sábado, 22 de setembro de 2012

Capítulo 2


Em frente ao espelho, Afonso segurava, em cada mão, uma camisola. Experimentando, ora uma, ora outra, não se decidia. Todos os pormenores eram importantes e queria dar uma imagem melhor do que a que dera quando conhecera Leonor. Já fizera a barba e tomara banho mas não queria cometer o erro de ir mal vestido, não fosse parecer pouco atraente aos olhos dela. Incapaz de conseguir um resultado que lhe agradasse, chamou, desesperado, “Mãe!”

Pouco depois, Susana, batendo à porta, perguntou, “O que é?”

“Preciso da tua opinião”, disse o rapaz, de sobrolho franzido, sem nunca tirar os olhos do seu reflexo no espelho. E se o problema não estivesse na roupa mas sim nele? De facto podia trabalhar mais os músculos da zona abdominal e, mesmo tendo ido à praia várias vezes durante o Verão, ainda tinha uma tonalidade de pele demasiado clara. Angustiado, pegou nas camisolas e questionou, “Qual destas?”

Ponderando durante um instante, Susana abanou a cabeça, em sinal de reprovação, “Nem uma nem outra, leva antes a que compraste outro dia, mas com outros ténis”

“A ideia é favorecer-me o mais possível”, confessou ele, sentando-se na cama, desanimado. Se ao menos fosse mais como Rúben não teria que se preocupar com estes pormenores, por onde quer que passasse as raparigas adoravam-no. Já Afonso era sempre ignorado, pelo menos até saberem que era filho da Susana Marques, mas o fascínio desaparecia quando descobriam que não tocava viola, nem cantava de modo afinado nem que a vida dependesse disso.

“Não digas isso”, reconfortou a loura, sentando-se ao lado dele, “És perfeito como és e não é uma camisola azul ou uma branca que vai fazer diferença…a sério, não te preocupes com isso, a Leonor tem muita sorte por ter alguém como tu interessado nela”

“Dizes isso porque és minha mãe”, lamentou-se o rapaz, embora soubesse que Susana só o estava a tentar animar, “Mas obrigada na mesma”

“Mau”, repreendeu Susana, séria, “Como é que esperas que ela vá gostar de ti se nem tu gostas? Elas não gostam de choninhas inseguros que se sentam num canto a chuchar no dedo, olha que eu sei do que falo”

“Mas…”, insistiu ele, apenas para se calar quando a mãe o fulminou com o olhar. Agradecendo mais uma vez a ajuda, acabou de se despachar, não fosse o tempo começar a escassear-lhe. Prometendo não tomar uma atitude tão passiva durante aquela noite, saiu, esperando que tudo corresse pelo melhor.

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Fiel à sua palavra, Leonor, embora pouco entusiasmada e desejosa que o tempo passasse depressa, aguardava por Afonso à porta de casa, tal como combinado. Durante a espera, observou o seu reflexo na janela, ficando agradada com o que viu. Não era que tencionasse impressioná-lo, mas gostava de fazer boa figura, fosse qual fosse a ocasião. Observando ora o mostrador do relógio, ora a esquina da rua, a rapariga suspirou, exasperada. Se ele chegasse atrasado sempre justificaria a pouca vontade que ela tinha de sair com ele e lhe permitiria recusar convites daqueles no futuro. Porém, estava sem sorte. Às nove em ponto, como fora acordado, já avistava o rapaz a alguma distância. Previa um serão chato, com Afonso a orbitar à sua volta e incapaz de deixar que houvesse um momento de silêncio que fosse, sem descurar as incontornáveis tentativas de a impressionar.

Assim que ele se aproximou, ela, ao contrário do que se poderia esperar, acabou por se surpreender, embora nunca o fosse admitir. Se, quando foram apresentados, ele, com os seus caracóis escuros desalinhados e barba por fazer, o que lhe conferira um aspecto desleixado, a deixara pouco impressionada, agora, os mesmos caracóis, ainda molhados e a face suave, que lhe deixava as covinhas em evidência, obrigavam-na a mudar de opinião. Disfarçando com uma expressão estóica, Leonor deixou o olhar passar da cara para os ombros largos e para os braços bem definidos, cortesia de uma camisola sem mangas. Podia ser mais alto, afinal ela, se usasse saltos, ultrapassá-lo-ia em altura, mas, à parte disso, tinha que admitir que o rugby lhe havia feito muito bem.

