Se
havia algo por que Leonor se sentia muito grata, era, com toda a certeza, a sua
capacidade de acordar de manhã, depois de uma noite em que bebera
generosamente, sem sentir quaisquer sinais de uma ressaca. Afinal, não queria
estragar um começo de dia no qual, devido aos acontecimentos da noite anterior,
despertara cheia de boa disposição. Em bom rigor, ainda estava a sentir a
euforia de ontem e não podia atribuir as culpas ao álcool, tanto que lhe
custara a adormecer, mas não se estava de todo a queixar, antes pelo contrário.
Como nem tudo podia ser bom, ela, ao contrário de Adriana que podia comer como
se o mundo fosse acabar e não ganhar de repente dez centímetros na cintura, era
extremamente propícia a engordar, por isso, fosse dia de Ano Novo ou não, teria
de ir correr para abater os excessos que cometera durante aquela quadra, se bem
que, desta vez, fá-lo-ia de bom grado e não porque era a alternativa a parecer
um lutador de sumo.
Animada,
atirou com os cobertores de cima de si e fez uma pequena dança alegre e
ridícula, certa de que as paredes do seu quarto não iriam dizer nada a ninguém,
e mais do que motivada para enfrentar o frio cortante matinal. Estava a acabar
de se vestir quando alguém lhe bateu à porta. Franzindo o sobrolho, não lhe
ocorreu quem seria àquela hora, já que Guida, se bem a conhecia, teria bebido
que nem uma esponja e não estaria em condições de sair da cama e Tomás não
sabia que o dia começava antes da uma da tarde, portanto sobrava Marta. Qual
não foi a sua admiração quando, em vez de Marta, apareceu o seu irmão, tão ensonado
que não abria os olhos, tanto que ela não se coibiu de exclamar, “O que é que
te traz por aqui a estas horas?”
“Não
tinha sono”, mentiu o rapaz, incapaz de convencer fosse quem fosse, até porque
o tom de voz arrastado com que falava e o bocejo que o interrompeu o
denunciaram, “Anyway, vais correr?”
“Tem
que ser”, disse Leonor, enquanto atava os ténis. Que o irmão não estava a falar
verdade já ela percebera assim que a primeira palavra lhe havia saído da boca,
só queria era saber porquê. Prezava a relação que tinham e, ver que ele lhe
estava a mentir, ofendia-a, porque julgava que ele sabia que podia confiar nela
e pelos vistos estava enganada. Ia a perguntar-lhe quando ele, pronunciando a
frase que ela nunca esperou ouvir vinda dele, tanto que pensou se afinal não
estaria ainda a sentir os efeitos do álcool, se propôs a acompanhá-la. Antes
que ele mudasse de ideias, ela esqueceu as intenções que tinha de lhe
questionar o porquê daquela mentira e disse, olhando para o pijama azul-bebé com
coelhinhos de Tomás, “Sim! Vou só comer qualquer coisa enquanto tu te vais
vestir, mas não faças essa cara, vais ver que não vai custar assim tanto”
O
rapaz assim fez, arrastando os pés pelo corredor até ao seu quarto e, pelo
caminho, provou a ocorrência de um milagre quando conseguiu percorrer a
distância sem cair de sono. Ela, por seu turno, foi até à cozinha buscar uma
peça de fruta, afinal não queria desfalecer a meio da corrida. Sentindo a alma
a sofrer quando olhou para os cereais de chocolate do irmão, teve de se
relembrar que, se sucumbisse à sua gulodice, dali por um ano não conseguiria
caber nas portas. Estava a meio da sua banana quando, ao ver o telemóvel
abandonado em cima da bancada, se lembrou de acordar Afonso para lhe dar os
bons dias. O plano era bem-intencionado e até já tinha uma ideia do que havia
de dizer, mas Afonso adiantou-se:
“Bom dia princesa! Começa
o dia a saber que gosto muito de ti e que espero que tenhas dormido muito bem :D”
Sorrindo,
tomou a liberdade de levar um momento para saborear o quão afectuoso Afonso
era. Definitivamente que não estava habituada àquele tratamento, excepto quando
queriam algo dela e, quando por fim o conseguiam, era despachada e posta de
parte. Franzindo o sobrolho em sinal de apreensão, perguntou-se se o rapaz a
iria tratar de modo diferente depois de a levar para a cama, como os outros.
