terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Capítulo 6


Sara, ao sentir no ar o cheiro da água de colónia de Afonso, o que, estando ela a uns bons metros de distância, era preocupante, não precisou que este lhe dissesse para onde ia ou, tampouco, com quem ia. Quem mais o faria passar mais do que os habituais cinco minutos a arranjar-se, senão Leonor? Tapando o nariz, ou não fosse ela sensível a cheiros, enfiou a cabeça no quarto do irmão, que tentava, sem grande sucesso, domar os caracóis, e gozou, com uma cara de náusea propositadamente exagerada, “Vais deixar a moça enjoada com esse perfume horroroso!”

“Vou passar umas horas ao lado dela, não posso cheirar a cavalo, não te parece?”, replicou o rapaz, desistindo de fazer o que quer que fosse com o cabelo. Podia ser pior, podia ter uma afro massiva como André, o filho adoptivo de Rodrigo, o seu padrinho, mas o seu cabelo sempre revolto não lhe permitia fazer grande coisa com ele. Aproximando-se da irmã, sem perder uma oportunidade para a provocar, acrescentou, com olhos de Bambi, “E tu não te pões bonita para o “Tommy”?”

“O que é que ele tem?”, inquiriu a irmã, confusa. Durante aquela semana fora fiel à promessa que fizera a Leonor e fizera um esforço para incluir Tomás no grupo, algo que ele aceitara, muito para seu espanto. Porém, por muito bem que ele se tivesse comportado e ela não tinha mesmo nada a apontar, ela recusara a proposta dele de a acompanhar a casa depois da escola, mais que não fosse porque ainda não confiava nele o suficiente para ficar sozinha na sua companhia. Ainda iam dar com ela no dia seguinte dentro de uma valeta. Mas admitia que a divertia muito ver Cláudia desatar aos guinchos cada vez que o via de manhã, tanto como ver João fazer ar de vómito cada vez que ele se aproximava.

“Ainda não reparaste que hoje só tu é que não tens planos e, portanto, vais ficar em casa do Tommy fofinho?”, troçou Afonso, exacerbando o olhar de Bambi, irritando Sara com sucesso. A culpa era dela por insultar o seu perfume predilecto. Rindo ao ver a irmã correr do quarto a gritar por Susana, não evitou pensar no quanto esta crescera ultimamente, tanto que estava na “idade do armário” e isso significaria, para mal dos seus pecados, dores de cabeça lá por casa. Claro que, quando a picara em relação a Tomás, estava mesmo a brincar, deus o livrasse que Sara se fosse meter com ele, era bom que ela tivesse melhor gosto que isso. Batendo três vezes na madeira, pensou que seria melhor começar a preparar-se para assustar os possíveis candidatos.

“Mãe!”, chamou Sara, correndo pela casa até que encontrou, tanto Susana como Daniela, ambas arranjadas para uma saída. Franzindo o sobrolho, perguntou, num só fôlego, fosse-se lá saber como é que não desmaiara, “Se estão assim vestidas é porque vão sair, não é? E se não me disseram para tomar banho é porque não vou, não é? E se não vou quer dizer que vou ficar nalgum lado que não aqui, não é?”

“Brilhante dedução”, ironizou Daniela, sem tirar os olhos do espelho enquanto colocava os brincos, “Pois é, vais para casa da Guida e da Marta e vamos lá buscar-te, mais tarde”

“Também gostamos de ter tempo para nós de vez em quando”, explicou Susana, num tom condescendente, despenteado o cabelo à filha, algo que ela detestava. Na verdade, não lhe agradava nada deixar Sara com Tomás, depois do susto que apanhara, mas Guida prometera-lhe que iria ter o filho debaixo de olho e não tinham outra opção, portanto era isso ou abdicar de uma noite só para si e Daniela, o que também não lhe apetecia, visto aquelas ocasiões não serem tão frequentes como preferiria.