Por uma centésima de segundo, temeu que o rapaz a tivesse apanhado a observá-lo, isso colocá-la-ia numa posição desconfortável. No entanto, estava tão segura da sua expressão neutra, que manteria mesmo que o mundo estivesse a desabar diante dos seus olhos, que tal seria impossível. O mesmo não se aplicava a Afonso que, com os olhos vidrados, a mirava da maneira mais enternecida. Não fazia mal, estava mais do que acostumada à atenção da população masculina e, se o rapaz tivesse a ideia de tentar algo, ela saberia como lidar com a situação. Dando um passo para ele, confiante, fez com que acordasse do seu torpor, “Boa noite”

“Ahm? Boa noite!”, respondeu ele, pestanejando, claramente embaraçado. Olhando, ora para a imagem de perfeição que se encontrava à sua frente, ora para a janela onde a imagem menos perfeita do irmão de Leonor lhe fazia um gesto obsceno, achou por bem porem-se a caminho, não fosse envergonhar-se mais, “Vamos?”

“Claro”, disse a rapariga, seguindo à sua frente, sem esperar por ele. Mordendo o lábio, tentou recalcar o facto de que, no fundo, até se sentira lisonjeada por ver o trabalho que o rapaz tivera para estar o mais apresentável possível para ela, ainda para mais a forma como ele a olhava, como se estivesse a ver Deus. Mais do que isso, não fosse ela ter constantemente indivíduos do sexo oposto a tentarem impressioná-la, o que a incomodava era saber que até gostara dos esforços do rapaz.

Acelerando o passo, Afonso não tardou a alcançá-la. Não perdendo qualquer desculpa que fosse para se aproximar dela, encheu-se de coragem, coragem essa que encontrou só Deus sabia onde e disse, de modo afável, “Ainda não te pude cumprimentar devidamente”

Assim que terminou a frase, aproximou a cara da de Leonor, para lhe dar dois beijinhos. Ela não teve outro remédio senão retribuir. Ao fazê-lo, não pôde deixar de reparar que ele tinha um cheiro agradável: alguma água-de-colónia, fresca mas nada enjoativa. Primeiro parecia demasiado agradada com o aspecto de Afonso, depois com o cheiro deste? Isso já parecia pouco característico da sua pessoa. Sustendo a respiração, voltou a criar alguma distância entre ambos. Sem o encarar, perguntou, num tom desinteressado, “Então ainda é muito longe?”

O rapaz, felicíssimo por ter sido ela a iniciar conversa, respondeu, entusiasmado, embora a última coisa que quisesse fosse aborrecê-la, “Não, dez minutos a pé, mais ou menos…hm, não faz mal, pois não?”

“Claro que não”, disse a rapariga, encolhendo os ombros. Enquanto a ligeira aragem que se fazia sentir não se tornasse mais fria, estar ao relento sem um casaco não a transtornaria.

Durante o resto do caminho que os separava da casa de Leonor até ao local das festas, Afonso, desejoso de conhecer melhor Leonor, foi fazendo perguntas, todas elas sobre tópicos seguros, como para que escola ia, o que queria seguir, se estava a gostar de Portugal. Muito para seu deleite, ela ia para a mesma escola que ele, o que significava que a iria ver muitas vezes. E, se a rapariga já era, a seu ver, um sonho tornado realidade, ainda mais forte a sua opinião se tornou, quando descobriu que ela era boa aluna e iria seguir algo no ramo das engenharias. Afonso, por sua vez, revelou que ainda estava a trabalhar no seu sonho, que era conseguir viver do rugby, apesar de tencionar seguir para a faculdade, para qualquer coisa relacionada com ciências sociais. Quanto à readaptação da rapariga ao país, esta não comentara muito, apenas que estava satisfeita pela mudança.

