segunda-feira, 27 de junho de 2011

Capítulo 28

“É bom que a Dani tenha escondido as facas da mãe”, pensou Susana, enquanto pegava nas chaves da mota e saía de casa. O facto de a “sogra” ter querido fazer um esforço para se redimir era um grande progresso, mesmo que tenha levado um mês a acalmar. O facto de a ter convidado, por intermédio da rapariga, para ir jantar lá a casa era um progresso ainda maior. Agora cabia à loura não estragar tudo ou com os seus modos pouco elegantes à mesa ou com o seu modo de conversa pouco eloquente.
Pegou na roupa que tinha e tentou ir um pouco mais bem vestida que o costume, embora não tivesse dispensado tanto os ténis como as calças largas. Desta vez escolheu uma camisa branca, por sinal a peça mais feminina do seu armário inteiro e que a avó a obrigou a comprar e esperou não ir muito desleixada.
Todo o trabalho a alisar o cabelo tinha ido por água abaixo quando tirou o capacete. Desistiu de se preocupar com isso e tocou à campainha, começando imediatamente a roer as unhas. Foi Daniela que lhe veio abrir a porta e parecia nervosa, como seria normal. Mal pôs o pé no jardim, a cadela da rapariga veio ter consigo, carente de atenção, “Pelo menos a cadela gosta de mim”. Cumprimentou-a como habitualmente e, quando a loura lhe deu a mão, limitou-se a deixar estar mão-morta.
“Espero que gostes de caril”, a voz da morena acordou-a dos seus pensamentos. Então aquele cheiro que lhe começava a fazer arder as narinas era isso. Já tinha ouvido falar mas não fazia a mínima ideia do que era.
“Que é isso?”, perguntou, sentindo a cara a aquecer, sinal de que estava a corar. Se havia coisa que odiava era que a tomassem por loura burra e, se havia coisa que odiava ainda mais era ter a consciência que o era. Ainda por cima a namorada tinha-a avisado que os pais valorizavam muito a cultura. Se na sua perspectiva, Daniela era das pessoas mais cultas que conhecia, e mesmo esta era muito inferiorizada pelos pais, então ela…
“É um prato indiano, com arroz, batata e frango”, explicou a rapariga. Se havia coisa que Susana adorava era o facto de a morena arranjar sempre paciência para lhe explicar as coisas as vezes que fossem necessárias, sem mostrar frustração. Era definitivamente uma melhoria de Mónica que, teria suspirado e dizer-lhe para esquecer. “Pode é ser um pouco picante…aguentas bem?”
“Muito picante?”, perguntou Susana, cujas parcas recordações de contacto com comida exótica ainda lhe davam arrepios, “Provei uma shamuça uma vez e aquilo não se podia”
“Então vai ser bonito…”, respondeu a rapariga, rindo-se, “Eu e o meu pai abusamos nisso”
Susana engoliu em seco, tanto com o que a morena disse como por ter avistado a mãe desta. Ainda de mão dada com Daniela, avançou em direcção à mãe, que parecia estar a fazer um esforço quase doloroso para sorrir. Agora que olhava para ela de perto, conseguia ver de quem a namorada tinha herdado muitas das expressões e, mais notoriamente, os olhos.
“Boa noite”, cumprimentou a senhora. O esforço que estava a fazer, esforço esse que era bem notório e não devia ser nada fácil, era algo que a loura tinha que valorizar.
“Boa noite”, retribuiu Susana, sorrindo de orelha a orelha, antes de se inclinar para cumprimentar a sogra com dois beijinhos. O estremecer desta não lhe passou despercebido, o que fez com que a loura prometesse a si mesma que faria de tudo para a deixar à vontade, “Está boa?”
“Sim muito obrigada”, respondeu, reticente, “Como vai?”
“Oh trate-me por tu, se faz favor”, pediu Susana, bem-disposta.
A conversa foi interrompida pelo pai, chamando-as para o jantar, sempre simpático e cordial. Foi cumprimentar a loura com a maior das naturalidades, desejando-lhe sorte para aguentar o picante. Sentaram-se à mesa, Daniela entre a outra e a mãe, muito para seu desconforto. Era a oportunidade perfeita para picar a morena e Susana não iria deixar passar. Colocou a mão na coxa da rapariga, apertando-a sempre que a mãe olhava para esta.
“Então Susana”, começou a mãe de Daniela, ainda com os olhos postos na filha, enquanto esta tentava disfarçar o embaraço, “Vive com quem?”
“Com a minha avó”, respondeu a outra, subindo um pouco a mão e sentindo a morena contrair-se.
“Então e os seus pais?”, questionou a mãe, franzindo o sobrolho ao olhar para a filha.
“Emigraram quando eu tinha aí quatro ou cinco anos, não me lembro muito deles”, contou Susana, parecendo estar a fazer um esforço a puxar pela memória, “Pelo que a minha avó me contou, vivíamos mesmo mal e a única opção foi ela ficar comigo enquanto eles iam para a Alemanha….começaram de novo lá e deram-me dois irmãos e uma irmã”
Daniela afagou a mão que Susana tinha na sua anca, o que fez com que esta sorrisse para si. Este curto e simples momento de intimidade não passou despercebido aos pais, que trocaram um olhar entre si.
“No início ainda mandavam algum dinheiro”, continuou a loura, à medida que sentia a rapariga entrelaçar os dedos nos dela, por baixo da mesa, “Mas depois os meus irmãos ficaram em primeiro lugar e fui esquecida…”
