Susana, assim que tomou
conhecimento do regresso de Guida e Marta a terras luso, propôs-se a organizar
um jantar para que pudessem pôr a conversa em dia. E de facto havia muito para
falar, não tivessem passado doze anos desde que as amigas haviam ido para os
Estados Unidos. Tanto quanto sabia, se a melhor amiga já era abastada antes de
ter expandido o negócio da família, mais ficara ainda. Marta conseguira fazer
uma carreira respeitável no futebol, não fosse a modalidade ser mais popular no
sector feminino na América do que em Portugal. Enquanto preparava a comida, com
a ajuda de Afonso, que se interessava por cozinha e não perdia uma oportunidade
para aprender, ia-o pondo a par do que devia esperar.
“Então têm uma filha pouco mais
nova que eu e um filho da idade da Sara?”, perguntou ele, mais para ter a
certeza que não lhe escapava nada. Não se lembrava muito claramente da tal
rapariga com quem, segundo lhe contaram, costumava brincar.
“Até admira não te recordares,
eras todo apanhadinho por ela”, gracejou a loura, enquanto fritava as omeletas,
tentando não deixar queimar nenhuma, uma vez que sabia bem demais o quão
esquisita Guida era com a comida, ou não fossem as cenas que ela fazia nos
restaurantes quando a comida não estava no ponto, “Uma vez fomos ao jardim
zoológico e tu assustaste-te com uma cobra mas não querias dar parte fraca ao
pé dela, portanto contiveste a choradeira”
Embaraçado, Afonso resmungou e
foi ter com Daniela e Sara, que estavam na sala a pôr a mesa. Sentando-se no
sofá, ouviu uma parte da conversa, “O rapaz, Tomás, salvo erro, nasceu pouco
antes de irem para os Estados Unidos e é só uns meses mais novo que tu e, segundo
a Marta me disse, é um rapaz especial, o que quer que isso signifique”
O diálogo foi interrompido pelo
som da campainha. Pedindo ao filho que acabasse de pôr a mesa, a morena correu
a abrir a porta. Só tivera tempo de a puxar um pouco, quando Guida, sem fazer
cerimónia, a abriu, quase lhe dando com ela, caso não Daniela tivesse saltado
para trás a tempo. Dando um soco no braço da morena, na brincadeira, embora com
mais força do que esta gostaria, Guida, cumprimentou, “Boa noite para ti
também! Continuas a mesma pussyzinha”
“Eu ia falar-te mas tu
adiantaste-te, boa noite”, replicou Daniela, erguendo uma sobrancelha. Olhando
para Guida com olhos de ver, apercebera-se bem de que nem mesmo ela era imune
aos efeitos da idade, embora não tivesse engordado nem nada do género, a muito
custo, provavelmente. Se bem a conhecia, naquele momento estava a ressacar de
um bom prato gorduroso.
Recebendo outro soco no braço,
para que um não ficasse com inveja do outro, a morena voltou-se para Marta,
“Au!”
“Prazer em ver-te, também”, gozou
Marta, enquanto Daniela esfregava o braço. A sorte grande saíra a alguém quando
fora para os EUA e esse alguém era Marta. Sempre gostara de futebol e tivera
jeito para a modalidade, apenas não tivesse tido a oportunidade no país. Depois
de uns bons anos a jogar, achara por bem reformar-se enquanto estava a fazer
boa figura, uma vez que ninguém gosta que recordem a sua fase decadente. Sempre
disposta a picar, Marta perguntou, “Agora usas óculos, é?”
“Passo o dia em frente ao
computador e de nariz enfiado em livros”, justificou-se Daniela, “É só para ler
e não quero arriscar a usar lentes, que horror”
Pondo os óculos no cimo da cabeça
a segurar o cabelo, virou as costas a Marta, numa indignação fingida. Atrás
delas estava uma rapariga e um rapaz, cada um mais sério que o outro.
Tratando-se de Guida e Marta não era com grande surpresa que a morena constatou
que eram ambos muito bem-parecidos. Em bom rigor já se perguntara se os seus
seriam as coisinhas perfeitas que ela via ou era só por serem bons miúdos e os
seus filhos. Voltando para a sala, chamou Afonso e Sara para que fossem falar
aos convidados.
Afonso, seguindo atrás da irmã,
dirigiu-se para a porta sem grande entusiasmo. Sendo tímido como era, não gostava
de sair da sua zona de conforto para conhecer pessoas novas, mas ainda tinha
que ser bem-educado. Cumprimentou tanto Guida como Marta com tanta simpatia
quanto conseguiu, apesar de ambas a intimidarem um pouco, de tal forma que mal
as encarou, preferindo olhar para trás delas. Em bom momento o fez, pois uma
figura, que antes estava encostada à parede, avançou para si, para lhe falar. E
foi então que Afonso sentiu tirarem-lhe o chão debaixo dos pés. Era a rapariga
do outro dia.