Ao chegarem ao local das festas, comprovaram que estas tinham uma adesão maior do que o esperado. Todas as diversões, fossem elas carrinhos de choque, fossem carrosséis, fossem rifas, fossem os concertos, ou, apenas bancas de comida, encontravam-se lotadas. Apontando para uma banca que vendia bebidas, o rapaz, o eterno tímido paranóico, implorando aos céus que ela não pensasse que ele a queria embebedar para a violar e deixar numa valeta, ofereceu, “Queres tomar alguma coisa?”

“Hm…”, matutou Leonor, que já sentia os efeitos de uma caminhada numa noite abafada. Já que Afonso ia buscar qualquer coisa para ele, aproveitou, estendendo-lhe uma moeda, “Só uma Coca-Cola, se faz favor”
Recusando, o rapaz disse, feliz por poder fazer um gesto simpático por ela, “Esta é por minha conta”

Dirigindo-se ao balcão, fez os pedidos, não se abstendo de observar, embevecido, a rapariga, que parecia distraída ao ver umas pessoas atirarem uma bola a uma pirâmide de latas, para ganharem um peluche. Fazendo uma nota mental de passar por aquela banca, nem reparou quando pisou alguém que estava a seu lado. Quando esse alguém, com cara de poucos amigos, se virou, viu que se tratava de Rúben, o seu melhor amigo. Este, por sua vez, pareceu esquecer as intenções que tinha de esmurrar quem o pisara e ostentava um sorriso enorme, “’Tão, meu puto, mé quié?”

Afonso adorava Rúben. Já o conhecia desde a primária e eram inseparáveis desde então, passavam imenso tempo um com o outro e até jogavam rugby na mesma equipa. Apesar de o considerar o seu amigo mais próximo, este era a última pessoa que gostaria de encontrar enquanto estivesse com Leonor. Ao contrário de Afonso, o amigo era extremamente bem-sucedido com o sexo oposto e, como tal, era a mais exacta definição de “putanheiro”. Em parte, invejava-o pela sorte que tinha, fosse por saber a conversa toda, fosse por ser mais alto que ele, coisa que, Afonso admitia, ser bastante patética, mas não conseguia evitar. Não apreciava, contudo, a moral duvidosa de Rúben e, conhecendo-o como conhecia, já teria reparado na rapariga e encontrar-se-ia a instantes de meter conversa. Tentando distraí-lo, disse, “Então a Joana não está contigo?”

“Onde é que ela já vai”, replicou Rúben, rindo ao lembrar-se da pobre coitada que, tal como tantas outras, já tinha sido usada e abusada. Ao tirar os olhos de Afonso, reparou que este estava com uma rapariga, rapariga essa que imediatamente classificou como “avião”. Cessando o riso alarve, abordou-a, com o seu sorriso característico, capaz de derreter qualquer uma, “Olá, menina, sou o Rúben, amigo deste aqui”

Infelizmente para Rúben, Leonor não era qualquer uma e, se ele pensava que ela não lhe tirara a pinta a quilómetros de distância, estava redondamente enganado. Escondendo a repulsa que ele, e todos os da laia dele, lhe causavam, agarrou, de modo pouco ou nada discreto, a mão de Afonso, certa de que isso o desencorajaria, “Olá, sou a Leonor”

Rúben olhou, ora para o rapaz, que tão estupefacto que estava que nem tentou disfarçar o quão corado ficou, ora para a rapariga, que lhe segurava a mão, sorridente. Para que não restasse margem para dúvidas, agarrou-se completamente ao braço de Afonso, sorrindo como se não estivesse consciente das intenções de Rúben. Percebendo a mensagem, Rúben achou por bem retirar-se, por enquanto pelo menos. Noutra altura voltaria a tentar pois adorava desafios e Leonor constituía um. Com um sorriso amarelo, despediu-se, “Vou andando, depois diz qualquer coisa”

À medida que a figura de Rúben se dissipava no meio da multidão, tanto Leonor, como Afonso, respiraram de alívio. Fraquejando pela segunda vez naquela noite, a rapariga, ainda com o pretexto de exorcizar Rúben do pé de ambos, manteve a mão na do rapaz, que não se pronunciou esse tempo todo. Depois das covinhas e dos braços, podia juntar as mãos à lista de pormenores que gostava nele, grandes e calejadas, provavelmente do desporto que praticava. Passando o polegar pelas costas da mão de Afonso uma última vez, Leonor largou-o, por fim. Com um ar desiludido, o rapaz encarou-a, como se perguntasse porque é que o tinha feito, embora não tivesse dito nada.

