventilava, apertando o volante com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos, por outro, a outra parecia aliviada e, por fim, a mãe nada disse, limitando-se a reprová-la com o olhar, antes de o fixar na auto-estrada, diante de si, arrasada. Porém, todas sabiam que era melhor ninguém insistir, pelo menos por enquanto. A viagem até casa da rapariga foi, toda ela, marejada por silêncio por parte de todas, sendo o único ruído audível o do motor do carro. Ao chegarem ao destino, nenhuma ousou sair do veículo.
“Mãe…diz alguma coisa”, implorou Daniela, com os olhos vidrados.
Incapaz de se conter durante mais tempo, a senhora encarou-a. No entanto, em vez da raiva que a morena esperava, apenas encontrou tristeza, expressa nas feições da sua mãe.
“Desculpa se te desapontei…”, tentou a rapariga, engolindo em seco.
“O que me entristece nem é o teres casado com aquela criança grande e desmiolada”, disse a senhora, com um suspiro, totalmente esquecida da presença da loura, atrás de si, “É mesmo o não me teres dito nada…”
“Foi uma decisão momentânea, nenhuma de nós planeou isto”, continuou Daniela, com a fala dificultada pelo nó na garganta.
“AINDA POR CIMA!”, bradou a mãe, batendo com a mão no tablier, “Que tu tenhas casado com aquela atrasada mental inútil, o problema é teu, agora vive com o teu erro! Mas era pedir muito teres-me consultado antes de cometeres essa estupidez?! Não entendes que só queria ter estado a teu lado nesse dia?!”
Daniela, que já apoiava a cabeça nas mãos, nada respondeu. Batendo com a porta atrás de si, desapareceu em direcção a casa, deixando a senhora dentro do veículo com a outra.
“Sabe…”, começou Susana, ainda que a sua voz acusasse, através de um timbre magoado, o quão a reacção da senhora a magoara, “Queria tanto ter conseguido, nestes quatro anos, fazer com que me aceitasse o suficiente para que me visse como a cara-metade da sua filha, sem que torcesse o nariz cada vez que ela falava em mim”
“Mas parece que, fizesse eu o que fizesse, nunca era suficientemente bom para si”, continuou, olhando para a senhora, através do reflexo do retrovisor, “Não sou perfeita…mas desde que comecei a namorar com a Daniela, que mudei muito…tudo por ela”
A mãe da rapariga não soube o que dizer. Sabia, no entanto, que não era preciso manifestar-se, a loura apreciaria, certamente, o seu silêncio e a oportunidade de desabafar. Ainda assim, cada palavra desta teve o peso de uma tonelada em si.
“Antes de a ter conhecido não achava que me voltasse a apaixonar”, prosseguiu a outra, fitando as mãos no seu colo, “Mas viemos a construir algo e sólido e verdadeiro, acredite…”
Talvez Susana não fosse uma escolha assim tão má para nora, se havia algo que a senhora tivesse notado havia algum tempo, era que esta, apesar de tudo, tinha bom coração. Talvez Daniela tivesse podido arranjar bem pior.
“Não queríamos mesmo magoá-la e mesmo que tivesse sido por um impulso, foi algo que eu tinha planeado há algum tempo, só não quisemos adiar mais a nossa decisão”, disse Susana, agora com a voz resumida a um sussurro, “Posso não me exprimir da melhor maneira, mas tudo isto para dizer que amo a Daniela e não quero nada que não a felicidade dela”
A última parte foi quase insusceptível aos ouvidos da senhora, que já tinha a face ruborizada. Não sabia o que dizer, mas tinha que falar, que assegurar à loura que merecia a sua bênção, qualquer coisa. “Desculpe...desculpa Susana…se calhar precipitei-me a julga-la…te”
“Compreendo, não era exactamente o que devia esperar para a sua filha”, disse a outra, sorrindo, “Quer dizer…sou uma mulher, atrasada mental como diz, mas acredite que não sou uma criança grande”
“Não o devia ter posto em causa”, suspirou a mão de Daniela, embaraçada, “Mas temos que admitir que não te conheço assim tão bem e tu estás sempre a fazer aqueles comentários…horríveis”
“’Tão, tenho que quebrar o gelo entre nós”, desculpou-se Susana, coçando a nuca, sem evitar o riso, “Mas já me trata por tu, tá ver?”
“É verdade que não tenho facilitado”, admitiu a senhora, “Mas espero que me dês uma oportunidade para me redimir”
“Tempo não falta, como já lhe disse”, replicou a outra, afagando o ombro da mãe de Daniela, “É claro que dou, sogrinha”
A senhora afagou a mão da loura, em resposta, sorrindo para si. Podia ser o oposto do que sempre desejara para a filha, podia ter comportamentos um tanto duvidosos mas, enfrentara-a em mais do que uma ocasião, algo que muita gente não faria. E, naquele momento dera provas de ser muito mais do que uma pessoa infantil. Ainda tinham um caminho considerável a percorrer, mas a senhora comprometera-se a fazer um esforço verdadeiro para eliminar o fosse entre si e a nora.
“Sogrinha?”, chamou Susana.
“Diz”, pediu a mãe de Daniela.
“Agora que eu e a sua filha somos casadas já podemos fazer o amor à vontade”

2 comentários:

  1. Tu sabes a minha opinião à cerca desta história. Sabes o quanto gosto dela e o quanto gosto de vir aqui ler mais um capítulo. (Mesmo quando não comento logo e me rogas 50 pragas.) Também sabes o quanto me "delicio" com ela e como isto é um momento bom e não algo que faço como sendo forçado.
    Continuo a achar a tua escrita muito boa e que "cresceste" ao mesmo tempo que esta história cresceu.
    Quanto ao capítulo, reparei logo mal falaste na piton, ainda te vou dar uma. (Ou não.)
    E parti-me a rir completamente com a última frase da Susana. Imaginei a cena completa na minha cabeça. Ela com a sua descontracção a dizer "Agora que eu e a sua filha somos casadas já podemos fazer o amor à vontade”.
    Mas risos à parte, gostei bastante do capítulo. Gostei da reacção adulta da Susana face a um momento tenso. :)
    Continua com isto para a frente porque, apesar de ser algo que gosto, é algo que vale a pena ler.
    Uma viajante dos blogues :) *

    ResponderEliminar
  2. a última frase foi mesmo um golpe de génio, man!
    Q

    ResponderEliminar