Não era uma ideia que lhe desse segurança, tanto que fez por esquecer que tal
pensamento lhe ocorreu, pois não queria começar o dia a matutar sobre algo
desagradável. Ia a responder à mensagem de Afonso quando Tomás, por cima do seu
ombro, disse, torcendo o nariz, “Bah! É disso que vocês, raparigas, gostam?”
“A
Sara ia ficar muito feliz se tu a acordasses com uma mensagem destas”, brincou
Leonor, fazendo o seu truque de levantar uma só sobrancelha várias vezes, algo
que já se estava a tornar a sua imagem de marca. Vendo que o irmão, em vez de
se rir ou de corar, como era seu hábito sempre que o teor da conversa convergia
para raparigas, pareceu nervoso, teve de conter as inúmeras perguntas que lhe
surgiram naquele momento. Para outra pessoa, algo tão pequeno como uma reacção
a uma provocação passaria despercebido, mas ela conhecia o rapaz e não
precisava de recorrer a cartomancia para saber quando se passava algo. No
entanto, resolveu não insistir, certa de que ele partilharia o que quer que o
incomodasse quando estivesse pronto, mesmo que a mentira que ele lhe tentara
impingir antes não tivesse ficado esquecida e a tivesse magoado um pouco.
Assim
que pôs o pé fora da porta e sentiu a brisa fresca, não conseguiu evitar o
sorriso que se lhe assomou no rosto. A noite dera lugar a um dia límpido e
agradável, sem quaisquer nuvens no horizonte, pelo menos até onde a sua vista
alcançava, e o sol, que havia nascido ainda há pouco tempo, conferia o retoque
final no quadro que era aquela manhã. Era a sua altura predilecta do dia que,
se começado cedo, era certo e sabido que iria render, e poder desfrutá-la com
um ser vivo que não Princess que, apesar de toda a sua boa vontade, mal
conseguia correr, fazia-a sentir-se viva. Decidindo tirar o máximo partido das
poucas horas que tinha para aproveitar, começou num ritmo lento, embalado pela banda
sonora que era o entoar dos pássaros. Quando chegaram ao parque, pareceu-lhe
que já podia começar a sério, pois o aquecimento estava feito, mas não queria
puxar demasiado por Tomás, pouco acostumado a fazer exercício. Agora que se
lembrava, onde é que ele estava?
A
cerca de cem metros de distância, no outro lado da rua, estava o rapaz,
visivelmente afogueado. Por muito que tentasse, não era pessoa para acordar de
manhã. Em vez de se banquetear com os seus cereais de chocolate, tinha comido
uma peça de fruta insípida que, ao invés de lhe matar a fome, ainda lhe abrira
mais o apetite. Quando começara estava com tanto frio que nem mexia os dedos e
agora tinha calor. Leonor corria depressa demais e ignorara-o quando ele tinha
pedido para irem mais devagar porque não a conseguia acompanhar. Estava a
começar a ficar assado por causa dos calções. Como se isso já não fosse tortura
que chegasse, era extremamente sensível à luz e aquele sol baixo encandeava-o.
E, como aquele bolo não poderia deixar de ter uma cereja no topo, pisara dejectos
de cão!
Porque
é que se estava a sujeitar àquilo? Porque queria uma oportunidade para falar
com Leonor sobre a situação caótica da noite anterior e o quanto antes, sem que
Guida estivesse nas imediações para partilhar os seus comentários, e aquela era
a melhor altura, pois estavam fora de casa e Guida ainda estava a ressacar.
Quando julgou que os pulmões iam entrar em colapso, alcançou a irmã.
Arrastando-se para o banco, respirou fundo várias vezes, antes de implorar,
“Can we rest for a while, please?”
“Tens
que vir correr comigo mais vezes, estás uma lástima”, disse Leonor, que às
tantas já não sabia quem era pior parceiro de jogging, se Princess que
tropeçava nas próprias patas, se o irmão, que se mexia a ritmo de tartaruga. Estava
à espera que ele recuperasse o fôlego, quando um cheiro desagradável se
sobressaiu e a fez torcer o nariz e exclamar, “Não te cheira a nada?”
