sábado, 26 de janeiro de 2013

Capítulo 5


Educação física, uma aula pela qual Leonor não nutria particular apreço. Não era que não gostasse de desporto, pelo contrário, mas o espírito excessivamente competitivo dos colegas contribuía para um mau ambiente que arruinava a aula para ela. E, pelos vistos, fosse nos Estados Unidos, fosse em Portugal, havia coisas que não mudavam e essa era uma delas, como se tornou óbvio na escolha de equipas para jogar futebol, quando ninguém queria Adriana na equipa. O professor, pouco atlético e com barriga de cerveja, provavelmente a figura que menos incentivaria alguém a praticar desporto, acabou por encaminhar Adriana para a equipa onde a rapariga estava, para grande enfado dos colegas. Apertando o ombro da amiga em sinal de encorajamento, Leonor iria tentar fazer por que o jogo lhe corresse melhor.

Vendo outra turma ocupar o outro lado do campo, depressa distinguiu a figura alta de Rúben, ao lado de uma mais baixa que pertencia a Afonso. Seria melhor para ela que jogasse bem, uma vez que teria plateia a assistir. A figura animado do rapaz a acenar-lhe apenas comprovou isso mesmo. Retribuindo, não demorou a que se concentrasse no jogo quando uma colega a avisou que já tinham começado. Futebol não era o seu forte, mas Marta deserdá-la-ia se não soubesse dar uns toques na bola. A algum custo, lá conseguiu dar o seu contributo para o primeiro golo, graças a um passe de Adriana, mesmo que não tivesse sido da sua autoria. Aproveitando uma pausa, foi beber água, mas não sem antes sorrir a Adriana pelo trabalho bem feito.

Na fila para a torneira, encontrou Afonso, suado e ofegante, mas bem-disposto. Falando-lhe, o rapaz disse, orgulhoso, “Vamos jogar rugby a seguir, se não acreditas que jogo bem, vê”

“Para te ver ires ao chão?”, brincou a rapariga, divertida ao ver o ar indignado de Afonso, que se limitou a fazer uma expressão tão séria quanto conseguiu sem se começar a rir e a dizer-lhe para esperar e ver. Encostando-se ao muro, observou enquanto se punham em posição, até que começaram a jogar. Afonso e Rúben ficaram em equipas separadas, embora, para grande surpresa dela, o rapaz, mais baixo que o amigo, conseguisse placa-lo, deitando-o ao chão, antes de correr com a bola, marcando ponto. Rúben, levantando-se, não pareceu ter levado a bem a jogada, pois não ficava bem na sua imagem. Correndo atrás de Afonso, não o conseguiu placar, sem que o rapaz se desviasse, antes de passar a bola. Leonor até que ficara impressionada, embora fosse negar tal coisa.

Ao ser chamada de volta para o jogo, ainda conseguiu ver Afonso, sorrir-lhe, satisfeito. Abanando a cabeça, em sinal de aprovação, o que fez com que o rapaz se atirasse de novo para cima do amigo, vitorioso, voltou-se para Adriana, a tempo de a ver fazer uma expressão enojada ao olhar para Rúben. Rindo com o esgar teatral que a amiga fez, disse, “Ele não joga lá muito bem, com sorte pode ser que abra a cabeça no chão”

“Ai não me dês esperanças, era tão bom”, admitiu Adriana, sonhando com a massa encefálica de Rúben espalhada pelo relvado. Ao ver Afonso placar o amigo, não conseguiu evitar o sorriso de satisfação que lhe apareceu no rosto. Rúben era só mania sem grande alicerce para a ter, tanto que comentou com Leonor, “Ele joga mal como tudo mas depois é o maior convencido, pelo menos sempre podia ser como o Afonso que se safa bem e é humilde”

“Lá isso joga…”, anuiu a rapariga, antes de cair em si. Já chegava de observar Afonso com tão bons olhos, aquilo não era mesmo hábito seu. Abanando a cabeça, afastou quaisquer pensamentos que tivessem que ver com o rapaz e voltou para junto da turma, que entretanto já se organizara para continuar o jogo. Como estava calor, a vontade de correr atrás de uma bola durante mais uma hora não era perspectiva que lhe agradasse por aí além. Suspirando, não teve outro remédio senão correr, quando uma colega a repreendera por ter deixado passar uma boa oportunidade para tirar a bola à outra equipa.

