O final do Verão era, na opinião
de muitos, uma das épocas do ano mais melancólicas. Embora o clima ameno que se
fazia sentir convidasse a um passeio ao ar livre, a perspectiva de deixar a
rotina estival para retornar às obrigações, fossem elas escola ou trabalho,
conferiam àquela altura, um sabor agridoce. Não era, de forma alguma, motivo
para deixar de se aproveitar os últimos dias de férias. Assim, por baixo da
sombra das árvores, onde o chilrear dos pássaros e o pisar das ervas eram a
única banda sonora, duas pessoas faziam exactamente isso, sem uma preocupação
naquele momento.
“Afonso, despacha-te!”, gritou a
irmã, a uma distância considerável à sua frente, incapaz de esperar muito tempo
por ele. Entre ambos havia a diferença de cinco anos, ele com dezassete e ela
com doze, embora não pudessem ser mais próximos do que eram. Exasperada, disse,
“Não acredito que ainda aí vais”
Rindo perante a impaciência da
irmã, Afonso puxou a trela do seu cão de idade considerável, impedindo-o de parar
para cheirar tudo o que tivesse aspecto suspeito. Mais por respeito para com o
seu companheiro de longa data do que por transbordar paciência, não apressou o
passo, consciente de que Mocas, o rottweiller, já não tinha a energia de outros
tempos. Acarinhando a cabeça possante do animal, que abanou a cauda,
satisfeito, gritou, “Já vou, Sara!”
Ao alcançar a irmã, que
entretanto se sentara numa árvore tombada, numa clareira, resolveu soltar
Mocas, para que este andasse à sua vontade, com a devida supervisão. Enchia-os
a ambos de pena ver o tão adorado animal de estimação perder a vivacidade que
antes lhe era tão característica. Conversando sobre uma qualquer trivialidade,
algo que faziam sempre, afinal mais do que irmãos eram amigos, sendo, Afonso,
extremamente protector em relação a Sara e vice-versa, distraíram-se. Assim que
se lembraram do cão, já ele se aventurava, mais à frente, num trilho longo contornado
por árvores, até onde a viste alcançava. Correndo atrás dele, durante o que
pareceu uma eternidade, foram dar a um centro de hipismo.
No recinto, estava uma pessoa,
uma rapariga, concretamente, de idade próxima da de Afonso. Ele, deitando a mão
à coleira de Mocas antes que este tivesse oportunidade de saltar para dentro da
pista, respirou de alívio, pelo menos livrara-se de complicações. Levantando a
cabeça, encarou a rapariga e, quando o fez, paralisou. Alta, morena, de cabelo
comprido apanhado num rabo-de-cavalo e bronzeada. No entanto, o que mais se destacava
eram os olhos, num tom invulgar, âmbar. Resumindo, linda para a maioria,
perfeita, na opinião de Afonso.
O que mais o surpreendeu foi a
sensação de que ela lhe era familiar, sobretudo o olhar, parecia que já a vira
algures, restava era saber quando e onde. Tão perdido estava que só voltou a
acordar quando sentiu a irmã puxar-lhe o braço. Fora do seu torpor, constatou,
com grande pena, que a rapariga já voltara as costas e se afastava.
Desapontado, ficou a vê-la desaparecer, até que ele próprio se resolveu a ir
embora.
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À entrada de casa, soltaram
Mocas, que se deitou no alpendre e não deu mais sinal de si, tão esgotado que
nem tentou entrar e ainda bem, uma vez que Daniela não tolerava pêlos à deriva
que não estivessem no jardim. Sara dirigiu-se à sala, para perguntar pelo
jantar, não fosse o ruído do seu estômago ser ouvido no Bangladesh, seguida por
Afonso, que mal se pronunciara desde que se fora embora do centro hípico. No
sofá, Susana, adormecida, tinha deitado a cabeça no colo de Daniela, que lhe
afagava os cabelos. Ao ver os filhos, a morena levou um dedo aos lábios,
pedindo-lhes que não fizessem barulho. Abanando a loura ao de leve,
murmurou-lhe, “Anda, vamos jantar”
Podiam não ser a mais
convencional das famílias, mas Afonso não a quereria de outra forma. A primeira
e última pessoa a gozar acabara no hospital, ainda que ajudasse muito ele ser
filho de quem era e praticar rugby de alta competição. Não que isso o tivesse
livrado de levar com o cinto de cabedal de Daniela, que discordou com o seu
método de actuação. De qualquer forma, ao comparar a sua família com a de
Ruben, o seu melhor amigo, que era constantemente chutado entre um pai
alcoólico e uma mãe demasiado distante, não podia deixar de sentir que tivera
sorte. A sua opinião apenas foi reforçada quando Susana levantou a cabeça do
colo de Daniela, despenteada e com um ar ensonado, e esta a abraçou.