Como se lhe conseguisse ler os pensamentos, Sara, a quem a ideia de ficar em casa de praticamente desconhecidos, com alguém que já dera provas de ter um humor instável, não agradava nada, inquiriu, esperançosa, “E os avós?”

“Estão num cruzeiro nas ilhas gregas”, respondeu Daniela, acabando de dar os últimos retoques na maquilhagem. Um dia, quando se reformasse, o que ainda ia demorar infelizmente, aquela também seria a sua vida. Quando terminou, agarrou-se ao braço de Susana, que se deixou arrastar com um sorriso sugestivo, e, com um sorriso idêntico, puxando-a, disse, já a sair pela porta, “São só umas horas, vais ver que não custa nada”

E com isso desapareceram mais depressa do que Sara conseguiu processar. Aparecendo ao seu lado, Afonso, sabendo como as mães podiam ficar com as demonstrações de afecto, comentou, arrepiado, “Deixa lá, de certeza que também não querias ir com elas, foda-se!”

Partilhando o arrepio com o irmão, Sara acabou por considerar que ficar em casa de Tomás talvez fosse mais agradável do que à primeira vista pensara. Por sua vez, o rapaz mal conseguia conter o entusiasmo, tanto que começava a enervar a irmã, falando durante a distância que separava a sua casa da de Leonor, ora de como tinha a rapariga só para si durante duas horas, ora das suas fantasias sobre o que podia acontecer no escuro. Além de que sonhar nunca fizera mal a ninguém e ele também estava no direito de ter um “momento Rúben” de vez em quando. A bem do seu apetite, Sara teve que lhe pedir para não partilhar mais, não fosse ela ficar com uma imagem mental muito desagradável. Assim, foi com grande alívio que avistou a casa em questão.

Após a observar, impávida, durante o tempo que lhe demorou até formular uma reacção, Sara exclamou, admirada, embora já devesse suspeitar, depois de ter visto o desportivo de Guida, desportivo esse que se encontrava na entrada, “Eles vivem aqui?! Tipo, já viste o tamanho da casa?”

Afonso teve que concordar. Não era que ele se pudesse queixar do sítio onde vivia, afinal era espaçoso e bem localizado, além de que sempre tinham a casa antiga de Susana, casa essa onde vivera os primeiros anos da sua vida, tendo-se mudado para a actual quando Sara nascera, mas a casa de Leonor fazia três da sua e ainda tinha piscina e corte de ténis. A própria já lhe dissera que achava excessivo, até porque a casa onde vivia nos Estados Unidos não chegava a ser assim, mas as mães gostavam de ostentar e ela gostava da piscina, portanto não se queixava. Tocando à campainha, pouco demorou até que Leonor lhes abrisse a porta, puxando Tomás pela mão.

Era inacreditável a velocidade a que a face dele passara de um esgar de repulsa ao ver Afonso, para um sorriso, tão normal quanto lhe era possível, ao ver Sara, embora continuasse um tanto sinistro, o que fez com que esta se retraísse para junto do irmão. Ao ver a reacção de Sara, Tomás, decidido a não a assustar, tentou esboçar o sorriso mais encantador que conseguiu, embora, a julgar pelo ar nervoso da rapariga, tivesse tido o efeito oposto. O próprio Afonso, que, se antes admirava a beleza de Leonor, que parecia ter-se cuidado especialmente para a ocasião, ao ver a tentativa de um sorriso de Tomás, estremecera. Só a rapariga, que tinha os braços em torno do pescoço do irmão, não reparara, não deixando esmorecer o seu sorriso, “Boa noite”

Desviando a atenção de Tomás, Afonso, deslumbrado com a imagem de Leonor, engoliu em seco e gaguejou, com os olhos ligeiramente vidrados, “E…estás linda”

“Obrigada”, respondeu a rapariga, sem grande entusiasmo, embora Tomás sentisse que o aperto no seu pescoço se intensificara, “Vamos andando?”

