terça-feira, 11 de setembro de 2012

Capítulo 1


Susana, assim que tomou conhecimento do regresso de Guida e Marta a terras luso, propôs-se a organizar um jantar para que pudessem pôr a conversa em dia. E de facto havia muito para falar, não tivessem passado doze anos desde que as amigas haviam ido para os Estados Unidos. Tanto quanto sabia, se a melhor amiga já era abastada antes de ter expandido o negócio da família, mais ficara ainda. Marta conseguira fazer uma carreira respeitável no futebol, não fosse a modalidade ser mais popular no sector feminino na América do que em Portugal. Enquanto preparava a comida, com a ajuda de Afonso, que se interessava por cozinha e não perdia uma oportunidade para aprender, ia-o pondo a par do que devia esperar.

“Então têm uma filha pouco mais nova que eu e um filho da idade da Sara?”, perguntou ele, mais para ter a certeza que não lhe escapava nada. Não se lembrava muito claramente da tal rapariga com quem, segundo lhe contaram, costumava brincar.

“Até admira não te recordares, eras todo apanhadinho por ela”, gracejou a loura, enquanto fritava as omeletas, tentando não deixar queimar nenhuma, uma vez que sabia bem demais o quão esquisita Guida era com a comida, ou não fossem as cenas que ela fazia nos restaurantes quando a comida não estava no ponto, “Uma vez fomos ao jardim zoológico e tu assustaste-te com uma cobra mas não querias dar parte fraca ao pé dela, portanto contiveste a choradeira”

Embaraçado, Afonso resmungou e foi ter com Daniela e Sara, que estavam na sala a pôr a mesa. Sentando-se no sofá, ouviu uma parte da conversa, “O rapaz, Tomás, salvo erro, nasceu pouco antes de irem para os Estados Unidos e é só uns meses mais novo que tu e, segundo a Marta me disse, é um rapaz especial, o que quer que isso signifique”

O diálogo foi interrompido pelo som da campainha. Pedindo ao filho que acabasse de pôr a mesa, a morena correu a abrir a porta. Só tivera tempo de a puxar um pouco, quando Guida, sem fazer cerimónia, a abriu, quase lhe dando com ela, caso não Daniela tivesse saltado para trás a tempo. Dando um soco no braço da morena, na brincadeira, embora com mais força do que esta gostaria, Guida, cumprimentou, “Boa noite para ti também! Continuas a mesma pussyzinha”

“Eu ia falar-te mas tu adiantaste-te, boa noite”, replicou Daniela, erguendo uma sobrancelha. Olhando para Guida com olhos de ver, apercebera-se bem de que nem mesmo ela era imune aos efeitos da idade, embora não tivesse engordado nem nada do género, a muito custo, provavelmente. Se bem a conhecia, naquele momento estava a ressacar de um bom prato gorduroso.

Recebendo outro soco no braço, para que um não ficasse com inveja do outro, a morena voltou-se para Marta, “Au!”

“Prazer em ver-te, também”, gozou Marta, enquanto Daniela esfregava o braço. A sorte grande saíra a alguém quando fora para os EUA e esse alguém era Marta. Sempre gostara de futebol e tivera jeito para a modalidade, apenas não tivesse tido a oportunidade no país. Depois de uns bons anos a jogar, achara por bem reformar-se enquanto estava a fazer boa figura, uma vez que ninguém gosta que recordem a sua fase decadente. Sempre disposta a picar, Marta perguntou, “Agora usas óculos, é?”

“Passo o dia em frente ao computador e de nariz enfiado em livros”, justificou-se Daniela, “É só para ler e não quero arriscar a usar lentes, que horror”

Pondo os óculos no cimo da cabeça a segurar o cabelo, virou as costas a Marta, numa indignação fingida. Atrás delas estava uma rapariga e um rapaz, cada um mais sério que o outro. Tratando-se de Guida e Marta não era com grande surpresa que a morena constatou que eram ambos muito bem-parecidos. Em bom rigor já se perguntara se os seus seriam as coisinhas perfeitas que ela via ou era só por serem bons miúdos e os seus filhos. Voltando para a sala, chamou Afonso e Sara para que fossem falar aos convidados.

