quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Capítulo 13

Se havia algo por que Leonor se sentia muito grata, era, com toda a certeza, a sua capacidade de acordar de manhã, depois de uma noite em que bebera generosamente, sem sentir quaisquer sinais de uma ressaca. Afinal, não queria estragar um começo de dia no qual, devido aos acontecimentos da noite anterior, despertara cheia de boa disposição. Em bom rigor, ainda estava a sentir a euforia de ontem e não podia atribuir as culpas ao álcool, tanto que lhe custara a adormecer, mas não se estava de todo a queixar, antes pelo contrário. Como nem tudo podia ser bom, ela, ao contrário de Adriana que podia comer como se o mundo fosse acabar e não ganhar de repente dez centímetros na cintura, era extremamente propícia a engordar, por isso, fosse dia de Ano Novo ou não, teria de ir correr para abater os excessos que cometera durante aquela quadra, se bem que, desta vez, fá-lo-ia de bom grado e não porque era a alternativa a parecer um lutador de sumo.

Animada, atirou com os cobertores de cima de si e fez uma pequena dança alegre e ridícula, certa de que as paredes do seu quarto não iriam dizer nada a ninguém, e mais do que motivada para enfrentar o frio cortante matinal. Estava a acabar de se vestir quando alguém lhe bateu à porta. Franzindo o sobrolho, não lhe ocorreu quem seria àquela hora, já que Guida, se bem a conhecia, teria bebido que nem uma esponja e não estaria em condições de sair da cama e Tomás não sabia que o dia começava antes da uma da tarde, portanto sobrava Marta. Qual não foi a sua admiração quando, em vez de Marta, apareceu o seu irmão, tão ensonado que não abria os olhos, tanto que ela não se coibiu de exclamar, “O que é que te traz por aqui a estas horas?”

“Não tinha sono”, mentiu o rapaz, incapaz de convencer fosse quem fosse, até porque o tom de voz arrastado com que falava e o bocejo que o interrompeu o denunciaram, “Anyway, vais correr?”

“Tem que ser”, disse Leonor, enquanto atava os ténis. Que o irmão não estava a falar verdade já ela percebera assim que a primeira palavra lhe havia saído da boca, só queria era saber porquê. Prezava a relação que tinham e, ver que ele lhe estava a mentir, ofendia-a, porque julgava que ele sabia que podia confiar nela e pelos vistos estava enganada. Ia a perguntar-lhe quando ele, pronunciando a frase que ela nunca esperou ouvir vinda dele, tanto que pensou se afinal não estaria ainda a sentir os efeitos do álcool, se propôs a acompanhá-la. Antes que ele mudasse de ideias, ela esqueceu as intenções que tinha de lhe questionar o porquê daquela mentira e disse, olhando para o pijama azul-bebé com coelhinhos de Tomás, “Sim! Vou só comer qualquer coisa enquanto tu te vais vestir, mas não faças essa cara, vais ver que não vai custar assim tanto”

O rapaz assim fez, arrastando os pés pelo corredor até ao seu quarto e, pelo caminho, provou a ocorrência de um milagre quando conseguiu percorrer a distância sem cair de sono. Ela, por seu turno, foi até à cozinha buscar uma peça de fruta, afinal não queria desfalecer a meio da corrida. Sentindo a alma a sofrer quando olhou para os cereais de chocolate do irmão, teve de se relembrar que, se sucumbisse à sua gulodice, dali por um ano não conseguiria caber nas portas. Estava a meio da sua banana quando, ao ver o telemóvel abandonado em cima da bancada, se lembrou de acordar Afonso para lhe dar os bons dias. O plano era bem-intencionado e até já tinha uma ideia do que havia de dizer, mas Afonso adiantou-se:

“Bom dia princesa! Começa o dia a saber que gosto muito de ti e que espero que tenhas dormido muito bem :D”

Sorrindo, tomou a liberdade de levar um momento para saborear o quão afectuoso Afonso era. Definitivamente que não estava habituada àquele tratamento, excepto quando queriam algo dela e, quando por fim o conseguiam, era despachada e posta de parte. Franzindo o sobrolho em sinal de apreensão, perguntou-se se o rapaz a iria tratar de modo diferente depois de a levar para a cama, como os outros. Não era uma ideia que lhe desse segurança, tanto que fez por esquecer que tal pensamento lhe ocorreu, pois não queria começar o dia a matutar sobre algo desagradável. Ia a responder à mensagem de Afonso quando Tomás, por cima do seu ombro, disse, torcendo o nariz, “Bah! É disso que vocês, raparigas, gostam?”