Umas quantas pisadelas e caneladas mais tarde, conseguiu dar o seu contributo para um golo por parte da sua equipa, ainda que isso se traduzisse num passe oportuno. Ainda assim, já se dava por contente, afinal sempre era da maneira que não a incomodavam por estar a jogar a meio gás. Adriana, por sua vez, já não teve tanta sorte. Descoordenada e, assumidamente, com tão pouca motivação e vontade que o resultado do jogo lhe era indiferente, não servia de grande auxílio à equipa. Quando a bola rolara junto a ela, a equipa em peso esteve perto de a decapitar, embora ela se limitasse a encolher os ombros. Encorajando-a, ou pelo menos, fazendo o seu melhor nesse sentido, a rapariga disse que lhe passaria a bola para que ela pudesse jogar.

E foi isso que fez. Vendo uma colega correr para si, enquanto tinha a bola, tentou chutá-la na direcção de Adriana, conseguindo, mas não sem antes de a outra chocar contra si, atirando-a ao chão. Adriana, se agisse por sua vontade, não teria feito o menor movimento na direcção da bola, mas como Leonor lhe dera aquela oportunidade, não a queria desiludir. Rematando, conseguiu que a bola, fosse-se lá saber como, passasse em cheio por entre as pernas da pessoa que estava na baliza. Corando com o seu sucesso, sorriu de orelha a orelha à rapariga, realizada. Acenando em sinal de apreço, Leonor, ainda no chão, massajou o cotovelo que aleijara quando caíra. Se a colega que fora contra ela escapara sem uma mossa, ela não podia afirmar o mesmo.

Afonso, depois do jogo, ciente de que a sua prestação fora imaculada, abordou a rapariga, estendendo-lhe a mão para a ajudar a levantar-se, “Então, estás-te sempre a aleijar”

“Considera isto um sacrifício por um bem maior”, replicou ela, não necessitando da ajuda do rapaz para se levantar. Vendo o ar desapontado de Afonso sorriu-lhe, pois não queria entristecê-lo estando ele tão satisfeito, antes de apontar para Adriana, que ainda olhava incrédula para a baliza, como se esta de repente tivesse começado a falar, “Ela conseguiu marcar”

“O Rúben não pode dizer o mesmo, que eu não deixei”, anunciou o rapaz, abanando a cabeça em sinal de reprovação ao ver o amigo passar a mão pelo cabelo, enquanto falava com umas raparigas, como se tivesse motivos para estar tão satisfeito. Afonso não conseguia crer, Rúben conseguia canalizar toda a atenção para ele mesmo quando a situação mais o desfavorecia. A ele, Afonso, por seu lado, já ninguém queria sentir os peitorais. Porém, já estava habituado, sempre fora assim desde o início, ele passava sempre para segundo plano mesmo quando merecia a posição de destaque. O que não queria dizer que apreciasse a situação, mesmo sendo mais reservado e comedido do que Rúben, também gostaria de se sentir especial, uma vez por outra.

“Jogas bem melhor que ele”, admitiu Leonor, o que para o rapaz soube melhor do que um par de raparigas a roçarem-se nele. A rapariga, no que lhe dizia respeito, não conseguia ver porque motivo é que alguém iria venerar Rúben como um deus, ele representava tudo aquilo de que ela só queria distância. Após tal pensamento lhe vir à tona, lembrou-se, com um certo pesar, que ela própria, em tempos também fora assim, mas as circunstâncias obrigaram-na a mudar.

Aparentemente, Adriana lera-lhe os pensamentos, pelo menos os que diziam respeito ao género de pessoa que Rúben era, porque se aproximou e comentou, desdenhosa, “Aquela mania toda é para compensar a pila pequena”

Desmanchando-se a rir, tanto que se tivera que curvar, Leonor teve que se segurar em Afonso, que não sabia se havia de ficar constrangido pelo rumo que a conversa levava, se havia de se derreter como manteiga ao sol. Como qualquer contacto físico que tivesse com a rapariga era muito bem-vindo, escolheu a segunda hipótese. Quanto a Adriana, que observava o cenário com atenção, não fosse regurgitar o seu pequeno-almoço se olhasse mais para Rúben, não lhe foi difícil perceber que o rapaz estava obviamente interessado em Leonor. Já ela, Adriana, não podia dizer que desaprovasse a ideia de os ver juntos, agora que pensava nisso. Mas decidiu por não comentar com a rapariga, para não a deixar desconfortável, até porque ela bem sabia o quão incómodo isso podia ser. Porém, tudo o que pudesse fazer para dar uma boa impressão de Afonso a Leonor, fá-lo-ia.