Afonso, seguindo atrás da irmã, dirigiu-se para a porta sem grande entusiasmo. Sendo tímido como era, não gostava de sair da sua zona de conforto para conhecer pessoas novas, mas ainda tinha que ser bem-educado. Cumprimentou tanto Guida como Marta com tanta simpatia quanto conseguiu, apesar de ambas a intimidarem um pouco, de tal forma que mal as encarou, preferindo olhar para trás delas. Em bom momento o fez, pois uma figura, que antes estava encostada à parede, avançou para si, para lhe falar. E foi então que Afonso sentiu tirarem-lhe o chão debaixo dos pés. Era a rapariga do outro dia.

À medida que esta caminhava para si, o rapaz observou-lhe a silhueta elegante, acentuada pela roupa justa ao corpo, passando pela cintura pequena, pelo peito avantajado, até se deter na cara. Olhando-a nos olhos, viu que não havia margem para dúvidas, era definitivamente a que vira no outro dia. Então já se conheceram havia muito tempo, o que explicava a sensação de dejá vu. Quando deu por si, ela dizia-lhe, com um ar pouco impressionado, “Sou a Leonor, muito prazer”

“Olá L-Leonor…sou o A-Afonso…”, gaguejou ele, aborrecido consigo próprio por estar a mostrar uma faceta muito pouco favorecedora aos olhos dela. Tentando disfarçar, procurou, a todo o custo, visto que as borboletas que sentia no estômago lhe dificultavam a tarefa, puxar conversa, “Já nos conhecíamos, não te lembras?”

“Sinceramente não”, respondeu Leonor, sem esboçar o mais pequeno sorriso.

“Outro dia vi-te quando estavas a montar a cavalo”, insistiu Afonso, cuja confiança passara de nula para atingir valores negativos, depois de ver as suas tentativas de estabelecer um diálogo caírem por terra. Ela também não estava a facilitar, embora ele já estivesse a maldizer o momento em que acalentara esperanças de que ela fosse, pelo menos, amistosa, quanto mais que morresse de amores por ele à primeira vista.

“Não reparei, desculpa”, disse ela, dirigindo-lhe um olhar gélido que imediatamente o calou e tornou o seu sorriso, numa expressão de cachorrinho abandonado que quase a comoveu. Palavra-chave: quase.

Quanto a Sara, não sabia se havia de fugir, se esconder-se a um canto e esperar pelo melhor. Ao olhar para o rapaz altíssimo para a idade, não exactamente em tão boa forma como a irmã, já com vestígios de que não tardaria muito até que tivesse barba, não conseguia evitar sentir-se intimidada. Porém, a intimidação deu lugar a medo quando ele, após a perfurar com um olhar de morte, sorriu o sorriso mais sinistro que podia imaginar. E pensar que aqueles olhos verdes eram lindos à primeira vista…

Tomás abandonara o sorriso maquiavélico ao ouvir a conversa de Afonso. Esperou que a irmã virasse costas para, num tom desdenhoso, dizer ao rapaz, com um sotaque um pouco carregado, “E está-se a ver que tu querias era que ela te montasse a ti”

Afonso foi de tal forma apanhado de surpresa pela audácia do miúdo que nem se conseguiu pronunciar. Não deixava de ser verdade, contudo. Sara, nesse momento, entendeu o que Marta quis dizer quando a ouvira murmurar a Tomás, “Por favor não nos envergonhes muito”. Fosse outra pessoa qualquer, já lhe teria dado um pontapé nas zonas baixas por se meter com o irmão, mas Tomás fazia-a estremecer da cabeça aos pés. Procurando escapar, dirigiu-se para a sala, onde estavam as convidadas, arrepiada por o ver a ir atrás de si.
Felizmente que Susana resolvera, nesse momento, chamá-la para a mesa. Pondo-lhe o braço em torno dos ombros, puxou-a para si e perguntou, “Estás-te a dar bem com o Tomás?”

“Prefiro não me dar sequer, ele é, muito provavelmente, a pessoa mais arrepiante que já conheci”, respondeu ela, com os olhos escuros a saltar, ora para a loura, ora para Tomás, que estava, naquele momento, a ser repreendido a um canto por Guida.