“I
stepped on dog poop”, respondeu Tomás, servindo-se do que restava da sua
energia para erguer a perna e mostrar a sola dos ténis à rapariga, que se
encolheu toda, horrorizada. Quando lhe pareceu que não ia ter um ataque
cardíaco e se decidiu a abordar o assunto que o tinha levado a voluntariar-se
para aquele martírio, disse, “I really need to talk to you”
Parecia
que Leonor afinal não teria de esperar muito mais para saber o que é que tanto
incomodava o rapaz. Sentando-se ao lado dele, com o cuidado de se colocar
contra o vento para que o cheiro daquilo que se encontrava na sola dos ténis
dele não a incomodasse, a rapariga deixou-o começar o relato do que tinha
acontecido na véspera, numa salganhada de português e inglês, ou não fosse ele
ter as suas dificuldades na expressão verbal. Teve, durante todo o discurso do
irmão, de se servir de toda a sua paciência, não só para perceber onde é que
ele queria chegar com aquela conversa, como para não o interromper cada vez que
as suas emoções levavam a melhor, afinal não concordava com muitas das atitudes
dele, a começar pela inimizade com o colega de turma, e, se fosse a ceder aos
seus impulsos, tê-lo-ia repreendido até mais não.
Contudo,
nem tudo era mau e ficou feliz por ver que, apesar de toda aquela novela de
segunda categoria, o irmão estava a conseguir integrar-se. Não se admirava que
Tomás estivesse a ser bem sucedido com as raparigas, afinal, na sua opinião, ele
estava a ficar bem-parecido e, agora que fazia um esforço por ser mais bem
comportado, só se podia estar a dar bem. E pensar que, o rapaz que ainda há
pouco tempo obcecava com jogos de tiros e dragões, agora pedia-lhe conselhos
sobre raparigas, como o seu maninho tinha crescido. Agradava-lhe o facto de ele
estar interessado em Sara, alguém que tinha a sua aprovação desde o primeiro
dia, isso mostrava que ele não tinha um gosto contestável, pelo menos. Sim, porque
ai do seu irmão que se metesse com alguma menina leviana de reputação de carrossel
de feira, só de pensar nisso arrepiava-se. E ele e Sara ficavam tão queridos
juntos, na sua opinião.
“Ou
seja, gostas da Sara, estava a correr tudo às mil maravilhas entre vocês,
depois a Cláudia, toda tarada por ti, apareceu e estragou tudo”, disse Leonor,
mais para si mesma para ter a certeza que, no meio da tirada bilingue e confusa
de Tomás, não se tinha perdido. O rapaz confirmou e ela continuou, “Tu
mandaste-a parar, mas mesmo assim a Sara não ficou muito contente e passou o
resto da noite a fugir de ti e tu não queres estar mal com ela, certo?”
“Sim,
mas também não queria pôr de parte a Cláudia”, confessou o rapaz, com pena de
não ter o melhor dos dois mundos, Sara porque gostava dela, da sua companhia e
da pessoa que ela o fazia ser, e a outra porque era jeitosa e ele vendia a alma
para lhe poder apreciar melhor os atributos, “Boobies, you know …and all that
ass”
“Don’t
be a fucking douchebag, understood?!”, disse Leonor, levantando mais a voz do
que o necessário. Aquela ideia do irmão de só ligar à outra rapariga pelo
tamanho do peito sem se lembrar que, por detrás disso, estava alguém que podia
sair magoada no meio daquela história toda, atingia-a particularmente, porque
já tinha estado na pele dela. Respirando fundo, acalmou-se e aconselhou,
“Escolhe uma e, pelo menos por agora, deixa estar a outra como amiga, depois
logo se vê o que é que acontece e, o que acontecer, lidas com isso depois. Não
disseste que te custava mais abdicar da Sara?”
“She
makes me feel so peaceful”, confessou o rapaz, olhando para as pedras da
calçada, corado. Se tivesse que enumerar todas as qualidades que gostava na
rapariga, não teria dedos suficientes para contar, mas, por outro lado, Cláudia
era muito bem dotada de airbags e pouco de inibição, o que o fazia acreditar
que ela o deixaria fazer o que quisesse. Tendo em conta que ela era a tara de
todos os rapazes da turma e só tinha olhos para ele, ele seria a inveja da
turma em peso. Mas depois sentia-se tão bem quando estava com Sara. Que dilema!
