sábado, 29 de janeiro de 2011

Capítulo 4


08:45
Daniela acordou ao som da previsão meteorológica para esse dia. Para mal dos seus pecados o seu relógio-despertador não a despertava ao som do típico “ti-ti-ti-ti”, mas sim com o que quer que estivesse sintonizado no rádio. Levou a mão à cabeça e sentiu-se nervosa, o que era normal tendo em conta o que ia fazer. Só tinha duas horas para estar no local combinado e não fazia tenções de chegar atrasada, apesar de a palavra “pontualidade” nunca ter figurado no seu dicionário.
08:50
Saltou da cama com energia e tomou um duche rápido, desta vez sem saborear a sensação relaxante, o desejo de não fazer a outra esperar era mais forte. Escolheu roupa que a favorecesse, pois apesar de só se ir encontrar com Susana sem segundas intenções, ainda queria mostrar o seu melhor, salvo seja. Tomou o pequeno-almoço quase sem dar pelo pão com manteiga a passar-lhe na garganta e bebeu o leite mal dando por ele. Depois, após olhar-se ao espelho uma última vez e saiu de casa.
09:30
Segundo os seus cálculos levaria uma hora para chegar lá, até agora tudo sob controlo. Já tinha avistado o seu autocarro ao longe, não se tinha atrasado mais do que no normal. Sentou-se calmamente no banco e tirou da mala um par de phones, preparando-se para passar a viagem a ouvir qualquer coisa que bloqueasse o ruído irritante dos miúdos com entusiasmo a mais por irem à praia. Para sua frustração estava um pouco trânsito mas ainda tinha tempo para dar e vender, não havia motivos para alarme, certo?
10:15
Errado! O autocarro começou a fazer um ruído estranho…parecia um cão em grande sofrimento. O ruído prolongou-se por uns minutos até que se ouviu um chiar, como uns ténis que raspam em chão de madeira. “Eu não acredito que esta merda acabou de empanar!”, sussurrou Daniela tentando manter a sua atitude zen que era a sua imagem de marca. Olhou para o lado de fora da janela, estava a cerca de um quarto de hora de distancia…caso fosse de transporte que não os seus pés, o que não aparentava vir a ser o caso. Se abrisse bem as pernas só levaria meia hora. Decidiu-se.
10:20
Saiu do autocarro e a primeira coisa que sentiu foi o ar quente proveniente do asfalto, o que era seriamente desmoralizante, porque a caminhada era longa. Lamentar-se-ia depois, agora era tempo de se fazer ao caminho. Já tinha caminhado alguns metros quando sentiu os pés a doerem-lhe por causa dos saltos, “Puta que te pariu!”, exclamou ela um pouco mais alto do que gostaria, fazendo com que algumas pessoas na rua se virassem, valendo-lhe um “Malcriadona!”
11:00
Olhou para o relógio e suspirou de irritação, já era suposto lá estar! O fôlego começava a faltar, mas já tinha levado com insultos, pernas e pés doridos, calor abrasador e já não estava muito longe, não era agora que ia desanimar. Se tudo corresse bem, bastaria um esforço extra e estaria lá apenas com uns minutos de atraso, decerto que a loura ainda não tinha chegado. O cabelo começava a cair-lhe sobre a cara e tinha suor a escorrer-lhe pela testa, mas não era isso que a ia desmotivar depois de lá chegar compunha-se.
11:10
Já conseguia ver o café, mas antes disso parou e tirou um lenço e um pente da mala, limpou-se e compôs o cabelo e roupa, ia tudo correr bem. Ergueu a cabeça e dirigiu-se à entrada, mas viu-a pelo canto do olho, o que fez com que sentisse um ligeiro “frio” no estômago. Virou-se lentamente para a encarar. Susana estava a cerca de cinco metros encostada contra a parede com os braços cruzados sobre o peito, olhando-a com um ar divertido.
Daniela ficou boquiaberta e com dificuldades em formular qualquer tipo de pensamento coerente perante a visão que se lhe apresentava. A loura era a perfeita imagem da calma e serenidade, com o seu longo cabelo louro a emoldurar-lhe o rosto. A morena não deixou de reparar na diferença de aparência entre a Susana que tinha conhecido há dois dias e a que se encontrava diante de si. Enquanto que a do primeiro encontro era provocante e estava vestida com roupas bastante reveladoras, de tão decotadas e justas, a daquele momento quase que parecia hippy, com calças de pano largas de um tom azul que fazia realçar o azul dos olhos e um top branco, tendo calçado umas havaianas brancas. Os braços encontravam-se adornados com pulseiras simples de pedra, que condiziam com o colar que tinha. Daniela reparou pela primeira vez que tinha um piercing na sobrancelha.