“A Sara ia ficar muito feliz se tu a acordasses com uma mensagem destas”, brincou Leonor, fazendo o seu truque de levantar uma só sobrancelha várias vezes, algo que já se estava a tornar a sua imagem de marca. Vendo que o irmão, em vez de se rir ou de corar, como era seu hábito sempre que o teor da conversa convergia para raparigas, pareceu nervoso, teve de conter as inúmeras perguntas que lhe surgiram naquele momento. Para outra pessoa, algo tão pequeno como uma reacção a uma provocação passaria despercebido, mas ela conhecia o rapaz e não precisava de recorrer a cartomancia para saber quando se passava algo. No entanto, resolveu não insistir, certa de que ele partilharia o que quer que o incomodasse quando estivesse pronto, mesmo que a mentira que ele lhe tentara impingir antes não tivesse ficado esquecida e a tivesse magoado um pouco.

Assim que pôs o pé fora da porta e sentiu a brisa fresca, não conseguiu evitar o sorriso que se lhe assomou no rosto. A noite dera lugar a um dia límpido e agradável, sem quaisquer nuvens no horizonte, pelo menos até onde a sua vista alcançava, e o sol, que havia nascido ainda há pouco tempo, conferia o retoque final no quadro que era aquela manhã. Era a sua altura predilecta do dia que, se começado cedo, era certo e sabido que iria render, e poder desfrutá-la com um ser vivo que não Princess que, apesar de toda a sua boa vontade, mal conseguia correr, fazia-a sentir-se viva. Decidindo tirar o máximo partido das poucas horas que tinha para aproveitar, começou num ritmo lento, embalado pela banda sonora que era o entoar dos pássaros. Quando chegaram ao parque, pareceu-lhe que já podia começar a sério, pois o aquecimento estava feito, mas não queria puxar demasiado por Tomás, pouco acostumado a fazer exercício. Agora que se lembrava, onde é que ele estava?

A cerca de cem metros de distância, no outro lado da rua, estava o rapaz, visivelmente afogueado. Por muito que tentasse, não era pessoa para acordar de manhã. Em vez de se banquetear com os seus cereais de chocolate, tinha comido uma peça de fruta insípida que, ao invés de lhe matar a fome, ainda lhe abrira mais o apetite. Quando começara estava com tanto frio que nem mexia os dedos e agora tinha calor. Leonor corria depressa demais e ignorara-o quando ele tinha pedido para irem mais devagar porque não a conseguia acompanhar. Estava a começar a ficar assado por causa dos calções. Como se isso já não fosse tortura que chegasse, era extremamente sensível à luz e aquele sol baixo encandeava-o. E, como aquele bolo não poderia deixar de ter uma cereja no topo, pisara dejectos de cão!

Porque é que se estava a sujeitar àquilo? Porque queria uma oportunidade para falar com Leonor sobre a situação caótica da noite anterior e o quanto antes, sem que Guida estivesse nas imediações para partilhar os seus comentários, e aquela era a melhor altura, pois estavam fora de casa e Guida ainda estava a ressacar. Quando julgou que os pulmões iam entrar em colapso, alcançou a irmã. Arrastando-se para o banco, respirou fundo várias vezes, antes de implorar, “Can we rest for a while, please?”

“Tens que vir correr comigo mais vezes, estás uma lástima”, disse Leonor, que às tantas já não sabia quem era pior parceiro de jogging, se Princess que tropeçava nas próprias patas, se o irmão, que se mexia a ritmo de tartaruga. Estava à espera que ele recuperasse o fôlego, quando um cheiro desagradável se sobressaiu e a fez torcer o nariz e exclamar, “Não te cheira a nada?”