“Então
pronto! Onde é que está a dúvida?”, perguntou Leonor, retoricamente. Enquanto
irmã mais velha que tivera que aprender com a sua lista longa de erros, em
primeiro lugar, cabia-lhe garantir que o seu irmão mais novo não se tornaria em
alguém desprovido de moral e, em segundo lugar, certificar-se que as suas
escolhas reflectiam isso mesmo. Claro que estava consciente que ele teria de aprender
com os erros que inevitavelmente acabaria por cometer, mas se ela o pudesse ir
ajudando, tanto melhor. Mas, se havia coisa que não queria, era que Tomás
soubesse do seu passado, sob pena de denegrir a sua imagem aos olhos dele,
tanto mais pois ele necessitava de alguém a quem seguir como paradigma. Afastando
o segundo pensamento horrível do dia, disse, “Fala com ela e sê fofinho, ela
parece que também gosta de ti, vais ver que vai ficar muito feliz”
“Alright,
I’ll do it”, concordou Tomás. Não se podia dizer que sentisse a mesma confiança
que sentiu na noite anterior quando estava absolutamente decidido a meter-se
com Sara só para o poder esfregar na cara, tanto de Afonso, como de João, mas
fá-lo-ia, até porque, depois da interacção entre ambos, não podia correr mal.
Depois de Leonor lhe ter ralhado um pouco mais por ele ter orquestrado um plano
para provocar o colega e Afonso, coisa que lhe entrou por um ouvido e saiu por
outro mas que fingiu estar muito arrependido, retomaram a corrida, muito para
seu enfado. Para se distrair das dores nos joelhos, pensou no quanto João e
Afonso não esperavam pela demora. Aliás, até juntava o útil ao agradável,
ficava com Sara e chateava-os, embora a rapariga passasse para primeiro plano.
Depois
de darem mais umas quantas voltas ao parque, algo que Leonor considerou um
workout ligeiro, mas que Tomás, por seu turno, achou pior que torturas
medievais, voltaram para casa. Agora que a rapariga sabia porque é que o irmão
lhe mentira, conseguiu perdoar, embora tivesse achado evitável, mas não pensou
mais nisso. Indo tomar banho deixou o rapaz, satisfeito por o sofrimento ter
chegado ao fim. Descalçando-se, preferiu ir recuperar o tempo perdido com os
seus jogos de vídeo, afinal aqueles dragões não se treinavam sozinhos, mas não
sem deixar os ténis sujos perto de Guida, para que fossem a primeira coisa a
recebê-la naquela manhã. Todo contente, estava a experimentar o jogo novo, que
lhe parecia bom demais para ter sido escolhido por Leonor, quando ouviu um
grito cortante, vindo do andar de cima. Bem sucedido na sua missão, sorriu.
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Quando
o sentimento agridoce da noite anterior não pareceu ir fosse onde fosse, Sara
quase esteve tentada a ir contra a sua natureza e a sair da cama antes da uma
da tarde. Quase. Voltando-se para o lado, aconchegou-se melhor nos cobertores e
obrigou-se a adormecer. Estava a fazer um bom trabalho, quando Afonso lhe
resolveu frustrar os planos, atirando-se, no que foi um belo salto e uma
aterragem menos elegante para cima da sua pessoa, “Bom dia alegria!”
“Ai!
Deixa-me em paz, gordo, estúpido!”, guinchou a rapariga, comprimida debaixo do
que estimava serem oitenta quilos no mínimo, o que lhe estava a dificultar a
respiração, isto para não referir o susto que tinha apanhado e do qual ainda
não tinha recuperado, “Ai! Odeio-te!”
“Tu
adoras-me que eu sei”, disse o rapaz, dando-lhe um abraço de modo a prender-lhe
os braços, para que ela não pudesse retaliar. Assim que soltou a irmã, levou a
mão ao bolso das calças e, passando-lhe o telemóvel para as mãos, disse, “Olha,
diz lá que não tenho motivos para estar feliz”
Piscando
os olhos ainda pouco habituados à luz, Sara leu no ecrã do aparelho:
“Good morning sunshine!
Acordei tão bem-disposta e a culpa foi tua, estás à vontade para o fazeres mais
vezes ;)”
Tinha
que dar o braço a torcer e admitir que Afonso tinha razões perfeitamente
legítimas para estar tão feliz, para parafrasear o que ele tinha dito. Fazendo
um chamamento a toda a sua força interior para superar o sono, lá conseguiu um
sorriso para acompanhar a fala, “Que querida! Fico muito feliz por ti”
“Obrigado”,
agradeceu ele, ainda sem conseguir acreditar na sua sorte. Ela parecia-lhe fora
da sua liga, tanto mais que Rúben, que nunca tinha tido propriamente papas na
língua, lhe dissera isso mesmo. Não só em termos de aspecto, que era quando, a
seu ver, as disparidades eram gritantes, mas ela parecia-lhe tão ideal, que
quase lhe custava a acreditar que ela verdadeira. Claro que a revelação acerca
do seu lado menos que perfeito tinha contribuído para que a visse como alguém
que, tal como todos os comuns mortais, tinha feito coisas das quais se
arrependia, mas ainda assim sentia-se inseguro quando se comparava a ela.