Vendo a rapariga distraída enquanto bebia água, aproximou-se do rapaz e disse, “Ela há pouco comentou que gostava de ir ver aquele filme que estreou agora, aquele da época medieval, que já não me lembro do nome”

Afonso, pestanejando confuso, não compreendeu imediatamente onde é que Adriana queria chegar com aquela conversa. Sabia qual era o filme, até porque vira um cartaz a anunciá-lo junto à paragem de autocarro, mas não estava a ver por que razão é que lhe dissera aquilo. Continuando, Adriana, que nunca fora a pessoa mais subtil, propôs, “Podias convidá-la…ela não morde, sabes?”

Ora ali estava uma boa ideia. Não a parte de Leonor o morder, embora não se importasse, mas o filme era um bom pretexto para a convidar, isto se ela aceitasse. No entanto, tinha que admitir que ficara admirado por Adriana lhe ter feito aquela sugestão. Seria ele assim tão pouco discreto? E se Leonor já tivesse percebido e estivesse farta de rir à custa dele?! Decidindo arriscar, perguntou, “Porque é que me estás a dizer isso?”

“Já agora não queres um lenço para limpares a baba?”, ironizou Adriana, contendo a vontade que tinha de rir, de modo a não deixar o rapaz mais nervoso do que já estava, “É que se nota muito bem que estás interessado, então achei que a informação podia ser do teu agrado”

“Ahm…obrigado, mas não lhe digas, se faz favor”, pediu Afonso, sem saber como reagir. Perguntava-se até que ponto é que Leonor já se teria apercebido e a ideia de que ela soubesse fazia-o sentir-se terrivelmente exposto.

Como se tivesse capacidades telepáticas, Adriana replicou, “Não te enerves, ela é mesmo muito querida, não admira que gostes dela, mas se o que te preocupa é se ela sabe ou não, tenho que ser sincera, duvido que não saiba, mas se não te mandou ir dar uma volta é porque a ideia não a incomoda”

“Achas mesmo?”, perguntou o rapaz, com urgência. Adriana conseguira renovar-lhe a esperança, pelo menos em parte, já que o que ele mais temia era que a rapariga fugisse dele como se tivesse lepra mal ele lhe dissesse. Assim sempre ficava a saber que Leonor não pensava que ele fosse um tarado qualquer, o que lhe deu novo alento.

“Conheço-a há pouco tempo mas sim, não me parece que ela não te tivesse dado para trás de achasse que eras um porco qualquer”, disse Adriana, embora não o quisesse induzir em erro de todo, “Olha, ela vem aí, aproveita enquanto eu vou beber água”

Enquanto via Adriana afastar-se, Afonso pensou na melhor maneira de fazer o convite. Olhando em redor, como se fosse encontrar inspiração por ali algures, deparou-se com um cartaz afixado junto à paragem da escola, visível dali. Teria que servir, até porque não estava a ver oportunidade melhor. Esperando até que Leonor fosse ter com ele, acenou para o cartaz, comentando, “Aquele filme deve ser interessante, não achas?”

“Estou para o ir ver um dia destes”, respondeu a rapariga. Ainda estava a tentar convencer Tomás a ir consigo, mas este não parecia ter grande interesse num filme que não tivesse carros, tiros, coisas a explodir e maminhas à vista. De repente, fez-se luz e viu logo o que é que o rapaz pretendia com aquela conversa. Em sua defesa, estava mais lenta porque estivera mais de uma hora a correr debaixo de um sol abrasador.

“Podíamos ir no próximo fim-de-semana, o que achas?”, propôs Afonso, um tanto a medo. Caso ela aceitasse, isso significaria duas horas ao lado dela no escuro, o que era uma ideia que lhe agradava e muito, caso não aceitasse, ele não saberia onde se esconder.