“Aqui estamos de olho nele, não te preocupes”, sossegou-a Susana, achando melhor não lhe falar da ocasião em que, segundo Guida, ele mordera uns convidados. Ou aquela em que quase incendiara a casa.
Já Guida, agarrando a orelha do filho e torcendo-a o suficiente para que este percebesse o aviso, dizia-lhe, ao ouvido, “Ai de ti que faças alguma, agora vais-te portar como deve ser”

O certo foi que Tomás, depois de muito massajar a orelha, pareceu assentar, tanto que, se nunca descurar o sorriso duvidoso, puxou a cadeira para que Sara se sentasse. Esta, pedindo a todos os santos que ele não fosse retirar a cadeira quando ela ia para se sentar, ou algo bem pior, aceitou. Qual não foi o seu espanto quando ele, com a mais extrema delicadeza, a colocou diante da mesa, “Ora faça favor, menina”

Marta, que se mantivera calada e optara por deixar Guida colocar rédeas na situação, disse para Daniela, “Não perguntes que eu também não sei o que é que correu mal com ele, a irmã só nos dá alegrias”

Uma vez na mesa, Sara serviu-se apenas com a quantidade que não pareceria mal, tendo em conta o quanto gostava de comer, e serviu, também, Tomás, que agradeceu, simpático. Revirando os olhos, Sara pensou para si que ele devia ter medo de Guida. Por sua vez, Afonso, serviu Leonor, sendo o mais cavalheiro que conseguiu, embora não conseguisse mais do que um sorriso forçado por parte da rapariga. Sentado ao lado dela, não resistiu a observá-la pelo canto do olho durante todo o jantar. Era tão fria que o magoava, embora, ou ele muito se enganava, houvesse momentos em que quase podia jurar que a máscara lhe caía e ele podia ver alguns vestígios de doçura. Foi isso que lhe manteve a esperança e o fez prometer a si mesmo que não desistia até que ela lhe mostrasse essa faceta.

No fim do jantar, chegou a vez da sobremesa, o que para Afonso era tortura. Ao ver Susana colocar-lhe um bolo de chocolate à frente começou a salivar, até que a loura, com uma expressão de pena, lhe disse, “Desculpa, este tem açúcar”

Ao ver que o irmão não podia comer, Sara recusou uma fatia também. Não fazia mal, durante a noite assaltaria o frigorífico. Perante a solidariedade da irmã, Afonso afagou-lhe o cabelo, em tom de brincadeira, uma vez que era coisa que ela não gostava. Se Sara se abstivera de se encher de açúcares para não fazer o irmão sentir-se mal, Tomás certificou-se que comia uma fatia capaz de alimentar o país inteiro, sorrindo de modo cruel a Afonso. Leonor, a quem o gesto não escapou, cravou as unhas no braço do irmão, pedindo-lhe que não fizesse isso. Afonso sorriu para si ao ver que afinal ela tinha alguma compaixão.

Enquanto os convidados ficaram à mesa a conversar, o rapaz pediu licença e saiu da mesa. Uma vez em privacidade, picou o dedo para medir os níveis de açúcar. Ao ver que estavam um pouco altos, resmungou, levantando a camisola para injectar insulina. Assim que acabou, olhou para cima, a tempo de ver Leonor com um ar completamente enojado, virar as costas e sair dali. Triste, não conseguiu, mais uma vez, dizer o que quer que fosse. Daniela, que teve o desprazer de testemunhar o sucedido, disse à rapariga, com uma expressão que tendia algures entre o séria e a desaprovação, “Ele é diabético”

“Desculpe…não fazia ideia”, disse ela, visivelmente abalada, ao voltar a olhar para o rapaz, que arrumava as agulhas, abatido. E ela que só quisera ir à casa-de-banho…

“Não o queria mesmo ver triste”, disse Daniela, com um suspiro, “Se lhe pudesses dar uma palavrinha ele sentir-se-ia melhor, não é por mim, é por ele”

Ponderando o que a morena lhe dissera, Leonor decidira-se. Ao encontrar Afonso na varanda da sala, cabisbaixo, um pouco isolado de tudo e todos, aproximou-se dele. Não contando com ninguém, muito menos com ela, o rapaz assustou-se, mais ainda quando viu quem era. Olhando para todo o lado menos para ela, não encontrava mesmo maneira de escapar, até que ela o sossegou, dizendo, “Queria pedir-te desculpa por causa de aquilo de há pouco”

“É a reacção normal, ninguém gosta de ver alguém espetar agulhas”, replicou o rapaz, encolhendo os ombros. Não se dignava a ser minimamente simpática e ainda por cima parecia repugnada por ele? Não podia sentir-se mais desapontado.