“I stepped on dog poop”, respondeu Tomás, servindo-se do que restava da sua energia para erguer a perna e mostrar a sola dos ténis à rapariga, que se encolheu toda, horrorizada. Quando lhe pareceu que não ia ter um ataque cardíaco e se decidiu a abordar o assunto que o tinha levado a voluntariar-se para aquele martírio, disse, “I really need to talk to you”

Parecia que Leonor afinal não teria de esperar muito mais para saber o que é que tanto incomodava o rapaz. Sentando-se ao lado dele, com o cuidado de se colocar contra o vento para que o cheiro daquilo que se encontrava na sola dos ténis dele não a incomodasse, a rapariga deixou-o começar o relato do que tinha acontecido na véspera, numa salganhada de português e inglês, ou não fosse ele ter as suas dificuldades na expressão verbal. Teve, durante todo o discurso do irmão, de se servir de toda a sua paciência, não só para perceber onde é que ele queria chegar com aquela conversa, como para não o interromper cada vez que as suas emoções levavam a melhor, afinal não concordava com muitas das atitudes dele, a começar pela inimizade com o colega de turma, e, se fosse a ceder aos seus impulsos, tê-lo-ia repreendido até mais não.

Contudo, nem tudo era mau e ficou feliz por ver que, apesar de toda aquela novela de segunda categoria, o irmão estava a conseguir integrar-se. Não se admirava que Tomás estivesse a ser bem sucedido com as raparigas, afinal, na sua opinião, ele estava a ficar bem-parecido e, agora que fazia um esforço por ser mais bem comportado, só se podia estar a dar bem. E pensar que, o rapaz que ainda há pouco tempo obcecava com jogos de tiros e dragões, agora pedia-lhe conselhos sobre raparigas, como o seu maninho tinha crescido. Agradava-lhe o facto de ele estar interessado em Sara, alguém que tinha a sua aprovação desde o primeiro dia, isso mostrava que ele não tinha um gosto contestável, pelo menos. Sim, porque ai do seu irmão que se metesse com alguma menina leviana de reputação de carrossel de feira, só de pensar nisso arrepiava-se. E ele e Sara ficavam tão queridos juntos, na sua opinião.

“Ou seja, gostas da Sara, estava a correr tudo às mil maravilhas entre vocês, depois a Cláudia, toda tarada por ti, apareceu e estragou tudo”, disse Leonor, mais para si mesma para ter a certeza que, no meio da tirada bilingue e confusa de Tomás, não se tinha perdido. O rapaz confirmou e ela continuou, “Tu mandaste-a parar, mas mesmo assim a Sara não ficou muito contente e passou o resto da noite a fugir de ti e tu não queres estar mal com ela, certo?”

“Sim, mas também não queria pôr de parte a Cláudia”, confessou o rapaz, com pena de não ter o melhor dos dois mundos, Sara porque gostava dela, da sua companhia e da pessoa que ela o fazia ser, e a outra porque era jeitosa e ele vendia a alma para lhe poder apreciar melhor os atributos, “Boobies, you know …and all that ass”

“Don’t be a fucking douchebag, understood?!”, disse Leonor, levantando mais a voz do que o necessário. Aquela ideia do irmão de só ligar à outra rapariga pelo tamanho do peito sem se lembrar que, por detrás disso, estava alguém que podia sair magoada no meio daquela história toda, atingia-a particularmente, porque já tinha estado na pele dela. Respirando fundo, acalmou-se e aconselhou, “Escolhe uma e, pelo menos por agora, deixa estar a outra como amiga, depois logo se vê o que é que acontece e, o que acontecer, lidas com isso depois. Não disseste que te custava mais abdicar da Sara?”

“She makes me feel so peaceful”, confessou o rapaz, olhando para as pedras da calçada, corado. Se tivesse que enumerar todas as qualidades que gostava na rapariga, não teria dedos suficientes para contar, mas, por outro lado, Cláudia era muito bem dotada de airbags e pouco de inibição, o que o fazia acreditar que ela o deixaria fazer o que quisesse. Tendo em conta que ela era a tara de todos os rapazes da turma e só tinha olhos para ele, ele seria a inveja da turma em peso. Mas depois sentia-se tão bem quando estava com Sara. Que dilema!