“Hm…está bem”, concordou Leonor, depois de uns segundos de ponderação. Não estava para ouvir Tomás a perguntar-lhe a cada dois minutos quando é que a personagem principal ia pôr as maminhas de fora e Adriana ia estar fora no próximo fim-de-semana, portanto as alternativas não eram muitas. Não se importava.

“A sério?”, exclamou o rapaz, sem poder acreditar na sua sorte. Ao ver o olhar arregalado da rapariga compôs-se, “Claro, então…sábado à noite está bom para ti?”

“Está sim”, concordou Leonor que, ao ver a turma encaminhar-se para o balneário, despediu-se de Afonso, “É melhor ir andando, até logo”

Despedindo-se também, o rapaz esperou até que ela se virasse para deixar, finalmente, escapar o sorriso enorme que tentara conter junto a ela. Mal ele sabia que ela, mesmo que mais comedida e não tão óbvia, também sorrira.

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O sol brilhava, os pássaros chilreavam nas árvores e as crianças brincavam no pátio, animadas. O dia tinha, na opinião de Sara, tudo para ser aprazível. Animada, caminhou para a escola, assobiando o ritmo de uma música do seu agrado. À entrada, encontrou-se com Cláudia, que conversava com João Esteves. Era incrível o quanto ele tinha mudado. Se antes se serviria da menor desculpa para implicar com ela, agora sorriu-lhe e falou-lhe cordialmente. Ela não se queixava e estava mais do que disposta para pôr as suas divergências por detrás das costas. Respondendo-lhe de igual modo, juntou-se à conversa, até que foram interrompidos pelo som do motor de um carro que abafava os demais. Chiando ao travar, um desportivo parou à entrada da escola.

“Ganda carro!”, exclamou João, com os olhos a cintilar. Ali, diante de si, estava o seu carro de sonho e, em bom rigor, não devia ser só seu, porque a sua expressão embevecida era comum a uma grande parte dos colegas, que cochichavam entre si, na ânsia de saber quem é que sairia daquele carro. O queixo caiu-lhe ao chão ao ver Tomás, carrancudo, a sair do desportivo e a bater com a porta. Ultrajado, disse, por entre dentes, “Aquele gajo?!”

Tomás, ao avistar Sara, que se mantivera apática durante aquele tempo todo, até porque tinha preferência por motas, concretamente a de Susana, que ansiava por poder guiar, sorriu-lhe. A rapariga torceu o nariz, virando-lhe as costas, até que se lembrou do favor que Leonor lhe pedira. Voltando a olhar para ele, viu-o cabisbaixo, mas não encontrou coragem para o abordar. Culpada, prometeu a si mesma que, assim que surgisse ocasião, tentaria falar com ele, isto se não estivessem objectos aguçados e cortantes na periferia. Ao seu lado, Cláudia suspirou, derretida e João, por sua vez, continuou a abanar a cabeça, incrédulo. Quando a campainha tocou, foram para a aula.

Observando a sala, deu com Tomás sentado ao fundo, com um ar abatido. O facto de a professora ter aparecido, fez com que tivesse que adiar os seus planos. Até preferia assim, afinal prometera a si mesma que iria tentar falar, não que iria efectivamente falar e, se não tivera oportunidade, não era culpa sua. Francamente, só acedera ao pedido de Leonor porque até simpatizava com ela e porque queria que Afonso ficasse bem visto aos olhos dela, coisa que seria simplificada se não houvesse atrito entre ela e o irmão de Leonor. Sentando-se ao lado de Cláudia, não voltou a pensar em Tomás.

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Depois de ter tido uma conversa com Leonor sobre a importância de fazer o melhor possível por criar uma imagem mais favorável, agora que tinha a oportunidade de começar da estaca zero, Tomás acordara motivado para fazer isso mesmo. Começaria por falar com Sara, a quem achara piada, com a sua maneira de ser bem-disposta e afável, e a irmã garantira-lhe que ela lhe responderia bem. Porém, o seu dia começara por ter como despertador os berros de Guida, sem motivo aparente, não que precisasse de um, claro. Ainda bem para ele, que a mãe estaria fora na semana seguinte, podia ser que conseguisse ter um dia sem que houvesse discussões. O dia só podia melhorar, dali por diante.

