quinta-feira, 11 de julho de 2013

Capítulo 11

Levando em consideração os eventos daquele dia, Afonso diria que o Natal tinha chegado mais cedo. Se, havia alguns meses atrás, lhe dissessem que iria beijar a rapariga linda que tinha visto no centro hípico, não acreditaria, pois parecia totalmente intangível. Era já véspera de Natal e o rapaz dava consigo a sonhar acordado com o que se tinha passado, sorrindo sempre que revivia aquele beijo. Mais do que o saciar de algo que ele fervorosamente desejava havia algum tempo, representava, mais do que nunca, um acalentar de esperanças e, por isso, ele dava-se por muitíssimo feliz. Não querendo deixar escapar a oportunidade que o Natal propiciava para lhe oferecer qualquer coisa simbólica, comprou um colar que vira numa banca e que lhe deu a entender que ela iria gostar. Como não sabia quando seria a melhor altura para lhe dar a prenda, até porque não sabia se a oportunidade se proporcionaria no dia de Natal, veio mesmo a calhar que Susana lhe dissesse que ia passar por casa de Guida para lhe dar a prenda dela e o convidasse para a acompanhar.

Durante o caminho, Afonso, incapaz de deixar o hábito de sobreavaliar todas as suas acções, começou a ter dúvidas quanto à sua escolha de prenda. Seria pouco? Seria do agrado de Leonor? Parecia-lhe uma prenda simpática e inofensiva, ao contrário das cuecas comestíveis que Rúben iria dar à sua mais recente conquista. Já não ia em altura de corrigir, afinal estava a cinco minutos de casa de Leonor, porém, resolveu perguntar na mesma a Susana, dado que decerto que ela saberia tudo o que havia para saber sobre o assunto, “Vou oferecer um colar à Leonor, achas boa ideia ou chocolates seria melhor?”

“O colar é boa ideia”, respondeu Susana, recordando os tempos em que costumava dar presentes a Daniela sem ter algum motivo para o fazer. Era um hábito que ainda mantinha, com a particularidade de a qualidade das oferendas ter aumentado, em função do tamanho da sua carteira. Abordando Daniela, disse, “Lembras-te de quando eu te dava colares e chocolates? Não era tão querido?”

“Lembro-me dos colares”, comentou Daniela, sem tirar os olhos da estrada, não fosse a chuva, que tinha vindo a intensificar-se ao longo do dia, causar algum contratempo, “E chocolates, se a memória não me induz em erro, quando me davas era só a caixa, os chocolates eu nem lhes punha a vista em cima”

Susana riu-se tanto que teve de se dobrar sobre si mesma. O seu apetite saudável nunca deixaria se fazer das suas e só se aguentava sem engordar porque ainda passava mais tempo, ou na praia, ou no ginásio, do que a comer. Estava, aliás, ansiosa pelo Natal porque lhe permitia comer mais do que durante o resto do ano, não que fosse sentir culpa por não estar a controlar a linha, de qualquer forma. Uma tosse seca fê-la deixar de rir, lembrando-lhe que deveria perder o hábito de fumar. Já tentou, mas revelou-se mais complicado do que o que imaginara e acabou por sucumbir à tentação. Tinha fé que toda a natação que fazia a ajudasse a manter os pulmões operacionais, sendo por isso que também não se esforçara por aí além quando tentou largar o vício.

Quando chegaram ao seu destino, Leonor abriu-lhes a porta, acompanhada por Princess, sempre afogueada e a deixar um rasto de baba por onde quer que fosse, que não podia esperar mais pela companhia de Sara. Cumprimentando todos educadamente, embora não tivesse dedicado particular atenção a Afonso, muito para pena deste, Leonor disse a Sara, com um sorriso, “Quando te foste embora, da outra vez, ela fartou-se de chorar, gostou mesmo de ti”