Desejosa de evitar um prolongamento daquele momento constrangedor, a rapariga, apontando para a banca que estivera a ver antes, propôs, “Não queres passar por ali?”

“Claro, anda”, aceitou ele, que entretanto se contentara com a sorte que tivera. Por sua vontade, não teria largado, mas um minuto de proximidade era uma conquista enorme quando ela pouco mais que respostas monossilábicas lhe dava. Satisfeito com o progresso, serviu-se do pretexto de que não convinha que se separassem no meio de tanta gente e encaminhou-a para a banca com uma mão colocada na cintura, ao de leve. Porém, foi com grande pena sua que ela lhe retirou a mão, “Desculpa…”

Não ligando, Leonor dirigiu-se à banca, onde entregou umas moedas ao dono, uma figura peluda, obesa e bonacheirona, que lhe passou para a mão uma bola. Quando ela ia a atirar, Afonso, que não perdia o mais pequeno movimento da rapariga e, ao vê-la prestes a fazer um mau lançamento, não se conteve, não fossem os anos de rugby que tinha, “Espera!”

“O que foi?”, inquiriu ela, de sobrolho franzido, pouco satisfeita por ter sido interrompida.

Pondo-se por detrás dela, o rapaz segurou-lhe o braço e explicou, acompanhando-lhe o movimento, “Se atirasses como ias fazer não acertavas, tenta antes assim”

Fazendo-a lançar a bola, num movimento fluido, foi com um sorriso rasgado que ele viu a pirâmide de latas de refrigerantes ir abaixo. A rapariga, por sua vez, encontrava-se dividida em relação ao que havia de sentir: se, por um lado, se sentia humilhada por ter precisado de ser corrigida, por outro, mesmo que não gostasse de dar o braço e torcer, lá teria que admitir que o gesto a enterneceu, no fundo. Os sentimentos negativos foram arrasados quando Afonso lhe passou para as mãos o prémio, um panda de peluche felpudo. Peluches eram e sempre seriam algo a que não resistia, fosse para agarrar, fosse por decoração. Ainda a afagar a pelagem macia do boneco, disse, “Obrigada mas devia ser teu, se não fosses tu não tinha acertado”

“Oh, não tem mal, podes ficar com ele”, assegurou o rapaz, consolado por saber que a fraca iluminação dos candeeiros da rua escondia o rubor que já ostentava nas bochechas sardentas, consequência do sol do Verão. Desta forma podia dizer que Leonor tinha uma prenda oferecida por ele.

Agradecendo, desta vez com toda a sinceridade em vez de pura cortesia, a rapariga, trazendo o peluche no colo, propôs que continuassem a ver as bancas, proposta essa que Afonso aceitou. Passando por grupos que tentavam a sua sorte a rebentar balões com uma pressão de ar, bancadas com churros e pão com chouriço, e carrosséis, Leonor reparou que o rapaz não tomava a iniciativa para se deter nalguma banca, algo que não a espantava, tendo em conta que tudo nele indicava alguém passivo e tímido. Não querendo que ele se abstivesse de se divertir por sua causa, perguntou, “Não queres comer nada nem dar uma volta nos carinhos de choque?”

Por sua vontade, o rapaz estaria nos carrinhos de choque a atirar os miúdos com excesso de bazófia para fora da pista, caso não estivesse a acompanhar a rapariga. Assim, sob pena de lhe proporcionar uns cinco minutos desconfortáveis, escolheu antes outros planos, “Hm, apetece-te dar uma volta no carrossel?”