À medida que esta caminhava para
si, o rapaz observou-lhe a silhueta elegante, acentuada pela roupa justa ao
corpo, passando pela cintura pequena, pelo peito avantajado, até se deter na
cara. Olhando-a nos olhos, viu que não havia margem para dúvidas, era
definitivamente a que vira no outro dia. Então já se conheceram havia muito
tempo, o que explicava a sensação de dejá vu. Quando deu por si, ela dizia-lhe,
com um ar pouco impressionado, “Sou a Leonor, muito prazer”
“Olá L-Leonor…sou o A-Afonso…”,
gaguejou ele, aborrecido consigo próprio por estar a mostrar uma faceta muito
pouco favorecedora aos olhos dela. Tentando disfarçar, procurou, a todo o
custo, visto que as borboletas que sentia no estômago lhe dificultavam a
tarefa, puxar conversa, “Já nos conhecíamos, não te lembras?”
“Sinceramente não”, respondeu
Leonor, sem esboçar o mais pequeno sorriso.
“Outro dia vi-te quando estavas a
montar a cavalo”, insistiu Afonso, cuja confiança passara de nula para atingir
valores negativos, depois de ver as suas tentativas de estabelecer um diálogo
caírem por terra. Ela também não estava a facilitar, embora ele já estivesse a
maldizer o momento em que acalentara esperanças de que ela fosse, pelo menos,
amistosa, quanto mais que morresse de amores por ele à primeira vista.
“Não reparei, desculpa”, disse
ela, dirigindo-lhe um olhar gélido que imediatamente o calou e tornou o seu
sorriso, numa expressão de cachorrinho abandonado que quase a comoveu.
Palavra-chave: quase.
Quanto a Sara, não sabia se havia
de fugir, se esconder-se a um canto e esperar pelo melhor. Ao olhar para o
rapaz altíssimo para a idade, não exactamente em tão boa forma como a irmã, já
com vestígios de que não tardaria muito até que tivesse barba, não conseguia
evitar sentir-se intimidada. Porém, a intimidação deu lugar a medo quando ele,
após a perfurar com um olhar de morte, sorriu o sorriso mais sinistro que podia
imaginar. E pensar que aqueles olhos verdes eram lindos à primeira vista…
Tomás abandonara o sorriso
maquiavélico ao ouvir a conversa de Afonso. Esperou que a irmã virasse costas
para, num tom desdenhoso, dizer ao rapaz, com um sotaque um pouco carregado, “E
está-se a ver que tu querias era que ela te montasse a ti”
Afonso foi de tal forma apanhado
de surpresa pela audácia do miúdo que nem se conseguiu pronunciar. Não deixava
de ser verdade, contudo. Sara, nesse momento, entendeu o que Marta quis dizer
quando a ouvira murmurar a Tomás, “Por favor não nos envergonhes muito”. Fosse
outra pessoa qualquer, já lhe teria dado um pontapé nas zonas baixas por se
meter com o irmão, mas Tomás fazia-a estremecer da cabeça aos pés. Procurando
escapar, dirigiu-se para a sala, onde estavam as convidadas, arrepiada por o
ver a ir atrás de si.
Felizmente que Susana resolvera,
nesse momento, chamá-la para a mesa. Pondo-lhe o braço em torno dos ombros,
puxou-a para si e perguntou, “Estás-te a dar bem com o Tomás?”
“Prefiro não me dar sequer, ele
é, muito provavelmente, a pessoa mais arrepiante que já conheci”, respondeu
ela, com os olhos escuros a saltar, ora para a loura, ora para Tomás, que
estava, naquele momento, a ser repreendido a um canto por Guida.
“Aqui estamos de olho nele, não
te preocupes”, sossegou-a Susana, achando melhor não lhe falar da ocasião em
que, segundo Guida, ele mordera uns convidados. Ou aquela em que quase
incendiara a casa.
