O
Natal era, sem dúvida, a quadra preferida de Afonso, fosse pelo seu ambiente
festivo e aconchegante, fosse pelas férias, nem o próprio sabia ao certo
porquê, apenas sentia que era uma altura do ano que, a seu ver, só rivalizava
com o Verão no que dizia respeito à paz confortável que lhe proporcionava.
Certo era que, se tivesse de ser completamente honesto, admitiria que a nota
medíocre que a Dona Adelaide lhe dera fora difícil de aceitar mas não havia
nada que pudesse fazer, não lhe restando senão conformar-se. Mas não fazia mal,
para contrabalançar a situação Leonor e ele tinham-se vindo a aproximar, não
tão depressa como ele gostaria, mas foram dando pequenos passos até os almoços
e as ocasiões em que iam buscar os irmãos à escola voltaram e ele não podia
sentir-se mais grato.
Era
surpreendente, até para ele próprio, o quanto sentia a falta dela. Verdade
fosse dita, passar por ela na escola e trocar um cumprimento esmorecido,
enquanto se lembrava de como as coisas haviam sido, transtornava-o mais do que
pensava que fosse fazer, tendo em conta que até não se conheciam assim há tanto
tempo. Assim, foi com muita felicidade que viu as coisas voltaram, ainda que
lentamente, ao que eram, deixando a rapariga de erguer uma muralha entre ambos
e permitindo-lhe aproximar-se. Foi, até com grande sofreguidão que aceitou todo
e qualquer pequeno gesto da parte dela que encurtasse a distância entre ambos.
Estava consciente de que quem mais esforços empregava nesse sentido era ele,
como Rúben fazia questão de lhe recordar, mas ficava tão feliz que isso não o
importunava.
E,
foi realmente sem qualquer surpresa, que aceitou o convite de Leonor para lhe
fazer companhia enquanto fazia as compras de Natal para a família. Não gostava
da ideia de passar uma tarde dentro de um centro comercial, de loja em loja,
mas se a rapariga tinha tomado a iniciativa de o convidar, por oposição ao que
era comum acontecer, já que hábito ser ele a fazer qualquer convite, não ia
recusar. Em bom rigor, não fazia sacrifício nenhum em participar em qualquer
programa que incluísse Leonor. Tendo um bom prognóstico para aquela tarde, foi
com um sorriso enorme que se acabou de despachar para poder sair. O plano era
passar por casa de Leonor, onde deixaria Sara que iria estudar com Tomás, e
depois seguiam para o centro comercial. No entanto, se ele mal podia esperar
por chegar a casa da rapariga, Sara estava a levar o seu tempo a despachar-se. Tendo
em conta o quão ansioso estava, ao ver que a irmã ainda não estava pronta,
sentiu a sua exasperação vir ao de cima.
Agora
que pensava bem, o facto de Sara estar a planear estudar estava-lhe a parecer
estranho. A irmã nunca antes se dera ao trabalho de abrir um livro e agora
resolvera tirar tempo precioso de férias para estudar? Quanto a ele só lhe
restava sentir-se feliz por Sara, pois os hábitos ociosos que ela mantivera até
ao momento eram, para ele, uma fonte de preocupação, portanto gostava do facto
de ela estar a criar uma boa ética de trabalho. No entanto, a demora da irmã
começava a enervá-lo, uma vez que a última coisa que queria era fazer Leonor
esperar. Pronto para arrastar Sara de casa, entrou no quarto desta, sem
anunciar a sua chegada.
A
irmã, contudo, não pareceu dar pela sua presença, de tão concentrada que estava
enquanto penteava cuidadosamente o cabelo. Afonso, que já antes se questionara
quanto aos novos hábitos de estudo de Sara, agora mais tinha com que se
interrogar. Ela, embora não fosse desleixada, nunca antes se dera a tanto
trabalho antes de sair de casa, salvo quando ia aos anos de algum amigo ou ao
cinema. Porém agora parecia-lhe decidida a arranjar-se sem razão aparente. Se
havia altura para se sentir desconfiado, era agora. Teria ela inventado um
pretexto para sair de casa e depois iria para outro sítio? Estaria com más
companhias?! O seu instinto protector de irmão mais velho às vezes tendia a
fugir ao seu controlo. Clareando a garganta, o rapaz, depois de respirar fundo
várias vezes para acalmar, conseguiu a atenção da irmã, “Estás pronta?”
Impedindo
uma madeixa de cabelo de lhe cair sobre a face com um gancho, Sara, satisfeita
com o produto do seu esforço, respondeu, absorta, sem se aperceber do tumulto
interior do irmão, “Hm hm”
Afonso,
depois de ultrapassar o choque inicial, tentou ser racional. Em breve a irmã
estaria a completar treze anos, idade essa que ele sabia ser um ponto de
transição para muitas raparigas, ainda que não soubesse isso por experiencia
própria, apenas ia pelo que observava. Era natural que mudasse e começasse a
ter outros interesses, ele compreendia isso, afinal também passara por uma fase
análoga. Sempre era uma teoria mais reconfortante do que aquela em que a sua
irmãzinha se teria juntado a um gang. E pensar que os tempos em que ela andava
pela casa a desenhar nas paredes não lhe pareciam assim tão distantes…Desde que
se ficasse por aí e, para bem da sanidade dele, não trouxesse rapazes ao barulho,
estava tudo bem.
Sara,
ao ver o irmão embasbacado a olhar para si, inquiriu, “Estás bem?”
“Ahm?
Sim, estou”, apressou-se Afonso a dizer, afastando os pensamentos de irmão mais
velho e, talvez, demasiado protector, da mente. Subitamente, lembrou-se do
motivo que o levara ali e, impaciente, apressou a irmã, “Se estás pronta porque
é que ainda aqui estamos?! Vamos!”
A
irmã nem teve tempo para processar a viagem feita em tempo recorde da sua casa
até à de Leonor, uma vez que Afonso parecia ligado à corrente eléctrica. De tão
ofegante que estava por ter tentado acompanhar o ritmo do irmão, que, quando
chegou ao portão, perguntou-se porque é que se dera ao trabalho de compor o
cabelo, se este já estava fora do sítio. Se não soubesse o quão ansioso Afonso
estava, teria ficado chateada por ver os frutos do seu trabalho desperdiçados,
mas ao ver o irmão tão feliz, não pôde evitar o sorriso que ela própria acabou
a evidenciar. Se Afonso apoiava o peso, ora num pé, ora no outro, de tão
irrequieto que estava, o seu entusiasmo, mal Tomás abriu a porta, murchou de
forma considerável.