Porque demorou tempo a mais a despachar-se, Guida irritara-se. Moendo-lhe a cabeça, ora porque ia chegar atrasada a uma reunião por causa dele, ora porque previa um dia complicado no trabalho e ele era o seu saco de boxe, não lhe deu descanso até que chegou à escola. Enervado, Tomás, que se mantivera calado o tempo todo, bateu com a porta, ignorando os olhares que a mãe lhe mandou antes de arrancar. Avistando Sara, sorriu, da forma mais normal que conseguiu. Não era que quisesse fazer mal à rapariga, mas gostava de saber que a conseguia intimidar. No entanto, parecia que ela não lhe daria essa satisfação. Olhando-o como se fosse algo desagradável colado à sola do sapato, conseguira deixá-lo sem reacção.

Ou melhor, conseguira fazê-lo sentir-se mal, como se tivesse levado um soco no estômago. Tudo o que ele queria era que lhe retribuísse o sorriso, que desse para se juntar aos outros e contar a boa nova a Leonor. Sentindo-se desiludido e magoado, ocupou o lugar no canto da sala, desejando que as aulas terminassem. Fora ter passado o intervalo sozinho, o resto das aulas decorrera dentro dos padrões da normalidade, já se acostumara a que a amiga de Sara estivesse mais interessada em olhar para ele que em prestar atenção à aula, que o rapaz que estava com elas se risse dele e que Sara o fosse ignorar. Se João continuasse a fazer troça dele, facilmente lhe tiraria o sorriso da cara, por isso não estava nada incomodado.

Parecia que os seus contratempos não se ficaram por aí. Procurando dentro da mochila, não encontrou a carteira, o que queria dizer que não poderia almoçar e ainda tinha mais uma aula. Ia a retirar-se, quando alguém choca com ele. Sara, constrangida, foi ainda a tempo de dizer, de modo pouco seguro, “Olá”

“Hi”, respondeu Tomás, falando, por lapso, na língua na qual se sentia mais confortável, “Will you give me my foot back?”

“Como?”, questionou Sara, pestanejando, confusa. Línguas não eram, de forma alguma, o seu forte e dizer que o seu inglês era terrível, era ser generoso.

“Estás-me a pisar”, esclareceu o rapaz, a quem o tom de voz soou mais austero do que desejava. Corrigindo-se, com o intuito de não afugentar a rapariga, que já estava prestes a virar-lhe costas sem que ele tivesse direito a mais do que um “desculpa” pouco sincero, mesmo que para isso tivesse que sacrificar a sua unha do dedo pisado, disse, “Wait! Podíamo-nos vir a dar melhor…”

A tirada com que Tomás se saiu deixou Sara ainda mais confusa do que quando não falara em português. Encarando-o, como se ele tivesse dito a coisa mais absurda do mundo, esperou que ele prosseguisse. Não sabendo bem como o dizer, o rapaz, pouco à vontade, tentou, “Acho que começámos mal e queria corrigir a situação…mas não precisas de ter medo que eu não te vou fazer nada”

“Pronto…”, respondeu a rapariga, ponderando na melhor maneira de lidar com a situação. Tomás parecia estar a ser sincero, mas já esperava qualquer coisa vinda dele. Como planeava almoçar com João e Cláudia, podia convidá-lo para vir também, assim sempre tinha apoio caso ele lhe tentasse espetar um garfo num olho ou qualquer coisa igualmente má do género. Suspirando, pensou no grande favor que estava a prestar a Leonor, favor esse que provavelmente a faria a sua escrava para o resto da vida e disse, “Olha, eu ia almoçar com uns amigos, se não tiveres planos podes vir se quiseres”

“P…posso?”, inquiriu o rapaz, incrédulo. Não se lembrava da última vez que alguém que não Leonor o convidara para fazer o que quer que fosse. Por norma, os outros miúdos costumavam manter distância dele, embora ele nunca se tivesse importado pois gostava da sensação que tinha quando intimidava os outros. Era algo de poder, já que em casa não o tinha. Agora estava aquela rapariga, que mal conhecia e que já antes lhe conseguira tirar a posição dominante, a convidá-lo para uma das coisas mais mundanas mas que ele não estava certo de já ter experimentado? A situação era toda uma novidade para ele, tanto que o assustava, mas sabia que a irmã iria gostar de o ver com outras pessoas da idade dele, portanto estava inclinado para aceitar.