“Olá Leonor”, disse Afonso, passando-lhe a prenda embrulhada para as mãos, a tremer um pouco. Atrás viu Susana levar dois dedos à têmpora, como se tivesse levado um tiro, quando o viu interagir com Leonor. Sabia qual a opinião da mãe em relação ao melhor modo de abordar raparigas e abanar como gelatina fora do prazo não constituía o seu modus operandi. Preferia ter encarado a situação com mais eloquência, mas a sua personalidade tímida estava decidida a impedi-lo de fazer uma figura impecável, por isso não censurava a mãe. Perante o olhar admirado de Leonor, acrescentou, com a insegurança bem palpável na sua voz, “Vi outro dia e achei que se calhar irias gostar, é só uma lembrança, nada de especial”

“Não era preciso, obrigada por te teres lembrado de mim”, agradeceu a rapariga, dando-lhe um beijo na bochecha. Afonso, orgulhoso, esperou que Susana tivesse visto o seu feito, mas ela estava distraída a falar com Guida. Aproveitando a proximidade que criara entre ambos, Leonor sussurrou-lhe ao ouvido, “Também tenho qualquer coisa para ti, vens comigo lá acima?”

Acenando em sinal afirmativo com a cabeça, o rapaz seguiu Leonor, bastante retraído, visto estar em terreno desconhecido e na iminência de entrar no quarto dela. Aproveitando a oportunidade que tinha para apreciar os atributos da rapariga enquanto esta subia as escadas, deu consigo a imaginar cenários que envolviam o que seria, nas suas mais inalcançáveis fantasias, a prenda ideal. De tão absorto que acabou por ficar, apenas despertou quando Leonor lhe acenou em frente da cara. Só lhe restava implorar a qualquer entidade metafísica que ela não o tivesse apanhado em flagrante delito. Vendo-a entrar no quarto, teve de resistir a espreitar, porque lhe pareceu uma violação da privacidade da rapariga, por muito que estivesse curioso. Para que ele não ficasse especado à sua espera, Leonor disse, “Podes entrar, se quiseres”

Pouco à vontade, Afonso entrou no quarto, num andar que o fazia parecer um pato. Não sabia o que esperava, talvez uma cama de dimensões exageradas e um quarto todo decorado a cor-de-rosa e purpurinas e de certeza que as boas vindas não lhe seriam dadas por um tapete de roupa suja como era o caso do seu quarto. Ao invés, a decoração era tão minimalista quanto possível e em tons de bege, o que o admirou porque esperava algo mais vistoso vindo da rapariga. Apoiando o peso ora num pé ora no outro enquanto Leonor tirava qualquer coisa de dentro de uma gaveta, pensou no que poderia ser a prenda. Ficava felicíssimo por ela se ter lembrado dele e aceitaria qualquer coisa, mas estava curioso. Leonor retirou um pequeno presente embrulhado em papel amarfanhado da gaveta e passou-lho para a mão, dizendo, “Desculpa, tive que ser eu a fazer o embrulho e não correu lá muito bem”

Pegando na prenda, o rapaz observou o papel preso com quantidades exageradas de fita-cola. A imperfeição do embrulho era, tal como nos momentos em que a rapariga se mostrava mais à vontade, adorável, a seu ver. Pelo que sentia além da fita a prender-se aos dedos, era algo fino e duro, provavelmente uma pulseira, o que até viria a calhar, quando se levava o seu presente em consideração. Entusiasmado como no dia em que recebeu no Natal um skate novo, agradeceu, com um sorriso de tal modo enorme que lhe fazia doer a cara, “Obrigado pela prenda, fiquei mesmo contente por te teres lembrado de mim”

“De nada”, disse a rapariga, que ainda tinha a prenda que ele lhe tinha dado consigo, “Achas que iria parecer mal se a abrisse aqui e não esperasse até amanhã?”

“Eu vejo a minha se tu vires a tua”, sugeriu Afonso, entusiasmado. Depois de muito ter passado os dedos pelo embrulho estava convicto de que se tratava de uma pulseira, mas a prenda em si era irrelevante, o que o deixava capaz de começar aos saltos era mesmo o facto de Leonor se ter dado ao trabalho de lhe comprar qualquer coisa. Mal a rapariga aceitou a sugestão, rasgou o papel tentando danificar o menos possível, mas estava complicado devido a toda a fita-cola. Quando conseguiu retirar a prenda, viu que não se tinha enganado, tratava-se mesmo de uma pulseira. De metal, com alguns ornamentos, era discreta e ele, com a pressa de a pôr, conseguiu fazer a depilação ao pulso. Aguentando-se para não dizer mil e uma profanidades, agradeceu, “Obrigado, adorei!”