Era,
também, aparente, que o sentimento era mútuo, porque Tomás torcera o nariz
quando o viu. Nem sabia ao certo o que é que o enervava profundamente em
Afonso, mas o facto de ele seguir Leonor como um cachorrinho carente com a
expressão mais imbecil irritava-o até mais não. Bem que tentava compreender o
que é que em Afonso fizera Leonor engraçar com ele, mas sem sucesso. O rapaz
parecia-lhe mesmo patético. Se não houvesse uma diferença de idades tão grande
entre eles, Afonso serviria bem de saco de pancada literal e figurativamente
para ele, mas não tardaria a apanhá-lo em altura. Tinha que reconhecer que, pelo
menos, Ryan personificava tudo o que ele, Tomás, gostaria de ser. Afastando a
sua atenção para Sara, a bem da sua boa-disposição que ainda era alguma porque
Guida estava em negócios, nem ele sabia onde, esboçou um sorriso, que aos
poucos, haveria de não afugentar tudo e todos, “Hi”
Sem
dúvida que Afonso, se tivesse de enunciar tudo o que lhe desagradava em Tomás,
estaria a usar dentadura postiça e andarilho, antes de concluir a lista.
Todavia, a súbita mudança de atitude de Tomás quando abordara Sara não passou
despercebida a Afonso, cujos pavores mais profundos vieram à superfície.
Primeiro, irmã tivera atenção extra na aparência sem ter motivo para tal, agora
Tomás comportava-se como alguém quase normal. Horrorizado com a ilação, Afonso,
cuja tonalidade passara para um verde de aspecto pouco saudável, muniu-se de
todo o seu auto-controlo para não decapitar Tomás ali mesmo e Sara logo a
seguir. Não, estava errado com certeza, a sua irmã nunca, jamais, em tempo
algum, iria ter o mais ténue resquício de uma paixoneta por…nem conseguia dizer
o nome. Sim, tal nunca aconteceria e ele estava a tirar conclusões erróneas,
tudo o que precisava era de uma tarde com Leonor para purificar a mente.
Felizmente,
Leonor apareceu pouco depois, surtindo nele um efeito apaziguador. Animada,
cumprimentou Afonso e Sara, antes de se despedir do irmão. Tanto quanto lhe era
possível concluir, ver que Tomás estava, finalmente, a fazer amigos, era
maravilhoso, até porque Sara parecia uma boa influência, tanto que o via a
aplicar-se na escola pela primeira vez, não tendo, também, um temperamento tão
explosivo em casa, parecendo, de um modo geral, mais alegre. Sempre era um peso
que deixava de sentir, tal como o que a fazia sentir-se constantemente culpada
por se ter vindo a afastar de Afonso. Em bom rigor, apesar de as coisas terem
voltado à normalidade, o remorso que sentia por ter sido sempre o rapaz a tomar
a iniciativa, aparentando sempre uma paciência de um monge budista, foi o que a
motivou a convidá-lo para irem às compras. Certo, também tinha que as fazer e
assim juntava-se o útil ao agradável.
O
plano até lhe pareceu arriscado, uma vez que temia que uma tarde passada dentro
de um centro comercial o fosse aborrecer, mas o entusiasmo com que ele aceitara
a proposta, assegurou-lhe que estava tudo bem. E, mesmo naquele momento, ele
parecia-lhe tão sorridente que ela estava certa de que não o iria torturar
demasiado. Foi com essa dedução reconfortante que se despediu do irmão e de
Sara, antes de dar um toque com a anca em Afonso, cujo rubor rivalizava com as
decorações de Natal, para que se fizessem ao caminho, “Então até logo,
portem-se bem”
Era
em momentos como aquele que Leonor se lembrava porque é que achava o rapaz um
ser totalmente adorável e, em consequência disso, acabava a perguntar-se como é
que fora capaz de deixar de se dar com ele. Estava ciente de que a maioria dos
indivíduos do seu género não partilharia a sua opinião, mas a timidez de Afonso
conseguia sempre comovê-la. O facto de ele ser comedido e de saber respeitar o
seu espaço pessoal contribuía para que não se sentisse ameaçada nem na
iminência de vir a ser assediada. Era, para ela, uma lufada de ar fresco,
sobretudo quando se lembrava dos rapazes que fora conhecendo ao longo da vida
que haviam sido tudo menos respeitadores, ainda que lhe tivesse demorado a
aperceber-se disso e, a seu ver, uma mudança de vez em quando sabia-lhe muito
bem.
O
rapaz, por muito que observasse Leonor, encontrava sempre um detalhe ou outro
que acabava por prender o seu interesse. A seu ver ela era um paradigma e de
muito bom grado ele passaria dias a contemplá-la, coisa que não faria porque
isso repeli-la-ia num ápice. Porém, o momento que passara distraído fora o
suficiente para o fazer tropeçar numa pedra da calçada. Conseguindo recuperar o
equilíbrio antes de cair, recompôs-se, apanhando a rapariga a disfarçar o riso.
Estava na presença de Leonor havia cinco minutos e, por aquele andar, se não
tivesse cuidado, não sobrevivia até ao fim da tarde. Desanimado porque estava a
afigurar-se inevitável fazer figura tosca diante da rapariga, não evitou
demonstrá-lo com uma expressão que muito o fazia parecer um cachorrinho abandonado.
A
rapariga, fosse por se encontrar bem-disposta, fosse por achar aquela expressão
extremamente adorável, afagou-lhe o braço. O gesto não fora nada de especial,
apenas um contacto breve que não se prolongara por mais de três segundos, mas
Afonso corou de tal forma que condizia com o nariz da rena do Pai Natal. A
proximidade cessou antes que o rapaz pudesse ter um enfarte, mas não sem que
sentisse uma certa pena. Podia já não atropelar as palavras quando estava com
ela, mas contacto físico era outra coisa. Por sua vez, Leonor, a quem as
reacções de Afonso nunca deixariam de divertir, ainda reconsiderou, de modo a
prolongar a sua diversão, provocar um pouco o rapaz, mas achou melhor estar
quieta e sossegada, pois temia que, dado a apenas recente aproximação de
ambos, fosse abuso da sua parte.