“Vamos…claro”, anuiu o rapaz, sem nunca deixar de a fitar. Quando ela se despediu do irmão e já não podia ver a sua expressão, Afonso dirigiu a Tomás um olhar tão ameaçador que conseguiu fazer com que este erguesse o sobrolho de espanto. Quanto a Leonor, esta aproveitara para murmurar ao ouvido de Sara, desfazendo-se em gratidão, “Obrigada pelo que tens feito, a sério”

Mudando de expressão radicalmente quando considerou que Tomás havia percebido a mensagem, que mais não era “se fizeres alguma à minha irmã, dou cabo de ti”, despediu-se de Sara, antes de abrir o portão a Leonor, sempre com um ar afável. Ao ver o irmão afastar-se, cheio de boa disposição e despreocupado, Sara, mordendo o lábio inferior de tão apreensiva que se sentia, virou-se para encarar Tomás. Previa, na hipótese mais agradável, um serão constrangedor e, na menos agradável…bem, preferia não pensar nisso. Qual não foi o seu espanto quando o viu, quase que envergonhado, a passar a mão pela nunca, dizendo, “I was playing….if you’d like to join me…”

Sem conseguir articular palavra, não só porque não entendera o que ele lhe tentara dizer, como, também, porque aquela mudança de atitude a apanhara desprevenida, a rapariga limitou-se a ficar especada. Repetindo a sugestão, agora em linguagem que ela percebesse, Tomás perguntou, com o seu carregado sotaque, sotaque esse com que João não se cansava de troçar e Cláudia de suspirar, “Es…tava a jogar, se quiseres fazer-me…companhia”

Por muito que o rapaz tentasse, o sotaque não desaparecia, nem se atenuava, e em situações em que se sentisse mais ansioso, voltava sempre ao outro idioma, tanto que lhe custava encontrar as palavras certas quando mudava para português. Satisfeito, tanto quanto possível, por ter encontrado a expressão correcta, ilustrou o convite, apontando para a televisão da sala. Aceitando, mesmo que não ligasse nenhuma a jogos de vídeo, a rapariga acompanhou-o, sentando-se tão longe quanto conseguiu, o que não foi pouco, tendo em conta as dimensões do sofá. Retomando o jogo, o rapaz não se voltou a pronunciar, ainda que ocasionalmente olhasse na direcção de Sara. Primeiro não conseguia formar uma frase inteira sem parecer atrasado mental, depois não pontuava no jogo…aquela não era a sua noite. Enervado, ofereceu, “Queres tentar tu?”

Encolhendo os ombros, a rapariga aceitou, mesmo não sabendo como é que o comando funcionava, nem tendo particular interesse em aprender, mas era melhor do que olhar para as paredes. Olhando, ora para o ecrã, ora para o comando, Sara estava para desistir, quando Tomás, pegando-lhe na mão, fez tenções de mostrar como funcionava. O que valeu à rapariga foi o facto de a sua pele morena esconder o rubor com que ficara. Já o rapaz não podia dizer o mesmo, sendo muito branco, corou até à raiz dos cabelos. Vacilando um pouco, Sara, incapaz de prestar atenção ao jogo, perguntou-se por que motivo é que se estaria a sentir assim, não era coisa que alguma vez lhe tivesse acontecido, embora não pudesse dizer que era desagradável.

Tomás, por seu turno, sentiu que perdera de vez o domínio sobre a situação. Ousando olhar na direcção da rapariga, viu que ela parecia tão perturbada como ele, o que sempre o descansou um pouco. Ignorando a cara a ferver e o nó no estômago, o que era uma sensação à qual não estava habituado, ponderou sobre como proceder a seguir. Uma coisa era garantida, não podia dizer que não gostava, era aconchegante até. Fazendo de tudo para não deixar transparecer o seu nervosismo, colocou o outro braço em torno das costas de Sara e segurou-lhe na outra mão, continuando a ajudá-la com o jogo. Incapaz de reagir, a rapariga sossegou um pouco ao sentir a respiração irregular do rapaz no seu pescoço, constatando que ele, também, tinha saído da sua zona de conforto.