“Pode ser”, respondeu ela, a quem a ideia não parecia má, sobretudo se fosse o carrossel maior e não aquele em que as crianças andavam em carrinhos feitos a partir de personagens de desenhos animados populares.

Conseguindo uma ficha, sentaram-se numa espécie de chávena. Contendo a sua vontade de colocar o braço por cima dos ombros de Leonor, Afonso deixou as mãos sobre o colo. Enquanto o carrossel não andava, aproveitou para fazer um balanço daquela noite, até ao momento: muito lentamente, a passo de caracol moribundo, conseguia conquistar a confiança da rapariga, a ponto de ela o deixar aproximar-se, mas daí a ir para além disso ia uma grande distância e, de qualquer das maneiras, ainda era muito cedo para pensar nisso. Sim, conseguir a amizade dela era mais que suficiente e, dali para a frente, estaria com ela normalmente, sem se preocupar se conseguia algo mais ou não. Descansado com a sua epifania, relaxou um pouco e disse, “Segura-te”

Apanhada de surpresa, Leonor não teve tempo de deitar a mão à barra metálica que rodeava a chávena e, quando o carrossel arrancou, foi atirada para cima do rapaz que, apesar de tudo, sorriu quando ela aterrou no seu colo. Se ele corou até à raiz dos cabelos, ela revirou os olhos e voltou para o banco. Acidental ou não, era proximidade a mais para o seu gosto. Agarrada à barra, não voltou a ser projectada durante o resto da volta, que valeu uns bons risos por parte de ambos. A boa disposição dos dois não passou despercebida a uma terceira pessoa, que torcia o nariz ao longe. Ao emborcar a quinta caipirinha, Rúben achou que havia chegado altura de descarregar a frustração que sentira antes. Indo para junto de Afonso e Leonor, pediu ao rapaz, “Posso dar-te uma palavrinha a sós?”

Aceitando, mesmo que para isso tivesse que ignorar o mau pressentimento que tinha, Afonso seguiu o amigo até a um canto que não estivesse a abarrotar de gente. Trocando um olhar com a rapariga, assegurou-a de que não demoraria muito. Uma vez a sós, Rúben, sem cerimónias, perguntou, “Quem é ela?”

“É filha de umas amigas das minhas mães”, elucidou o rapaz, cujo hálito a álcool de Rúben lhe dava a entender que, caso o irritasse, a noite ainda iria acabar mal. Sob a influência do que quer que fosse, ele ficava fora de si.

“Tu e ela…andam?”, inquiriu o amigo, com um tom de incredulidade a dar lugar a um de troça, enfatizado pela risadinha ocasional.

“Não, conhecemo-nos há pouco tempo e nem nos podemos considerar amigos”, respondeu Afonso, saturado com o interrogatório. Sabia que convinha evitar a todo o custo que Rúben, de temperamento instável com tendência para ser violento, se se irritasse, mas a troça dele já começava a ser demais para que ele não lhe desse, pelo menos, uma resposta torta. Antes que ele próprio atirasse fósforos para a gasolina, disse, “Tenho que ir andando”

“Claro, achas mesmo que uma gaja daquelas alguma vez queria alguma coisa contigo?”, provocou Rúben, com um ar desdenhoso. E com isto conseguira atingir Afonso num ponto sensível.

Respirando fundo, Afonso, tentando conter a vontade que tinha de lhe responder no mesmo registo, contornou a questão, “Não sei mas deixa-a em paz, se acontecer alguma coisa quem se fode sou eu”

“Então não estás interessado nela?”, perguntou o amigo, com um olhar céptico. Pela maneira como o rapaz se comportava junto a Leonor, não acreditava nisso, conhecia-o bem demais para tal. Ou mais, qualquer pessoa, mesmo que não o conhecesse, diria que não estava pouco interessado.