“Então,
já sabes que prendas é que vais dar no Natal?”, disparou Afonso, não desejando
um instante que fosse de silêncio constrangedor entre ambos, “Eu estava a
pensar em dar um cachecol à Sara porque ela perdeu o dela, uma camisola
daquelas felpudas à…”
“Calma,
abranda um pouco porque eu não estou a perceber nada do que estás a dizer”,
pediu a rapariga, ainda a tentar perceber o que é que o rapaz dissera a toda a
velocidade. Quando ele se recompôs e falou a um ritmo perceptível, continuou,
“Não é má ideia, mas a maioria dessas camisolas tem um corte tão mau que se
calhar é melhor escolheres outra coisa. Eu já tenho uma ideia do que quero,
menos para o Tomás”
“Pode
ser que depois te lembres de alguma coisa que ele goste”, disse o rapaz,
mordendo a língua para não sugerir que oferecesse um açaime e uma trela a
Tomás. Lembrando-se da sua existência, sentiu uma onda de inquietação, afinal o
comportamento de Sara e de Tomás não lhe inspirou confiança e mandou uma
mensagem à irmã, mensagem essa que esperava que ela não fosse ignorar e fosse
ter em conta.
Leonor,
ao colocar um pé dentro do centro comercial, sorriu de orelha a orelha. Uma das
suas actividades preferidas sempre fora e, sem dúvida que sempre seria, era
fazer compras. Não gostava de preencher o requisito do estereótipo de rapariga
supérflua e oca, aliás combatia-o incessantemente, mas não resistia a uma tarde
passada num centro comercial. Adorava percorrer as lojas da sua predilecção,
experimentar acessórios e roupa e tinha a particularidade de não ter de se
preocupar com o dinheiro. Bem podia culpar Guida por isso, ou não fosse ela totalmente
fanática por compras. Também adorava aconselhar quem quer que fosse com ela e,
se no outro dia Adriana a acompanhara, se desejava a toda a força comprar
jardineiras, ao menos que comprasse umas que lhe assentassem bem. E no final,
ficara satisfeita com o resultado, por isso Leonor considerou que fora bem
sucedida.
Em
época de Natal o centro comercial ficava mais lotado do que durante o resto do
ano, havendo crianças a correr em todas as direcções e adultos carregados com
embrulhos pesados e carteiras leves. Aquele centro devia ter um quinto do
tamanho daquele que Leonor costumava frequentar quando ainda vivia nos Estados
Unidos mas cumpria bem a sua função. No centro haviam montado um presépio e,
não muito longe, estava uma alma caridosa vestida de Pai Natal a tirar
fotografias com as crianças. Ainda tinha uma vaga recordação da ocasião em que
Marta insistira para que tirasse uma fotografia com o Pai Natal e ela acabara
por lhe vomitar em cima, de tão aterrorizada que ficara. Rindo um pouco para si,
encolheu os ombros quando o rapaz lhe perguntou o que se passava e sugeriu
passarem por uma loja que já tinha debaixo de olho, para procurar uma prenda
para Guida.
Para
que não se separassem no meio daquela multidão, Leonor colocou o braço à volta
do de Afonso, que se limitou a ser arrastado, com uma expressão deliciada. Se
fosse honesto, teria que admitir que, se havia loja da qual fugisse mais
depressa do que o humanamente possível, seria aquela. Desde as empregadas de
aspecto presunçoso e enjoado, à decoração que pretendia ser considerada
“sofisticada”, o que quer que isso significasse, tudo o fazia sentir-se pouco à
vontade. Pela rapariga, aguentou, dando o seu parecer, sempre que pedido, sobre
duas peças de roupa que lhe pareciam iguais. Quando Leonor se decidiu por um
casaco que teria feito Susana rir até sufocar, o rapaz expirou de alívio.
“Obrigada
por teres paciência para me aturares”, brincou a rapariga, dando-lhe com o
cotovelo no braço, “Espero que não te esteja a chatear muito”
“Não,
eu até estou a gostar”, disse Afonso, contendo-se para não acrescentar que, se
Leonor não soubesse como lhe agradecer, podia ir experimentar roupa interior e
pedir-lhe opinião. Esforçando-se para afastar os pensamentos que teriam sido
mais característicos de Rúben, lembrou-se de que poderia sugerir à rapariga,
como estavam em frente à loja dos bichinhos de estimação, para procurar ali a
prenda de Tomás. Redobrando os esforços para banir os pensamentos maldosos,
passou a mão pelas costas de Leonor e acrescentou, “Gosto da tua companhia, a
sério, é verdade”
“Também
gosto da tua companhia”, respondeu a rapariga, conseguindo, dessa forma,
assegurar ao rapaz que não o tinha na conta de moralmente duvidoso, o que o
deixou feliz.
Com
grande pena de Afonso, Leonor não prolongou o momento porque encontrou a tal
loja que procurava. Sendo Adriana a fanática que era por jogos de vídeo, a
rapariga tinha-lhe, de antemão, pedido umas recomendações acerca de jogos que
pudesse oferecer a Tomás, embora a ideia de contribuir para o hábito dele não
lhe agradar. Ainda tinha bem presente na memória o aniversário em que dera ao
irmão um jogo com dragões na capa porque sabia que ele gostava de dragões, mas
tratava-se, na verdade, de um jogo para crianças pequenas e Tomás não gostara.
Quando contara o episódio a Adriana, ela desmanchara-se a rir, informando-a de
que o “Aventuras dos dragões bebés” não ocorreria nem ao Pai Natal. Para evitar
episódios desnecessários, recomendou-lhe alguns da sua lista de eleição. Na
loja, ao encontrar uma das sugestões de Adriana, perguntou ao rapaz, “Se te
oferecessem isto, gostavas?”