Como a tarefa de embrulhar a prenda não foi realizada pelo rapaz, Leonor não teve que arrancar bocados de fita-cola tosca. Abrindo o papel, retirou um colar metálico muito fino que tinha um pendente de cor âmbar. Levantando o cabelo, pediu, “Pões-mo, se faz favor?”

Passando o fio em redor do pescoço da rapariga, teve de se esforçar por não lhe arrancar cabelo, de tão ansioso que ficou. Claro que a visão do pescoço de Leonor era bastante tentadora e ele, se pudesse agir conforme era a sua vontade, tê-lo ia mordiscado, mas isso só teria lugar nos seus sonhos. Se ela não perdera tempo em usar o colar isso indicava que tinha gostado do presente, pelo menos era isso que ele esperava. Quando ela o encarou, ele perguntou, “Gostas?”

“É perfeito”, disse Leonor, encantada, ainda a observar o pendente. Era simples e podia usar em qualquer ocasião mas, mais do que um presente esteticamente agradável, tratava-se de um oferecido por Afonso, o que o diferenciava de qualquer outro colar. Já não lhe causava comichão admitir que gostava do rapaz e sabia perfeitamente, tal como sabia que a água evapora a cem graus, que o sentimento era recíproco. O que é que a impedia de dar um passo em frente, já que o rapaz estaria, decerto, de pé atrás por causa da rejeição que sofrera havia uns meses atrás e que, por isso, não faria nada? Ela teria de ter uma conversa muito franca com ele na qual colocaria todas as cartas na mesa e, consequentemente, ele fugiria tão depressa quanto os seus pés lhe permitissem. Mas não queria colocar a questão ainda, preferia desfrutar daqueles momentos enquanto podia.

“Achei que dava com os teus olhos”, comentou Afonso, corando. Por muito lamechas e sobre usada que tivesse sido aquela frase, era verdade. Das poucas memórias que tinha da rapariga antes de ter ido para os Estados Unidos, por muito vagas que fossem essas mesmas memórias, a ideia dos olhos invulgares dela era a mais nítida e, desde que ela voltara, dava consigo extremamente intrigado por eles. A sua cor rara, bem como o seu formato, conferia-lhe um ar felino que para Afonso era extremamente atraente.

“Tiraste a ideia de alguma novela, foi?”, brincou Leonor, embora se sentisse muito tocada, mesmo que jamais o fosse admitir em voz alta. Aliás, de que é que lhe serviria fazê-lo quando picar o rapaz era uma alternativa muito mais tentadora?

“Não, não!”, respondeu o rapaz, assustado com a possibilidade de a sua confissão ter parecido excessivamente melosa e que não tivesse caído bem à rapariga. A prenda foi, ao que parecia, um sucesso, mas ele já estava a estragar tudo, como o fazia sempre que falava mais do que o necessário. Angustiado, continuou, com o objectivo de reparar os danos, “Só queria dizer que acho que tens uns olhos lindos, só isso”

“Estava só a meter-me contigo”, garantiu-lhe Leonor, colocando-lhe um dedo sobre os lábios. Retirou o dedo a tempo quando Afonso a tentou morder na brincadeira, e disse, “Parvo!”

“Mas tu gostas”, respondeu o rapaz, repetindo uma das tiradas menos originais possíveis, mas que se adequava à situação e pelo menos sempre tinha a vantagem de o fazer provocar a rapariga. Se o quisesse fazer, era a sua prerrogativa, portanto fá-lo-ia.