“Sim, mas vê lá se não te estraguei os planos”, insistiu Sara, desejando e muito que ele não se quisesse juntar, “Podias já te companhia ou outro sítio onde estar”

“Não, não tinha com quem almoçar”, disse Tomás, ainda a processar a informação. Parece que afinal sempre iria poder levar para casa notícias que a irmã gostasse de ouvir. Quando voltou à realidade, pediu, “Devolves-me o pé, se faz favor?”

A rapariga, que não se tinha apercebido que ainda tinha o pé do rapaz debaixo do seu, retirou-o depressa, desfazendo-se em desculpas, o que fez com que Tomás se risse. Não muito depois, apareceram João e Cláudia. João, ao ver Tomás, arregalou os olhos, antes de os revirar, obviamente pouco interessado na companhia dele. Cláudia, por sua vez, sorriu de orelha a orelha, antes de o bombardear com perguntas, do tipo, de onde é que ele vinha para ter um sotaque assim. Enquanto o rapaz respondia, João questionou Sara, em tom baixo, “O que é que este gajo está aqui a fazer?”

“Ele não tinha com quem almoçar, então convidei-o para não ficar sozinho”, respondeu a rapariga, observando Tomás e Cláudia rirem-se de qualquer coisa que ela tinha dito. Mais tranquila, pediu, “Tenta não o provocar, não sei como é que ele iria reagir”

“Não gosto da pinta dele”, resmungou João, trocando um olhar com Tomás, olhar esse com que ambos estabeleceram o seu desagrado mútuo.

Sara nada disse, escolhendo ao invés, ir para a fila, afinal estava a tornar-se cada vez maior e ela estava com fome. Vendo que Tomás não pegou num tabuleiro, perguntou, “Não comes nada?”

“Esqueci-me da carteira em casa”, respondeu o rapaz, encolhendo os ombros. Até ao presente momento estava tudo a correr bem, conseguira não assustar ninguém, embora a cara de João o irritasse. Talvez ele lhe desse uma desculpa para o esmurrar, como lhe estava a apetecer desde que o vira. Já Cláudia parecera-lhe simpática, mas monopolizava a conversa e ele não tivera grandes chances de falar com Sara, que parecia mais interessada em fazer companhia a João, para grande raiva sua.

“Não estou com muita fome, se quiseres podemos dividir”, ofereceu Sara, que tomara um pequeno-almoço reforçado e não tinha assim tanta vontade de comer. Não acontecia muito, mas quando acontecia detestava ver um prato cheio diante de si.

“Oh não, deixa estar”, apreçou-se Tomás a dizer, embora o seu estômago roncasse de modo indiscreto. O “tão querido” que Cláudia proferira, ainda mais servira para o constranger. A situação já escapara ao seu controlo havia algum tempo e isso ele não gostava.

“Dividimos o almoço e não se fala mais nisso”, disse a rapariga, enquanto punha o prato no tabuleiro. Carregando o tabuleiro, até que o rapaz lho tirou, ganhando outro “tão querido” de Cláudia, foi abrindo caminho por entre a multidão, até encontrar lugares vazios.

João, que se mantivera calado, resmungou. Primeiro Tomás aparentava ser podre de rico, depois ocupava o seu espaço, depois Cláudia derretia-se com ele e, como se não bastasse, Sara desfazia-se em simpatias com ele. Decidira que não gostava mesmo do americano. Não soube porquê, mas a proximidade com que Sara e Tomás se sentaram, ainda que fosse necessário para partilharem um prato de esparguete à bolonhesa, enfurecia-o. O ar de satisfação que o rapaz lhe mandou conseguiu fazer com que a sua fúria duplicasse.

“Para a próxima ofereço-te eu o almoço”, replicou Tomás, pouco saciado com meio prato, não estivesse ele em crescimento a olhos vistos. Se antes não gostava da falta de controlo que detinha sobre a situação, agora sentia-se sensibilizado pelo gesto de Sara. Estava certo de ter visto João a fazer olhinhos à rapariga, o que não lhe agradou de todo e tencionava usar isso para o provocar. Sorrindo para Sara, que lhe retribuiu, consciente de que isso enraiveceria João, sentiu que, de novo, controlava a situação, para sua satisfação.

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