“Não
gosto muito de jogos de vídeo, sou mais de actividades ao ar livre”, respondeu
Afonso, que só se sentia em paz quando estava a placar alguém. Agora que se
lembrava, Sara não lhe respondera à mensagem e, para bem do irmão da rapariga,
era bom que ela não estivesse esquartejada. Sombrio, sem censurar o que dizia,
acrescentou, “Mas se a cena dele for vegetar num sofá, é ideal”
“Também
não gosto mas não posso fazer nada”, comentou Leonor, exasperada. Com a
garantia de que aquele jogo iria ligar o irmão cirurgicamente ao sofá, acabou
por o comprar, embora contrariada. Já tinha uma prenda para Guida e uma para
Tomás, só faltava para Marta. Enquanto passavam pelas várias lojas, lembrou-se,
“Então e tu? Não compras nada? Já me estou a sentir mal”
“É
que não sei o que é que hei-de comprar, isto é tanta coisa que fico perdido”,
confessou o rapaz, coçando a cabeça. Ao que tudo parecia indicar, era o seu dia
de sorte, visto que a rapariga parecia ter um doutoramento em compras e, após
um meia dúzia de perguntas e meia hora mais tarde, já tinha uns ténis para Sara,
uma pulseira para Daniela e uma colectânea de uma série que era do agrado de
Susana. No final, agradeceu-lhe, “A sério, tens um jeitinho para a coisa”
“Ainda
tu não viste nada”, disse Leonor, fazendo o gesto típico de erguer as
sobrancelhas, de modo provocante. Estando a brincar, tinha, no entanto, que
admitir que ver o rapaz todo corado era algo de que nunca se fartaria. Ainda
faltava, contudo, a prenda para Marta e não podia ficar a mover as sobrancelhas
eternamente ou pelo menos até rebentar uma veia a Afonso, por isso, puxando-o
pela mão, arrastou-o até mais uma loja.
Afonso,
tentando não chocar contra ninguém daquela maré de gente, seguiu-a. Assim que
entrou na loja e se deparou com mil e uma cores e um ambiente tão “amaricado”,
como diria Susana, torcei o nariz, o seu martírio parecia não ter fim. Só
entrava numa loja daquelas porque Leonor a queria ver, caso contrário não se
aproximaria nem por nada. Quando uma empregada os abordou, não pôde deixar de
reparar nos atributos desta. Pelo menos, enquanto a rapariga se entretinha com
os trapos ele sempre podia apreciar a empregada que tão amistosa lhe parecera.
Quase que podia jurar que ela lhe tinha acabado de piscar o olho, mas não podia
ser porque esse tipo de coisas não lhe acontecia. Mantendo contacto visual com
a empregada, teve a resposta à sua pergunta, quando ela repetiu o gesto. Se a
rapariga não lhe ligava nenhuma, pelos vistos tinha agradado a outra pessoa.
“Dá-me
só um minuto para ir ver aquela blusa ali”, pediu Leonor, cujo olho clínico
para compras estava tão apurado que numa questão de segundos avistara uma
potencial peça de roupa que assentaria lindamente a Guida. Correndo para lá,
apreciou o tecido e rapidamente calculou a relação qualidade preço da blusa.
Resolvendo pedir a opinião do rapaz, mais para que ele não morresse de tédio do
que por necessidade, virou-se a tempo de o ver, corado mas a adorar a atenção
da empregada, que não fazia qualquer cerimónia, a ponto de já lhe estar a
brincar com a camisola.
Dizer
que o descaramento da empregada chateara Leonor era o mesmo que dizer que
aquele centro comercial encontrava-se a ser frequentado por algumas pessoas
naquele momento. A começar pela mão atrevida da empregada que não largava o
rapaz, a acabar na expressão derretida deste, tudo irava a rapariga, que já
deitava fumo. Nem sabia o porquê daquela reacção tão exagerada, mas resolveu
agir. Agarrando-se ao braço de Afonso, com uma expressão tão doce que era
assustadora, disse, “Ah não querida, acho que ele está bem e não precisa de
ajuda para escolher roupa, obrigada na mesma”
“Pronto,
fiquem à vontade”, respondeu a empregada, com uma expressão capaz de fazer
crianças chorar.
A
ver a empregada afastar-se, o rapaz, teve pena. Teria, por algum motivo,
encarnado a alma de Rúben, para ter duas raparigas a disputarem a sua atenção?
A sua escolhida seria sempre Leonor, mas a atenção parecia-lhe muito bem. E,
estando no campo das coisas improváveis, aquilo afigurava-se como ciúme por
parte da rapariga ou era impressão sua? Não, que a empregada estivesse
interessada ainda conseguia acreditar, mas Leonor com ciúmes já não. Estava
mesmo aborrecido por a rapariga lhe ter frustrado o momento com a empregada,
sobretudo ao ver as ancas desta quando andava. Chateada, Leonor disse,
“Estás-te a babar”
“Ahm?”,
inquiriu Afonso, até que deu pela saliva que deixara acumular no canto da boca.
Piscando o olho à empregada, que retribuiu, seguiu a rapariga para fora da
loja, com um sorriso. Dada a raridade de situações daquele género, a atenção
soubera-lhe muito bem.
“Nada!”,
disse Leonor, desdenhosa. O descaramento da empregada parecia-lhe um abuso. E o
ar do rapaz, todo derretido e a salivar a olhar para ela era a cereja no topo
do bolo. Sentando-se numa cadeira, de braços cruzados e expressão amuada,
estava consciente de que não estava a lidar como deveria com a situação, mas
irritara-se tanto que só a recordação da cara da empregada quando lhe frustrara
os planos a acalmava. Agora que estava de cabeça mais fria, podia reflectir
sobre o que se tinha passado. Estava tão habituada a ser o foco de toda a
atenção de Afonso que era normal sentir ciúmes quando ele, na sua cara, a
deixava para segundo plano a favor de uma desconhecida com pouca vergonha. Já
admitira previamente que até tinha uma paixoneta, mas nada que justificasse um
acesso de raiva daqueles.
Enquanto
observava a rapariga a fulminar o ar que tinha em frente da cara, o rapaz,
constrangido, já se arrependera de ter sido tão receptivo quanto à empregada.
Mesmo assim, Leonor já fizera saber que o beijo que lhe tinha dado não
significara nada e que não queria nada com ele que não amizade, por isso ele
não fizera nada de errado. Talvez tivesse deixado a rapariga numa posição
desconfortável, mas não era caso para ficar tão chateada. Agora não sabia o que
dizer ou fazer para remediar a situação. E pensar que a tarde estava a ser tão
agradável até que se estragara tudo. Estava ele a censurar-se por algo que
escapava ao seu controlo, quando Leonor disse, “Desculpa”
Afonso
levantou a cabeça e encarou a rapariga, sem saber o que dizer. Não necessitou
de dizer nada, ela continuou, mesmo que não tivesse tirado os olhos do vazio,
“Não sei o que é que me deu, mas estava a ser parva”
“Um
pouco”, admitiu o rapaz, suspirando. Estava a ponderar os prós e os contras de
perguntar a Leonor o porquê daquela atitude, mas não gostaria de a chatear mais
do que já estava. Ainda assim, a curiosidade quase que era fisicamente dolorosa
e ficar na expectativa era algo que o torturava. Sem se preocupar mais com as
consequências, decidiu arriscar, “Para que é que foi aquela cena toda?”