Quando estavam ambos prestes a relaxar e a deixar a situação encaminhar-se a si mesma, sem se importarem com o que pudesse acontecer, um grito forte o suficiente para fazer com que Sara fosse até ao tecto com o salto que dera, interrompeu-os, “Ah! Estás aí, anormal! Arrumares a porra do teu quarto é que está quieto, não é?!”

Se a rapariga sentiu os tímpanos a lamentarem-se, a expressão de Tomás transparecia um ódio tão intenso que Sara desejou estar no meio de Daniela e Susana, sujeitando-se aos constrangimentos todos. O rapaz nem podia acreditar no timing da mãe, não sabia como mas ela tinha a tendência para aparecer sempre quando menos a queria ver. Pronto, a verdade era que nunca a queria ver, mas ela arruinara-lhe um momento que ele próprio não sabia como classificar mas que estava a adorar, e isso enervava-o até mais não. Guida, insensível ao olhar que o filho lhe dirigiu, continuou, detendo-se apenas quando viu Sara, encolhida, “Se não arrumares aquele quarto agora mesmo, sobes as escadas de joelhos ao pontapé…ai! Desculpa, ainda não te tinha visto, querida”

“B…boa n…noite”, cumprimentou a rapariga, tentando estabilizar o ritmo cardíaco. Nunca vira nem Daniela, nem Susana assim, nem quando entornara Coca-Cola em cima do trabalho de Daniela, ou quando partira um serviço de jantar por estar a brincar com uma bola dentro de casa. A mãe de Tomás, pelos vistos, virava dragão por algo tão mundano como um quarto desarrumado. Perguntava-se, contudo, se ela também seria assim com Leonor, mas não lhe parecia, afinal a impressão com que ficara fora a de que a rapariga era a menina de ouro da família. Vendo Guida afastar-se, dirigiu-se a Tomás, que tremia com o que aparentava ser raiva pura. Pedindo-lhe para se acalmar, foi recebida com um olhar gélido, sendo sacudida por ele, que retirara a mão com brusquidão. O gesto magoou-a.

Na verdade, a situação fazia-a lembrar-se de quando Mocas fora apanhado numa armadilha deixada pelos caçadores na floresta. O cão gania tanto que era impossível não o socorrerem, mas quando se aproximavam ladrava, ameaçando morder. Fora necessário, com muita calma, Sara sossegar Mocas, enquanto Afonso abria a armadilha. Tentando de novo, aproximou-se do rapaz, sussurrando-lhe o que quer que lhe viesse a cabeça para o acalmar. Quando ele pareceu menos hostil, tentou, a medo, tocar-lhe. Mesmo que o sentisse tenso, arriscou, até que lhe conseguiu passar os braços em torno da cintura, abraçando-o. Devagar, foi com um suspiro, que ele relaxou, deixando que ela lhe passasse as mãos pelas costas, reconfortando-o.

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O cavalheirismo de Afonso era algo que não deixava de surpreender Leonor, por mais que ele o provasse, vezes e vezes seguidas. Ainda pensou que ele o estivesse a forçar apenas para conseguir dar boa imagem, mas, além de nunca descurar, não era apenas a ela que ele tratava assim. Quando fora almoçar outro dia com ela e com Adriana, também fora impecavelmente bem-educado para ela, o que o fez subir na consideração da rapariga que, teve que admitir, que ele era naturalmente boa pessoa sem ter segundas intenções. Era como uma lufada de ar fresco encontrar alguém assim, como Adriana dissera e muito bem. Claro que, na opinião de Leonor, também ajudava o facto de ele ser bem-parecido, mas nunca comentaria tal coisa com alguém que não Adriana, mesmo que ele não fizesse o género da amiga.