Fazendo por ignorar o travo desagradável que esse pensamento lhe dava, achou
por bem não pensar muito nisso, já que não queria que as suas inseguranças
sabotassem o que tinham.
Se
não conhecesse tão bem o irmão e soubesse o que lhe custara chegar até onde
estava com Leonor, teria sentido uma ponta de ressentimento por ele estar tão
feliz enquanto ela, Sara, tinha visto cair no colo uma situação desconfortável
sem que ela tivesse feito por procurar problemas. Uma parte de si queria que
Afonso reparasse que alguma coisa a estava a preocupar e a ajudasse, mas a
outra parte sabia que a ajuda do rapaz passava por transformar Tomás em carne
picada, cheia de colesterol, como ele acrescentaria se pudesse dialogar com
essa sua parte menos optimista. Até que a situação se encaminhasse, só lhe
restava esperar pelo melhor, a bem da sua sanidade.
E,
falando em sanidade, outra coisa que em nada contribuía para a sua era,
definitivamente, o entusiasmo hiperactivo e barulhento de Afonso, que
cantarolava uma música qualquer fora do ritmo, enquanto despejava os cereais
para uma tigela. Claro que não era apenas a sanidade de Sara que estava em
causa, era também a de Susana, que se perguntava como é que alguém conseguia
contar tão mal a ponto de parecer o ruído que um gato faria ao seu pisado.
Certo, se calhar competir com Guida para ver quem conseguia beber mais não
tinha sido o seu momento mais brilhante, mas Afonso estava a tornar a sua
ressaca ainda pior. Quando ele tentou imitar um falsetto, muito para horror dos
vidros da janela, Susana não conseguiu guardar para si os comentários, “Não sei
o que é que te deixa tão feliz, mas pára, por favor”
Talvez
fosse demasiado cedo para dar a boa nova, mas Afonso, naquele momento,
sentia-se tão eufórico que era capaz de escalar uma montanha e bradar aos quatro
ventos, embora se tivesse limitado a piscar o olho a Susana que, apesar do seu
estado, acenou, mostrando ter entendido. Sabia a priori que, caso fizesse
perguntas, o deixaria constrangido e, quando ele quisesse, se quisesse, poderia
contar-lhe o que quer que fosse. Podia, tanto quanto se apercebera, considerar
cumprida a profecia que fizera a Guida, havia uns bons anos atrás, na qual
dissera que haveria de haver qualquer coisa entre Afonso e Leonor. Além disso,
iria parar com as suspeitas de Guida de que ele era homossexual, com sorte.
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Ainda
que aquela voz insegura tivesse surgido dentro da sua cabeça para o fazer pensar
demasiado acerca de um gesto simples e não tivesse desaparecido tão cedo como
dera sinais de vida, Afonso, quando encontrou um bocadinho de tempo livre por
entre as inúmeras azáfamas que aquela quadra trazia consigo, achou por bem
passar por casa de Leonor, ou não fosse ele achar que não aguentava até às
aulas para a ver. Temia passar por lapa, mas, colocando-se no lugar da
rapariga, não lhe pareceu má ideia, era, até, algo enternecedor de se fazer,
tanto que decidiu seguir com o plano para a frente. Não a queria interromper
caso estivesse a fazer algo importante, fosse um serão com a família, fosse a
hora sagrada de arranjar as unhas. E daí um gesto espontâneo acarretava sempre
o seu quê de simpatia. Seria melhor avisar primeiro ou surpreender?