A
rapariga podia ter arranjado uma desculpa, fosse ela o facto de se ter irritado
com a pouca vergonha da empregada, ou os efeitos de uma certa altura do mês,
mas achou que, depois do seu comportamento menos do que apropriado, era melhor
ser sincera. Hesitando um pouco, acabou por confessar, “Não gostei de ver a
empregada da loja a fazer-se a ti”
“Ela
estava só a ser simpática”, respondeu Afonso, tentando minimizar a questão
tanto quanto possível. A sua auto-estima definitivamente agradecia ser elevada
de vez em quando, mas se o preço a pagar era ficar mal com Leonor, então não lhe
parecia uma boa troca.
“Simpática?
Viste a babar-se toda?”, comentou a rapariga, revirando os olhos. Talvez
estivesse a ficar ilogicamente possessiva, mas a verdade é que não o conseguia
evitar.
“E
então?”, perguntou o rapaz, encolhendo os ombros. Estaria Leonor a ter uma
crise de ciúmes ou estaria ele no paraíso?
“E
então?”, repetiu a rapariga, incapaz de formular um discurso digno. Quando lhe
ocorreu algo para evitar que a conversa descarrilasse para zonas inseguras,
disse, “Ahm…que descaramento e se estivesses com uma namorada? Ela arranjava
logo problemas”
“Não
estava e por isso não aconteceu nada”, replicou Afonso, contendo-se para não acrescentar
que só não estava porque ela não queria. Aproveitando para provocar Leonor,
disse, num tom de gozo, “Quer dizer, acontecer, aconteceu, tu estás toda
lixada, isso são ciúmes?”
“O
quê?!”, balbuciou a rapariga, à medida que uma tonalidade avermelhada lhe
percorria as bochechas. Na opinião do rapaz tinha imensa piada a súbita inversão
de papéis entre eles, já que costumava sempre a ser ele a ficar embasbacado.
Por outro lado, na parte que lhe dizia respeito, Leonor não achava qualquer
piada a não deter o controlo completo da situação, mas isso iria mudar mais
rapidamente do que Afonso julgava. Aproveitando para brincar com ele e, assim,
o fazer recuar e voltar ao seu lugar, a rapariga apontou para o Pai Natal e troçou,
“Aquele é que é um trabalho bom para ti”
“Hm?”,
murmurou o rapaz, franzindo o sobrolho. O que é que ela pretenderia com aquela
mudança de conversa? Se julgava que ele ia deixar passar quando estava a desfrutar
tanto, estava enganada como nunca antes se enganara na vida. Não querendo deixar
passar a oportunidade para retribuir, disse, “Ai sim? Só se fores tu a
sentares-te no meu colo”
“Hm,
isso agora”, respondeu Leonor, sugestivamente, aproveitando para se aproximar
dele. Por ela tudo bem, dois podiam jogar aquele jogo e ela não estava disposta
deixá-lo ganhar. O facto de ele ter engolido em seco, nervoso, foi mais do que
suficiente para que a rapariga visse que não teria muito trabalho. Com o
objectivo de o deixar incapaz de reagir, murmurou-lhe ao ouvido, “Desces-me a
chaminé e dás-me uma prenda, hm?”
“Ho,
ho, ho…”, gaguejou Afonso, com ar de quem tinha acabado de ser atingido por um
comboio. Se fosse necessário não se incomodaria nada em se vestir de Pai Natal
ou de Rena, se fosse preciso, e dar a Leonor uma prenda que nunca mais fosse
esquecer.
“Não
querias mais nada”, disse a rapariga, vitoriosa ao testemunhar, em primeira mão,
a frustração patente na cara do rapaz, dando-lhe um estalo leve, em tom de
gozo, na perna.
Afonso,
à semelhança daquele glorioso dia em que Leonor o encostara a uma parede, viu
todas as suas expectativas tórridas a estilhaçarem-se defronte dos seus olhos.
Olhando para a rapariga como um cachorro olharia para o dono que o faz dormir
fora de casa, apenas para ela lhe acenar negativamente com a cabeça, acabou por
ter as suas suspeitas confirmadas. Talvez noutro dia fosse ter sorte.
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Vendo
Afonso seguir Leonor com a expressão mais embevecida, Sara pensou que, se não
se tratasse do seu irmão e, portanto, um tanto constrangedor de se imaginar
quando o tema era raparigas, teria achado tão doce que poria um elefante em
coma diabético. De tão desnorteado que ia, o rapaz acabou por tropeçar numa
pedra da calçada, evitando cair por pouco, e Sara, bem como Leonor,
aparentemente, não conseguiram esconder o riso. Ainda a rir, Sara encarou
Tomás, no momento em que este revirava os olhos. O rapaz não precisou de se
manifestar mais para lhe garantir que nutria tanta simpatia por Afonso como
Afonso por ele.
Quando
reparou em Sara, Tomás apressou-se a rearranjar a sua expressão facial e a
propor, “Hm…não queres entrar?”
“Vamos”,
aceitou a rapariga, seguindo-o até à sala. Não considerava a sua casa pequena, pelo
contrário, era até, na sua opinião, bastante espaçosa, sobretudo quando se
lembrava da pequena casa que Susana fazia questão de manter, mas nada que se
comparasse àquela, pelo que já conhecia do sítio. Nunca pediria a Tomás que lhe
fizesse uma visita guiada pela casa mas era seguro afirmar que aquela família
estava mesmo muito bem remunerada. A distância desde a entrada até à sala, toda
ela impecavelmente decorada apenas serviu para sustentar a ilação tirada supra.
Na sala deparou-se com os livros e cadernos do rapaz já empilhados, o que a fez
pensar que ele estava decidido a levantar a nota, o que, por seu turno, a fazia
pensar que talvez não fosse um serão desperdiçado quando ela podia estar a ver
televisão ou a brincar com Mocas.