Mecanicamente, sem pensar no que
fazia, Afonso ajudou a pôr a mesa, nunca deixando de puxar pela memória, em
busca de algo que lhe dissesse quem era a rapariga que vira ainda há umas
horas. Sem chegar a nenhuma conclusão, picou as batatas com o garfo,
desinteressadamente. Susana, por sua vez, não deixou de reparar na indisposição
do filho, “O jantar não está bom?”
Olhando, ora para a expressão
preocupada da mãe, ora para o prato cheio à sua frente, o rapaz decidiu-se a
fazer um esforço por comer, respondendo com a boca cheia, “Está óptimo”
Susana preparou-se para insistir
e tê-lo-ia feito, caso a morena não lhe tivesse beliscado a perna por baixo da
mesa. Na sua opinião, se ele quisesse falar, iria fazê-lo e, conhecendo-o, não
valia de nada aborrecê-lo com perguntas. Foi assim que Afonso acabou o jantar e
saiu da mesa, apesar da expressão indiferente de Daniela, da preocupação da
loura e da admiração da irmã.
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Mais tarde, após ter ponderado as
suas opções, decidiu-se por falar com Susana, uma vez que Ruben não iria
compreender, Sara estava a dormir e Daniela, apesar de ser a pessoa a quem
recorria sempre que precisava de um conselho, temas como raparigas e afins
passavam-lhe ao lado. Encontrando a loura na varanda a fumar um cigarro,
perguntou, timidamente, “Hm mãe? Posso contar-te uma coisa?”
“Claro que podes”, anuiu Susana, apontando
para a cadeira junto da sua, cadeira essa que o filho quase deitou abaixo, com
os seus modos desajeitados e pouco graciosos, “Onde é que eu já vi esse
jeitinho…”
“Opa…”, lamentou-se o rapaz, que
admitia ser tão distraído como Daniela, embora a diferença entre um e outro
fosse a pequena estatura dela, em comparação com a sua.
.
“Diz lá o que é que ias dizer”,
encorajou a loura, antes que Afonso tropeçasse e caísse da janela, de cabeça
nas pedras da calçada, “Deve ser importante para mal teres tocado na comida”
“Quando fui mais a Sara passear o
Mocas, fomos dar a um centro de hipismo que havia lá para aqueles lados”,
começou ele, olhando para todo o lado menos directamente para a mãe, hábito que
a irritava muito, afinal estava farta de lhe falar na importância do contacto
visual, “Estava lá uma rapariga e, bem, era linda de morrer, nem tens noção”
O entusiasmo do rapaz era algo
que sempre a comovia e ver os olhos azuis dele a brilharem, enterneceu-a. Bem
sabia que Afonso não era bem sucedido com as meninas, apesar de ela, na sua
muito pouco objectiva perspectiva de mãe, ser da opinião que ele fora muito
abençoado no campo da genética. Mesmo assim, os modos tímidos e inseguros,
sempre demasiado prestável, tanto que estava certa de que já muita gente se
teria aproveitado dele, eram, a seu ver, repelente de raparigas. Acenando em
sinal de que o estava a ouvir, encorajou-o a continuar.
“Não parece nada de especial dito
assim mas ela era mesmo linda”, continuou ele, a quem o próprio discurso
parecia ridículo, “Fiquei com a impressão de que já a tinha visto antes mas não
faço ideia de quem seja”
Susana teve que morder a língua
para não vocalizar a sua exasperação perante a inércia do filho, o que é que
custava abordar uma rapariga? Se ele conseguisse ser menos como uma bolacha de
água e sal qualquer menina ficaria lisonjeadíssima por um rapaz em forma e bem-parecido
como ele mostrar interesse. Reconfortando-o, disse, “De certeza que é aqui da
zona e a vais voltar a ver, não te preocupes”
“Espero que sim, achei-lhe
piada”, admitiu Afonso, escondendo um rubor que lhe teimou em aparecer nas
bochechas.
“Claro que sim e para a próxima
não quero desculpas”, disse a loura, afagando os caracóis escuros do filho,
coisa que o acalmava, tal como a ela, desde que era bebé.
Bem-disposto, o rapaz prometeu a
si mesmo que iria passar a andar mais atento e, mal a oportunidade surgisse,
tentaria abordar a tal rapariga.
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