Apesar de ter ficado deslumbrada perante a beleza simples de Susana, a rapariga não pôde evitar estabelecer comparações entre esta e Andreia. A versão morena de Susana vestia-se sempre impecavelmente, não que a loura não o fizesse, mas Andreia apenas usava a ultima moda e o melhor que o dinheiro podia pagar. Por um lado a sua antiga paixão apresentava-se sempre com uma imponência espantosa, sendo impossível não exigir respeito, apesar de saber ser doce sempre que necessário. Por outro, Susana limitava-se a transmitir uma paz contagiante, decerto que podia acalmar a pessoa mais exaltada só com a sua presença, além de que era como uma criança feliz, com o seu sorriso feliz e bem-disposto.
“Hm, já estas aqui há muito tempo?”, perguntou a morena tentando não ficar especada a olhar mais do que o necessário.
“Desde as 11 em ponto”, disse com uma expressão de indignação brincalhona, “Ao contrário de alguém que eu cá sei”
“D-Desculpa, o autocarro empanou”, balbuciou a rapariga a desfazer-se em desculpas, se havia coisa que não gostava era de causar logo má impressão, não que fosse o primeiro encontro, mas afinal tinha ido para esclarecer umas coisas, “Depois tive que vir a pé…”
“Shh, é na boa, estava só a brincar”, riu-se, mas sem gozar, estava a penas divertida, “Queres ficar aqui o dia todo ou vamos entrar?”
“Vamos claro”, apressou-se a rapariga a dizer, conseguindo mais uns risos da outra, “Oh, não gozes!”
“Eu? Lá agora”, brincou Susana, dirigindo-se à morena, “Nem direito a cumprimento tenho, anda cá”
Inclinou-se e deu dois beijinhos na cara da morena, que estremeceu devido à proximidade, embora não ao ponto de não retribuir o cumprimento. Mais uma vez Daniela pensou em Andreia, que a teria cumprimentado apenas com um beijo. Desde sempre que sentir o cheiro das outras pessoas era um hábito seu, então o facto de ter aproveitado para encostar o nariz aos cabelos da loura não era espanto nenhum. “Hm, cheira bem, talvez a…coco com uma mistura de baunilha”, pensou, admirada por não se ter apercebido disto antes. O toque da mão de Susana na sua cintura despertou-a dos seus pensamentos de volta à realidade, valendo mais uns risos da loura, “Pronto, já estou a fazer figura de parva”
Sentaram-se numa mesa razoavelmente reservada num canto do café junto à janela e cada uma fez o seu pedido, Daniela o seu café e Susana um sumo de laranja. A rapariga ficou a mexer o café enquanto procurava a melhor maneira de iniciar a conversa, propriamente dita. Quando a mão da loura pousou na sua, levantou bruscamente o olhar da chávena.
“Calma, eu não mordo”, disse a outra desta vez sem o seu sorriso bem-disposto, parecia mais séria, embora não ao ponto de deixar a rapariga pouco à vontade.
Daniela não se sentiu capaz de ir logo directa ao assunto, ainda estava a ganhar coragem e a preparar o discurso, em vez disso levou um par de minutos para observar quem se encontrava diante dela. Pela maneira como estava a olhar parecia estar também a estudá-la, no entanto parecia quase enternecida, fazendo com que a morena sentisse uma onda de confiança que a encorajou. Tocou ao de leve com a unha nas costas da mão da outra, que a segurou, nunca movendo o olhar da morena. Susana começou a fazer festinhas na mão da rapariga e de repente olha para baixo.
“Tens aqui uma cicatriz, o que aconteceu?” perguntou ela.
“Queimei-me no ferro de engomar quando tinha três anos”, respondeu Daniela, surpreendida com a pergunta, “Foi chato na altura, mas já ninguém repara nela”
“Então na altura já eras um pouco aluada como agora”, riu-se a loura sem nunca largar a mão da rapariga, “Sim, porque já reparei que estás sempre no teu mundo e quando te chamo à Terra tu ficas à nora”
“Oh, não goza, não?”, defendeu-se Daniela na brincadeira, acrescentando, “Tu fazes surf ou mergulho, não fazes?
“Bodyboard, como é que sabes?”, perguntou a outra, surpreendida.