Como
não puderam estudar juntos as vezes necessárias para colmatar as fragilidades
que ambos sentiam, tiveram que recorrer a trocas de informações clandestinas durante
os testes, mais que não fosse para se aguentarem naquele trimestre sem terem
uma negativa redonda na pauta. Como aquele sistema apenas dera frutos porque
tiveram sorte, acharam por bem começarem a juntar-se com mais frequência e,
ei-los ali na sala de Tomás para fazerem isso mesmo. Porém, havia que admitir que
as peripécias passadas para enganar os professores durante os testes e as
poucas ocasiões em que se juntaram para fazer os trabalhos de casa acabaram por
torná-los mais próximos, embora continuasse a haver o ocasional silêncio entre
ambos, quando nenhum sabia ao certo o que dizer.
Vendo
Sara olhar em todas as direcções, Tomás, sem esquecer as regras de boa
educação, indicou-lhe uma cadeira. A rapariga agradeceu e, ao puxar a cadeira,
um volume enorme, que antes estava escondido debaixo da mesa, deu sinal de
vida, frenético e assustado. Quando identificou, por fim, de que se tratava,
Sara fitou o que era, sem margem para incertezas, o bulldog mais obeso que
alguma vez vira. A julgar pela envergadura e pela dificuldade em mexer-se, era
seguro afirmar que o cão devia pesar mais do que ela. Ainda assim, com os seus
olhos brilhantes, pêlo lustroso e figura atarracada, podia ser considerado fofinho.
Quebrando o momento partilhado pela rapariga e pelo animal de estimação, o
rapaz esclareceu, com um encolher de ombros desinteressado, “É a Princess, a
cadela da minha irmã e a mais feia que alguma vez viste, não é?”
“Não
digas isso, ela é tão querida”, replicou Sara, ainda encantada com os olhos
grandes e ternurentos do animal. Adorava animais, fossem eles répteis, pássaros
ou mamíferos, mas cães teriam sempre um espaço reservado no seu coração. Claro
que Mocas era insubstituível, isso era certo, mas nunca se coibiria de mimar
outros cães, por isso, quando não aguentou mais, pediu, deixando transparecer o
seu entusiasmo, “Posso fazer-lhe uma festinha?”
“Go
ahead”, concordou Tomás, permitindo-se a exteriorizar um queixume, algo que lhe
era pouco característico, já que costumava guardar para si o que quer que o
atormentasse, “Eu queria o dobermann, que era muito mais badass que essa, mas
como fazem sempre as vontades à Leonor e foi love at first sight entre ela e
essa cadela…”
Não
era que ressentisse a irmã, pelo contrário, não imaginava a sua vida sem ela e
adorava-a a sério. No entanto, um miminho de vez em quando também lhe sabia bem
e, se de Marta não tinha razões de queixa, Guida recebia-o sempre com sete
pedras na mão. Em boa verdade, nem sabia porque é que se importava, já devia
estar habituado, Se desconhecia o motivo, por outro lado, sabia a priori que se
a situação perdurava havia 12 anos, então não iria mudar naquele momento,
portanto mais valia resignar-se e aceitar, estóico, a sua sorte. Se Leonor era
a menina de ouro da família, ele era o renegado. Pelo menos, agora que pensava
no assunto, via porque é que a irmã engraçara com Afonso, se gostava daquela
cadela amorfa e aborrecida, pensou ele, mordaz. A sua corrente de pensamentos
negativa foi interrompida por uma visão que, até ele tinha que considerar
enternecedora, que era composta por Princess de barriga para o ar com Sara a
mimoseá-la.
“Desculpa,
não resisti”, pediu a rapariga, quando sentiu que já estava a dedicar demasiada
atenção à cadela e, por momentos, a esquecer-se do motivo que a levara ali. À
mesa, embora ainda tivesse a cabeça de Princess a deixar uma poça de baba em cima
do seu pé, tirou os livros para fora e, depois de definirem por onde iam
começar, acordaram que o português de Tomás carecia de prioridade absoluta.
Enquanto iam despachando a pilha interminável de trabalhos de casa que a
professora os incumbira de fazer durante as férias, ia explicando ao rapaz o
funcionamento dos diversos tempos verbais, coisa que o baralhava muito devido
às diferenças entre o português e o inglês.
Não
era por falta de esforço da parte dele, apenas tinha um longo caminho a
percorrer, mas os progressos eram lentos. Sara, encontrando uma paciência que
nem sabia de onde aparecera, explicou uma, outra e outra vez, até que Tomás
começou a compreender. Verdadeiramente falando, esperara que ele desistisse
depois da segunda tentativa e não quisesse saber mais do assunto, mas a
persistência dele surpreendeu-a. Ver a expressão de orgulho consigo mesmo do
rapaz acabou por alastrar a sensação também à rapariga, não só porque o seu
trabalho dera frutos, mas também porque acabou por se sentir feliz por ele. Se
ainda não sentisse um certo receio ocasional de Tomás, afinal o susto da faca e
as tendências instáveis dele não eram algo que conseguisse esquecer facilmente,
tê-lo ia abraçado. Mesmo assim, não dispensou felicitá-lo, “Boa Tomás!”
O
entusiasmo que deixou transparecer apanhou o rapaz desprevenido, tanto que a
face deste ganhou uma tonalidade avermelhada e, por um momento, ao contrário do
que costumava suceder, não soube o que dizer, acabando por balbuciar,
atabalhoadamente, “Obrigado”
Aproveitando
a pausa para conferir as horas, Sara viu uma mensagem no telemóvel.
Provavelmente seria Cláudia para a informar do ataque às lojas do centro
comercial que fizera, algo que lhe desinteressava imensamente, mas, ainda
assim, decidiu ver. Era de Afonso, o que a fez estranhar, pois não lhe ocorria
mesmo por que motivo o irmão lhe teria enviado, não uma, mas duas mensagens do
nada. Abrindo cada uma, revirou tanto os olhos que quase conseguia ver o
próprio crânio:
“Se o cabrão tentar alguma
cena avisa-me de imediato”
“Já sabes, se ele estiver
a ser otário chuta-lhe os colhões que ele fica logo quieto”
“Está
tudo bem?”, perguntou Tomás, a quem a expressão facial da rapariga não passara
despercebida. A tarde estava, tanto quanto se podia aperceber, a ser produtiva
e agradável, não queria, portanto, que Sara tivesse algum motivo para se sentir
abatida. Teria feito alguma coisa para a incomodar sem dar por isso? Não estava
mesmo a ver o que é que poderia ter feito, visto que até contivera a sua frustração
quando não estava a entender o funcionamento de uns verbos quando, por sua
vontade, teria desatado a cabecear uma parede.