Com grande pena de ambos, a conversa teve que ficar por ali, pois tinham chegado mais visitas e Leonor não queria parecer antipática, por muito que quisesse aproveitar o facto de estarem sozinhos. Sabia, inclusive, que, mais cedo ou mais tarde, acabariam por ter uma conversa acerca do que se passava entre ambos, mas estava a gostar do desenrolar dos acontecimentos e não queria pôr um fim ao que tinham. Assim que desceram as escadas foram para a sala, onde estavam todos, incluindo as visitas que tinham acabado de chegar, Rodrigo, Tiago e André, o filho adoptivo dos dois. Afonso já não via André há algum tempo, presumia que ele estivesse ocupado com a faculdade, mas sentia algumas saudades. Em tempos costumavam brincar os dois e Afonso lembrava-se de quando jogavam basquetebol e ele não conseguia tirar a bola a André por este ser muito mais alto, o que o frustrava imensamente.

Desencostando-se da parede mal os viu, André cumprimentou-os, sempre no tom bem-disposto que Afonso lhe costumava associar, “Boas”

“Então tudo bem? Nunca mais disseste nada”, respondeu Afonso, aborrecido, não só porque o amigo não havia dado sinal de vida até ao momento, mas também porque estava a notar que já havia parado de crescer significativamente e estava longe de o apanhar em altura.

“Ao contrário de ti eu tenho que fazer pela vida”, respondeu André, erguendo uma sobrancelha, afinal seria sempre o sarcástico que Afonso conhecia desde que se lembrava, “E não, não ando a dar o cu”

“Presumi que a faculdade te ocupasse muito tempo”, disse Afonso que, por muito que se expusesse aos modos de André, jamais conseguiria criar imunidade. Ao longe, viu Leonor a falar com Rodrigo, o seu padrinho cuja libido faria inveja a um actor porno que ingerira viagra para gado, ambos animados, e perguntou-se sobre o que estariam a falar, antes de ter concluído que preferia não saber. Voltando a sua atenção para André, perguntou, “Está-te a correr bem o curso?”

“Ganda mel mesmo”, respondeu André. Estava orgulhoso com a sua prestação e não era caso para menos, afinal o curso corria-lhe de vento em poupa e desafiava-o o suficiente para que se sentisse realizado. Notando que Afonso olhava com muita frequência para a “jeitosa enjoadinha”, inquiriu, “Passa-se alguma coisa entre ti e aquela cachopa?”

“Não, é só uma amiga”, disse Afonso, cujo tom com que falara denunciava o quanto gostava que não se ficassem por ali. Em tom cúmplice, acrescentou, “É linda, não é?”

“É…quer dizer, acho que sim mas falta ali qualquer coisa”, respondeu André, torcendo o nariz. Não podia concluir a partir da sua interacção de um minuto com Leonor, mas parecia-lhe desinteressante, não no sentido de ser feia, pelo contrário, mas não era o seu género. Como viu que Afonso já não o estava a ouvir, acabou por não elaborar, optando por lhe colocar a mão em frente dos olhos, impedindo-o de tirar as medidas à rapariga, para se meter com ele. A brincadeira valeu-lhe um caldo na nuca, que foi amortecido, de qualquer forma, pela afro.

No canto oposto da sala, Leonor foi falar a Rodrigo, decidindo não roubar a Afonso tempo precioso que podia ser utilizado para colocar a escrita em dia com o amigo. Sendo que o tema da conversa era o novo filme que tinha acabado de estrear, foi apanhada desprevenida quando Rodrigo, no que foi um desabafo comovente, apontou para Afonso e disse, “Epa, se aquilo não é o melhor cu do mundo, não sei qual é”

Susana, que estava a beber o chá que Guida lhe tinha servido, ao ouvir a conversa, engasgou-se. Quando recuperou do choque, Leonor disse, “Concordo”

Sara, enquanto afagava a cabeça de Princess, não conseguiu conter os guinchos. Achava a cadela tão simpática que quase esqueceu o motivo que a levara ali. Quando um trovão ecoou pela casa e a bichinha se assustou e foi refugiar a um canto, é que Sara se lembrou do que viera fazer. Deixando Princess por um instante, foi ver se encontrava Tomás, que estaria na sala a jogar, se bem o conhecia. Tal como previsto, ali estava ele, a jogar com uma rapariga que ela não conhecia mas que era mais velha, talvez uma prima ou uma amiga de Leonor.