Como ainda tinham uma hora até que o filme fosse exibido, decidiram, depois de darem uma volta pelo shopping, volta essa que a rapariga tentou que fosse breve, pois podia reparar que ver roupa não era algo que Afonso apreciasse, ir jantar. Naquela noite, o rapaz parecia estar a fazer um esforço extra, o que enterneceu Leonor: ora lhe abria as portas, ora lhe puxara a cadeira quando ela se sentara no restaurante, além de que tivera uma paciência infinita para percorrer lojas sem conta com ela. O melhor era, sem dúvida, o facto de a interacção entre ambos ter fluído sem que nenhum a forçasse, como já tinha vindo a acontecer, progressivamente, portanto não tiveram um único momento constrangedor.

Quando Afonso, antes de jantar, se refugiou na casa de banho para tratar dos níveis de açúcar, pois aquele restaurante não se encontrava quase vazio como o café do outro dia, a rapariga, pôde, então, ter um instante para organizar a cabeça. Primeira tarefa em mãos, parar de sorrir como se ainda fosse pita. Por algum motivo, ultimamente não se sentia nada ela. Era seu hábito afugentar todos e quaisquer admiradores como se tivessem alguma doença que lhe pudessem pegar, mas, mesmo tendo ainda um pé atrás em relação a Afonso, não se sentia capaz de correr com ele, chegando mesmo ao ponto de ansiar pela companhia dele e de se sentir mal cada vez que o afastava, por força do hábito. Isso quereria dizer que ele era especial? Que ideia absurda.

O seu momento de introspecção foi interrompido pela chegada do rapaz, que lhe tocara no ombro, assustando-a. Como sobressaltá-la não havia sido a sua intenção, Afonso, fazendo um mau trabalho a conter o riso, brincou, “Tenho as agulhas escondidas, descansa”

Dando-lhe um estalo em jeito de brincadeira na mão que ainda estava sobre o seu ombro, Leonor limitou-se a erguer uma sobrancelha, antes de, também ela, se rir. Aparentemente, a sua capacidade de mover uma sobrancelha ao mesmo tempo que mantinha a outra quieta, deixara o rapaz intrigado, tanto que ele lhe pedira para o fazer outra vez. Levantando, ora uma, ora outra, ora as duas, a rapariga fez-lhe a vontade. Quando ele a tentou imitar, sem sucesso, acabou a levantar as duas ao mesmo tempo de uma maneira que fez com que a idosa na mesa ao lado, ultrajada, abanasse a cabeça em sinal de reprovação, o que fez com que ambos se rissem. Fora um momento engraçado, contaminado apenas com uma mensagem que Rúben lhe enviara para o telemóvel, mensagem essa que o fez revirar os olhos ao ponto de até conseguir ver o candeeiro por cima de si:

“Então a gaja está papada?”

Pouco depois, o jantar chegou. Afonso, um tanto limitado pela sua doença, teve que se abster de pedir um prato de massas, por mais que fosse essa a sua vontade, afinal os pratos amigos da diabetes eram tão insípidos que tornavam as refeições uma hora sensaborona para qualquer um. Mas, ao avistar o prato escolhido por Leonor, não pôde evitar ficar com água na boca. Vendo o prato do rapaz intocado e desprezado, enquanto ele observava o seu como alguém que aprecia uma pintura num museu, ofereceu, “Queres provar?”

A ideia de comer massa envolta em natas ainda fumegante parecia-lhe um oásis no meio do deserto e, só por provar não haveria de fazer mal, desde que não acabasse a raptar o prato da rapariga. Aceitando o pouco que Leonor lhe levara à boca, deixou-se deliciar. Já havia ganho o dia. Notando que ele ficara com um pouco de natas no canto da boca, a rapariga, rindo, limpou-o, levando-lhe um guardanapo à boca. Com outra tentativa frustrada de levantar uma única sobrancelha, o que apenas conseguiu fazer com que Leonor se risse, ainda mais, fingiu um ar indignado, antes de sucumbir ao riso. Dando-lhe a provar, também, o seu prato, afinal era o mínimo, teve a oportunidade de lhe limpar o bago de arroz com que ficara na cara. Assim estavam quites, como ela fez questão de lhe dizer.