“Está
sim”, assegurou a rapariga, voltando a guardar o telemóvel. Afonso teria mais a
ganhar se centrasse a sua atenção em Leonor e a deixasse em paz. A tarde estava
a decorrer dentro dos conformes, tanto que quase se atrevia a dizer que
começava a gostar da companhia do rapaz. Inicialmente só lhe dera dois dedos de
conversa porque Leonor quase lhe pedira de joelhos e ela acedera, só para ver
no que dava e, contra todas as expectativas, até ao momento tudo correra melhor
do que o esperado. Foi assim que se decidiu, por fim, a fazer o convite que já
lhe ocorrera antes. Pronto, também porque Cláudia lhe pediu, mas sobretudo
porque achava que podia confiar em Tomás. Respirando fundo antes de começar,
propôs, “Olha, no ano novo eu, a Cláudia, o João e mais umas pessoas vamos a
casa da Rafaela, estava a pensar se não gostarias de vir? Vai ser giro”
“Ahm?”,
perguntou o rapaz. Não era que não tivesse percebido, mas nunca antes havia
sido convidado para o que quer que fosse e, agora que lhe parecia que lhe
estavam a fazer um convite, queria certificar-se que ouvira bem. A sentir os
batimentos cardíacos bem mais intensos do que o normal, pediu a Sara para
repetir. Quando ela o fez, sentiu-se tão entusiasmado que parecia ter um balão
dentro do peito. Mal podia esperar para contar a Leonor, ela iria ficar tão
contente por ele. Perante o olhar ansioso da rapariga, respondeu, “I’d love to”
Sara,
tão satisfeita quanto ele, se bem que mais expressiva, demonstrou-o, indo
contra o que em condições normais teria feito tendo em conta a sua relutância
em se aproximar muito do rapaz e, consequentemente, abusar da sua sorte, pondo
os braços em torno do pescoço de Tomás, “Óptimo!”
Se
o rapaz estava prestes a saltitar de contentamento, quando a rapariga o
abraçou, quase deixou de respirar. Primeiro recebia um convite, depois uma
rapariga que não Marta ou Leonor abraçava-o, tudo num espaço de dois minutos.
Aqueles acontecimentos estariam realmente a ter lugar ou iria acordar e ver que
afinal estava a sonhar? Sentia-se tão à nora que se deixou estar, inerte que
nem borracha, enquanto a rapariga o abraçava. Quando se lembrou que seria boa
ideia retribuir o abraço, pôs os braços à volta de cintura de Sara, ainda que
um pouco a medo. Deveria mesmo retribuir ou afastá-la? Tinha algum medo de a
repelir caso fizesse alguma coisa de errado e a situação era uma novidade por
isso não sabia o que fazer ao certo. Optou por retribuir, também gostava de um
pouco de carinho.
Na
parte que lhe dizia respeito, Sara pensou que, se Cláudia estivesse ali, daria
tudo para estar no seu lugar. Rindo para si, imaginou como a amiga teria um
ataque de ciúmes se a visse, até iria trepar paredes. Tinha que admitir, no
entanto, que até que era agradável. Tomás, ao ser alto e gordinho, ainda que
não tanto como João dizia, era bastante confortável. E senti-lo passar as mãos
pelas suas costas arrepiava-a, mas de uma maneira boa. Pronto, já estava
agarrada ao rapaz havia algum tempo, decerto que ele já estaria a sentir-se
incomodado com a violação do seu espaço pessoal. Tentou retirar os braços do
pescoço dele e afastar-se mas, ao sentir que ele não fez quaisquer tenções de
os separar, optou por se manter como estava.
Tomás
não soube quanto tempo estiveram abraçados, mas não negava de que estava a
gostar e muito de cada segundo, não só porque uma demonstração de afecto era
algo que não tinha muitas vezes, mas também porque Sara lhe trazia ao de cima
uma faceta diferente. Por ela conseguia encontrar auto-controlo suficiente para
não deixar o seu mau feitio levar a melhor, talvez por ser das poucas pessoas
que lhe haviam dado uma oportunidade e, por isso, ele estava-lhe muito grato.
Uma grande parte do que o motivava para não cometer deslizes começara por ser a
confiança que a irmã depositava em si, mas agora, a juntar a isso, tinha também
o voto de confiança de Sara. Certo, também a vontade de provar a Guida que não
iria acabar num manicómio antes de completar catorze anos, mas sobretudo as
expectativas de pessoas que não o rejeitaram quando ninguém as censuraria por o
fazer.
Gostava,
por outro lado, do facto de a rapariga ser descontraída, por oposição a
Cláudia, mais barulhenta e irrequieta. Até ele, por muito socialmente inapto
que fosse já se tinha apercebido de que Cláudia estava mais do que interessada
nele, o que o lisonjeava a sério. Ainda assim, o peito razoável dela deixava-lhe
o discernimento toldado, ou não fosse ele um rapaz cujas hormonas começavam a
dar sinal de vida. Podia ser que um dia daqueles concretizasse o grande sonho
de Cláudia. Mas eram só fantasias, quando realmente contava, não trocava aquele
momento com Sara, dissesse o seu avô o que dissesse sobre peitos.
Demonstrando
excelente timing, Princess, farta que Tomás canalizasse a atenção da rapariga
para si, resolveu intervir, dando com o focinho na perna de Sara. A rapariga,
soltando-se do rapaz, decidiu dar-lhe atenção, fazendo com que a cadela fosse
bem sucedida com o seu plano. Bufando, Tomás revirou os olhos. Princess era
mesmo desmancha-prazeres. Consultando as horas, viu que o tempo estava do seu
lado e decidiu frustrar os planos de bulldog. Encarando Sara, propôs, “Daqui a
duas horas começa um jogo que eu queria ver na televisão, podíamos ver o inglês
num instante? Não quero perder o jogo”
“Sim
claro, não te queria empatar”, respondeu a rapariga, dando uma última festinha
na barriga proeminente da cadela, “É o jogo do Sporting com o Porto, não é?”