“Ai miúdo, ainda tens muito a aprender”, disse Adriana, fazendo-lhe uma festinha na cabeça. Ela tinha, a juntar ao seu talento natural, anos de prática com jogos, portanto, não era de admirar que, sem se esforçar, tivesse ganho ao rapaz. Ela só ali fora trocar presentes com Leonor, mas nunca resistiria a um desafio e Tomás tinha-se na conta de melhor jogador do que na verdade era e ela teve de lhe dar uma lição. Mas admitia que até gostava do rapaz, podia ter um olhar que, numa primeira impressão, a arrepiara, mas era educado e partilhava os seus gostos no que dizia respeito a jogos de vídeo, por isso até que se davam bem.

Gostava, aliás, daquela família no seu todo. Podia ser mais exótica do que aquilo a que estava habituada, por motivos óbvios, mas, depois de o seu pai ir lavar o carro para o jardim da frente em roupa interior enquanto cantava uma música medonha, ela não tinha moral para determinar o que era convencional ou não. Acolheram-na bem desde início e sempre tinha sido bem-vinda, por isso uma diferença daquelas não lhe fazia impressão. Guida conseguia intimidá-la, algo a que não estava habituada, pois, ao longo da vida, aprendera a lidar com as situações em que se sentia vulnerável, mas depois não era como parecia, muito à semelhança de Tomás. Marta já era mais descontraída e impedira-a de sair dali enquanto a chuva não parasse.

O ânimo de Tomás, que se deixara ir abaixo com a sua má prestação no jogo, voltou acima quando viu Sara. Largando o comando, correu para a rapariga, desatando numa tirada rápida e quase incompreensível, ora em inglês, ora em português, sobre o jogo da sua equipa, que acabara por ganhar no outro dia. Nem soube como se entusiasmou tanto, mas só tinha vontade de falar, falar e falar. Sara, que não estava a compreender praticamente nada, ou não fosse o facto de todos os seus conhecimentos sobre basquetebol terem sido adquiridos nas aulas de educação física, onde valia tudo menos cortar gargantas, achou por bem interrompê-lo, “Fico muito feliz por a tua equipa ter ganho, mas o que eu precisava mesmo de saber é se sempre podes ir à festa em casa da Rafaela”

“Ainda não perguntei”, admitiu o rapaz, cujo ânimo se esmoreceu, passando a mão pela nuca. Sentia-se lisonjeado por ter sido convidado, mas não acreditava que Guida o deixasse ir. Talvez se perguntasse a Marta e Leonor o ajudasse, mas ainda assim não lhe parecia que estivesse dentro das possibilidades. Não querendo aumentar muito a esperança de Sara, esperança essa que o alegrava muito, visto gostar de saber que a sua companhia era desejada, continuou, “Acho que não me vão deixar ir”

“Não sabes se não perguntares”, teimou a rapariga, puxando-o pela mão. Se ele ia continuar naquele impasse, ela iria tomar medidas. Arrastando Tomás, encontrou Guida, para pânico do rapaz e, assim que conseguiu a atenção dela, pediu, sem qualquer cerimónia, “Desculpe, na passagem de ano uma amiga minha vai dar uma festa em casa dela com mais uns amigos e eu gostava de saber se o Tomás pode ir”

Susana, que assistia à conversa, teve de apelar a todo o seu auto-controlo para não impedir Sara de ir. Concordara com o plano da festa porque lhe pareceu inofensivo e engraçado o que, juntando ao facto de Sara nunca ter dado problemas, não lhe dava motivos para se opor. Porém, se Tomás, que já mostrara que não era uma pessoa estável, também lá estaria, estava tentada a exercer o seu poder de veto. Claro que Guida não iria considerar deixar o filho ir, só se quisesse que acontecesse uma tragédia, por isso manteve-se calada e limitou-se a ver o que iria acontecer. Entretanto Leonor, que ainda se encontrava a falar com Rodrigo, aproximou-se para assistir ao que se estava a passar.