Depois da refeição, Afonso, dando, mais uma vez, provas do seu cavalheirismo, ofereceu-se para lhe pagar o jantar, gesto esse que ela, obviamente, recusou, recusa essa a que ele, ainda mais obviamente, fez ouvidos de mercador. Deixando uma nota no pratinho que o empregado recolheu, respondeu aos protestos da rapariga, com os mesmos olhos de Bambi que tanto enfureciam Sara, “Ups, já foi e não podes fazer nada quanto a isso”

Não sendo pessoa para admitir uma derrota, Leonor, esperou até que saíssem do restaurante para, na primeira oportunidade, o puxar pela camisola para um beco entre duas lojas, onde não estava ninguém. Perante o ar estupefacto do rapaz, pôs-lhe uma mão no peito e encostou-o à parede, não deixando qualquer distância entre ambos. Se ele parecia estupefacto antes, agora, que sentia o corpo dela junto ao seu, parecia prestes a ter uma coisinha má. Incapaz de conter a sua satisfação ao vê-lo tão vulnerável, a rapariga, que quase conseguia ver-lhe o coração a saltar-lhe do peito, provocando-o mais do que julgaria que ele fosse aguentar, sussurrou-lhe ao ouvido, sedutoramente, “Não devias ter feito aquilo…agora vou ter que te compensar de alguma maneira”

“Ahm…”, foi tudo o que Afonso conseguiu dizer. O olhar que a rapariga lhe dirigia era sugestivo o suficiente para que ele ficasse estático, entre ela e a parede. A proximidade entre ambos e a respiração quente de Leonor junto ao seu pescoço fazia com que qualquer tentativa de raciocinar fosse em vão. Verdade fosse dita, imaginara muitas vezes um cenário análogo, mas vê-lo concretizar-se era algo que nunca lhe passara pela cabeça e agora que estava a acontecer, sentia-se demasiado paralisado para agir. Quando ia, finalmente, reagir, afinal aquela situação era um sonho tornado realidade, a rapariga afastou-se e disse, substituindo o olhar de matadora por um de Bambi em todo idêntico ao seu, “Ups, já foi e não podes fazer nada quanto a isso”

O rapaz, a quem a realidade atingira com a força de um comboio em movimento, soltou um grunhido imperceptível de frustração. Bem lhe parecia que algo tão bom era demasiado surreal para lhe acontecer a ele. Com a face tão vermelha que rivalizava com o nariz do palhaço da McDonald’s, o que divertiu a rapariga ainda mais, compôs a camisola, tentando segurar-se ao pouco orgulho que lhe restava. Não fazia mal, fora um momento maravilhoso e, já por si, servia para o deixar satisfeito. Empinando o nariz, numa atitude snob exacerbada, informou Leonor que convinha despacharem-se porque o filme estava quase a começar. Ocupado a rever mentalmente o que acabara de acontecer, o que o deixou com um sorriso parvo, nem reparara que ela entretanto já se adiantara e comprara os bilhetes, só dando por isso quando ela lhos abanou em frente à cara, “Agora estamos quites! Não achavas que te ia deixar pagares-me o jantar sem retribuir?”

“És tão teimosa…”, desabafou Afonso, exasperado, abanando a cabeça. Se ao menos ele tivesse o mesmo poder sobre ela que ela tinha sobre ele, juntando a isso, a capacidade de ser sedutor sem parecer o Mr. Bean, ter-lhe ia feito o mesmo, a ver se ela gostava. Não que ele não tivesse gostado, de forma alguma, mas sentia-se torturado, por muito que valorizasse aquela brincadeira.