“É que tens as marcas do fato no pescoço e nos pulsos”, riu-se a morena, “Também sei ser observadora quando é preciso”
Foi quanto bastou para desencadear um longo discurso sobre a sua paixão pelo desporto, o que fez com que a rapariga sentisse a sua atenção dividida entre ouvir todos e cada um dos relatos e experiencias de Susana e observar a forma como os seus olhos azuis brilhavam e as covinhas no seu rosto se acentuavam à medida que falava. “O entusiasmo dela é tão querido”, pensou Daniela, já enternecida. Ganhou mais coragem e passou os dedos pelo antebraço da outra, que fechou os olhos ao sentir o contacto. Daniela observou melhor a mão da outra, tinha os dedos bastante compridos e pareciam calejados, como se tocasse guitarra, contrastando com os pequenos e pouco elegantes de Andreia.
“Se continuares a fazer isso, eu adormeço aqui”, murmurou a loura ainda de olhos fechados, “Ainda te quero mostrar uma coisa”
A rapariga limitou-se a responder “Não seja por isso” e a agarrar nas coisas, fazendo intenções de tirar a carteira, quando a outra a impediu, insistindo para ser ela a pagar. Daniela ainda pensou em retorquir, mas a outra silenciou-a com um dedo nos lábios. Pouco tempo depois estavam cá fora, ao pé da praia. A loura esticou a mão para a puder entrelaçar com a da morena, que aceitou prontamente, depois pediu-lhe que fechasse os olhos.
Esta assim fez e sentiu-se encaminhar em silêncio durante uma distância considerável. Durante todo este tempo não proferiram uma única palavra para além do ocasional “cuidado”, embora aquele silêncio desconfortável de quem não tem nada a dizer nunca se tivesse manifestado. A morena esteve o período de tempo todo sem se aperceber minimamente para onde estava a ser levada, porem sentiu-se confiar plenamente na outra. Entretanto Susana colocou a mão em frente dos olhos da rapariga, que se deixou guiar, limitando-se a sentir o calor da pele da outra. Tinha que admitir, nem nos seus melhores sonhos alguma vez a Andreia teria admitido aquela proximidade toda.
“Chegámos”, disse Susana, interrompendo os pensamentos de Daniela. Quando removeu a mão que a estava a vendar, a rapariga ficou novamente sem reacção, o cenário que se apresentava diante dos seus olhos era lindo. Estavam numa pequena praia isolada e reservada, rodeada por rochas que a resguardavam. Os raios solares incidiam sobre a água fazendo com que esta resplandecesse como milhares de cristais, não havia ondas e a areia tinha uma tonalidade clara.
“Susana…é lindo”, disse Daniela a custo, a outra não cessava de s surpreender.
“Ainda bem que gostas”, respondeu a outra, sentando-se no areal e puxando a morena para o pé de si, “Senta-te, gostava de falar melhor contigo”
A rapariga assim o fez e esperou que a outra prosseguisse. Começou a sentir-se um tanto nervosa, talvez por já saber o que se seguia e por não saber como o dizer. Vasculhou na mala em busca do maço, lembrando-se que tinha acabado. “Assim não consigo fazer isto, preciso de estar zen!”, pensou já desesperada.
“Olha, eu digo-te tudo o que quiseres”, pediu ela, “Mas será que me podias dar um cigarro, se faz favor?”
“Claro mas depois também tenho direito a pedir-te algo”, brincou a outra, enquanto tirava o maço da mala e passava um à rapariga, que se apressou a acende-lo. Daniela não deixou de reparar que, tal como a Andreia, Susana também fumava. Ficaram as duas uns instantes apenas a fumar enquanto observavam o mar a bater no areal, até que a loura quebrou o silêncio, enquanto atirava a beata para longe:
“Então diz-me”, começou ela, como se a questão a estivesse a incomodar há muito tempo, “Porque é que fugiste? Fiz algo que não tivesses gostado?
Daniela respirou fundo e brincou com o cigarro, pensando na melhor forma de responder sem dar a entender a grande parva que era, levou-o aos lábios e inalou a nicotina, só falou depois de a expirar, “É uma longa historia, se tiveres paciência para ouvir eu conto”. A outra acenou que sim com a cabeça e disse-lhe para prosseguir.
“Isto pode parecer fora do contexto, mas eu tive durante muito tempo uma paixão forte por uma rapariga, rapariga essa que me rejeitou e que nunca consegui esquecer por completo”, relatou, fez uma pausa para verificar se Susana estava a seguir com atenção, esta limitou-se a dizer-lhe para prosseguir, por isso continuou, “Ok, então digamos que essa rapariga era extremamente parecida contigo, fora a cor dos olhos e do cabelo”
“Então só esteve comigo porque pareço a tal…”, murmurou Susana sem se aperceber que fora ouvida.