“Não”, pronunciou-se Guida, voltando as costas a Sara, mostrando que não estava disposta a entrar em negociações. Já tinha demasiados cabelos brancos ganhos graças ao filho, a ideia de ele ir para ambiente não supervisionado era o suficiente para a fazer envelhecer cinco anos. Admitia, ainda assim, que ele, nos últimos tempos, até que se tinha portado bem.

“Oh mãe, vá lá”, intercedeu Leonor, como se lhe conseguisse ler a mente, “Ele tem-se portado bem, não achas que ele merece um voto de confiança? Só desta vez?”

“E quando ele fizer asneira como é de esperar quem é que resolve?”, replicou Guida. Não acreditava que, se Tomás sempre tivera aquela maneira de ser, as coisas fossem mudar só porque nos últimos meses se comportou como um miúdo médio. Já se perguntara onde é que tinha errado e, se tivesse que responder a essa pergunta, não saberia por onde começar. Nunca havia sido uma mãe ideal, mas também nunca quisera ser mãe, apenas fizera a vontade a Marta. Era difícil não se apegar a Leonor, afinal ela era o que de mais próximo podia haver a uma filha perfeita. Já Tomás sempre exigiu mais atenção, atenção essa que ela, desde o primeiro momento, não estivera disposta a dar, pois, à conta dele, acabara por ter de abrandar a sua carreira profissional, para a qual tinha trabalhado toda a vida. Já recuperara, como se tal não fosse acontecer, mas acabou por perder muito tempo de interacção com o filho e a maneira mais fácil de lidar com ele era mesmo dando-lhe rédea curta, como ele viera a provar que adorava medir forças. E ela não tolerava que alguém, filho ou não, se atrevesse, por um momento que fosse, a desafiá-la.

“Só desta vez”, disse Marta, decidindo arriscar, “Se não se portar bem é a primeira e última vez, não te parece justo?”

“Parece bem”, insistiu Leonor que apostaria um dedo em como o irmão iria estar à altura de um voto de confiança, “Ele não tirou uma única negativa neste período e até disseste que na reunião nenhum professor se queixou dele”

Sem ninguém que a socorresse, Guida, muito contrariada, lá concordou. Como é que elas se atreviam a deixá-la naquela posição? Que humilhação. Pelo menos estava convencida de que Tomás não iria resistir e acabaria por levantar ondas e então aí ela iria ter a maior das satisfações em esfregar-lhes isso na cara. Ainda assim, ver Sara a convidar Tomás para alguma coisa admirou-a, já que nunca pensou ver o dia em que semelhante feito fosse acontecer. Mais depressa acreditava que o filho tivesse exercido alguma forma de controlo mental sobre a rapariga do que uma redenção inesperada e fantástica. Encolhendo os ombros, achou por bem começar a pensar em como resolver qualquer alhada em que Tomás se fosse meter imediatamente, afinal não havia nada melhor do que um bom plano de contenção de danos.

Sara deitou os braços ao pescoço de Tomás, entusiasmada, “Vês? Afinal podes vir!”

Tomás, de tão atordoado que estava, primeiro porque Guida o deixava ir, depois porque era o segundo abraço que conseguia de Sara no espaço de uma semana, ficou sem reacção. Atrás de Sara, Guida lançou-lhe um olhar que faria qualquer um urinar de medo nas próprias calças, mas Tomás, assim que conseguiu recuperar o funcionamento dos músculos, retribuiu o abraço a Sara e dirigiu à mãe a expressão mais arrogante que conseguiu. Ver Guida a ranger os dentes de tão enervada que estava assegurava-lhe que já havia cumprido a sua missão naquele dia. Mas não queria desperdiçar o momento com Sara a olhar para Guida, por isso, dirigiu-lhe mais um olhar convencido e pensou no que podia fazer para agradecer à rapariga.

Quase não conseguia acreditar em tudo o que vinha a mudar para melhor desde que a conhecera. De renegado com tendência para sabotar tudo o que fazia a alguém aceite. E devia tudo isso a Sara. De repente, lembrou-se de algo que podia dar à rapariga em tom de agradecimento. Não seria muito valioso, mais que não fosse porque Guida lhe dava pouco mais do que trocos para almoçar, mas podia ser que servisse para lhe mostrar o quanto lhe estava agradecido sem que tivesse que o verbalizar. Dando-lhe um beijo na testa, disse, “Espera um pouco, já volto”

Indo buscar o casaco, saiu. Sara, que se viu sozinha, foi ter com Afonso, que ainda estava a conversar com André, que ainda não tinha visto. Correndo a abraçá-lo, colocou-lhe os braços à volta da cintura, feliz por o ver, “André!”