Abrindo e fechando a boca sem conseguir emitir um som que fosse, Afonso não sabia o que dizer. Não queria provocar Rúben mas também não o queria atrás da rapariga com o pretexto de que não sabia da paixoneta de Afonso. Decidindo que conseguia aguentar uma boca ou duas, respondeu, “ Estou…quer dizer, acho-lhe piada”

Rebentando em risos, Rúben nem conseguia formular uma frase sem colocar as mãos na barriga, dobrado sobre si mesmo. Mal recuperou, disse, apenas, “Keep dreaming”

Caso não soubesse que toda aquela bazófia era o álcool a falar, o rapaz teria levado a peito aqueles comentários. Sendo as circunstâncias como eram, a única maneira de agir era despedir-se e sair dali enquanto a oportunidade se proporcionava. Deixando Rúben, voltou para junto da rapariga, ainda com as palavras do amigo a ecoarem-lhe na cabeça. Por muito que quisesse dar o desconto, acabou por se sentir magoado. Reparando na expressão cabisbaixa de Afonso, a rapariga perguntou, “Está tudo bem?”

“Sim, sim”, respondeu Afonso, fazendo por se abstrair. Pensando bem, era ele que estava ali com Leonor e o amigo levara uma tampa, só isso serviu para se animar. Voltando a atenção para a rapariga, viu que esta estava toda arrepiada e não tinha um casaco para vestir, “Tens frio?”

“Aguento”, replicou ela, passando as mãos pelos braços, numa tentativa desesperada de se aquecer. Naquele momento arrependia-se de não ter trazido um casaco.

“Oh toma lá”, insistiu o rapaz, passando-lhe a camisola que trouxera e que não chegara a vestir. A verdade era que, também ele, estava com frio mas de bom grado lhe emprestava a camisola e se sujeitava à aragem gélida da noite.

Mesmo que Leonor tivesse recusado, com o pretexto de que depois quem iria ter frio era ele, o vento, agora mais forte, fê-la mudar de ideias e aceitar. Vestindo a camisola, que lhe chegava até meio das coxas, logo se sentiu muito mais aconchegada. Se calhar a persistência do rapaz e a sensação de protecção que este lhe proporcionava afectava-a, se fosse verdadeiramente honesta consigo própria. O facto de ele ser comedido e seguro, nunca insistindo demasiado e incapaz de passar ao ataque, era um bónus.

Depois da confusão com Rúben, Afonso achou melhor voltarem, ainda que desejasse ter mais tempo na companhia de Leonor. A ideia foi bem acolhida por parte da rapariga, a quem a festa já estava a aborrecer. Apertando mais a camisola contra si, fez-se ao caminho, acompanhada pelo rapaz. A pele de galinha nos braços dele saltou à vista a Leonor, que não evitou sentir-se tocada pelo gesto. Pronto, afectava-a, era inegável. Ao chegarem a sua casa, a rapariga despiu a camisola e disse, entregando-lha, “Obrigada pela camisola e pela noite”

“O prazer foi todo meu”, respondeu ele, incapaz de a encarar. A noite havia corrido bem, não havia mal em dar a indirecta de que adoraria que se encontrassem outra vez num futuro próximo, “Hm…depois diz qualquer coisa, se quiseres, claro, senão…vemo-nos na escola”

Com a vista a deambular, ora para Afonso, corado, ora para o peluche que tinha nos braços, a rapariga concordou, com um sorriso, “Claro que sim”

Antes que o rapaz pudesse prolongar a conversa, ou, sequer, responder, Tomás apareceu por detrás da irmã, com o seu sorriso sinistro, “Continuas aqui? Vá, vá, vai-te lá embora”

“Tomás, não devias estar deitado? Vai tu embora”, respondeu Leonor, repreendendo-o. Voltando-se para Afonso, despediu-se, hesitantemente, “Então acho que vou andando…adeus e depois falamos”

Aproximando-se do rapaz para se despedir, coisa que teve pena de fazer, visto até estar a gostar da companhia dele, beijou-lhe as bochechas, tão coradas que rivalizavam o tom de um semáforo. Assim que lhe retribuiu, Afonso teve de ouvir outra boca do irmão, qualquer coisa que soou a “daqui não levas nada”, antes de dar mesmo a noite como terminada. Depois de passado esse momento, continuou até casa, feliz.

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