Os dias no Algarve chegaram ao fim, com grande pena de ambas que estavam a adorar cada segundo passado sem a menor ponta de preocupação. Mas tinham ainda as suas obrigações, portanto não tiveram alternativa senão regressar. A loura só descansaria verdadeiramente quando verificasse que a avó tinha aguentado bem aquela semana. E a morena tinha uma decisão a tomar, se assumiria a relação ou não. Uma semana passou e finalmente decidira, muito para alegria da outra.
Susana sentou-se na borda da cama enquanto tentava acalmar o suficiente para depois conseguir formular algum tipo de pensamento coerente. Parte de si encontrava-se prestes a rebentar de felicidade por Daniela ter finalmente concordado em apresentá-la aos pais. Outra parte estava absolutamente aterrorizada, receando não causar boa impressão, tal como acontecera com o melhor amigo. Até porque não estava nada ansiosa por enfrentar a “sogra”, pelo que a namorada contara.
Pegou no telemóvel e ligou a Guida, se havia alguém que soubesse como se apresentar e agradar a pais conservadores era ela. Enquanto a amiga não atendia, observou o seu reflexo num espelho. À parte do piercing que tinha na sobrancelha e dos alargadores nas orelhas, não achou que tivesse muito mau aspecto. E Daniela também tinha um túnel e a mãe aceitara, não podia ser assim tão selecta. Guida finalmente atendeu.
“Oh Guidinha, tenho um favor a pedir-te com alguma urgência”, apressou-se a loura a dizer, indo directa ao assunto.
“Bons dias para ti também”, respondeu a outra, num tom sarcástico, “Ora diz lá”
“Como sabes, consegui convencer a Dani a assumir a nossa relação aos pais”, começou Susana, ainda a falar depressa demais, “E…ai não sei como é que te estou a pedir isto”
“Tem lá calma e diz o que é que precisas”, disse Guida, a ficar impaciente.
“Bem…como é que achas que vá vestida?”, perguntou finalmente a loura. Nem acreditava que, anos depois de recusar conselhos de moda da outra, lhe estivesse a pedir opinião sobre roupa.
Do outro lado, um guincho agudo fez-se ouvir, obrigando Susana a afastar o aparelho do ouvido, “Tu não sabes o quanto eu ansiei por ouvir essas palavras! É para quando?”
“Hm…hoje à noite”, admitiu a loura com um risinho nervoso. Agora ia ouvir das boas.
“O QUÊ?”, gritou Guida, decerto que estava a ficar extremamente vermelha naquele momento, “Só agora é que avisas? Olha, fazemos assim, tu arrastas esse cu até cá a casa IMEDIATAMENTE!”
Desligou a chamada logo a seguir, deixando Susana com um zumbido nos ouvidos. Talvez por não querer enfrentar a ira de Guida, talvez por saber que era a sua melhor opção, não demorou a despedir-se da avó com um abraço terno e a pegar na mota dirigindo-se a casa da outra. A sua mota tinha saído do acidente num estado bem melhor que ela.
Apesar de não viverem muito longe uma da outra, era como se vivessem em universos diferentes. Num extremo estava Guida, com a sua casa de três andares, piscina e quinta, noutro estava Susana, cuja casa cabia na sala de estar da outra e ainda havia espaço para o sofá de pele e plasma de metro e meio. Devia ser por isso que Mónica se dava tão bem com Guida, que por sua vez a detestava. Mónica, mesmo que não vivesse rodeada de todo aquele luxo, não ficava muito longe.
Ao chegar a casa da outra, Susana estremeceu ao imaginar o que Guida teria em mente para si. Só de se lembrar da quantidade de vezes que a outra quase se pusera de joelhos para a convencer a usar uma saia…Quando esta lhe foi abrir a porta, quase nem teve tempo de registar a viagem desde o portão até ao quarto, tal foi a velocidade com que foi arrastada. A primeira coisa de que teve consciência foi do esgar de terror de Guida, ao observar Susana nas suas calças largas carmim e top preto, com havaianas pretas.
“Tu não me digas que querias ir assim!”, alarmou-se ela.
“Hm pois…”, respondeu a loura, coçando a cabeça, enquanto se esforçava por não rir da expressão da outra.
“Ai Susana Marques…o que vale é que estou aqui para impedir esse desastre”, desabafou Guida, apoiando a testa na mão, “Olha tu vai mas é lavar esse ninho de ratos enquanto eu traço um plano”
Susana assim o fez, observando com horror pelo canto do olhou um vestido preto mínimo que estava preso num cabide fora do armário. Já no duche, ficou ainda um bocado a estudar o complexo mecanismo que tanto permitia regular a água como a música. Muito para sua irritação, a água veio a escaldar e, numa tentativa de arrefecer aquilo, começou a passar Miley Cyrus. Quando finalmente conseguiu terminar o banho, voltou para junto de Guida enrolada na toalha.