“Eh chavala”, retribuiu ele. Num movimento rápido, atirou-a por cima do ombro e deitou-a no sofá, antes de lhe fazer um ataque de cócegas tão intenso que ela mal conseguia respirar de tanto rir.

Leonor, aproveitando o facto de Afonso estar livre, apalpou-lhe uma nádega, o que o fez saltar tão alto que ela se admirou por ele não ter dado com a cabeça no tecto. Naquele momento sim, viu-o corado como nunca antes tivera o prazer de testemunhar. Com a maior das naturalidades, agora que tinha comprovado o que queria, disse a Rodrigo, perdido de riso, “Sim, confirma-se”

André, levantando a cabeça, perguntou, “O que é que eu perdi?”

Adriana, no outro sofá, respondeu, com uma expressão tão estóica que poderia estar a descrever o boletim meteorológico, “Aparentemente o pacote do Afonso é bom, mas não fiques com inveja, o teu de certeza que é melhor, basta seres preto”

Afonso nunca pensou viver o suficiente para ver tal coisa, mas André, o sarcástico temperamental e gozão, ficou sem palavras. Após o que pareceu uma eternidade na qual o ambiente era de cortar à faca, André, sorrindo de orelha a orelha, levantou-se e disse, em tom provocante, “Sabes que mais é que se diz dos pretos?”

Quando a conversa se voltou para os genitais de André, Leonor achou por bem sair dali. Estava a beber uma chávena de chá quando Afonso a abordou. Ele já estava a pensar quando seria a melhor altura para fazer o convite, mas a oportunidade nunca se apresentava e, que melhor momento que aquele? Ainda corado, fosse devido ao facto de Leonor lhe ter apalpado os glúteos, fosse porque a troca de provocações entre Adriana e André estava a ficar cada vez mais explícita e ofensiva, o perturbava, disse, “Tens planos para a noite de Ano Novo?”

“Não, vais fazer algum convite?”, respondeu a rapariga, entre um gole e outro no seu chá de camomila.

“Eu ia a uma festa que vai haver na marina e estava a pensar se não gostarias de vir também”, sugeriu Afonso, ciente de que o seu discurso rivalizava o de um miúdo de cinco anos com Síndrome de Down. Contava que fosse muita gente conhecida mas só com uma grande quantidade de azar é que Beatriz lá estaria.

“Pode ser”, aceitou Leonor. Lembrando-se que Adriana estava sem planos, nunca se perdoaria se a deixasse em casa. Decidindo que iria interromper a conversa entre a amiga e André, convidou, “Eu e o Afonso vamos a uma festa que vai haver na marina no Ano Novo, queres vir?”

“Hm…quem mais vai?”, perguntou Adriana, que tinha vontade de tudo menos de segurar uma vela, “O monte de mer….quer dizer, o Rubinho, vai?”

“Vai sim”, disse Afonso, após uma pausa na qual considerou se devia mentir ou não, mas optou por confessar a verdade. O mais certo era que Rúben estivesse ocupado a meter a cara no peito da nova amiga, mas encontraria tempo para se meter com Adriana. Não queria que assim fosse, visto gostar bastante de Adriana e não querer picardias entre os dois, mas Rúben era incapaz de guardar os comentários para si.

“Mas o teu chocolate preferido também vai”, apressou-se André a informar. Afonso estranhou o súbito interesse dele em ir, ele que lhe dissera que não queria ver gente conhecida nem por nada. Silenciando-o com o olhar, André ergueu as duas sobrancelhas várias vezes para Adriana, que concordou em ir.