“Então pronto! Onde é que está a dúvida?”, perguntou Leonor, retoricamente. Enquanto irmã mais velha que tivera que aprender com a sua lista longa de erros, em primeiro lugar, cabia-lhe garantir que o seu irmão mais novo não se tornaria em alguém desprovido de moral e, em segundo lugar, certificar-se que as suas escolhas reflectiam isso mesmo. Claro que estava consciente que ele teria de aprender com os erros que inevitavelmente acabaria por cometer, mas se ela o pudesse ir ajudando, tanto melhor. Mas, se havia coisa que não queria, era que Tomás soubesse do seu passado, sob pena de denegrir a sua imagem aos olhos dele, tanto mais pois ele necessitava de alguém a quem seguir como paradigma. Afastando o segundo pensamento horrível do dia, disse, “Fala com ela e sê fofinho, ela parece que também gosta de ti, vais ver que vai ficar muito feliz”

“Alright, I’ll do it”, concordou Tomás. Não se podia dizer que sentisse a mesma confiança que sentiu na noite anterior quando estava absolutamente decidido a meter-se com Sara só para o poder esfregar na cara, tanto de Afonso, como de João, mas fá-lo-ia, até porque, depois da interacção entre ambos, não podia correr mal. Depois de Leonor lhe ter ralhado um pouco mais por ele ter orquestrado um plano para provocar o colega e Afonso, coisa que lhe entrou por um ouvido e saiu por outro mas que fingiu estar muito arrependido, retomaram a corrida, muito para seu enfado. Para se distrair das dores nos joelhos, pensou no quanto João e Afonso não esperavam pela demora. Aliás, até juntava o útil ao agradável, ficava com Sara e chateava-os, embora a rapariga passasse para primeiro plano.

Depois de darem mais umas quantas voltas ao parque, algo que Leonor considerou um workout ligeiro, mas que Tomás, por seu turno, achou pior que torturas medievais, voltaram para casa. Agora que a rapariga sabia porque é que o irmão lhe mentira, conseguiu perdoar, embora tivesse achado evitável, mas não pensou mais nisso. Indo tomar banho deixou o rapaz, satisfeito por o sofrimento ter chegado ao fim. Descalçando-se, preferiu ir recuperar o tempo perdido com os seus jogos de vídeo, afinal aqueles dragões não se treinavam sozinhos, mas não sem deixar os ténis sujos perto de Guida, para que fossem a primeira coisa a recebê-la naquela manhã. Todo contente, estava a experimentar o jogo novo, que lhe parecia bom demais para ter sido escolhido por Leonor, quando ouviu um grito cortante, vindo do andar de cima. Bem sucedido na sua missão, sorriu.

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Quando o sentimento agridoce da noite anterior não pareceu ir fosse onde fosse, Sara quase esteve tentada a ir contra a sua natureza e a sair da cama antes da uma da tarde. Quase. Voltando-se para o lado, aconchegou-se melhor nos cobertores e obrigou-se a adormecer. Estava a fazer um bom trabalho, quando Afonso lhe resolveu frustrar os planos, atirando-se, no que foi um belo salto e uma aterragem menos elegante para cima da sua pessoa, “Bom dia alegria!”

“Ai! Deixa-me em paz, gordo, estúpido!”, guinchou a rapariga, comprimida debaixo do que estimava serem oitenta quilos no mínimo, o que lhe estava a dificultar a respiração, isto para não referir o susto que tinha apanhado e do qual ainda não tinha recuperado, “Ai! Odeio-te!”

“Tu adoras-me que eu sei”, disse o rapaz, dando-lhe um abraço de modo a prender-lhe os braços, para que ela não pudesse retaliar. Assim que soltou a irmã, levou a mão ao bolso das calças e, passando-lhe o telemóvel para as mãos, disse, “Olha, diz lá que não tenho motivos para estar feliz”

Piscando os olhos ainda pouco habituados à luz, Sara leu no ecrã do aparelho:

“Good morning sunshine! Acordei tão bem-disposta e a culpa foi tua, estás à vontade para o fazeres mais vezes ;)”

Tinha que dar o braço a torcer e admitir que Afonso tinha razões perfeitamente legítimas para estar tão feliz, para parafrasear o que ele tinha dito. Fazendo um chamamento a toda a sua força interior para superar o sono, lá conseguiu um sorriso para acompanhar a fala, “Que querida! Fico muito feliz por ti”