Já Guida, agarrando a orelha do
filho e torcendo-a o suficiente para que este percebesse o aviso, dizia-lhe, ao
ouvido, “Ai de ti que faças alguma, agora vais-te portar como deve ser”
O certo foi que Tomás, depois de
muito massajar a orelha, pareceu assentar, tanto que, se nunca descurar o
sorriso duvidoso, puxou a cadeira para que Sara se sentasse. Esta, pedindo a
todos os santos que ele não fosse retirar a cadeira quando ela ia para se
sentar, ou algo bem pior, aceitou. Qual não foi o seu espanto quando ele, com a
mais extrema delicadeza, a colocou diante da mesa, “Ora faça favor, menina”
Marta, que se mantivera calada e
optara por deixar Guida colocar rédeas na situação, disse para Daniela, “Não
perguntes que eu também não sei o que é que correu mal com ele, a irmã só nos
dá alegrias”
Uma vez na mesa, Sara serviu-se
apenas com a quantidade que não pareceria mal, tendo em conta o quanto gostava
de comer, e serviu, também, Tomás, que agradeceu, simpático. Revirando os
olhos, Sara pensou para si que ele devia ter medo de Guida. Por sua vez,
Afonso, serviu Leonor, sendo o mais cavalheiro que conseguiu, embora não
conseguisse mais do que um sorriso forçado por parte da rapariga. Sentado ao
lado dela, não resistiu a observá-la pelo canto do olho durante todo o jantar.
Era tão fria que o magoava, embora, ou ele muito se enganava, houvesse momentos
em que quase podia jurar que a máscara lhe caía e ele podia ver alguns
vestígios de doçura. Foi isso que lhe manteve a esperança e o fez prometer a si
mesmo que não desistia até que ela lhe mostrasse essa faceta.
No fim do jantar, chegou a vez da
sobremesa, o que para Afonso era tortura. Ao ver Susana colocar-lhe um bolo de
chocolate à frente começou a salivar, até que a loura, com uma expressão de
pena, lhe disse, “Desculpa, este tem açúcar”
Ao ver que o irmão não podia
comer, Sara recusou uma fatia também. Não fazia mal, durante a noite assaltaria
o frigorífico. Perante a solidariedade da irmã, Afonso afagou-lhe o cabelo, em
tom de brincadeira, uma vez que era coisa que ela não gostava. Se Sara se
abstivera de se encher de açúcares para não fazer o irmão sentir-se mal, Tomás
certificou-se que comia uma fatia capaz de alimentar o país inteiro, sorrindo
de modo cruel a Afonso. Leonor, a quem o gesto não escapou, cravou as unhas no
braço do irmão, pedindo-lhe que não fizesse isso. Afonso sorriu para si ao ver
que afinal ela tinha alguma compaixão.
Enquanto os convidados ficaram à
mesa a conversar, o rapaz pediu licença e saiu da mesa. Uma vez em privacidade,
picou o dedo para medir os níveis de açúcar. Ao ver que estavam um pouco altos,
resmungou, levantando a camisola para injectar insulina. Assim que acabou,
olhou para cima, a tempo de ver Leonor com um ar completamente enojado, virar
as costas e sair dali. Triste, não conseguiu, mais uma vez, dizer o que quer
que fosse. Daniela, que teve o desprazer de testemunhar o sucedido, disse à
rapariga, com uma expressão que tendia algures entre o séria e a desaprovação,
“Ele é diabético”
“Desculpe…não fazia ideia”, disse
ela, visivelmente abalada, ao voltar a olhar para o rapaz, que arrumava as
agulhas, abatido. E ela que só quisera ir à casa-de-banho…
“Não o queria mesmo ver triste”,
disse Daniela, com um suspiro, “Se lhe pudesses dar uma palavrinha ele
sentir-se-ia melhor, não é por mim, é por ele”
Ponderando o que a morena lhe
dissera, Leonor decidira-se. Ao encontrar Afonso na varanda da sala, cabisbaixo,
um pouco isolado de tudo e todos, aproximou-se dele. Não contando com ninguém,
muito menos com ela, o rapaz assustou-se, mais ainda quando viu quem era.
Olhando para todo o lado menos para ela, não encontrava mesmo maneira de
escapar, até que ela o sossegou, dizendo, “Queria pedir-te desculpa por causa
de aquilo de há pouco”
“É a reacção normal, ninguém
gosta de ver alguém espetar agulhas”, replicou o rapaz, encolhendo os ombros.
Não se dignava a ser minimamente simpática e ainda por cima parecia repugnada
por ele? Não podia sentir-se mais desapontado.
“É que tenho um bocadinho fobia a
agulhas e não estava à espera de ver aquilo”, desculpou-se Leonor, mordendo o
lábio inferior, “Não foi mesmo por tua causa, nem nada que se pareça”
Sentindo que lhe tiravam o peso
do mundo de cima dos ombros, Afonso sorriu, “Se te consola, a minha mãe, a
Daniela, quando me diagnosticaram a diabetes, ia para me dar a injecção e
desmaiou, teve que ser a Susana”
Num momento de espontaneidade,
Leonor não conseguiu contar o riso, deixando esbater a sua expressão
permanentemente fria. Porém, foi sol de pouca dura. Sentindo a situação a
descarrilar para solo em que não se sentia confortável, a rapariga desviou a
conversa, “Então…aquelas medalhas que estavam ali são tuas?”
