Daniela acordou com a claridade da manhã a passar através das paredes de pano da tenda. Doía-lhe a cabeça e sentia algo pesado sobre a cintura, já para não falar que não reconheceu imediatamente onde estava após ter acordado. Pouco a pouco foi juntando os fragmentos de memórias do dia anterior…os pais, as bandas, Susana, Fábio…SUSANA! Ergueu-se nesse mesmo instante, ficando sentada. O que outrora lhe estava a fazer peso em cima da cintura revelou-se, nada mais, nada menos, que o braço da loura. Esta acordou com o movimento brusco que a morena fez ao levantar-se.
“Hm, ainda é tão cedo…”, murmurou ela, ainda de olhos fechados, “Não podemos ficar só mais um pouquinho?”
A rapariga sentiu o coração apertado ao lembrar-se da situação por que passaram na noite anterior, se dependesse de si limitar-se-iam a ignorar e a esquecer o que se passou. Mas fora demasiado grave para ser deixado passar em branco. Talvez por ainda estar mais na Terra dos Sonhos do que na Terra propriamente dita, a outra não parecia recordar-se. Limitar-se-ia a não tocar no assunto e a agir com a maior naturalidade possível. Consultou as horas e viu que sim, podiam ficar mais algum tempo. Após dar notícias aos pais de que estava bem, deitou-se, virando-se para Susana.
“Bom dia, dormiste bem?”, perguntou a morena, pondo já o seu plano de acção, que basicamente se resumia a ausência de acção, em prática.
Só então a loura se pareceu aperceber da posição em que ambas estavam e não fez o mínimo esforço para não parecer incomodada. Retirou prontamente o braço e limitou-se a responder à pergunta com um murmúrio incompreensível. A rapariga preferiu não insistir nem forçar conversa, começando a procurar a roupa. Não ia mendigar o perdão da outra, quando chegasse a altura de se provar, fá-lo-ia, se viesse a ter oportunidade, é claro…
“Olha vou comer qualquer coisa, ficas aqui?”, perguntou um pouco a medo. Quando a loura estava de mau humor podia ser deveras inconstante, como a morena veio a saber por experiencia própria na noite anterior.
“Ainda quero dormir mais”, respondeu com a cara enterrada na almofada.
Com um “até já”, Daniela abandonou a tenda. Caminhou um pouco cabisbaixa em direcção a um café improvisado, ainda a tentar acreditar na reviravolta 180 graus que a sua relação com Susana deu. Ainda há vinte e quatro horas parecia tudo perfeito, agora estavam por um fio. Com um abanar de cabeça decidiu não se deprimir mais e tratar de se alimentar. Má vida amorosa não era desculpa para virar anoréctica. Pediu um café e uma sandes, que comeu sem vontade e levou outra para a loura, juntamente com uma garrafa de leite com chocolate. Fez o caminho de volta para a tenda com um aperto no peito, apenas para dar de caras com a outra ainda a dormir.
Tendo em conta que as coisas estavam tremidas o suficiente sem ter que irritar mais Susana acordando-a, Daniela optou por esperar à entrada da tenda. Tirou o seu maço da mala e acendeu um, talvez aquilo a acalmasse. Pouco depois a outra acordou, com o cabelo louro em desalinho e os olhos azuis semi-abertos. Apesar da tensão que se fazia sentir, a rapariga não pôde evitar notar no quão adorável Susana estava, o que a fez sorrir.
“Trouxe-te o pequeno-almoço”, tentou a morena, com alguma hesitação. Por muito que não tencionasse “dar graxa” à outra, um gesto simpático seria inofensivo.
A loura pareceu surpreendida, mas agradeceu com um sorriso pequeno mas honesto. Comeu em silêncio, sempre de olhos postos no vazio. Apenas falou após ter acabado:
“Depois queres boleia para casa?”, perguntou, sempre com o mesmo ar melancólico, brincando com um graveto que se encontrava no chão ao pé de si.
“Não quero causar-te transtorno, mas se ofereces aceito”, respondeu a rapariga. Todos os momentos que podia partilhar com a outra eram poucos, sobretudo depois do sucedido.
“Então eu levo-te depois”, concluiu ela, largando o graveto para dar um toque no braço da morena.
O segundo e último dia do festival ia ter lugar dentro de pouco tempo. As raparigas caminharam sempre lado a lado, mantendo um diálogo descontraído e amigável, na medida do possível, sobre as bandas. Pelo menos descobriram que tinham mais gosto musical em comum do que à primeira vista aparentava, apenas o de Daniela era mais abrangente e variado, enquanto que o de Susana era basicamente aquilo e acústica. Encontraram um lugar simpático no qual podiam estar sentadas, embora estivessem a uma distância considerável do palco. Nenhuma parecia capaz de enfrentar grandes turbulências.
Desta vez estiveram razoavelmente isoladas e afastadas, de tal modo que não tiveram que lidar com empurrões nem encontrões. Cada uma ia, muito lentamente, tentando reduzir a falta de contacto entre ambas. Primeiro Daniela sentou-se à mínima distância possível sem que parecesse mal, depois Susana ia aproximando a mão da da rapariga, devagar. A certo ponto estavam de mãos dadas, mesmo que só se limitassem a segurar.
A última banda tinha acabado de tocar e as raparigas ainda se encontravam no mesmo local, de mãos dadas, ambas incapazes de arranjar presença de espírito suficiente para avançar mais. À medida que a multidão dispersava, a morena ganhava coragem para fazer algo. Mal viu que estavam praticamente sozinhas, beijou a loura ao de leve. Apesar de tudo não podia abusar. Não houve razões para ter tido medo, a outra correspondeu prontamente, apressando-se a aproximá-la de si. Separaram-se momentos depois, o beijo não tinha ostentado uma atmosfera pesada, tinha sido apenas normal em todos os sentidos.
Abandonaram o recinto, desta vez de mãos dadas e em silêncio. Trataram de arrumar as coisas e de vir embora. O festival não tinha de todo sido tão aprazível como ambas gostariam. Na parte que lhe tocava, Daniela faria de tudo ao seu alcance para se redimir, só pedia uma oportunidade.
Adoro!
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