“Passaram por muitas dificuldades?”, interrogou a mãe, interessada em saber o mais possível e, acima de tudo, encontrar podres.
“Com o dinheiro que mandavam e a reforma dos meus avós estávamos seguros, não éramos ricos mas sempre era alguma coisa”, respondeu Susana, que tinha sido já prevenida e tinha a conversa preparada, “Mas quando o meu avô morreu e tiveram o meu irmão as coisas complicaram-se muito, a minha avó não tinha muita saúde e o dinheiro extra ia para medicamentos…estávamos sempre a apertar o cinto, por isso eu costumava tratar do jardim aos vizinhos, aí a partir dos dez anos, sempre ajudava um bocado”
Mal acabou o que tinha a dizer, a mãe sorriu. Ao ver o contentamento da senhora, ambas as raparigas sorriram de alívio. Bastava só referirem o passado trabalhador da loura e esta começava a cair nas boas graças dos pais.
“Agora faz o quê?”, perguntou o pai, desta vez.
“Sou DJ numa disco…alternativa”, disse Susana, tentando suavizar um pouco a resposta, “Até se ganha bem”
“A Susana é uma pessoa atraente”, disse a mãe, num tom que parecia acusatório, “Decerto que meninas e meninos atrás de si não faltam”
Ao ouvir isto, a loura riu-se um pouco, antes de responder, “Os meninos vêem-me sempre como mais um deles, felizmente, e quanto às meninas, bem, não digo que fiquem indiferente, mas já tenho a minha”
O riso geral da mesa serviu para aligeirar o ambiente, antes que cada um se servisse. Sempre esfomeada, Susana não hesitou em encher o prato, que até tinha óptimo aspecto. Ainda com a mão direita entrelaçada com a esquerda de Daniela, serviu-se com a sua esquerda. Levou à boca uma garfada generosa e saboreou. Era bom! Um pouco diferente do que estava habituada mas gostava. E o melhor foi que não sentia o picante.
Ou pelo menos naquele momento…uns segundos depois uma onda de calor devastou-lhe a garganta. Cerca de um minuto depois o fogo-de-artifício que tinha na boca intensificara-se ao quadrado, fazendo com que tivesse que desapertar um botão da camisa. Olhou à sua volta e viu que todos estavam a comer como se não fosse nada. Era alguma partida? Já sentia uma gota de suor a escorrer-lhe pela cara, que estaria, sem dúvida, vermelha que nem um morango. Levou um copo de água à boca, suspirando de alívio.
“Sabes, não devias ter feito isso”, disse a morena, olhando para ela alarmada, “Ainda vai fazer pior”
“Nada disso!”, garantiu a outra, apesar de ter acabado de confirmar o que a rapariga lhe dissera, não queria dar parte fraca aos pais, “Estou óptima”
Juntando o gesto à palavra, voltou a empanturrar a boca outra vez. Quando chegou ao fim do prato já tinha lágrimas a escorrerem-lhe pela cara e a camisa colada ao corpo desabotoada até meio. Ainda por baixo da mesa, Daniela afagou-lhe a mão, suada e peganhenta, tentando reconfortá-la. Este gesto, por sua vez, não passou despercebido aos pais.
“Vocês estão de mão dada, por acaso?”, perguntou a senhora, tentando parecer casual, mas no seu tom havia alguma irritação.
“Hmhm”, respondeu a rapariga, levantando a mão que estava a segurar a da loura.
O gesto teve reacções diferentes nas pessoas que se encontravam à mesa. A mãe esbugalhou os olhos, o pai sorriu para elas e Susana enterneceu-se com a namorada. A segunda reacção foi diferente, o pai deu um toque no braço da mãe, de modo a avisar esta, a mãe respirou fundo e sorriu e a loura levou a mão da rapariga aos lábios e beijou-a. Foi a vez de Daniela se enternecer, com um “oh” e de encostar a cabeça ao ombro da outra, esquecendo-se que os pais estavam a observar tudo.
“Susana, vai querer café?”, ofereceu o pai, trazendo as duas de volta à realidade.
“Não gosto, obrigada”, recusou a loura, rindo-se para a rapariga, “Para viciada em café basta a Dani”
“Mas eu quero!”, apressou-se a morena a dizer, já a salivar, sem ter ouvido o que a outra dissera.
“Daniela!”, repreendeu a mãe, “É o quê? O terceiro hoje? Nem penses, hoje não bebes mais senão não dormes!”
“Mãaae!”, amuou Daniela, fazendo beicinho à medida que se sentia corar, o gozo de Susana não melhorava o seu embaraço.
“De certeza que foram só três?”, riu-se a loura, conseguindo que a rapariga lhe esborrachasse o dedo do pé com o calcanhar, “Aaah!”
“É verdade”, perguntou a mãe, com um brilho malicioso no olhar, “Nunca disseram como é que se conheceram”
Foi aí que ambas gelaram. Dizer a verdade seria morte certa e inventar uma história que não fosse absurda seria difícil. A morena, com a maior das calmas, disse, “Foi o Pedro que nos apresentou, é uma amiga de um dos amigos dele”
“Ah só podia”, respondeu a senhora, obviamente desapontada por não ter sido nenhum bordel lésbico. A orientação do amigo da filha já lhe chegara aos ouvidos, daí a facilidade com que aceitou a desculpa.
Já se fazia tarde e Susana tinha que trabalhar. Despediu-se cordialmente dos pais de Daniela, sendo depois acompanhada até à saída por esta.

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