“Obrigado”, agradeceu ele, ainda sem conseguir acreditar na sua sorte. Ela parecia-lhe fora da sua liga, tanto mais que Rúben, que nunca tinha tido propriamente papas na língua, lhe dissera isso mesmo. Não só em termos de aspecto, que era quando, a seu ver, as disparidades eram gritantes, mas ela parecia-lhe tão ideal, que quase lhe custava a acreditar que ela verdadeira. Claro que a revelação acerca do seu lado menos que perfeito tinha contribuído para que a visse como alguém que, tal como todos os comuns mortais, tinha feito coisas das quais se arrependia, mas ainda assim sentia-se inseguro quando se comparava a ela. Fazendo por ignorar o travo desagradável que esse pensamento lhe dava, achou por bem não pensar muito nisso, já que não queria que as suas inseguranças sabotassem o que tinham.

Se não conhecesse tão bem o irmão e soubesse o que lhe custara chegar até onde estava com Leonor, teria sentido uma ponta de ressentimento por ele estar tão feliz enquanto ela, Sara, tinha visto cair no colo uma situação desconfortável sem que ela tivesse feito por procurar problemas. Uma parte de si queria que Afonso reparasse que alguma coisa a estava a preocupar e a ajudasse, mas a outra parte sabia que a ajuda do rapaz passava por transformar Tomás em carne picada, cheia de colesterol, como ele acrescentaria se pudesse dialogar com essa sua parte menos optimista. Até que a situação se encaminhasse, só lhe restava esperar pelo melhor, a bem da sua sanidade.

E, falando em sanidade, outra coisa que em nada contribuía para a sua era, definitivamente, o entusiasmo hiperactivo e barulhento de Afonso, que cantarolava uma música qualquer fora do ritmo, enquanto despejava os cereais para uma tigela. Claro que não era apenas a sanidade de Sara que estava em causa, era também a de Susana, que se perguntava como é que alguém conseguia contar tão mal a ponto de parecer o ruído que um gato faria ao seu pisado. Certo, se calhar competir com Guida para ver quem conseguia beber mais não tinha sido o seu momento mais brilhante, mas Afonso estava a tornar a sua ressaca ainda pior. Quando ele tentou imitar um falsetto, muito para horror dos vidros da janela, Susana não conseguiu guardar para si os comentários, “Não sei o que é que te deixa tão feliz, mas pára, por favor”

Talvez fosse demasiado cedo para dar a boa nova, mas Afonso, naquele momento, sentia-se tão eufórico que era capaz de escalar uma montanha e bradar aos quatro ventos, embora se tivesse limitado a piscar o olho a Susana que, apesar do seu estado, acenou, mostrando ter entendido. Sabia a priori que, caso fizesse perguntas, o deixaria constrangido e, quando ele quisesse, se quisesse, poderia contar-lhe o que quer que fosse. Podia, tanto quanto se apercebera, considerar cumprida a profecia que fizera a Guida, havia uns bons anos atrás, na qual dissera que haveria de haver qualquer coisa entre Afonso e Leonor. Além disso, iria parar com as suspeitas de Guida de que ele era homossexual, com sorte.

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Ainda que aquela voz insegura tivesse surgido dentro da sua cabeça para o fazer pensar demasiado acerca de um gesto simples e não tivesse desaparecido tão cedo como dera sinais de vida, Afonso, quando encontrou um bocadinho de tempo livre por entre as inúmeras azáfamas que aquela quadra trazia consigo, achou por bem passar por casa de Leonor, ou não fosse ele achar que não aguentava até às aulas para a ver. Temia passar por lapa, mas, colocando-se no lugar da rapariga, não lhe pareceu má ideia, era, até, algo enternecedor de se fazer, tanto que decidiu seguir com o plano para a frente. Não a queria interromper caso estivesse a fazer algo importante, fosse um serão com a família, fosse a hora sagrada de arranjar as unhas. E daí um gesto espontâneo acarretava sempre o seu quê de simpatia. Seria melhor avisar primeiro ou surpreender?