“Ora bem, espero que tenhas usado amaciador”, disse a outra, sorrindo de orelha a orelha, “Disseste que os pais dela eram conservadores, não era?”
“Ela diz que não iriam esperar nada de muito vistoso da minha parte, por isso nem penses que vou usar aquilo que estás a pensar”, esclareceu Susana, com um sorriso travesso, “Mas mesmo assim não quero parecer mendiga, sabes?”
“Eu certifico-me que não pareces”, assegurou Guida, apesar de ter ficado aborrecida por ter que riscar a hipótese de fazer a loura usar um vestido, “Tenho aqui estas calças, sentes-te à vontade com isso, certo?”
Atirou para Susana um par que de certeza que lhe iria ficar colado à pele, de ganga muito clara e simples, “Tu queres-me cortar a circulação!”
A outra revirou os olhos, voltando a dirigir a sua atenção para uma gaveta. Quando levantou a cabeça, trazia uma camisola razoavelmente decotada, de cor azul-marinho, “Vais mesmo usar essas calças e vais usá-las com isto, realça-te os olhos”
A loura franziu o sobrolho mas optou por aceitar, afinal podia ter sido muito pior. Vestiu a roupa, roupa essa que eram as peças mais femininas que havia usado em vinte anos de existência. Só faltava qualquer coisa para calçar. Guida pegou numas sandálias claras de cunha e acenou com elas na direcção de Susana.
“Porra! Eu não consigo andar com isso, não tens aí uns ténis?”, perguntou a loura, cujas memórias da última vez que tentar usar saltos ainda a assombravam.
A outra ainda pensou nuns Timberland mas lembrou-se da quantidade de vezes que Susana gozara com eles, portanto decidiu-se por um par de ténis simples pretos e brancos que tinha esquecidos pelo armário. A loura desta vez já não levantou qualquer tipo de objecção, acabou de se vestir e Guida aprovou o resultado final. Agora só faltava tratar do cabelo e dos adereços. O piercing teve que sair, afinal nenhuns pais conservadores gostavam de ver a filha com alguém que parecesse uma árvore de Natal (como Guida disse) e os túneis foram substituídos por alargadores fechados. Guida quis esticar o cabelo a Susana mas esta recusou pois sabia que Daniela gostava mais ondulado.
Quando Susana finalmente se libertou de Guida, voltou a casa para ir buscar tanto a prenda que tinha para Daniela, como para acabar de reflectir em paz. Não tinha a menor dúvida que era mesmo aquilo que queria, que a namorada a apresentasse à família, mas a última coisa que desejava era arranjar-lhe problemas. Ao chegar a casa dirigiu-se ao quarto, indo depois para a janela, para fumar. Ia já no fim do cigarro, ainda perdida nos seus pensamentos quando ouve a avó chamá-la, à entrada do quarto.
“Ai Susana…deixa-te disso”, queixou-se a idosa, numa voz rouca, “Vais ter com ela agora?”
“Só vou daqui por um bocadinho…”, disse Susana, sem se voltar para encarar a avó, “Sei que é isto que quero…mas tenho tanto medo do que os pais lhe possam dizer ou fazer”
“Oh, podem ser um pouco apanhados de surpresa mas no fundo hão de querer o que fizer a Dani mais feliz”, reconfortou a idosa, agora sentada na cama, indicando à neta que viesse para o pé de si.
Susana assim fez, sentando-se ao lado da avó. Esta tirou do bolso um saquinho pequeno púrpura que entregou à neta. A loura afrouxou o nó que o fechava e virou-o ao contrário, deixando cair sobre a mão um anel prateado muito simples. Estava com o pressentimento que o que se seguiria seria importante, mas não fazia ideia do que poderia ser. Optou por deixar que esta prosseguisse.
“É algo antigo, foi-me dado por alguém muito especial e como sei que gostas mesmo dela, oferece-lho”, disse a idosa, perante o ar estupefacto da loura, que nada respondeu, limitando-se a acenar afirmativamente.
“Nunca te perguntaste porque é que alguém da minha idade aceitou tão bem isso vindo da única neta?”, começou a senhora, sorrindo com fragilidade para a jovem.
A loura realmente chegou a pensar nisso, mas nunca quis questionar a sorte que tinha tido. Acima de tudo agradeceu com toda a honestidade o facto de ter encontrado na avó uma confidente que estivesse sempre disposta a ouvi-la e a aconselhá-la. Acenou que não com a cabeça.