Enquanto se dirigiam para os lugares designados, Leonor não conseguiu evitar lembrar-se do que acontecera havia uns minutos atrás. Na altura decidira provocá-lo apenas porque era impensável para ela ser contrariada daquela maneira e, mais ainda, que levassem a sua avante, mas se soubesse que iria ficar daquela maneira devido à proximidade entre ambos, estaria quieta. Reprimindo a vontade que tinha de o recompensar, daquela vez a sério, cruzou os braços e concentrou-se no filme. Não estava mesmo em si e tivera a prova disso. Deitando uma olhadela na direcção do rapaz, podia ver que ele ainda não acalmara. De certa forma, ver que tinha tanto efeito sobre ele, era algo que a fazia sentir-se lisonjeada.

A bem da sanidade de ambos, o resto do filme decorrera sem que mais comportamentos pouco característicos, fossem de quem fossem, acontecessem. Houvera, contudo, a troca de olhares ocasional que serviu para que ambos se recordassem de que o que acontecera estava bem presente na mente um do outro. No caminho para casa, feito sobre um silêncio que, nem um, nem outro, dera conta que se instalara, visto estarem ambos perdidos nos seus pensamentos, Afonso repetia o que acontecera, vezes e vezes sem conta. Sabia que não devia dar demasiada importância ao assunto e que para ela não passara de uma brincadeira, mas não conseguia afastar a sensação de que se calhar…talvez…Já Leonor tentava, a todo o custo, batalhar a dissonância cognitiva, bem que queria e tanto, pelo menos, já admitira a si mesma, o que representava um grande progresso, mas sabia que não podia.

Ao chegarem à porta de casa, o rapaz, tomara uma decisão. Assim iria acalmar a sensação que tinha de que ali estava a sua oportunidade e, caso corresse mal, poderia dizer que só estava a tentar pagar-lhe da mesma doença. Respirando fundo, de modo a ganhar coragem, deteve a rapariga à porta de casa. Vendo o ar confuso dela, encostou-a à parede e, trocando um olhar, apenas para se certificar que não se equivocara, contra todas as expectativas, até dele próprio, beijou-a. De início, tão ao de leve que o próprio não se apercebera que o fizera, depois, ao sentir que ela lhe colocara os braços em torno do pescoço e o puxava para si, permitira-se a intensificar.

Quanto a Leonor, se passara o caminho até casa a conter a vontade que tinha de repetir a graça, mal podia acreditar na reviravolta que a situação dera quando de vira encostada à parede. Sabia que não podia, que mais tarde se iria arrepender mas, francamente, naquele momento não se importou, lidaria com a culpa mais tarde. Ver Afonso a assumir o controlo por uma vez fora mais que suficiente para baixar as suas defesas. E valera a pena, havia sido bem melhor do que alguma vez imaginara. Quando achou que já se permitira a mais do que devia, afastou-o, embora ele mantivesse os braços em torno da sua cintura, encarando-a com uma expressão de adoração tão sincera, que ela ficara, pela primeira vez, sem palavras. Respirando fundo, o rapaz disse, “Agora sim estamos quites…”

“A sério…foi…qualquer coisa”, continuou Afonso, com uma sensação de leveza que não podia comparar a nada. Mesmo que nada tivesse dito, o sorriso que Leonor lhe dirigira dissipara quaisquer dúvidas que ainda pudesse ter.

“Boa noite, linda! Então diver…”, para mal dos pecados de ambos, Guida resolvera, nesse momento, abrir a porta. Primeiro deparava-se com Sara quando estava a repreender Tomás, agora, que tentara fazer um gesto simpático pela filha, indo-a receber à porta, encontrava-a numa posição deveras comprometedora e, como se não bastasse, com o filho da sua melhor amiga! Susana nunca mais a iria deixar em paz com aquilo! Era melhor bater em retirada sob pena de se enterrar ainda mais, “Acho que…tenho que ir ali!”