“Não
ligo a soccer, acho que é uma seca”, admitiu Tomás, um tanto em voz baixa para
que Marta não o ouvisse, se bem que ela não estava, de momento, em casa mas
todo o cuidado era pouco, “A minha equipa, os LA Lakers, jogam com os San
Antonio Spurs e eu queria mesmo ver”
Ao
ver a expressão de Sara que tornava óbvio o facto de não saber do que é que ele
estava a falar, o rapaz, levantando a camisola, exibiu a sua t-shirt com o
emblema da equipa e esclareceu, “NBA”
Agora
que a rapariga se encontrava mais elucidada, voltaram ao estudo, sendo que
Tomás tinha agora a sua oportunidade de fazer boa figura e tencionava
aproveitá-la para agradar. E concentrou todos os seus esforços nisso mesmo, no
momento de ajudar Sara com o seu inglês, corrigindo sempre que necessária a sua
pronúncia, o que não foram poucas vezes. No entanto, o sotaque da rapariga era
tão cómico que teve que morder a língua para não se rir, mas a vontade era
tanta que não aguentou. Sara, embaraçada, tanto que corou até à raiz dos
cabelos, deu-lhe um estalo ao de leve no braço na brincadeira e disse, “Opa!
Não te rias”
“I
can’t help it, you’re just too funny”, disse o rapaz, já sem fazer um esforço
para se conter. Antes que a rapariga conseguisse dar-lhe outro estalo ao de
leve, agarrou-lhe a mão e, prendendo-lhe os braços por de trás das costas,
puxou-a para si e disse, “E agora, hm?”
Sara
bem que tentou de tudo para se soltar, mas Tomás tinha-a bem presa. Se havia
uns meses atrás lhe dissessem que iria estar com o rapaz naquela situação,
julgaria impossível, mais que não fosse porque estava completamente vulnerável
e à mercê dele, mas não sentia qualquer receio, o que até a estava a admirar.
Contra todas as expectativas, o toque de Tomás, quando a podia estar a magoar,
até era bastante gentil e delicado. A chegada de Leonor a casa, bem-disposta, acabou
por lhes pôr fim à brincadeira, “Hm, não estamos a interromper nada, pois não?”
Tomás,
mais corado do que a irmã alguma vez o vira, o que incluía aquela vez em ele
entrara sem avisar no quarto de Marta e Guida, soltou Sara, tão ruborizada
quanto ele. Afonso, por sua vez, estava lívido. Primeiro, Leonor provocara-o e não
lhe dera nada, agora ia, com a maior das boas vontades, buscar a irmã depois de
uma tarde que ele rezava para que tivesse sido de estudo intensivo sem parar, e
encontrava-a demasiado cúmplice de alguém que ele considerava ser menos
desejável do que a lagarta que encontrara dentro da fruta uma vez. Sara,
recuperando o fôlego, dirigiu-se para junto do irmão, que grunhiu qualquer
coisa incompreensível e despediu-se de Tomás, “Até amanhã e pensa naquilo da passagem
do ano”
“Até
amanhã, Sara”, respondeu o rapaz, acompanhando-a até à porta. Se o seu avô lhe
ensinara alguma coisa, seria, sem dúvida, como ser um cavalheiro. Pronto, para
o seu avô o cavalheirismo seria só até a que a dama lhe garantisse acesso à
cama, depois podia proceder como lhe aprouvesse, mas para ele, Tomás, tratar
bem Sara depois de tudo o que ela fizera por ele era o mínimo.
“Vamos
andando, obrigado pela tarde e até amanhã”, disse Afonso, sorrindo. A tarde
fora agradável e, dissesse Leonor o que dissesse, se aquilo não tinha sido ciúmes,
ele não sabia o que tinha sido e, só por isso e, claro, pelas compras, já
ganhara o dia.
Quando
se ia a voltar, a rapariga, segurando-o pela camisola, fê-lo encará-la. Cedendo
à tentação que sentira a tarde toda, deu-lhe um beijo breve e leve nos lábios, “Estava
cheia de vontade de fazer isto, não ligues”
Balbuciando
qualquer coisa que nem o próprio compreendeu, Afonso, derretido como um gelado
num dia de Verão, ainda tentou caminhar para a porta, mas as pernas recusaram
obedecer-lhe e quase caiu. Teria dado um dedo só para repetir o beijo. E porque
não? Ela torturara-o pela segunda vez. Cedendo ao seu capricho, beijou, de modo
igual, Leonor, “Só queria mais um, agora sim vou embora”
Quando
Afonso e Sara já não estavam nas proximidades, Leonor, agarrando-se ao pescoço
de Tomás como se este fosse uma almofada, permitiu-se a um comportamento muito
pouco característico vindo de si e, numa voz mais aguda do que o normal,
desabafou, “Maninho, ele é tão, tão, ai!”
“I
can only imagine, sis”, comentou o irmão, “Também tenho muito para contar e é
muito bom”
Eu sei que já andas à meses a dizer para eu comentar para saberes a minha opinião. Mas eu nem a devia dar, tendo em conta que demoraste MESES a publicar um novo capítulo.
ResponderEliminarA tua sorte é que eu gosto desta história. Gosto da tua escrita, que diga-se, tem vindo a melhorar, na minha opinião.
Quanto à história...
Tem sido bem mais lenta em termos de progressos do que a outra, mas não considero isso algo mau. Tem dado para ir conhecendo melhor as personagens, ainda que algumas das principais "histórias" não sejam conhecidas.
Estás a saber manter o interesse, sem revelar demasiado.
Finalmente a Leonor começou a dar sinais de que não se consegue controlar tanto como ela gostaria, o que é bom de se ver.
E quanto ao Afonso, apesar da sua personalidade tímida e meio sem jeito, também gostei de ver que afinal ele também sabe aproveitar à sua maneira os pequenos avanços que vai conseguindo.
Em relação ao Tomás/Sara, é esperar que ele ganhe coragem e que ela, nesse momento de coragem dele, não tenha medo. Tal como aconteceu neste capítulo.
Acho importante os "pequenos passos" que têm vindo a dar.
E, por fim, volta a demorar 3 meses para publicar algo, que eu nunca mais comento nada!
A viajante dos blogues. :)*