“Foi há muito tempo atrás, acho que tinha mais ou menos a tua idade”, disse a idosa, apertando a mão de Susana como se procurasse forças para continuar, “Quando conheci o verdadeiro amor da minha vida”
A loura arqueou as sobrancelhas, admirada. A avó nunca antes lhe contara nada disso. Limitou-se a deixá-la recontar o que tinha a dizer, nunca interrompendo, apenas acenando, mostrando que estava a prestar atenção.
“Chamava-se Daniela, tal como a tua”, disse a senhora, agora a fitar o vazio, como se esquecesse que estava a falar com a neta, “Foi no dia de Natal que a conheci, tinha acabado de sair da igreja…tinha começado a chover e eu não tinha guarda-chuva…quando ela surge ao meu lado e oferece-se para partilhar o dela comigo”
“Na altura fiquei impressionada, a única coisa que sabia dela era o nome”, continuou a idosa, com os olhos azuis vidrados, “Não nos voltámos a ver, ate pensei que ela não fosse da região, até que a encontrei numa festa…ela adorava dançar”
Susana tentou ainda exprimir algum som, mas a única coisa que lhe escapou dos lábios foi um ruído abafado. Aquela conversa era a ultima que alguma vez esperara ter, pois não conseguia imaginar a avó com alguém que não o senhor alto e entroncado que conhecia como sendo o avô, que havia morrido de um AVC quando a loura tinha entrado para a primária. Fora a partir daí que começaram a ter dificuldades económicas.
“Lembro-me que estava sem par nesse dia…ela abordou-me e pediu-me para dançar”, relatou a senhora, sorrindo ternamente, como a neta nunca viu, para o vazio, “Ela era tão despreocupada e serena como tu, Susana, não consegui dizer-lhe que não nem sentir-me mal por não estar a dançar com um homem”
“Quando ambas nos cansámos, decidimos ir para o meu local preferido, um pessegueiro antigo num dos campos que rodeavam a aldeia”, continuou, numa voz débil, como se o fôlego lhe começasse a faltar, “Era um local resguardado por isso estávamos à vontade, sentámo-nos e falámos durante uns tempos…quando esgotámos todos os temas de conversa ficamos em silêncio, só na companhia uma da outra…”
“Pouco depois ela olha-me e sorri, aproximando-se…”, neste momento a idosa perdeu coerência, deixando cair umas lágrimas. A neta apressou-se a abraça-la, não sabendo bem o que dizer, apenas sentia o nó na garganta a apertar-se.
“Como podia algo tão errado saber tão bem?”, questionou-se a avó, deixando-se embalar pelo abraço firme de Susana, “Quando voltei a mim empurrei-a e fugi dali…como me arrependo agora”
“Uns tempos depois ela escreveu-me uma carta…falava do que sentia, apesar de não nos conhecer-mos há assim tanto tempo”, continuou, em lágrimas nos braços da neta, que lhe fazia festinhas nas costas, tentando reconfortá-la, “Voltámo-nos a encontrar no mesmo sítio por baixo do pessegueiro e foi o inicio de algo lindo”
“Oh avó…”, sussurrou Susana, que por esta altura também tinha lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.
“Depois disso, estávamos quase sempre juntas, embora não como qualquer outro casal, tínhamos que ser o mais discretas possível não fossem fazer alguma coisa”, disse a senhora, ainda com a cara no ombro da loura, “Durou cerca de meio ano…parece pouco tempo mas foi o suficiente para me ensinar a amar sem restrições e a viver a vida ao máximo”
“Aquela rapariga adorava brincar com o fogo…”, prosseguiu a idosa, lavada em lágrimas, “Era das poucas que tinha carta e adorava pegar no carro do irmão e guiar depressa…eu bem que a avisei”
Susana engoliu em seco ao prever o que teria acontecido. Com um aperto no peito, lembrou-se que a sua Daniela também dava bem no acelerador e já tinha tido uns sustos.
“Uns dias antes de ter falecido, deu-me esse anel”, disse a avó, levantando a cabeça e sorrindo por entre lágrimas, “Agora que sabes quero que tu e a tua menina vivam ao máximo e que não deixem que o preconceito vos impeça de serem como outro casal qualquer, mesmo que os pais dela não aceitem a inicio. Amor é amor”
A loura não conseguiu articular qualquer palavra, optando apenas por apertar a idosa mais para si e assegurar que o iriam fazer.
“Depois conheci o teu avô e o resto é história”, concluiu a senhora, “Mas nunca hei-de esquecer a minha menina”
Susana limitou-se a agradecer pelos conselhos e por ter decidido partilhar isso com ela, dando-lhe a sua palavra que era exactamente o que faria, antes de se despedir e ir ao encontro de Daniela.
Ohh +.+ está super querida a história da avó! E pensar quantas pessoas terão passado por isso ao longo dos tempos, terem de esconder assim um relacionamento que era considerado completamente inaceitável...
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