“Não foi só isso…embora essa tenha sido a razão pela qual vim embora”, continuou a morena, passando uma mão pelo cabelo, deixando-o desgrenhado, “Estava-se a tornar demasiado para mim e desculpa por te ter feito isso”
“Gostei imenso de ti…”, suspirou a loura, “Posso ser parecida com ela mas não sou ela e não acho justo que não me tivesses dado uma oportunidade apenas por isso, quem sabe eu podia ter-te feito bem”
Ao ouvir estas palavras Daniela ficou a matutar no assunto, mas não conseguiu chegar a nenhuma conclusão, por um lado Susana podia até ter razão, mas por outro a rapariga não tinha a certeza se aquilo era exactamente o que queria. Apesar de só conhecer a outra há apenas dois dias, sentia-se no seu melhor cada vez que estava na presença dela. E mesmo em relação às parecenças com Andreia, era caso para se perguntar como é que duas pessoas tão iguais podiam ser tão diferentes.
A rapariga foi bruscamente trazida de volta à Terra pela visão da loura a despir a roupa. “O que estás a fazer?”, perguntou.
“A água deve estar óptima”, respondeu Susana, enquanto puxava o top por cima da cabeça e tirava as calças. Começou a correr para a beira-mar mas virou-se para trás, “Tu não vens?”
“’Tá bem…”, disse a morena reticente, se a outra não tinha problemas em exibir-se em apenas roupa interior branca, então a rapariga também não teria. Tirou a camisola e as calças lentamente, tentando fazer com que o rubor da sua face dispersasse, provavelmente sem grande sucesso porque ainda sentia a cara a ferver. Timidamente caminhou para junto da loura tendo só o seu conjunto azul-marinho a impedir que estivesse como veio ao mundo. Susana limitou-se a colocar-lhe um braço em volta dos ombros de Daniela e a sussurrar-lhe ao ouvido, “Que amor”.
As ondas ligeiras manifestavam-se molhando o areal, juntas, as raparigas dirigiram-se para o mar. Quando a água tocou nos pés de Daniela, esta gemeu um pouco devido às diferenças de temperatura. Susana sorriu-lhe e beijou-lhe a testa, o que fez com que a temperatura aumentasse para cerca de quarenta graus para a morena. Colocou o braço em volta da cintura da loura e encostou a cabeça ao pescoço. De repente, sem qualquer tipo de aviso prévio, Daniela empurra Susana para o mar, fazendo com que esta engolisse água devido ao susto que apanhou.
A rapariga riu-se ao ver a expressão de espanto na cara da outra, dizendo-lhe apenas “Que amor!” e obtendo um “Vais apanhar!”, de resposta. A morena mergulhou para junto da outra antes que esta tivesse tempo de lhe atirar com água, ainda assim a loura agarrou-lhe nos ombros e puxou-a para dentro de água, o que fez com que esta também engolisse água. “Parva”, disse-lhe Daniela, enquanto tossia.
Entretanto Susana já tinha começado a dirigir-se para o areal, alcançando-o antes que a rapariga tivesse tempo de chegar até ela. Saíram ambas da água e, como vingança por aquilo de há pouco, a loura atirou a morena para a areia, fazendo “croquete”. Claro que Daniela não podia deixar de retaliar, por isso agarrou o braço da outra, que caiu imediatamente em cima de si. Rebolaram ambas na areia até que, sendo Susana maior, conseguiu ficar por cima da rapariga, prendendo-lhe os braços por cima da cabeça.
“E agora?”, picou ela, vendo a morena a tentar soltar-se mas sem sucesso.
“E agora?”, repetiu Daniela, “Agora isto”
Juntando o gesto à palavra, aproximou a cara da de Susana e beijou-a. Foi apenas um beijo suave, quase como se lhe apenas estivesse a segurar nos lábios. Não tardou muito para que a loura correspondesse, intensificando-o. Estiveram assim uns momentos até que se separaram, ficando só com as testas encostadas.
“Por favor desta vez não fujas de mim”, pediu a outra, num tom suplicante.
“Não te preocupes, não fujo”, assegurou-lhe a morena, “Prometo”
A loura sorriu e voltou a beijá-la, a rapariga não podia negar que se sentia bastante bem com a outra, excluindo os flashbacks ocasionais que surgiam na sua mente. Simplesmente tinha uma descontracção e boa-disposição contagiantes. Assim permaneceram durante um bocado até que ambas tiveram de voltar aos deveres do dia-a-dia, Daniela tinha horas para estar em casa e Susana tinha a playlist para preparar para essa noite.
Despediram-se com um abraço, foi terno e sem constrangimentos, depois cada uma seguiu o seu caminho, tendo a outra no pensamento.

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