“Todas”, disse o rapaz, com os
olhos a brilhar, vendo a sua oportunidade de impressionar Leonor, “Jogo rugby e
tenho sido bem-sucedido, mesmo sendo diabético, até sou o capitão da equipa”
“Pois, eu compreendo”, respondeu
a rapariga, satisfeita por a conversa ter voltado para tópicos inofensivos,
mesmo que não desejasse propriamente mantê-la, fazendo-o somente porque não a
podia evitar sem que não parecesse falta de educação,”Parabéns”
“Obrigado”, disse Afonso, embora
tivesse uma pergunta a incomodá-lo havia algum tempo e o que mais desejava era
ver a sua dúvida saciada, à falta de ocasião mais oportuna. Num momento de coragem,
coragem essa que não fazia a menor ideia onde a tinha ido buscar, perguntou,
“Porque é que pareces tão triste? Deixaste algum namorado nos Estados Unidos?”
Estava a correr tão bem e ele
tinha que estragar tudo. Leonor, com uma expressão glaciar, respondeu, “Não e
prefiro que não toques nesse assunto”
“Pronto, desculpa”, apressou-se o
rapaz a pedir. Pelo menos a rapariga estava solteira, nem tudo estava perdido,
certo? Ao ver Leonor voltar para dentro, Afonso decidiu que seria melhor sonhar
mais baixo, uma vez que, naquela ocasião, pelo menos, mal conseguira
estabelecer um diálogo com ela e a sua confiança estava mais em baixo do que
nunca. Numa última tentativa, seguiu-a até à sala e perguntou, temendo a pior
resposta, “Olha, vai haver agora umas festas populares e acaba por ser sempre
engraçado, gostavas de vir comigo?”
Não era o melhor programa mas
sempre tinha um pretexto para a convidar. Guida, ao ouvir aquilo, antes que a
filha tivesse tempo de responder, disse, “Boa ideia, porque é que não vais?”
“Hm…pois”, murmurou Leonor,
hesitante. Não gostava do programa nem tinha a mínima vontade de ir com algum
que mal conhecia onde quer que fosse, sobretudo quando esse alguém, na sua
opinião, era excessivamente persistente. Vendo a expressão esperançosa do
rapaz, teve vontade de revirar os olhos. Não vendo como escapar, implorou
mentalmente à mãe que a poupasse a isso.
“Vais ver que é interessante”,
insistiu Guida, cimentando bem que não a ajudaria a filha a escapar a umas
horas na companhia de Afonso, “Como não conheces ninguém é um bom ponto de
partida”
“Ok”, respondeu Leonor,
exasperada, mesmo que não o mostrasse. Afirmar que o sorriso do rapaz era
rasgado seria o mesmo que afirmar que um Ferrari até andava razoavelmente
depressa. Enojada, revirou os olhos ao ver o quão óbvio ele era. Reflectindo,
chegou à conclusão que não podia correr muito mal, estava consciente das
intenções dele e, mais ainda, do facto de ele não ter coragem para tentar algo.
“LARGA A FACA!”, gritou Sara, do
canto da sala. À sua frente, Tomás empunhava a faca que usaram para cortar a
carne. Correndo até ao irmão, Leonor conseguiu tirar-lhe a faca e agarrá-lo.
Era o seu irmão, apesar da sua personalidade pouco vulgar. Não era que tivesse
algum problema, era apenas a sua maneira de brincar e costumava assustar os
demais.
“Às vezes faz isto, pensa que tem
piada, não sei”, desabafou Marta a Daniela, que assistira a tudo pálida e
horrorizada, “Mas não tem nenhum distúrbio, é só parvo”
Pedindo desculpa a todos pelo que
aconteceu, Guida, Marta e Leonor, esta última ainda agarrada ao irmão, que ria
a bandeiras despregadas, não viram outra alternativa que não dar a noite por
terminada e ir para casa, onde Tomás não pudesse fazer estragos. Apesar da
reviravolta que o serão levara, Afonso sentira que acabara de ganhar a lotaria,
de tão feliz que se sentia. Se por baixo daquela aura de gelo estava alguém
muito diferente, ele faria tudo o que estivesse ao seu alcance para o
descobrir.
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