Preferindo
a última alternativa, fez-se ao caminho, com um sorriso patusco e, num ápice,
estava a centímetros do portão da casa de Leonor. Tocando à campainha, tentou
domar os caracóis, servindo-se do visor do telemóvel como espelho, embora não
tivesse conseguido efeitos significativos e tivesse sido surpreendido quando
Tomás abriu a porta. Tomás, ao ver que Afonso não trazia Sara consigo, deu meia
volta e fechou a porta, desinteressado. Se tivesse que dar o seu input na
situação, diria que a irmã namorava com uma rapariga especialmente feia e não
com um rapaz. Especado ao frio e, mais uma vez, sem reacção perante a audácia
de Tomás, Afonso apenas conteve a sua irritação porque Leonor abriu a porta
logo a seguir, tendo calçado, para bem da masculinidade dele, sapatos rasos, mas
não sem que ele colocasse um post-it mental para se lembrar de retribuir o
favor a Tomás.
“Ele
está indisposto, desculpa”, justificou a rapariga, sentindo-se culpada por o
irmão ter fechado a porta na cara de Afonso. Mais tarde repreendê-lo-ia, isso
era garantido. Como ainda tinha mais uma má notícia para dar ao rapaz, disse,
sentindo o peso da culpa a aumentar, acompanhando a sua ingestão de calorias
daquele almoço que lhe iria direitinha para a barriga, “Íamos agora a casa dos
meus avós…”
“Não
tem importância, também não me contava demorar muito, só te vinha dar um
beijinho”, disse o rapaz, ainda que, se dependesse de si, Leonor bem que podia
considerar-se raptada. Como, ele próprio, também tencionava passar por casa dos
avós mais tarde e ainda não levara Mocas a dar o seu passeio, até vinha a
calhar não ficar ali muito tempo, mas, de bom grado, teria arranjado uma
desculpa para se atrasar. Sem muita vontade de desperdiçar o tempo que lhes
restava, segurou-lhe as mãos e, puxando-a para si, beijou-a. Não sabia como é
que se iria habituar a fazê-lo sem sentir o chão a escapar-lhe debaixo dos pés,
tanto que lhe parecia algo cada vez melhor.
Leonor
esperava que aqueles momentos de simpatia espontânea vindos de Afonso não tivessem
um final abrupto, afinal era um tratamento a que se via a acostumar a longo
prazo. Até lá, restava-lhe desfrutar e era mesmo isso que tencionava fazer.
Agarrando os caracóis da nuca do rapaz, intensificou o beijo, conseguindo
escandalizar a vizinha idosa da frente. Teve que acalmar quando sentiu o peso
morto de Afonso a cair para cima de si, “Estás bem?”
“Sim!”,
respondeu ele, tão corado que não soube como é que não teve uma hemorragia. Se
a rapariga se assanhava com tanta facilidade, então ele ficava ainda mais
ansioso por ver o que aconteceria caso se vissem em privado. Com um historial
como o dela não devia demorar muito até que chegassem “a vias de facto” e ele
mal podia esperar por esse dia. Com a sua sorte ele ainda teria algum fetiche
perturbante, mas preferia acreditar que seria apenas muito picante.
Obrigando-se a esquecer tais pensamentos, pensamentos esses que eram mais
próprios de Rúben ou de outro libidinoso qualquer do que dele, abraçou-a.
Queria mesmo que as coisas dessem certo entre os dois e, no que dependesse de
si, tudo iria, realmente, correr pelo melhor.
Pouco
depois, Tomás, de mãos nos bolsos e ar de tédio, foi chamar a irmã, incomodado
por ter que a ver naqueles preparos. Quando a apanhou de costas, fez um gesto
feio com o dedo a Afonso, até que se decidiu a ir à sua vida. Decerto que Sara não
se interessaria mesmo por aquele ser, ou, pelo menos, era nisso que Afonso depositava
a sua fé. Beijando Leonor pela última vez naquele dia, o rapaz acabou por a deixar
ir, com alguma pena claro, afastando-se, sorridente.
Antes de mais, podes começar a dar gritos de alegria, estou a comentar.
ResponderEliminarEstou a gostar da história e, para já, a relação do Afonso com a Leonor está a endireitar-se. Agora quero ver os obstáculos daqui para a frente.
Quanto ao Tomás, não sei até que ponto as intenções dele são boas. Por mim que ele pareça gostar da Sara e de como ela o acalma e o faz sentir, acho que a personalidade dele está bem vincada e a vontade de se "vingar" de todos, mesmo sem grandes motivos, parece forte.
Quero ver até que ponto é que eles se aproximam ou não, e até que ponto a Sara vai confiar nele ou não.
Para além de que, quando o Afonso souber, não vai ser bonito.
Ah, e isto de postares de mês a mês...
A viajante dos blogues :) *