Preferindo a última alternativa, fez-se ao caminho, com um sorriso patusco e, num ápice, estava a centímetros do portão da casa de Leonor. Tocando à campainha, tentou domar os caracóis, servindo-se do visor do telemóvel como espelho, embora não tivesse conseguido efeitos significativos e tivesse sido surpreendido quando Tomás abriu a porta. Tomás, ao ver que Afonso não trazia Sara consigo, deu meia volta e fechou a porta, desinteressado. Se tivesse que dar o seu input na situação, diria que a irmã namorava com uma rapariga especialmente feia e não com um rapaz. Especado ao frio e, mais uma vez, sem reacção perante a audácia de Tomás, Afonso apenas conteve a sua irritação porque Leonor abriu a porta logo a seguir, tendo calçado, para bem da masculinidade dele, sapatos rasos, mas não sem que ele colocasse um post-it mental para se lembrar de retribuir o favor a Tomás.

“Ele está indisposto, desculpa”, justificou a rapariga, sentindo-se culpada por o irmão ter fechado a porta na cara de Afonso. Mais tarde repreendê-lo-ia, isso era garantido. Como ainda tinha mais uma má notícia para dar ao rapaz, disse, sentindo o peso da culpa a aumentar, acompanhando a sua ingestão de calorias daquele almoço que lhe iria direitinha para a barriga, “Íamos agora a casa dos meus avós…”

“Não tem importância, também não me contava demorar muito, só te vinha dar um beijinho”, disse o rapaz, ainda que, se dependesse de si, Leonor bem que podia considerar-se raptada. Como, ele próprio, também tencionava passar por casa dos avós mais tarde e ainda não levara Mocas a dar o seu passeio, até vinha a calhar não ficar ali muito tempo, mas, de bom grado, teria arranjado uma desculpa para se atrasar. Sem muita vontade de desperdiçar o tempo que lhes restava, segurou-lhe as mãos e, puxando-a para si, beijou-a. Não sabia como é que se iria habituar a fazê-lo sem sentir o chão a escapar-lhe debaixo dos pés, tanto que lhe parecia algo cada vez melhor.

Leonor esperava que aqueles momentos de simpatia espontânea vindos de Afonso não tivessem um final abrupto, afinal era um tratamento a que se via a acostumar a longo prazo. Até lá, restava-lhe desfrutar e era mesmo isso que tencionava fazer. Agarrando os caracóis da nuca do rapaz, intensificou o beijo, conseguindo escandalizar a vizinha idosa da frente. Teve que acalmar quando sentiu o peso morto de Afonso a cair para cima de si, “Estás bem?”

“Sim!”, respondeu ele, tão corado que não soube como é que não teve uma hemorragia. Se a rapariga se assanhava com tanta facilidade, então ele ficava ainda mais ansioso por ver o que aconteceria caso se vissem em privado. Com um historial como o dela não devia demorar muito até que chegassem “a vias de facto” e ele mal podia esperar por esse dia. Com a sua sorte ele ainda teria algum fetiche perturbante, mas preferia acreditar que seria apenas muito picante. Obrigando-se a esquecer tais pensamentos, pensamentos esses que eram mais próprios de Rúben ou de outro libidinoso qualquer do que dele, abraçou-a. Queria mesmo que as coisas dessem certo entre os dois e, no que dependesse de si, tudo iria, realmente, correr pelo melhor.


Pouco depois, Tomás, de mãos nos bolsos e ar de tédio, foi chamar a irmã, incomodado por ter que a ver naqueles preparos. Quando a apanhou de costas, fez um gesto feio com o dedo a Afonso, até que se decidiu a ir à sua vida. Decerto que Sara não se interessaria mesmo por aquele ser, ou, pelo menos, era nisso que Afonso depositava a sua fé. Beijando Leonor pela última vez naquele dia, o rapaz acabou por a deixar ir, com alguma pena claro, afastando-se, sorridente.

1 comentário:

  1. Antes de mais, podes começar a dar gritos de alegria, estou a comentar.
    Estou a gostar da história e, para já, a relação do Afonso com a Leonor está a endireitar-se. Agora quero ver os obstáculos daqui para a frente.
    Quanto ao Tomás, não sei até que ponto as intenções dele são boas. Por mim que ele pareça gostar da Sara e de como ela o acalma e o faz sentir, acho que a personalidade dele está bem vincada e a vontade de se "vingar" de todos, mesmo sem grandes motivos, parece forte.
    Quero ver até que ponto é que eles se aproximam ou não, e até que ponto a Sara vai confiar nele ou não.
    Para além de que, quando o Afonso souber, não vai ser bonito.

    Ah, e isto de postares de mês a mês...
    A viajante dos blogues :) *

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