Nesse momento, Tomás, encharcado, apareceu à porta e fez sinal para que Sara fosse ter com ele, pois não queria que os presentes se metessem com ele. Vendo-o com o cabelo colado à testa e mais molhado que um pinto, Sara perguntou, preocupada, “Onde é que estiveste? Estás todo molhado”

Passando-lhe um pequeno embrulho para a mão, Tomás disse, “It’s for you”

“É para mim?”, questionou a rapariga, estupefacta perante o facto de o rapaz a estar a presentear. Quando ele lhe confirmou que era, disse, “Oh, não era preciso”

Abrindo o embrulho, Sara retirou um gancho de cabelo, adornado com uma borboleta. Tomás esperou que tivesse gostado, visto que, dado o seu orçamento, não tinha muito por onde escolher e os olhares que a senhora da loja lhe dirigiu quando o viu a escolher acessórios femininos assombrá-lo-ia até ao fim dos seus dias. A rapariga, abraçando-o pela segunda vez naquele dia, disse, “Obrigada, a sério, é tão giro”

“Ainda bem que gostas”, respondeu o rapaz, considerando, naquele momento, que havia valido a pena que a empregada pensasse que ele era travesti à noite. E a rapariga cheirava tão bem…

Retirando a cara do pescoço de Tomás, Sara disse, com um ar desanimado, “Mas não me devias ter dado, eu não tenho nada para ti”

“Não é preciso”, assegurou-a, mantendo-a ainda abraçada pela cintura, “Era só para te agradecer, sabes, por tudo o que tens feito por mim, it really means a lot to me”

Sentindo uma sensação estranha que não conseguia identificar no estômago, Sara perguntou-se sobre qual seria a melhor maneira de proceder, deveria dizer ou fazer alguma coisa? Tomás estava apenas a olhar para ela com um sorriso e bem, como havia ele mudado. Nervosa, rezou para que os seus batimentos cardíacos não fossem audíveis, pareciam-lhe tão exageradamente fortes. Limpando uma gota que escorria do cabelo molhado do rapaz para a cara, achou por bem dizer, quando achou que a situação, fosse lá como fosse, era demasiado abstracta para si, “Acho que vou ter com o meu irmão”

Quando a rapariga o largou, Tomás não a seguiu. Suspirando, tinha uma sensação agridoce. Por um lado tudo aquilo fora demasiado novo e demasiado intenso para conseguir digerir, por outro queria saber o que é que iria acabar por acontecer, se é que acontecia alguma coisa. Talvez fosse melhor assim, ao menos sabia que não estragara tudo, como tendia a acontecer com tudo o que ele fazia. Subitamente, lembrou-se de que estava alagado e, se antes lhe pareceu que estava calor, agora dava consigo a tremer de frio.

Na sala, enquanto Adriana conversava com Leonor, André, sentindo que devia uma explicação a Afonso, disse, “Sabes aquilo que eu te disse acerca de faltar algo à Leonor para que ela seja interessante?”

Afonso, acenou negativamente com a cabeça, sem saber o que é que o outro pretendia ao certo com aquela conversa.

“É o que a Adriana tem”, confessou André, sorrindo como se tivesse acabado de ganhar o euromilhões. Conseguia conter pelos dedos de uma mão a quantidade de vezes que alguém o desafiara e, quando contava os que conseguiram responder-lhe de igual modo, o número ficava ainda mais pequeno. Nesse momento, Afonso percebeu o porquê de ele querer ir à festa o que, para ele, tanto melhor.

Pouco depois, Afonso teve de se ir embora, pois ainda ia jantar a casa dos avós, pais de Daniela e aproveitaria para dar boleia a Adriana. Quando se despediu de Leonor, aproveitou para lhe retribuir o favor, apalpando-lhe a nádega, o que fez com que ela se risse e lhe desse uma dentada ao de leve no pescoço. Como Guida estava nas proximidades e a rapariga não queria ser sujeita a um interrogatório, decidiu que era melhor ficarem por ali. Já Sara, achou melhor guardar o gancho dentro do bolso, para que o irmão, que ultimamente andava estúpido, não tecesse considerações. Antes de ir embora, colocou-se em bicos de pés e deu um beijo na bochecha de Tomás, que corou de deleite.

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