Com grande pena sua, a rapariga retirou as mãos de Afonso da sua cintura. Como nem tudo podia ser mau, entretanto apareceram Sara e Tomás, poupando-a a mais momentos desconfortáveis. E parecia que as surpresas não se ficavam por ali, o irmão docilmente, como ela não se lembrava de o ouvir, despediu-se de Sara, “Então…vemo-nos segunda, na escola, fica bem”

Parecia que Afonso teria que deixar para mais tarde tornar Tomás no seu saco de boxe. Sara, no mesmo tom que deixara o irmão agoniado de tão doce que fora, respondeu, “Boa noite Tomás, até segunda”

Leonor não sabia o que acontecera para aquela mudança tomar lugar, mas sentia vontade de fazer vénias a Sara. Como qualquer hipótese de prolongar o momento com Afonso fora por água abaixo, não teve alternativa que não despedir-se, dando-lhe um beijo na bochecha, ainda corada, “Então adeus e obrigada por tudo”

“Ahm…adeus”, retribuiu o rapaz, demasiado atordoado com toda aquela informação que tinha para processar. Quando já não tinha nem Leonor, nem Tomás na periferia, permitiu-se a exteriorizar a alegria que sentia, agarrou na irmã pela cintura e rodopiou-a no ar, “Aconteceu mesmo!”

Só mesmo porque, ela própria se sentia feliz, mesmo sem saber ao certo porquê, é que Sara o deixou agitá-la como se fosse uma boneca. Quando Afonso acalmou, é que ela disse, “Pois é, mano, realmente foi bom”

1 comentário:

  1. Ainda não tinha vindo aqui dar-te uma opinião, desde que iniciaste esta tua nova 'aventura'. No entanto, sabes bem que te tenho vindo a dar a minha opinião acerta de todos os capítulos e até mesmo 'ajudar-te', de certo modo, quando me pedes a opinião.
    A história veio com um ar muito diferente da anterior, ainda que, de forma inevitável, estejam relacionadas.
    Tenho adorado cada pedacinho que me dás a conhecer e o único facto que lamento é de não teres já 20 capítulos ou mais adiantados para poderes ir postando com mais regularidade, como aconteceu na outra. Contudo, não é por isso que sinto menos entusiasmo cada vez que venho ler um capítulo novo. E fico sempre à espera do próximo, com a maior brevidade possível.
    A tua escrita continua a 'prender-me' à história, tal como acontecia na anterior.
    Quanto ao capítulo em si, e tendo em conta tudo o que aconteceu nos cinco anteriores, posso e devo dizer que adorei!
    Acho ternurenta a maneira como tens vindo a desenvolver o carinho e o afecto criado entre o Afonso e a Leonor. Apesar de todas as reticências dela e do seu auto-controlo para não se deixar levar pelos gestos e atitudes de Afonso, a verdade é que se nota que está a tornar-se difícil. (Prova disso, o momento de hoje entre eles.)
    Apesar disso, 'cheira-me' que ainda vêm aí muitos obstáculos para o Afonso derrubar e vencer, e o passado da Leonor, ainda vai dar que falar, penso eu.
    Quanto à Sara e ao Tomás, não começaram, definitivamente, com o pé direito. O amor de Leonor pelo irmão e o amor de Sara por Afonso, fez com que esta última se dispusesse a ajudar o Tomás, o que acho sensível da parte dela.
    Ainda assim, também ela terá muitos obstáculos pela frente, acho eu. Um deles, entender por completo a personalidade de Tomás e perceber todas as suas reacções. Creio que vai começar hoje, depois daquilo a que assistiu em dele.
    É óbvio que, ainda tão no início da história, ainda existam muitas perguntas a serem respondidas e pontas soltas com fins por resolver. É disso que estou à espera. De mais e mais história, porque estou, literalmente, viciada nela.
    Já te digo isto há algum tempo e vou continuar a dizer, adoro a tua escrita.
    ps: Eu sei que tinhas saudades disto. E que mereces o reconhimento.
    Uma viajante dos blogues. :) *

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