“É que tenho um bocadinho fobia a agulhas e não estava à espera de ver aquilo”, desculpou-se Leonor, mordendo o lábio inferior, “Não foi mesmo por tua causa, nem nada que se pareça”

Sentindo que lhe tiravam o peso do mundo de cima dos ombros, Afonso sorriu, “Se te consola, a minha mãe, a Daniela, quando me diagnosticaram a diabetes, ia para me dar a injecção e desmaiou, teve que ser a Susana”

Num momento de espontaneidade, Leonor não conseguiu contar o riso, deixando esbater a sua expressão permanentemente fria. Porém, foi sol de pouca dura. Sentindo a situação a descarrilar para solo em que não se sentia confortável, a rapariga desviou a conversa, “Então…aquelas medalhas que estavam ali são tuas?”

“Todas”, disse o rapaz, com os olhos a brilhar, vendo a sua oportunidade de impressionar Leonor, “Jogo rugby e tenho sido bem-sucedido, mesmo sendo diabético, até sou o capitão da equipa”

“Pois, eu compreendo”, respondeu a rapariga, satisfeita por a conversa ter voltado para tópicos inofensivos, mesmo que não desejasse propriamente mantê-la, fazendo-o somente porque não a podia evitar sem que não parecesse falta de educação,”Parabéns”

“Obrigado”, disse Afonso, embora tivesse uma pergunta a incomodá-lo havia algum tempo e o que mais desejava era ver a sua dúvida saciada, à falta de ocasião mais oportuna. Num momento de coragem, coragem essa que não fazia a menor ideia onde a tinha ido buscar, perguntou, “Porque é que pareces tão triste? Deixaste algum namorado nos Estados Unidos?”

Estava a correr tão bem e ele tinha que estragar tudo. Leonor, com uma expressão glaciar, respondeu, “Não e prefiro que não toques nesse assunto”

“Pronto, desculpa”, apressou-se o rapaz a pedir. Pelo menos a rapariga estava solteira, nem tudo estava perdido, certo? Ao ver Leonor voltar para dentro, Afonso decidiu que seria melhor sonhar mais baixo, uma vez que, naquela ocasião, pelo menos, mal conseguira estabelecer um diálogo com ela e a sua confiança estava mais em baixo do que nunca. Numa última tentativa, seguiu-a até à sala e perguntou, temendo a pior resposta, “Olha, vai haver agora umas festas populares e acaba por ser sempre engraçado, gostavas de vir comigo?”

Não era o melhor programa mas sempre tinha um pretexto para a convidar. Guida, ao ouvir aquilo, antes que a filha tivesse tempo de responder, disse, “Boa ideia, porque é que não vais?”

“Hm…pois”, murmurou Leonor, hesitante. Não gostava do programa nem tinha a mínima vontade de ir com algum que mal conhecia onde quer que fosse, sobretudo quando esse alguém, na sua opinião, era excessivamente persistente. Vendo a expressão esperançosa do rapaz, teve vontade de revirar os olhos. Não vendo como escapar, implorou mentalmente à mãe que a poupasse a isso.

“Vais ver que é interessante”, insistiu Guida, cimentando bem que não a ajudaria a filha a escapar a umas horas na companhia de Afonso, “Como não conheces ninguém é um bom ponto de partida”

“Ok”, respondeu Leonor, exasperada, mesmo que não o mostrasse. Afirmar que o sorriso do rapaz era rasgado seria o mesmo que afirmar que um Ferrari até andava razoavelmente depressa. Enojada, revirou os olhos ao ver o quão óbvio ele era. Reflectindo, chegou à conclusão que não podia correr muito mal, estava consciente das intenções dele e, mais ainda, do facto de ele não ter coragem para tentar algo.

“LARGA A FACA!”, gritou Sara, do canto da sala. À sua frente, Tomás empunhava a faca que usaram para cortar a carne. Correndo até ao irmão, Leonor conseguiu tirar-lhe a faca e agarrá-lo. Era o seu irmão, apesar da sua personalidade pouco vulgar. Não era que tivesse algum problema, era apenas a sua maneira de brincar e costumava assustar os demais.

“Às vezes faz isto, pensa que tem piada, não sei”, desabafou Marta a Daniela, que assistira a tudo pálida e horrorizada, “Mas não tem nenhum distúrbio, é só parvo”

Pedindo desculpa a todos pelo que aconteceu, Guida, Marta e Leonor, esta última ainda agarrada ao irmão, que ria a bandeiras despregadas, não viram outra alternativa que não dar a noite por terminada e ir para casa, onde Tomás não pudesse fazer estragos. Apesar da reviravolta que o serão levara, Afonso sentira que acabara de ganhar a lotaria, de tão feliz que se sentia. Se por baixo daquela aura de gelo estava alguém muito diferente, ele faria tudo o que estivesse ao seu alcance para o descobrir.

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